A Carne, Júlio Ribeiro - Colegioecursoopcao.com.br
A Carne, Júlio Ribeiro - Colegioecursoopcao.com.br
A Carne, Júlio Ribeiro - Colegioecursoopcao.com.br
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
É curiosa Santos <strong>com</strong>o cidade, tem cor sua, inteiramente sua. As casas são quase todas<<strong>br</strong> />
construídas de alvenaria, <strong>com</strong> soleira e portas de granito lavrado.<<strong>br</strong> />
O ar, salitroso pelas emanações marinhas, ataca, rói, car<strong>com</strong>e a pedra. Não há ver aí<<strong>br</strong> />
superfícies lisas. tudo é áspero, caraquento, semide<strong>com</strong>posto.<<strong>br</strong> />
So<strong>br</strong>e grande parte dos telhados viceja uma vegetação aérea, forte, vivaz, gloriosa.<<strong>br</strong> />
Vista do mar, do estuário, a cidade é negra: black town lhe chamam os ingleses.<<strong>br</strong> />
Os enormes vapores transatlânticos alemães, os esquisitos e bojudos carregadores<<strong>br</strong> />
austríacos, as feias barcas inglesas e americanas de costado <strong>br</strong>anco, os mil transportes de todas<<strong>br</strong> />
as nações, entram pela ria, encostam-se à praia, varam quase em terra, afundam as quilhas no<<strong>br</strong> />
lado negro, constelado de cascas de ostras, de ossos, de cacos de louça, de garrafas, de latas, de<<strong>br</strong> />
ferros velhos, dessas mil imundícies que constituem <strong>com</strong>o que os excrementos de uma povoação.<<strong>br</strong> />
Comunicam <strong>com</strong> a terra por pranchões lisos, ou canelados a tabicas.<<strong>br</strong> />
Pelas ruas vai e vem, encontra-se, esbarra-se um enxame de gente de todas as classes e<<strong>br</strong> />
de<<strong>br</strong> />
todas as cores, conduzindo notas de consignação, contas <strong>com</strong>erciais, cheques bancários, maços<<strong>br</strong> />
de cédulas do tesouro, latinhas chatas <strong>com</strong> amostras de mercadorias. Enormes carroções<<strong>br</strong> />
articulados, de quatro rodas, tirados por muares possantes, transportam da estação do caminho<<strong>br</strong> />
de<<strong>br</strong> />
ferro para os armazéns, e deles para as pontes, para o embarcadouro, os sacos de loura<<strong>br</strong> />
aniagem, empanturrados, regurgitando de café. Homens de força <strong>br</strong>uta, portugueses em sua<<strong>br</strong> />
maioria, baldeiam-nos para bordo, so<strong>br</strong>e a cabeça, de um a um, ou mesmo dois, em passo<<strong>br</strong> />
acelerado, ao som, por vezes, de uma cantiga ritmada, monótona, excitativa de movimento <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />
um toque de corneta.<<strong>br</strong> />
Nos armazéns, vastos cimentados, mano<strong>br</strong>ando pás polidas, gastas pelo uso, batem o<<strong>br</strong> />
café, fazem pilhas, cantando também.<<strong>br</strong> />
E não deixam de ter cena elegância bárbara, <strong>com</strong> um saco vazio, so<strong>br</strong>e a cabeça, à laia<<strong>br</strong> />
de capelhar, moda árabe, talvez reminiscência inconsciente atávica.<<strong>br</strong> />
Na praia, a poucos metros da água, um <strong>com</strong>o mercado pantopolista: so<strong>br</strong>e mesas<<strong>br</strong> />
sólidas, de mármore, estendem-se alinhadas, <strong>com</strong> reflexos de aço, de prata, de ouro, os peixes<<strong>br</strong> />
admiráveis do lagamar e do alto - as tainhas gordas, de focinho rombo; os paratis que são<<strong>br</strong> />
diminutivos delas;<<strong>br</strong> />
as corvinas corcovadas, pardas; os galos espalmados, magros; os pargos de dentes e de beiços<<strong>br</strong> />
redondos, carnudos; as pescadas do alto, fulvas, enormes; os linguados, vesgos, delicados; as<<strong>br</strong> />
solhas, linguados gigantescos, macias, chatas; as garoupas, de cor de ferrugem, de olhos<<strong>br</strong> />
esbugalhados, atarracadas, escondendo sob formas <strong>br</strong>utas, um mundo de delícias<<strong>br</strong> />
gastronômicas; as pescadinhas <strong>br</strong>ancas, argênteas, <strong>com</strong> um fio de ouro verde a sulcar-lhes os<<strong>br</strong> />
flancos os bugres lisos, visguentos, feios; os camarões, <strong>br</strong>ancos, arroxados, <strong>com</strong> longas barbas,<<strong>br</strong> />
em rodas, so<strong>br</strong>e tampas de vime; os caranguejos, pelados, morosos, batendo uns nos outros a<<strong>br</strong> />
couraça sonora; os siris azulados.<<strong>br</strong> />
Em torno a casa, sob os beirais do telhado, sob toldos de pano, ao ar aberto, pilhas de<<strong>br</strong> />
laranjas, de ananases, de melancias, de goiabas, de cocos, de cachos de bananas, mil espécies<<strong>br</strong> />
de frutas em uma abundância fastidiosa, desanimadora, <strong>com</strong> um cheiro enjoativo de madureza<<strong>br</strong> />
passada; grãos, legumes, hortaliças, raízes, ervas de tempero, tomates, pimentas; quadrúpedes e<<strong>br</strong> />
aves, domésticas e selvagens, leitões, quatis, perus, tucanos; conchas, caramujos, esteiras,<<strong>br</strong> />
cordas, quinquilharias, uma babel, um <strong>br</strong>icà-<strong>br</strong>ac infernal.<<strong>br</strong> />
Às três horas <strong>com</strong>eça de cessar o movimento: a população emigra para São Vicente e<<strong>br</strong> />
para a Barra. À tarde a cidade está silenciosa, deserta, morta. Há todos os dias uma transição<<strong>br</strong> />
crua, <strong>br</strong>usca, da agitação para o marasmo, que dá tristeza.<<strong>br</strong> />
Eu subi ao Monserrate.<<strong>br</strong> />
É uma eminência de cento e sessenta e cinco metros, quase a prumo, coroada por uma<<strong>br</strong> />
igrejinha <strong>br</strong>anca, o que se pode imaginar de mais pitoresco, de mais singelamente grandioso, de<<strong>br</strong> />
mais encantador.