1 A REPRESENTAÇÃO DOS CONFLITOS FEMININOS ... - Unesp
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X SEL – Seminário de Estudos Literários<br />
UNESP – Campus de Assis<br />
ISSN: 2179-4871<br />
www.assis.unesp.br/sel<br />
sel@assis.unesp.br<br />
A <strong>REPRESENTAÇÃO</strong> <strong>DOS</strong> <strong>CONFLITOS</strong> <strong>FEMININOS</strong> PÓS-MODERNOS EM CONTOS DE<br />
SÔNIA COUTINHO<br />
Wilma dos Santos Coqueiro (Mestre – FECILCAM) 1<br />
RESUMO: A partir, sobretudo dos anos 70, com o boom da Literatura de autoria feminina, destacam-se<br />
no cenário da Literatura Brasileira, ficcionistas como, entre outras, Márcia Denser, Helena Parente<br />
Cunha, Lya Luft, Lygia Fagundes Telles e Sônia Coutinho, as quais começam a questionar, de forma<br />
bastante incisiva, os estereótipos e as imagens construídas sobre a mulher na História e na Literatura.<br />
Contudo, apesar de terem escrito uma vasta obra, especialmente romances que representam os conflitos<br />
femininos na contemporaneidade, muitas dessas autoras ainda aguardam estudos que contemplem a<br />
profundidade, a renovação estilística e a complexidade de suas obras. Desse modo, esse trabalho, que<br />
se respalda em teorias sobre o Pós-modernismo e estudos feministas de, entre outros autores, Linda<br />
Hutcheon (1991), Elaine Swowalter (1994), Irlemar Chiampi (1996), Helena Parente Cunha (1999) e Jair<br />
Ferreira dos Santos (2000), versa sobre a representação dos conflitos femininos e crises de identidade<br />
em uma atmosfera intimista e insólita, marcada pelos moldes patriarcais, temas mapeados nos contos<br />
“Hipólito”, “Aventureira Lola”, “O dia em que Mary Batson fez 40 anos” e “Reflexões sobre a (in)existência<br />
de papai Noel” que integram a coletânea O último verão em Copacabana (1985), de Sônia Coutinho.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Literatura de autoria feminina; identidade; O último verão em Copacabana.<br />
Nas últimas décadas tem se verificado no contexto mundial uma desconstrução dos<br />
princípios e concepções do mundo ocidental. O que se tem denominado de Pós-modernismo é<br />
esse amplo movimento de derrubada das hierarquias e de representação de um universo caótico<br />
e fragmentado. Para Jair Ferreira dos Santos, “Pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças<br />
ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por<br />
convenção, se encerra o Modernismo” (1986, p. 7-8).<br />
Refletindo a descrença nas grandes utopias e nas filosofias explicativas da história, a<br />
literatura pós-moderna apresenta como características fundamentais o niilismo, o narcisismo<br />
1 Wilma dos Santos Coqueiro é Mestre em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina. Atualmente,<br />
trabalha como professora assistente na Faculdade Estadual de Campo Mourão – Fecilcam.<br />
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTU<strong>DOS</strong> LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”<br />
individualista, a presença do hiper-real, e a desreferencialização do sujeito. Segundo Jair<br />
Ferreira dos Santos, a pós-modernidade<br />
[...] é a valsa do adeus ou o declínio das grandes filosofias explicativas, dos grandes textos<br />
esperançosos como o cristianismo ( e sua fé na salvação), o Iluminismo (com sua fé na<br />
tecnociência e no progresso), o marxismo (com sua aposta na sociedade comunista). Hoje<br />
os discursos globais e totalizantes quase não atraem ninguém. Dá se um adeus ás ilusões.<br />
(1986, p. 72)<br />
Sendo um fenômeno típico das sociedades avançadas como EUA, Japão e<br />
Alemanha, no Brasil o pós-modernismo apresenta apenas alguns traços superficiais, sobretudo<br />
na ficção de autores como, entre outros, Moacyr Scliar, Luiz Vilela, Rubem Fonseca e na<br />
literatura de autoria feminina de escritoras como Helena Parente Cunha, Márcia Denser e Sônia<br />
Coutinho.<br />
Para Linda Hutcheon, o que caracteriza essas produções pós-modernas é a perda da<br />
noção de centro, ou seja, há uma intensa crítica ao denominado falo-etno-eurocentrismo pelas<br />
margens que surgem questionadoras, mas não excludentes. Isto quer dizer que vários grupos<br />
anteriormente relegados à margem como o das mulheres, dos índios, dos negros e dos gays<br />
promovem a ruptura com os valores considerados ultrapassados: “O circo com vários picadeiros<br />
passa a ser a metáfora pluralizada e paradoxal para um mundo descentralizado onde só existe<br />
ex-centricidade.( 1991, p. 88).<br />
Nessa perspectiva, quando se fala em condição pós-moderna procura-se enfatizar<br />
como as pessoas e, no caso, a arte literária procura representar o mundo atual. Para Jair<br />
Ferreira dos Santos, as palavras de ordem que descrevem a condição pós-moderna são<br />
desencanto, descrença, desordem, vazio existencial e confusão, refletindo na dificuldade de a<br />
literatura representar esse universo caótico.<br />
Daí que a fragmentação formal da narrativa pós –moderna reflete na representação<br />
ficcional da fragmentação do mundo em que circulam as personagens: “É como se a lógica e a<br />
imaginação humana falhassem ao representar a realidade, e alguma coisa estivesse esvaziando,<br />
zerando” (1986, p.108).<br />
Nesse contexto de emergência dos movimentos marginalizados é que surge a<br />
literatura de autoria feminina, que assim como outras literaturas de minoria, começa a criticar a<br />
idéia de identidade integral, originária e unificada. Para Stuart Hall, a discussão sobre o conceito<br />
de identidade sinaliza para uma construção nunca completada, sempre “em processo”. Para ele,<br />
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTU<strong>DOS</strong> LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”<br />
“no discurso da crítica feminista e da crítica cultural influenciadas pela psicanálise têm-se<br />
destacado os processos inconscientes de formação da subjetividade, colocando-se em questão,<br />
assim, as concepções racionalistas de sujeito”(2000, p. 103).<br />
Desse modo, a explosão da Literatura de autoria feminina pode ser entendida como<br />
um movimento de transgressão ao cânone imposto pelo sistema falocêntrico e está inserida no<br />
contexto histórico-cultural dos anos 60 com a eclosão do Multiculturalismo. De fato, a partir<br />
dessa década, houve uma ampla revolução cultural não somente da literatura feminina , mas de<br />
todas as culturas marginalizadas como a dos negros, dos índios, dos homossexuais, e a dos<br />
países de terceiro mundo. Esses movimentos “assumiram a retórica da ruptura, investindo na<br />
derrubada de hierarquias” (CUNHA, 1999, p. 17).<br />
Prolifera, então, no contexto mundial, uma literatura de autoria feminina que começa a<br />
questionar, de forma basta incisiva, valores até então inquestionáveis como a dependência e a<br />
submissão feminina ao jugo patriarcal bem como o valor de instituições seculares como a igreja,<br />
o casamento e a família que sempre limitaram a mulher ao domínio do lar.<br />
Segundo Nelly Novaes Coelho (CUNHA, 1999, p.11), “em todos os continentes, das<br />
Américas à Ásia, a crescente produção literária feminina revela um discurso-em-crise, que tem<br />
raízes nas profundas mudanças estruturais em processo no mundo”. Esse discurso-em-crise se<br />
manifesta numa escrita confusa que se constitui mais por negações, dúvidas, indagações do<br />
que por dar respostas e certezas a um cânone.<br />
Para a ensaísta norte-americana Elaine Showalter, “a escrita feminina pode ser lida<br />
como um discurso de duas vozes que contém uma história dominante e outra silenciada”. (1994,<br />
p. 47). Contudo, apesar do amplo desenvolvimento tanto dos estudos de crítica feminina quanto<br />
da crescente produção literária de autoria feminina, somente a partir dos anos 70 e 80, que o<br />
termo “feminismo” começa a se livrar da carga semântica pejorativa que lhe foi impingido pela<br />
tradição patriarcal.<br />
Desse modo, a partir da década de 70, com o boom da literatura de autoria feminina no<br />
Brasil, destacam-se escritoras que criam personagens emblemáticas da situação de<br />
inferioridade, submissão e busca de identidade vivenciada pelas mulheres. A professora Helena<br />
Parente Cunha, organizadora de uma importante obra que analisa a escrita de várias mulheres<br />
brasileiras, ressalta que as narrativas “focalizam personagens capazes de avaliar o estereótipo<br />
em que foram inscritas e, dispostas a se desvencilharem das máscaras e dos papéis<br />
impingidos, perguntam-se pela própria identidade” (1999, p. 18).<br />
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTU<strong>DOS</strong> LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”<br />
Baseando-se nos estudos de Elaine Showalter, a pesquisadora brasileira Elódia Xavier<br />
(2002) divide a ampla produção literária feminina brasileira em três fases. A primeira<br />
denominada de a fase feminina inicia-se em 1859 com a publicação do romance Úrsula, de<br />
Maria Firmino dos Reis, e iria até 1944 com a publicação da desconcertante obra Perto do<br />
Coração Selvagem, de Clarice Lispector. Nessa fase, as obras ainda reproduzem os moldes<br />
masculinos de escrita e as heroínas ainda se encontram submissas ao modelo patriarcal. A fase<br />
feminista, que inclui autoras de destaque nas letras brasileiras como, entre outras, Clarice<br />
Lispector, Lygia Fagundes Telles, Marina Colasanti, Márcia Denser, Lya Luft e Sônia Coutinho,<br />
abrange o período de 1944 a 1990, com obras extremamente questionadoras das ideologias e<br />
pensamentos no sentido de desconstruir os estereótipos enraizados na sociedade, constituindo-<br />
se os textos literários como protestos contra os valores vigentes. Já a última fase, a fase fêmea,<br />
que abrange o período dos últimos vinte anos, é representada por obras literárias capazes de<br />
transcender o universo estritamente feminino ao discutir temas existenciais e universais como<br />
atestam os prosaicos poemas de Adélia Prado e as narrativas perturbadoras de Nélida Piñon.<br />
Nesse sentido, nas obras da ficcionista baiana Sônia Coutinho predominam<br />
personagens que rompem com o padrão de vida burguês, vivem sozinhas, mas pagam um preço<br />
por suas escolhas. São mulheres independentes, inteligentes, cultas, liberadas sexualmente,<br />
mas que vivem em constantes crises de identidade e busca de completude.<br />
As protagonistas Madalena de “Hipólito”, Lola, do conto “A aventureira Lola” e Mary<br />
Batson de “O dia em que Mary Batson fez quarenta anos” e “Reflexões sobre a (in)existência de<br />
papai Noel” que integram a coletânea O último verão em Copacabana, de 1981, são mulheres<br />
entre os 30 e 40 anos, de classe média, de nível educacional e cultural acima da média e<br />
independentes financeiramente, portanto tudo leva a crer que estariam livres do jugo social.<br />
Contudo, a dependência emocional é bastante acentuada, levando-as à angústia, à solidão e<br />
ao vazio existencial.<br />
Nos quatro contos analisados, as protagonistas moram sozinhas em Copacabana, mas<br />
vieram de cidades interioranas, tiveram problemas com pais repressores na infância e<br />
apresentam carências profundas. São narrativas fragmentadas e labirínticas que mostram as<br />
contradições da condição feminina cindida entre a liberdade e a solidão uma vez que a<br />
emancipação financeira não levou a desejada independência psicológica e emocional. Densas e<br />
mutantes, são mulheres que necessitam da presença masculina como forma de se protegerem<br />
do mundo caótico que as envolve.<br />
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTU<strong>DOS</strong> LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”<br />
Nesse sentido, Jair Ferreira dos Santos argumenta que há na contemporaneidade um<br />
movimento de deserção social pela desmobilização do individualismo narcisista pós-moderno<br />
que tende ao descompromisso e à descrença nas instituições. Dessa forma, a deserção política<br />
marcada pela evasão dos eleitores e o êxito nas urnas de “políticos palhaços” nas últimas<br />
eleições brasileiras, bem como a deserção familiar com cada vez mais pessoas morando<br />
sozinhas e a falta de vínculos afetivos com familiares constituem-se como o inquietante ônus da<br />
derrocada do mundo patriarcal, da emancipação feminina e da liberalização sexual de nossos<br />
dias:<br />
O lar afunda. No lugar da família, guardiã moral, apoio psicológico, a pós-modernidade<br />
propõe ligações abertas, tipo amizade colorida. [...] O rei pênis e seus dois assessores<br />
impõem menos o sexo genital ante a vaga homossexual ou transexual em ascensão. Moral<br />
branda, amor descontraído. (1986, pp. 93-4).<br />
É justamente isso que causa tantos conflitos à personagem Madalena, protagonista-<br />
narradora do conto “Hipólito”, que mora em um pequeno apartamento em Copacabana que ela<br />
define como “redoma”. Divorciada de um marido e viúva de outro, é professora de música e<br />
trabalha em um conservatório, onde conhece o enigmático Hipólito. Com ele inicia um<br />
relacionamento no qual espera sanar suas profundas carências afetivas, mas ele, ao perceber<br />
que ela estava se envolvendo demais, acaba por romper o relacionamento, propondo que<br />
fossem apenas amigos:<br />
Quando me fez sofrer, eu o chamei de Hipólito – pois Hipólito era frio, enquanto Fedra, a<br />
besta apaixonada, se consumia em seu ardor. “Eu te amo”, declarei certa noite. “Estou<br />
apaixonada por você”. Cheio de medo, ele bradou: “Vamos ser amigos. Eu te ofereço minha<br />
amizade fraterna”. (UVC, p. 26).<br />
Sentindo-se sozinha e deprimida, nas atividades de análise com o Dr. Klaus, Madalena<br />
busca compreender a si mesma e reencontrar sua identidade fragmentada:<br />
(Quem sou eu afinal, Dr. Klaus – tenho interrogado meu psicanalista. Sim, quem sou eu,<br />
para além dos simples dados contidos na carteira de identidade: um nome, um endereço,<br />
uma profissão. Pois não parece estar realmente na pele dessa mulher madura e ainda bela<br />
que observo no espelho com estranheza. Separada de um marido, viúva de outro, alguns<br />
casos notórios já encerrados; sem filhos, parentes mortos, ganhando o próprio sustento.<br />
Serei eu, Dr. Klaus? (UVC, p. 23-4)<br />
Contudo, se o espelho reflete apenas a estranheza com que ela se vê e a psicanálise<br />
não aponta uma solução satisfatória aos seus conflitos existenciais, a resposta parece vir do<br />
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTU<strong>DOS</strong> LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”<br />
diálogo com um amigo, quando este lhe pergunta o que ela faz com tanta liberdade, ela<br />
responde angustiada: “Você deveria perguntar o que faço com tanto solidão” (UVC, p. 23). Esse<br />
diálogo mostra a mais cruel faceta da liberação feminina, após os movimentos culturais dos anos<br />
60, ou seja, a emancipação trouxe independência financeira, mas também desamparo às<br />
mulheres. Ao ruírem as instituições sagradas da sociedade ocidental como o casamento e a<br />
família, as mulheres deixaram de ter um porto seguro.<br />
Já Lola, a aventureira de nome genérico, protagonista do conto “Aventureira Lola”, é<br />
assim como Madalena, uma mulher independente, bonita, culta, um pouco frívola, divorciada de<br />
cinco maridos, fez viagens ao exterior, mas sofre por causa de um telefone que não toca, numa<br />
“árida tarde de domingo em Copacabana, embora ele tivesse dito que telefonaria” (UVC, p. 23).<br />
Enquanto espera ansiosamente que o seu novo amante lhe telefone, ela começa a refletir sobre<br />
fatos de sua vida.<br />
Lola , assim como muitas personagens femininas da década de 80, é independente<br />
economicamente, liberada sexualmente, mas não consegue desvencilhar-se da carência<br />
emocional que a atinge irremediavelmente. Isso mostra, conforme dito anteriormente, que a<br />
independência feminina econômica não levou à emancipação emocional e que a busca por um<br />
homem ainda é o objetivo primordial dessas personagens: “Ah, agora todo mundo pensa que ela<br />
é uma Mulher Independente e Emancipada, quando não passa, ahn, de uma pequena criatura<br />
solitária e sofrida, marcada por tantas Carências Afetivas Insanáveis” (UVC, p.33). Nas sessões<br />
de análise com o Dr. Klaus – figura recorrente nos contos de Sônia Coutinho – ela analisa suas<br />
frustrações e constante insatisfação pela ótica “da rejeição dos pais, na infância e de tantos<br />
Amores Fracassados” (UVC, p. 34).<br />
O espelho, metáfora recorrente na literatura feminina contemporânea, que remete à<br />
busca pela identidade, confirma o que as sessões de análise indicam e representa o modo como<br />
Lola se vê: “Portanto se levanta agora e vai confirmar a declaração do espelho do banheiro, em<br />
que reencontra – sim, a Mulher como um Passado, esta Mulher Sofrida, um tanto frívola, é claro,<br />
mas só um tantinho”. (UVC, p. 37).<br />
Já a escritora Mary Batson aparece como protagonista-narradora de dois contos<br />
extremamente perturbadores: “O dia em que Mary Batson fez 40 anos” e “Reflexões sobre a<br />
(in)existência de papai Noel”. O primeiro conto mostra a protagonista no dia de seu aniversário<br />
de 40 anos, sentindo-se solitária e desamparada, com todos os sonhos fracassados. Mesmo<br />
procurando viver um dia normal indo à praia e depois ao trabalho numa biblioteca pública, Mary<br />
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTU<strong>DOS</strong> LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”<br />
demonstra toda a infelicidade e frustração que a atinge, a sentir que a vida caminha em linha<br />
descendente. “Mary Batson, uma mulher, caminha descalça, agora sobre o tapete verde da sala,<br />
em sua insônia pontiaguda, qual lâmina afiada. Anseia pela luz do dia, que a conduzirá de novo<br />
para a companhia dos outros, embora superficial e provisória” (UVC, p. 58).<br />
No segundo conto, com o insólito título “Reflexões sobre a (in)existência de papai<br />
Noel”, Mary inicia sua narrativa em uma sessão de psicanálise com o Dr. Klaus sobre o impacto<br />
da descoberta da inexistência do papai Noel. É claro que essa descoberta é uma metáfora da<br />
perda das fantasias por parte da protagonista que chegara aos 40 anos, desiludida e amarga.<br />
Sabe, Dr. Klaus, acho que o senhor já podia me dar alta da análise. Não acredito que ainda<br />
possa fazer alguma coisa por mim. Eu sou isso – meus conflitos, minha insatisfação, minhas<br />
carências afetivas, essa constante e dolorosa sensação de perda. Acima de tudo, minha<br />
solidão. São coisas que me doem, mas que também aprecio, porque essas coisas sou eu.<br />
(UVC, p. 75)<br />
A atividade de análise se não resolveu suas angústias afetivas, mostrou-lhe que é<br />
possível conviver com as frustrações e traumas: “É quase certo que vou carregar minha<br />
esquisitisse até a morte” (UVC, p. 78). Se para ela o “potencial do amor secou” nem mesmo o<br />
sexo livre lhe daria algum prazer: “E talvez falasse de seus últimos casos amorosos, tão<br />
decepcionantes. Não se apaixonava mais por ninguém e estava achando todos os homens<br />
horrendos, menos o seu analista” (UVC, p. 79).<br />
Ao contrário de Lola e Madalena, na faixa dos 30 anos e que ainda acreditam<br />
encontrar um amor, Mary mostra todo o peso da realidade á uma mulher de 40 anos, sozinha,<br />
trabalhando para sobreviver e sem ilusões: “A análise me mostrou que as fantasias são só<br />
fantasias. Agora estou procurando olhar de frente o real , mas não me sinto nada animada.<br />
Queria que o senhor invertesse tudo, que devolvesse minhas fantasias, mostrasse que a<br />
realidade é mágica” (UVC, p.80). Sabendo que a análise não poderá devolver as ilusões e<br />
fantasias perdidas, Mary resolve encerrar o tratamento, sabendo que precisa “curtir a dor” de<br />
viver a realidade.<br />
Nos dois contos que representam a história de Mary Batson, assim como outros da<br />
coletânea, é recorrente a imagem da heroína de histórias em quadrinhos Mary Marvel que dizia<br />
shazan e voava. Essa projeção na imagem da heroína com superpoderes reflete o desejo<br />
dessas personagens na sua busca incessante de superação dos conflitos e de liberdade:<br />
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTU<strong>DOS</strong> LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”<br />
Mas nenhum raio mágico vara a escuridão para transformá-la em Mary Marvel – há apenas<br />
o deserto da sua insônia, nenhuma flor ou folha a sua insônia, ausência de toda a umidade,<br />
a sua insônia escura e seca” (UVC, p. 58)<br />
Correndo e arfando, pensa outra vez em sua personagem favorita das histórias em<br />
quadrinhos que lia quando era menina – Mary Marvel. Que era na vida cotidiana – Mary<br />
Batson – mas bastava dizer Shazan para se transformar. Ficava invunerável e saia voando,<br />
era capaz de resolver qualquer problema” (UVC, p. 79)<br />
É importante perceber que nesses contos a identificação da personagem com a<br />
heroína da história em quadrinhos indica uma constante na literatura de Sônia Coutinho: a<br />
intertextualidade com elementos massivos da cultura midiática. Essa característica, marcante da<br />
literatura dita pós-moderna aponta que a fragmentação formal reflete na fragmentação do<br />
conteúdo narrativo. Irlemar Chiampi (1996) em um estudo acerca do romance latino-americano<br />
do pós-boom faz considerações importantes sobre como “os gêneros espúrios invadiram a seara<br />
da alta literatura” (1996: p. 77).<br />
Essas considerações podem ser aplicadas aos contos de Sônia Coutinho. Para o<br />
autor, “a ficção latino-americana vem desenvolvendo uma bem sustentada apropriação dos<br />
gêneros que os meios massivos consagram, o povo consome e a elite abomina” (1996, p. 77).<br />
Ainda segundo ele, a reciclagem e\ou reutilização desses sub-produtos como, entre outros,<br />
história de detetives, musicais, cinema, filmes policiais, histórias em quadrinhos, musica popular,<br />
surgiram com a modernização e atestam o interesse dos ficcionistas de representarem as crises<br />
e os conflitos da época contemporânea. Nessa perspectiva, pode se compreender que as<br />
heroínas de histórias em quadrinhos bem como as atrizes americanas que permeiam os contos<br />
de Sônia Coutinho são reutilizáveis\recicláveis na medida que contribuem para acentuar a<br />
questão da busca de identidade dessas protagonistas que perambulam pelo universo caótico e<br />
fragmentado da contemporaneidade.<br />
Um aspecto bastante recorrente nos contos analisados é, além da presença constante<br />
do psiquiatra Dr. Klaus conforme já analisado, a dependência à bebida alcoólica pelas<br />
personagens. Nos momentos de solidão e angústia, o álcool surge como compensação às<br />
frustrações.<br />
Assim, Madalena, nas longas noites de insônia, pensando no amor não correspondido<br />
por Hipólito, bebe um martini que com seu sabor agridoce metaforiza os desdobramentos<br />
amargos de sua relação com Hipólito: “um raio de sol ecoou pela fenda envidraçada da parede e<br />
incidiu precisamente na cereja rosa-choque do meu martini doce. Observando o brilho dourado e<br />
translúcido, que iluminava a taça, me veio à mente uma palavra – agridoce”. (UVC, p. 27).<br />
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTU<strong>DOS</strong> LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”<br />
Lola, por sua vez, varia do chope ao conhaque ou uísque ao lembrar dos momentos<br />
que passou com algum ex-marido. O álcool surge nos momentos de solidão e nostalgia da<br />
protagonista, evidenciando o sentimento de vazio existencial, deslocamento e consumismo<br />
frívolo:<br />
E então se pode beber com mais gosto, substituindo o chope habitual se não propriamente<br />
por um conhaque – como aquele Martell que ela costumava consumir, em companhia do<br />
Quarto Marido, num café de Boulevard Saint- Michel, três anos atrás, a espiar através dos<br />
vidros o denso nevoeiro parisiense – por um uísque puro mesmo. (UVC, p. 32)<br />
Já Mary Batson. que sonhava ter os superpoderes atribuídos pelas deusas da<br />
mitologia greco-romana à heroína Mary Marvel, demonstra toda a sua vulnerabilidade ao<br />
admitir que consome álcool praticamente todos os dias:<br />
Mary foi à geladeira, pegou uma latinha de cerveja, despejou no copo. Cada dia bebia mais<br />
cervejinhas? E daí? Não era bom? Bebeu devagarinho e, antes de bater a porta e descer<br />
para ir à biblioteca em que trabalhava na parte da manhã, repassou o que, provavelmente,<br />
seria o seu dia. (UVC, 82)<br />
Dessa forma, todos os contos analisados representam a insatisfação feminina nos<br />
anos 80 e a sua (im)possível busca de ultrapassagem à margem. As atividades de análise,<br />
presente em todos os contos da coletânea e o consumo recorrente do álcool, apensas<br />
evidenciam os percalços a percorrer e a busca incessante por autocompreensão, mas não<br />
respondem às questões mais profundas e latentes dessas personagens que se descobriram no<br />
recalque, na repressão, na dor e na busca por liberdade e identidade.<br />
Segundo Laura Silveira de Paula (in CUNHA, 1999, p. 92), Sônia Coutinho é uma<br />
autora “capaz de mergulhar em abismos de interioridade existencial.” Assim, como representante<br />
da fase feminista da literatura de autoria feminina brasileira, ao estruturar suas obras em torno<br />
das relações desiguais de gênero, ela mostra nas diversas personagens femininas de seus<br />
contos a maestria de quem conhece seus conflitos, seus anseios e suas buscas.<br />
Referências bibliográficas<br />
CHIAMPI, Irlemar. O romance latino-americano do pós-boom se apropria dos gêneros da cultura<br />
de massa. Revista de Literatura Comparada. v. 3. nº3. 1996.<br />
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTU<strong>DOS</strong> LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”<br />
COUTINHO, Sônia. O último verão em Copacabana. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.<br />
CUNHA, Helena Parente. (org.) Desafiando o Cânone: Aspectos da literatura de autoria<br />
feminina e masculina na prosa e na poesia (anos 70 e 80). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,<br />
1999.<br />
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença:<br />
a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.<br />
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991<br />
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2000.<br />
SHOWALTER, Elaine. A crítica feminina no território selvagem. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque<br />
(org.). Tendências e impasses. O feminino como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.<br />
pp. 23-57.<br />
XAVIER, Elódia. A hora e a vez da autoria feminina: de Clarice Lispector a Lya Luft. In:<br />
DUARTE, E. (org.). Gênero e representação na literatura brasileira. Coleção Mulher & Literatura.<br />
Vol. II. Belo Horizonte: Pós Graduação em Letras – Estudos Literários: UFMG, 2002.<br />
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