A Carne, Júlio Ribeiro - Colegioecursoopcao.com.br
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Capítulo 4<<strong>br</strong> />
Lenita voltava à saúde a olhos vistos.<<strong>br</strong> />
Levantava-se cedo, tomava um copo de leite quente, dava um passeio pelo campo,<<strong>br</strong> />
almoçava <strong>com</strong> apetite, depois do almoço sentava-se ao piano, tocava <strong>com</strong> <strong>br</strong>io peças marciais,<<strong>br</strong> />
alegres, movimentadas, de ritmo sacudido.<<strong>br</strong> />
Ia ao pomar, <strong>com</strong>ia frutas, trepava em árvores.<<strong>br</strong> />
Jantava, ceava, deitava-se logo depois da ceia, levava a noite de um sono.<<strong>br</strong> />
Tomara-se garrida: mirava-se muito ao espelho, cuidava <strong>com</strong> impertinência do alinho do<<strong>br</strong> />
vestir, tomava os cabelos, que eram muito pretos, <strong>com</strong> flores de cor muito viva.<<strong>br</strong> />
Abusava de perfumes: a sua roupa <strong>br</strong>anca recendia a vetiver, a sândalo, a ixora, a peau<<strong>br</strong> />
d'Espagne.<<strong>br</strong> />
Corria, saltava, fazia longas excursões a cavalo, quase sempre a galope, estimulando o<<strong>br</strong> />
animal <strong>com</strong> o chicotinho, <strong>com</strong> o chapéu, de faces ru<strong>br</strong>as, <strong>br</strong>ilhantes os olhos, cabelos soltos ao<<strong>br</strong> />
vento.<<strong>br</strong> />
Caçava.<<strong>br</strong> />
Um dia calmoso, depois do almoço, tomou uma espingardinha Galand de que<<strong>br</strong> />
habitualmente usava, atravessou o pasto, enfiou por um carreadouro som<strong>br</strong>io, através de um<<strong>br</strong> />
vasto trato de mata virgem.<<strong>br</strong> />
Seguiu distraída, em cisma, avançou muito, foi longe.<<strong>br</strong> />
De repente prendeu-lhe a atenção um murmurejar de águas, doce, monótono, à esquerda.<<strong>br</strong> />
Tinha sede, teve desejo de beber, tomou para lá, seguindo uma trilha estreita.<<strong>br</strong> />
Parou assom<strong>br</strong>ada ante o cenário majestoso que a pouca distância se lhe adregou.<<strong>br</strong> />
No fundo de uma barroca muito vasta erguia-se um paredão de pedra negra, musgoso,<<strong>br</strong> />
talhado a pique: por so<strong>br</strong>e ele atirava-se um jorro de água que ia formar no talvegue da barroca<<strong>br</strong> />
um lagozinho manso, profundo, cristalino.<<strong>br</strong> />
Escadeando por so<strong>br</strong>e o açude natural que fechava a barroca pelo lado, baixo, derivava-se<<strong>br</strong> />
a água, sonorosa, fugitiva.<<strong>br</strong> />
No espelho calmo do lago refletia-se a vegetação luxuriante que o emoldurava.<<strong>br</strong> />
Perobas gigantescas de fronte escura e casca rugosa; jequitibás seculares, esparramando<<strong>br</strong> />
no azul do céu a expansão verde de suas copadas alegres; figueiras <strong>br</strong>ancas de raízes chatas,<<strong>br</strong> />
protraídas a estender ao longe, horizontalmente, os galhos desconformes <strong>com</strong>o grandes mem<strong>br</strong>os<<strong>br</strong> />
humanos aleijados; canchins de folhas espinhentas, a destilar pelas fi<strong>br</strong>as do córtex<<strong>br</strong> />
vermelho-escuro um leite cáustico, venenoso; guaratãs esbeltos, lisos no tronco, muito elevados;<<strong>br</strong> />
taiúvas claras; paus-d'alho verdenegrosos, viçosíssimos, fétidos; guaiapás perigosos a<strong>br</strong>olhados<<strong>br</strong> />
em acúleos lancinantes e peçonhentos; mil lianas, mil trepadeiras, mil orquídeas diversas, de<<strong>br</strong> />
flores roxas, amarelas, azuis, escarlates, <strong>br</strong>ancas -, tudo isso se confundia em uma massa<<strong>br</strong> />
matizada, em uma orgia de verdura, em um deboche de cores que excedia, que fatigava a<<strong>br</strong> />
imaginação. O sol, dardejando feixes luminosos por entre a folhagem, mosqueava o solo pardo<<strong>br</strong> />
de reflexos verdejantes.<<strong>br</strong> />
Insetos multicolores esvoaçavam zumbindo, sussurrando. Um sorocoá <strong>br</strong>onzeado soltava<<strong>br</strong> />
de uma caneleira seu sibilo intercadente.<<strong>br</strong> />
Uma exalação capitosa subia da terra, casava-se estranhamente à essência sutil que se<<strong>br</strong> />
desprendia das orquídeas fragrantes: era um misto de perfume suavíssimo de cheiro áspero de<<strong>br</strong> />
raízes de seiva, que relaxava os nervos, e adormecia o cére<strong>br</strong>o.<<strong>br</strong> />
Lenita hauriu a sorvos largos esse ambiente em<strong>br</strong>iagador, deixou-se vencer dos amavios<<strong>br</strong> />
da floresta.<<strong>br</strong> />
Apoderou-se dela um desejo ardente, irresistível, de banhar-se nessa água fresca, de<<strong>br</strong> />
perturbar esse lago calmo.<<strong>br</strong> />
Circunvolveu os olhos, perscrutou toda a roda, a ver se alguém a poderia estar<<strong>br</strong> />
espreitando.