1 RELEITURA DO CÂNONE ROMÂNTICO POR ÁLVARO ... - Unesp
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X SEL – Seminário de Estudos Literários<br />
UNESP – Campus de Assis<br />
ISSN: 2179-8471<br />
www.assis.unesp.br/sel<br />
sel@assis.unesp.br<br />
<strong>RELEITURA</strong> <strong>DO</strong> <strong>CÂNONE</strong> <strong>ROMÂNTICO</strong> <strong>POR</strong> <strong>ÁLVARO</strong> CAR<strong>DO</strong>SO GOMES<br />
Maira Angélica Pandolfi (Doutora – UNESP)<br />
RESUMO: A obra Os rios inumeráveis, de Álvaro Cardoso Gomes, considerada um romain fleuve por<br />
Marilene Weinhardt, é composta por nove episódios independentes. Esses nove episódios traçam um<br />
painel de cinco séculos da história do Brasil, de 1500 a 1964, enfocando momentos decisivos de nossa<br />
história cultural por meio da transmigração da alma do exilado português Fernão Matias Ribeiro, que<br />
assume diversos nomes e identidades ao longo da obra. Ao transitar por períodos importantes da história<br />
do país, como a Inconfidência mineira, Canudos, a Revolução de 30 e a ditadura militar, a obra composta<br />
por episódios aparentemente independentes em sua estrutura revela uma especial destreza de seu autor<br />
que, na opinião de Antônio Roberto Esteves, consegue atar os fios intertextuais oriundos de quase todo o<br />
cânone universal. É, portanto, sob a perspectiva de uma releitura do cânone romântico que enfocaremos<br />
o episódio intitulado “A queda da Casa de Creek”, subtitulado “Noite na Taverna”, com a intenção de<br />
analisar a releitura que Álvaro Cardoso Gomes realiza de um importante personagem histórico e literário<br />
de nossas letras, o escritor Álvares de Azevedo. Essa releitura baseia-se, em nossa opinião, na crítica de<br />
Afrânio Peixoto, publicada na Revista Nova, em 1931, cujo mérito é a de ter sido a primeira, na recepção<br />
crítica da obra de Álvares de Azevedo, que caracterizou a obra Noite na Taverna de conto fantástico,<br />
único em nossas letras, situado entre o horror de Poe e de Hoffmann, e a perversão de Byron e<br />
Baudelaire.<br />
PALAVRAS-CHAVE: releituras do cânone; Álvaro Cardoso Gomes; intertextualidade; romance histórico;<br />
Álvares de Azevedo.<br />
A obra Os rios inumeráveis (1997), de Álvaro Cardoso Gomes, revisita a crítica e a<br />
história da literatura nacional, além de várias obras da literatura mundial, umas mais conhecidas<br />
e outras nem tanto, realizando um longo percurso que abarca vários séculos da história cultural<br />
brasileira. Além disso, questiona, via ficção, lugares comuns propagados no discurso<br />
historiográfico e literário.<br />
Álvaro Cardoso Gomes dividiu a sua obra em nove episódios, aparentemente<br />
independentes, e que recebem, cada um, o nome de Livro. Cada Livro é composto de quatro<br />
capítulos e toda a tessitura da obra é costurada por um fio que une os episódios, ainda que eles<br />
possam ser lidos separadamente. Esse fio é a presença constante de um espírito que reencarna<br />
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ANAIS <strong>DO</strong> X SEL – SEMINÁRIO DE ESTU<strong>DO</strong>S LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”<br />
em diversos espaços e situações, metamorfoseando-se e assumindo inúmeras identidades. Por<br />
isso, é de suma importância identificar, na obra, a presença desse espírito que é apresentado, a<br />
princípio, como um degredado português que leva o nome de Fernão Matias Ribeiro, mas que ao<br />
reaparecer em outras épocas e espaços também assume formas e nomes diversos como o<br />
peixe-boi Matu; o negro Matulu; o escravo Matias; o delator dos inconfidentes Fernando Ribeiro;<br />
o falso Lord Creek, que era o embusteiro Matias Ribeiro; o senhor Ribeiro que contracena com<br />
um coronel; o chefe do bando de cangaceiros Matias Fernando Ribeiro, dentre outros. Em todos<br />
os nomes que adquire há marcas de que se mantém algo do nome original (Matias) ou do<br />
sobrenome Ribeiro. Da mesma forma, o nome “Ribeiro” dado ao espírito que reaparece sob<br />
diversas identidades, sugere que o romance flui como um rio e, muito acertadamente, é<br />
considerado por Marilene Weinhardt (2000) como um roman fleuve.<br />
Para o crítico literário Massaud Moisés (2004, p. 407), o termo roman-fleuve pode<br />
caracterizar obras ficcionais que se organizam em ciclos contínuos, à semelhança do curso de<br />
um rio, e que comportam inúmeras personagens e ações que se sucedem e se imbricam. De<br />
forma semelhante o define Caio Gagliardi (2006, p.14), porém com uma caracterização mais<br />
próxima da obra em questão quando se refere a roman fleuve como romances cuja personagem<br />
principal não é um indivíduo, mas um conjunto de indivíduos, e conclui que “tal qual uma<br />
sinfonia, ou um enorme afresco, orquestram a saga de uma família, de uma sociedade ou<br />
mesmo de uma nação”. Esse jogo de identidades revela-se plenamente na narrativa de Álvaro<br />
Cardoso Gomes e, por isso, no capítulo em que Fernão assume a forma de manati (peixe-boi),<br />
sua consciência dividida e submersa no sonho declara: “[...] eu que sou como a água, a própria<br />
água correndo, forma sem forma, incompleta servidão ao um que é todos [...]” (GOMES, 1997, p.<br />
88-89). Impossível não lembrar, desse modo, do poeta moderno que abarca a pluralidade sem<br />
perder a individualidade: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta/ Mas um dia afinal eu<br />
toparei comigo [...]” (ANDRADE, 1987, p. 211).<br />
As múltiplas máscaras usadas pelo protagonista deixam entrever sua essência<br />
donjuanesca, seja na figura do degredado Fernão Matias Ribeiro, do Caguara, o bebedor de<br />
caium, do peixe-boi Matu ou do negro Matias, enfim, todas as identidades assumidas pelo<br />
espírito do degredado português encarnam um sedutor incorrigível, desde o primeiro episódio,<br />
em que seduz a índia Ibacoby ou quando vira peixe-boi e seduz a princesa Mana ou, ainda,<br />
quando o negro Matias enfeitiça a mulher branca. Em todos os episódios torna-se evidente a<br />
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força diabólica que arrasta a todos que se aproximam dele, até desaguar no herói byroniano do<br />
Livro V, o Lord Matias Creek, que tenta seduzir o trio de poetas românticos.<br />
O Livro V tem como título “A queda da casa de Creek”, que não deixa dúvida com<br />
relação à intertextualidade que se estabelece com o texto “A queda da casa de Usher”, de<br />
Edgard Allan Poe. Além disso, Álvaro Cardoso Gomes elege, para contrastar com Poe, a obra<br />
Noite na taverna, subtítulo que introduz o primeiro capítulo do Livro V e que tem como narrador-<br />
personagem o escritor romântico Álvares de Azevedo.<br />
A história presente no Livro V refere-se às aventuras do trio de poetas byronianos<br />
composto por Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Fagundes Varela que, em uma taverna,<br />
conhecem o misterioso Lord Matias Creek. O trio é conduzido ao solar do Lord e, durante o<br />
percurso, o narrador Álvares de Azevedo assinala: “aquela viagem, para mim, assemelhava-se<br />
em tudo aos relatos de um Hoffmann, aos pesadelos, às fantasmagorias que atormentavam as<br />
noites de Edgard Allan Poe” (GOMES, 1997, p. 206). Nessa passagem, Álvaro Cardoso Gomes<br />
coloca o personagem Álvares de Azevedo como leitor de Hoffmann e Poe. Essa associação foi<br />
feita, pela primeira vez, por Afrânio Peixoto, em seu artigo intitulado “A originalidade de Álvares<br />
de Azevedo”, publicado na Revista Nova em 1931:<br />
A Noite na taverna é um conto fantástico e um conto perverso: aí duas influências<br />
explícitas, citadas, - de Byron, dominante na perversidade, de Hoffmann, na fantasia -, que<br />
não chega ao mistério, mas vai até à fatalidade, que assombra. Sem que se possa derivar,<br />
como fonte, há similitudes, precedências, concordâncias, com o maravilhoso do gênero,<br />
que fazem pensar em Gerardo de Nerval, Edgar Poe, Gautier, Merimée, Villiers de I’Isle<br />
Adam, que provavelmente uns, certamente outros, não conheceu ou podia conhecer<br />
Álvares de Azevedo. Entretanto, ou por isso mesmo, a sua originalidade. Toda a<br />
perversidade do amor aí está; todas as fatalidades possíveis da vida, também (PEIXOTO,<br />
1931, p.340).<br />
A inserção de Noite na Taverna na tradição gótica foi uma inovação na recepção crítica<br />
da obra de Álvares de Azevedo que, ainda nas primeiras décadas do século XX, apresentava<br />
uma forte tendência ao biografismo e à crítica psicanalítica, tal como demonstra o artigo “Amor e<br />
Medo”, de Mário de Andrade, que representa corrente oposta à de Afrânio Peixoto; ambos<br />
artigos publicados no mesmo número da Revista Nova, em 1931, evidenciando as duas<br />
tendências referidas.<br />
O que nos levou, portanto, a repensar os apontamentos críticos de Afrânio Peixoto<br />
como contraponto para a análise do Livro V de Álvaro Cardoso Gomes foi a versão ficcional<br />
deste que caminha ao lado da crítica daquele. Em outras palavras, Álvaro Cardoso Gomes<br />
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consegue criar um Álvares de Azevedo que, como aponta Afrânio Peixoto, dialoga com toda uma<br />
tradição gótica, tanto europeia como americana.<br />
Nas mãos de Álvaro Cardoso Gomes, o fantástico e o perverso presentes em Noite na<br />
taverna são reelaborados e atualizados, dando uma pequena mostra de que os elementos<br />
introduzidos pela geração de Álvares de Azevedo podem, por meio da paródia, encantar e<br />
aguçar a imaginação do leitor moderno. Assim, o autor consegue criar uma ficção que alude ao<br />
que Onédia de Carvalho Barboza (1974, p. 24) chamou de “Romantismo paulista” e que, no<br />
Brasil, ficou muito associada à figura de Byron, embora o gosto pelo demoníaco e até a temática<br />
do incesto, também sugerida no texto de Poe, fossem tendências do Romantismo em geral e<br />
não imitação de um autor ou outro como a crítica do romantismo costuma assinalar. Tais<br />
tendências teriam florescido, segundo Mário Praz (1996, p. 83), a partir do romance gótico, do<br />
qual Byron também sofreu forte influência. Assim, Lord Creek, uma espécie de “Byron brasileiro”,<br />
revela-se aos olhos do personagem Álvares de Azevedo sob uma vestimenta vampiresca;<br />
imagem que ficou muito associada ao poeta inglês devido a um equívoco do diretor da revista<br />
New Monthly Magazine em atribuir a novela macabra de Polidori, The Vampire (1819), a Byron<br />
(PRAZ, 1996, p. 89). A relação entre o Lord Matias Creek com Byron surge na ficção de Álvaro<br />
Cardoso Gomes por meio da referência direta, pois o personagem Álvares de Azevedo, ao<br />
avistá-lo, pergunta-se “Quem seria ele? Um Shelley, um Byron, exilado no Brasil?” (GOMES,<br />
1997, p. 203). Contudo, para compreendermos a caracterização dessa personagem e da<br />
releitura que, por meio dela, Álvaro Cardoso Gomes realiza da tradição gótica e do “Romantismo<br />
paulista”, convém levar em conta as considerações do próprio autor, que explicita em seu<br />
Posfácio:<br />
O Livro V é grosseira paródia de “A Queda da Casa de Usher”, de Edgar Allan Poe. Notamse<br />
também estilemas de Noite na Taverna e de poemas de Álvares de Azevedo. Aqui e ali<br />
há imagens roubadas de À Rebours, do excêntrico Huysmans, de As Minas do Rei<br />
Salomão, de Ridder Haggard, na saborosa tradução de Eça de Queirós, que tornou o<br />
romance mais palatável e de poucos e sórdidos detalhes da vida de Oscar Wilde.<br />
Humildemente, contudo, não me custaria reconhecer que o fragmento poderia lembrar mais<br />
“A Queda da Casa de Usher” de Roger Corman do que a do próprio Poe. Nesse caso,<br />
quem porventura identificar as feições do meu Roderick Usher com as de Vincent Price não<br />
estará muito longe da verdade (GOMES, 1997, p. 427).<br />
Na transcrição acima, Álvaro Cardoso Gomes atesta que sua ficção mantém um<br />
diálogo não apenas com a literatura, mas também com o cinema gótico, que incrementou as<br />
feições dos heróis saídos da pena de Edgar Allan Poe. A figura do Lord de Álvaro Cardoso<br />
Gomes apresenta-se ante os românticos com uma impressionante capacidade de provocar, ao<br />
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mesmo tempo, pavor e fascínio. É, portanto, nesse jogo de atração e repulsa que a personagem<br />
agiganta-se e ganha contornos cada vez mais convincentes e caricaturais, a ponto do<br />
personagem Álvares de Azevedo portar-se como se estivesse diante de uma tela de cinema,<br />
assistindo a um filme de terror com Vincent Price.<br />
A eleição da prosa romântica de Álvares de Azevedo como intertexto sugere não<br />
apenas a eleição de um cânone mundial, evidenciado nas inúmeras referências diretas a autores<br />
e obras presentes em Noite na Taverna e, também, por meio de referências indiretas,<br />
ambientação e temas presentes em autores e obras importantes do romantismo em geral e que<br />
teriam servido de paradigma para o nosso romantismo. A imitação de alguns “clichês” presentes<br />
nos discursos de cada época de nossa história cultural figura em toda a narrativa como resultado<br />
de uma escolha cuidadosamente elaborada por Álvaro Cardoso Gomes para incorporar<br />
procedimentos formais e temáticos que pudessem dar um tom de verossimilhança aos seus<br />
discursos e harmonizar, dentro da obra, unidade e diversidade; as partes e o seu todo. Assim, a<br />
“sala fumacenta” que introduz o primeiro capítulo do Livro V é uma referência direta à fumacenta<br />
taverna de Álvares de Azevedo que, nesse caso, é invadida pelo satânico Lord (alusão a Byron),<br />
que estabelece uma paródia com Roderick Usher, de Poe. O narrador Álvares de Azevedo nos<br />
descreve o Lord a partir das representações dadas ao herói byroniano, personagem<br />
caracterizado pelo seu jeito taciturno; pelo sofrimento expresso na face e pela presença<br />
marcante e inesquecível, com uma atração natural que faz dele um ser de nobre linhagem. É<br />
esse herói que Mário Praz (1996) classificou de sublime delinquente e cujo elemento<br />
característico é o satanismo:<br />
Dei-me conta de que estava inteiriçado pelo pavor, mas ao mesmo tempo sentia um<br />
fascínio pelo desgraçado, cuja existência parecia talhada para compor uma tragédia. Ao<br />
contemplar-lhe a face precocemente cortada pelas rugas, compreendi que a alma lhe vinha<br />
estampada na face. A dualidade entre as manifestações do espírito e a máscara que<br />
projetamos abjetamente para a sociedade, nele, deixara de existir (GOMES, 1997, p. 223).<br />
A intertextualidade com Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, ocorre<br />
primeiramente por meio da ambientação fantasmagórica sugerida pela fumaça dos charutos.<br />
Além disso, na obra de Álvares de Azevedo, a sala fumacenta também está associada à<br />
discussão que se trava, entre os ébrios estudantes, em torno da imortalidade da alma: “O fumo é<br />
a imagem do idealismo, é o transunto de tudo quanto há mais vaporoso naquele espiritualismo<br />
que nos fala da imortalidade da alma!” (AZEVE<strong>DO</strong>, 2000, p. 566). É nesse momento que o<br />
personagem Solfieri levanta a voz e desnuda a alma idealizada para defender as ideias de<br />
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Schiller no que se refere à imortalidade da alma pela metempsicose em oposição ao platonismo.<br />
A metempsicose ou a transmigração da alma, que viaja no tempo e no espaço reencarnando<br />
tanto em seres humanos como em animais carrega, na narrativa de Cardoso Gomes, sua<br />
essência donjuanesca. Na Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, Solfieri conta uma história<br />
que se passa em Roma, cujo núcleo temático é a catalepsia e a atração pela mulher morta; tema<br />
explorado também por Poe, em quem Álvaro Cardoso Gomes vai buscar elementos para compor<br />
a sua paródia. Há, no texto em análise, uma alusão a essa personagem de Noite na Taverna nas<br />
revelações do cocheiro, quando este desmascara o falso Lord, denunciando seu caso amoroso<br />
com um capitão inglês que se relacionava com um italiano chamado Alfieri. Da mesma forma,<br />
por que não pensar em uma alusão a Poe em Noite na Taverna quando, nos primeiros<br />
parágrafos, é mencionada a ave que dá nome a um dos poemas mais populares do escritor<br />
norte-americano:<br />
__Cala-te, Johann! Enquanto as mulheres dormem e Arnold – o loiro - cambaleia e<br />
adormece murmurando as canções de orgia de Tieck, que música mais bela que o alarido<br />
da saturnal? Quando as nuvens correm negras no céu como um bando de corvos errantes,<br />
e a lua desmaia como a luz de uma lâmpada sobre a alvura de uma beleza que dorme, que<br />
melhor noite que a passada ao reflexo das taças? (AZEVE<strong>DO</strong>, 2000, p. 565).<br />
Imagens voluptuosas usadas por Álvares de Azevedo em seus poemas e em sua<br />
prosa são também inseridas nas descrições do narrador-personagem Álvares de Azevedo de<br />
Cardoso Gomes. É o caso, por exemplo, da presença constante da noite e de suas criaturas<br />
que, aliás, recobrem todo o romance, além da personificação da lua, embriagada ou sonolenta,<br />
sempre escondida atrás de uma nuvem. Contudo, em algumas descrições do solar de Creek e<br />
das sensações sentidas naquele lugar são transposições da narrativa de Poe, com pequenas<br />
modificações semânticas.<br />
A temática e o estilo descritivo empregado por Álvares de Azevedo em suas<br />
correspondências ressurgem, ainda, em descrições espalhadas na prosa de Cardoso Gomes.<br />
Essa ambientação é naturalmente incorporada pelo autor que, na voz de Álvares de Azevedo,<br />
descreve a noite em que o trio romântico era conduzido ao solar de Creek:<br />
Era uma noite tempestuosa, e a neblina parecia-se a um sudário, coalhando de espectros<br />
os desvãos das escadas, os arcos dos conventos. Por entre as rotas cortinas do coche, mal<br />
se distinguiam as casas, as hortas, as árvores, iluminadas pelos lampiões. Mais adiante,<br />
pareceu-me que saíamos da cidade: as trevas envolveram-nos com seu manto, o caminho<br />
tornara-se esburacado; de vez em quando, os cavalos empacavam, o cocheiro praguejava,<br />
chicoteando-os impiedosamente. Transidos de frio, encolhíamos-nos, cruzando os braços<br />
sob a capa de estudante. O rude cenário, a escuridão só faziam acentuar o clima de<br />
mistério, excitando ainda mais nossa imaginação: aquela viagem, para mim, assemelhava-<br />
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se em tudo aos relatos de um Hoffmann, aos pesadelos, às fantasmagorias que<br />
atormentavam as noites de Edgard Allan Poe (GOMES, 1997, p. 206).<br />
Nessa descrição, Álvaro Cardoso Gomes explicita o diálogo entre Álvares de Azevedo,<br />
Poe e Hoffmann, visto que a ambientação dada tanto por Álvares de Azevedo quanto Poe em<br />
seus contos derivam, em grande parte, das sugestões trazidas por Hoffmann. Agora vejamos<br />
este trecho da carta que Álvares de Azevedo enviou ao seu amigo em julho de 1848, cujas<br />
descrições parecem tão ou mais fantasmagóricas do que aquelas espalhadas na ficção de<br />
Cardoso Gomes:<br />
[...] E além, lá ao longe, se levantava a cidade negra; os lampiões, abalados pela ventania,<br />
pareciam meteoros efêmeros que se levantam das paludes e que as tradições do norte da<br />
Europa julgavam espíritos destinados a distrair viandantes, a correrem sobre o pântano<br />
imenso e preto [...] ou estrelas de fogo, faíscas de alguma fogueira do inferno semeadas<br />
sobre o campo negro [...] (AZEVE<strong>DO</strong>, 2000, p. 801).<br />
Álvaro Cardoso Gomes evidencia uma intensa relação com a obra de Álvares de<br />
Azevedo, imitando seu estilo e utilizando procedimentos parodísticos semelhantes aos que este<br />
poeta utilizou em sua Lira dos Vinte Anos. Nesse sentido, não podemos ignorar, ainda, a<br />
inserção da fina ironia do narrador - personagem Álvares de Azevedo, retratado na ficção de<br />
Cardoso Gomes, que expõe a face oposta das musas idealizadas na poesia romântica de então,<br />
tal como o próprio poeta deixou explícito em seu projeto estético fundado na binômia e que o<br />
coloca numa posição singular dentro do contexto literário brasileiro, antecipando tendências que<br />
somente viriam à luz no modernismo. Desse modo, o narrador-personagem Álvares de Azevedo,<br />
num primeiro momento, declara na narrativa sua paixão por Laura:<br />
E quanto a mim, apaixonara-me por Laura, um anjo, que, os pulmões corroídos pela tísica,<br />
terminava os dias numa casa de saúde, esperando o momento de unir-se ao Criador. “Em<br />
sonhos te vejo, te quero em sonhos,/Alva como a lua, como um lírio”, dizia, segurando-lhe<br />
as mãos geladas, cujas veias palpitavam debilmente (GOMES, 1997, p. 202).<br />
Num segundo momento, o poeta-narrador deixa o papel e a taverna, onde cantava os<br />
amores idealizados embriagado com seus amigos, volta-se para a realidade e canta a desilusão:<br />
O próximo fui eu, quando uma noite deparei no necrotério o cadáver de Laura. Que estrago<br />
a indesejada fizera em seu corpo de menina! A pele embaciara-se de todo, da boca e das<br />
narinas, escorria um líquido negro, atraindo multidões de moscas, e os vermes, pululando,<br />
faziam dela sua morada (GOMES, 1997, p. 203).<br />
Para Cilaine Alves (1998, p. 69), atuam na obra de Álvares de Azevedo temas e<br />
dispositivos técnicos que, num primeiro momento, tentam legitimar uma determinada concepção<br />
de poesia que vem a ser, num segundo momento, “fonte de riso e de escárnio indicando que,<br />
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agora, esses mesmos elementos, numa inversão especular, tornaram-se avatares da<br />
negatividade”. Com procedimentos semelhantes, Álvaro Cardoso Gomes introduz, no segundo<br />
capítulo, um dos temas mais recorrentes nas obras de Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e<br />
Álvares de Azevedo, sobretudo deste último, que é o tema da bela adormecida, onde o<br />
personagem Álvares de Azevedo narra alguns sinais de catalepsia, com imagens que aludem ao<br />
relato de Solfieri em Noite na Taverna e também ao conto de Hermann, na mesma obra, onde<br />
também figura uma mulher chamada Eleonora. Assim, o trio byroniano, totalmente envolto nas<br />
fantasias criadas por Lord Creek, um satânico e perverso burlador, é obrigado a vivenciar, no<br />
terceiro capítulo, o outro lado da Lira, ou seja, a desconstrução de todo o relato idealista dos<br />
primeiros capítulos. É, portanto, por meio das revelações do criado de Matias Creek que surge a<br />
gradação no tom, a dessacralização dos temas tratados até então, semelhante ao que realiza<br />
Álvares de Azevedo na segunda parte da Lira dos Vinte Anos. Assim, na mesma taverna em que<br />
os românticos encontraram seu herói também lhes é revelado o seu avesso por meio do riso, do<br />
escárnio e da ironia. Dessa maneira, Lord Creek converte-se em Matias Creek, o vinho em<br />
aguardente; a ceia em carne de rã; o licor em aguardente com groselha e Eleonora, a irmã de<br />
Lord Creek, a virgem morta que ele guarda na cripta, é na verdade Teluka, o amante que Matias<br />
Creek havia mandado mumificar.<br />
A leitura da obra de Álvaro Cardoso Gomes, especialmente a narrativa do Livro V aqui<br />
analisada, é reveladora de um cânone pautado no riso irreverente e provocador que, no episódio<br />
em questão, elege Álvares de Azevedo como um de nossos maiores expoentes. Por essa razão,<br />
a releitura literária que Álvaro Cardoso Gomes nos sugere desse poeta, por meio de sua ficção,<br />
ratifica não apenas a crítica de Afrânio Peixoto, mas também a de Antônio Cândido (1981) que<br />
em seu ensaio intitulado “Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban” considera Álvares de Azevedo<br />
o primeiro, antes do modernismo, a dar categoria poética ao prosaísmo cotidiano como um<br />
programa conscientemente traçado. Já uma releitura contextualizada do período histórico de<br />
nossas letras ao qual se refere Álvaro Cardoso Gomes nesse episódio alude, de imediato, a<br />
outro artigo de Antônio Cândido (1985), intitulado “A Literatura na Evolução de uma<br />
Comunidade”, que discorre sobre as relações entre literatura e comunidade paulistana reunida<br />
em torno da Academia de Direito do Largo São Francisco. Nesse artigo, Antônio Candido<br />
considera o grupo de acadêmicos, representado na ficção de Cardoso Gomes pelo trio<br />
byroniano, como um grupo marginal, justaposto e não integrado à provinciana São Paulo<br />
daquela época. Nesse patamar, os estudantes são identificados com a boêmia e com a república<br />
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(tomada aqui como sinônimo de moradia estudantil); espaços de socialização desse grupo<br />
marginal, além da academia e das sociedades que fundavam. É dessa condição marginal que<br />
emerge, para Antônio Cândido, as condições favoráveis para aquilo que o crítico chamou de<br />
sistema literário que, em síntese, significou um conjunto de produtores literários e de receptores<br />
dessas obras, bem como uma linguagem traduzida em estilo. Nesse sentido, é possível<br />
visualizar, na narrativa de Cardoso Gomes, este corpo que se impõe à comunidade por meio da<br />
adoção de uma expressão artística própria, inspirada em autores canônicos do romantismo<br />
mundial cujas obras revelavam a união dos contrastes e que, por isso, iam ao encontro daquela<br />
vivência também marcada pelo contraste entre as fantasias literárias e a estreiteza do ambiente:<br />
Aquelas mulheres – a santa, a viciosa, a morta-viva – engalanavam-nos a aridez da<br />
existência com as mais belas flores que a fantasia podia conceber. Sabíamos que Mariana,<br />
Léonie e Laura não passavam de espectros das amadas que encontrávamos em meio às<br />
páginas de Musset, Shelley, Byron, Poe, mas nossa imaginação as revestia de galas – o<br />
sonho de adolescentes apaixonados. Assim, mal deixávamos os bancos da Faculdade de<br />
Direito do Largo São Francisco, corríamos atrás das belas que alimentavam nossa vida<br />
com a esperança de um porvir cheio de realizações. E à noite, num canto da taverna,<br />
embriagávamo-nos, recordando os instantes de ventura. Uma flor atirada da janela, um<br />
sorriso numa boca que há pouco se deixara beijar despudoradamente por um notívago, um<br />
brilho nos olhos embaciados pela febre – daí nasciam os poemas que nossos corações, em<br />
soluço, ditavam ao papel (GOMES, 1997, p. 202-203).<br />
A prosa de Cardoso Gomes é como uma narrativa em camadas, na qual se mesclam,<br />
de forma mais evidente, a intertextualidade com Noite na Taverna e, como diz o autor, a “paródia<br />
grosseira” com “A queda da casa de Usher”, de Poe. Há, contudo, subcamadas que vão<br />
colorindo o texto com alusões a autores e obras diversos, mas o que perdura é a configuração<br />
conscientemente traçada pelo narrador-personagem Álvares de Azevedo de seu projeto estético<br />
fundado na binômia. Dessa maneira, no Livro V, composto de quatro capítulos, figura a alma de<br />
um poeta que “é capaz de oscilar entre anjos e demônios, atraída por tudo que possa fazer<br />
vibrar as cordas mais sensíveis do coração, para delas extrair as melodias que embriagam”<br />
(GOMES, 1997, p. 229).<br />
A releitura biográfica sugerida por Álvaro Cardoso Gomes do trio de poetas canônicos<br />
de nosso romantismo, nas figuras de Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e, especialmente,<br />
Álvares de Azevedo, questiona uma tendência da crítica literária brasileira de tomar a vida pela<br />
obra e que, muitas vezes, retratou os poetas da Academia de Direito de São Paulo como jovens<br />
devassos, praticantes das mais alucinantes orgias que Álvares de Azevedo teria descrito em sua<br />
Noite na taverna. Numa total inversão desse discurso, o autor de Os rios inumeráveis<br />
transforma, via ficção, os jovens devassos da crítica biográfica em mocinhos ingênuos,<br />
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desiludidos e abandonados por suas musas, nas quais o narrador Álvares de Azevedo confessa<br />
não passarem de “espectros das amadas que encontrávamos em meio às páginas de Musset,<br />
Shelley, Byron, Poe [...]” (GOMES, 1997, p. 202). Nessa passagem também é reiterada a<br />
presença de Poe como autor que teria inspirado a configuração das personagens femininas dos<br />
românticos brasileiros, representadas, na ficção de Cardoso Gomes, sob os arquétipos da<br />
mulher santa, da prostituta e da morta-viva. Além disso, o escritor Álvares de Azevedo, recriado<br />
como personagem de ficção por Álvaro Cardoso Gomes, confessa em vários momentos do<br />
episódio em análise que é leitor de Poe. Ao inserir a paródia com “A queda da Casa de Usher”<br />
por meio da narração do autor de Noite na Taverna, já que se constatam elementos semelhantes<br />
entre as duas, Álvaro Cardoso Gomes torna possível, via ficção, o que foi apenas sugerido pela<br />
crítica de Afrânio Peixoto. É essa perspicácia que faz com a obra em análise consiga construir<br />
“pelas entrelinhas deixadas pelo discurso oficial ou pelas fissuras abertas da literatura canônica,<br />
novas aproximações possíveis à identidade brasileira” (ESTEVES, 2010, p. 210). Além disso,<br />
essa aproximação entre a prosa romântica brasileira e a norte-americana tem o mérito de<br />
descentralizar o olhar da crítica azevediana que sempre insistiu em voltar-se, exclusivamente, às<br />
fontes europeias.<br />
Referências bibliografias<br />
ANDRADE, Mário. In: Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte;<br />
São Paulo: Editora Itatiaia; Editora da Universidade de São Paulo, 1987. p.211.<br />
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CILAINE, A. O Belo e o Disforme: Álvares de Azevedo e a Ironia Romântica. São Paulo:<br />
Universidade de São Paulo/FAPESP, 1998.<br />
ESTEVES, Antônio Roberto. O romance histórico brasileiro contemporâneo (1975-2000). São<br />
Paulo: Ed. UNESP, 2010.<br />
GAGLIARDI, Caio. Introdução. In: QUEIROZ, Eça de. A cidade e as serras. São Paulo: Hedra,<br />
2006, p.14.<br />
GOMES, A. C. Os rios inumeráveis. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.<br />
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MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004, p.407.<br />
PEIXOTO, Afrânio. A originalidade de Alvares de Azevedo. Revista Nova. São Paulo, v. 1, n. 3,<br />
p. 338-345, set. 1931.<br />
PRAZ, M. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Tradução de Philadelpho Menezes.<br />
Campinas: Unicamp, 1996.<br />
WEINHARDT, Marilene. Revisitação ficcional à cidadela literária. In: LIMA, R. ; FERNANDES, C.<br />
(orgs.) O imaginário da cidade. Brasília: Universidade de Brasília/ São Paulo: Imprensa Oficial do<br />
Estado, 2000, p.67-87.<br />
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