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A Carne, Júlio Ribeiro - Colegioecursoopcao.com.br

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O escravo, a quem ela fizera tirar o ferro do pé, fugira de fato, <strong>com</strong>o tinha previsto o<<strong>br</strong> />

coronel: um dia voltou preso, amarrado <strong>com</strong> uma corda pelos lagartos dos <strong>br</strong>aços, trazido por<<strong>br</strong> />

dois caboclos.<<strong>br</strong> />

Que não havia remédio, disse o coronel, que dessa feita o negro tinha de tomar uma<<strong>br</strong> />

funda mestra por ter abusado do apadrinhamento de Lenita, que ia tomar a pôr-lhe o ferro, e que<<strong>br</strong> />

não o tiraria mais nem à mão de Deus Padre.<<strong>br</strong> />

Lenita, muito de adrede, não intercedeu. Sentia uma curiosidade mordente de ver a<<strong>br</strong> />

aplicação do bacalhau, de conhecer de vista esse suplício legendário, aviltante, atrozmente<<strong>br</strong> />

ridículo. Folgava imenso <strong>com</strong> a ocasião talvez única que se lhe apresentava, <strong>com</strong>prazia-se <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

volúpia estranha, mórbida na idéia das contrações de dor, dos gritos lastimados do negro<<strong>br</strong> />

misérrimo que não , havia muito lhe despertara a <strong>com</strong>paixão.<<strong>br</strong> />

Disfarçadamente, habilmente, sem tocar de modo direto no assunto, conseguiu saber do<<strong>br</strong> />

coronel que o castigo havia de ter lugar na casa do tronco, no dia seguinte, ao amanhecer.<<strong>br</strong> />

Passou a noite em so<strong>br</strong>essalto, acordando a todas as horas, receosa de que o sono<<strong>br</strong> />

imperioso da madrugada lhe fizesse perder o ensejo de ver o espetáculo por que tanto anelava.<<strong>br</strong> />

Cedo, muito escuro ainda, levantou-se, saiu, atravessou o terreiro, e, sem que ninguém a<<strong>br</strong> />

visse, entrou no pomar.<<strong>br</strong> />

Do lado de leste era este fechado pela fila das senzalas, cujas paredes de barro cru<<strong>br</strong> />

erguiam-se altas, inteiriças, muito gretadas.<<strong>br</strong> />

Havia uma casa mais vasta duas vezes do que qualquer outra: era a casa do tronco.<<strong>br</strong> />

A essa chegou-se Lenita, encostou-se e, tirando do seio uma tesourinha que trouxera,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>eçou a a<strong>br</strong>ir um buraco na parede, à altura dos olhos, entre dois barrotes e duas ripas, em<<strong>br</strong> />

lugar favorável, donde já se protraía um torrão muito pedrento, muito fendido, meio solto.<<strong>br</strong> />

A tesourinha era curta, mas reforçada, sólida, de aço excelente, de Rodgers. A o<strong>br</strong>a<<strong>br</strong> />

avançava, Lenita trabalhava <strong>com</strong> ardor, mas também <strong>com</strong> muita paciência, <strong>com</strong> muito jeito. O<<strong>br</strong> />

aço mordia, esmoía o barro friável quase sem ruído. Um rastilho de pó amarelado maculava o<<strong>br</strong> />

vestido preto da moça.<<strong>br</strong> />

Deslocou-se o torrão, e caiu para dentro, dando um som surdo ao tombar no chão fofo, de<<strong>br</strong> />

terra mal batida.<<strong>br</strong> />

Estava feito o buraco.<<strong>br</strong> />

Lenita retraiu-se, ficou imóvel, sustendo a respiração.<<strong>br</strong> />

Após instantes estendeu o pescoço, espiou. Nada pôde ver: estava muito escuro dentro.<<strong>br</strong> />

Ouvia-se um ressonar alto, igual.<<strong>br</strong> />

Passou-se um longo trato de tempo.<<strong>br</strong> />

O <strong>br</strong>ilho das estrelas empalideceu. Uma faixa de luz <strong>br</strong>anca desenhou-se ao nascente,<<strong>br</strong> />

ruborizou-se, purpurejou inflamada <strong>com</strong> reflexos cor de ouro. O ar tornou-se mais fino, mais<<strong>br</strong> />

sutil e a passarada rompeu num hino áspero, desacorde, mas alegre, festivo, titânico, saudando o<<strong>br</strong> />

dia que despontava.<<strong>br</strong> />

Ouviu-se o sino da fazenda vi<strong>br</strong>ar muito sonoro.<<strong>br</strong> />

Lenita tomou a espiar: a casa do tronco já estava clara.<<strong>br</strong> />

A um canto espalmava-se um estrado de madeira engordurado, lustroso pelo rostir de<<strong>br</strong> />

corpos humanos sujos. As tábuas que o constituíam embutiam-se em um sólido pranchão de<<strong>br</strong> />

ca<strong>br</strong>iúva, cortado em dois no sentido do <strong>com</strong>primento: as duas peças por ele formadas<<strong>br</strong> />

justapunham-se, articulando-se de um lado por uma do<strong>br</strong>adiça forte, presas de outro por uma<<strong>br</strong> />

fechadura de ferrolho. Na parte superior da peça fixa e na inferior da móvel havia piques<<strong>br</strong> />

semicirculares, chanfrados, que, ao ajustarem-se essas peças, coincidiam, perfazendo furos bem<<strong>br</strong> />

redondos, de um decímetro mais ou menos de diâmetro.<<strong>br</strong> />

Era o tronco.<<strong>br</strong> />

So<strong>br</strong>e o estrado, de ventre para o ar, <strong>com</strong> as pernas passadas, pouco acima dos tornozelos,<<strong>br</strong> />

nos buracos dos pranchões, envolto em uma velha coberta de lã parda, despedaçada, imunda,<<strong>br</strong> />

tinha atravessado a noite o escravo fugido.<<strong>br</strong> />

Dormira, ao bater do sino acordara.

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