Saltou por cima do negro, tomou nova posição, fez vi<strong>br</strong>ar o instrumento em sentido<<strong>br</strong> />contrário, continuou o castigo na outra nádega.<<strong>br</strong> />- Uma! duas! três! cinco! dez ! quinze! vinte! vinte e cinco!<<strong>br</strong> />Os uivos do negro eram roucos, estrangulados: a sua carapinha estava suja de terra,<<strong>br</strong> />empastada de suor.<<strong>br</strong> />O caboclo largou o bacalhau so<strong>br</strong>e o estrado do tronco e disse:<<strong>br</strong> />- Agora uma salmorazinha para isto não arruinar.<<strong>br</strong> />E, tomando da mão do administrador uma cuia que esse trouxera, derramou o conteúdo<<strong>br</strong> />so<strong>br</strong>e a derme dilacerada.<<strong>br</strong> />O negro deu um corcovo; irrompeu-lhe da garganta um berro de dor, sufocado, atroz, que<<strong>br</strong> />nada tinha de humano. Desmaiou.<<strong>br</strong> />Lenita sentia um <strong>com</strong>o espasmo de prazer, sacudido, vi<strong>br</strong>ante; estava pálida, seus olhos<<strong>br</strong> />relampejavam, seus mem<strong>br</strong>os tremiam. Um sorriso cruel, gelado, arregaçava-lhe os lábios,<<strong>br</strong> />deixando ver os dentes muito <strong>br</strong>ancos e as gengivas rosadas.<<strong>br</strong> />O silvar do azorrague, as contrações os gritos do padecente, os fiar de sangue que ela via<<strong>br</strong> />correr em<strong>br</strong>iagavam-na, dementavam-na, punham-na em frenesi: torcia as mãos, batia os pés em<<strong>br</strong> />ritmo nervoso.<<strong>br</strong> />Queria, <strong>com</strong>o as vestais romanas no ludo gladiatório, ter direito de vida e de morte;<<strong>br</strong> />queria poder fazer prolongar aquele suplício até à exaustão da vítima; queria dar o sinal, pollice<<strong>br</strong> />verso, para que o executor consumasse a o<strong>br</strong>a.<<strong>br</strong> />E tremia, agitada por estranha sensação, por dolorosa volúpia. Tinha na boca um saibo de<<strong>br</strong> />sangue.
Capítulo 7<<strong>br</strong> />Havia quase uma semana que estava chovendo continuamente. As matas alegres, viçosas,<<strong>br</strong> />muito lavadas reviam água pela fronde. O tapete espesso de folhas mortas, que co<strong>br</strong>ia o solo nas<<strong>br</strong> />matas, estava ensopado, desfeito, ia-se reduzindo a húmus. A terra nua nos caminhos, limosa,<<strong>br</strong> />esverdeada nos taludes e nas rampas, empapada, semilíquida no leito plano, cortada<<strong>br</strong> />longitudinalmente pelas trilhas dos carros, batida, revolvida, amassada pelos pés dos animais, ora<<strong>br</strong> />alteava-se em almofadas de lama, ora cavava-se em poças de água barrenta, amarela em uns<<strong>br</strong> />lugares, em outros cor de sangue. Corria o enxurro torrentoso, rápido, enxadrezado nos declives;<<strong>br</strong> />manso, espraiado em toalhas, banhando as raízes das gramíneas no chato, no descampado.<<strong>br</strong> />Os campos eram <strong>br</strong>ejos, os <strong>br</strong>ejos lagos.<<strong>br</strong> />No pomar as laranjeiras pendiam os grelos em um desfalecimento úmido; as ameixeiras,<<strong>br</strong> />as mangueiras, os pessegueiros, os cajueiros viçavam muito lustrosos. O céu pardo, <strong>com</strong>o que<<strong>br</strong> />descido, parecia muito perto da terra.<<strong>br</strong> />O ribeirão transbordando roncava em marulhos.<<strong>br</strong> />Lenita sentada, encorujada na rede, <strong>com</strong> as pernas cruzadas, à chinesa, levava a maior<<strong>br</strong> />parte do dia a ler, conchegando-se no xale, friorenta, aborrecida, esplenética.<<strong>br</strong> />Rememorava por vezes as mudanças, as alternativas fisiopsíquicas por que tinha passado<<strong>br</strong> />na fazenda, onde não encontrara uma pessoa de sua idade, de seu sexo ou de sua ilustração a<<strong>br</strong> />quem <strong>com</strong>unicar o que sentia, que a pudesse <strong>com</strong>preender, que a pudesse aconselhar, que a<<strong>br</strong> />pudesse fortalecer nessa terrível batalha dos nervos.<<strong>br</strong> />Analisava a crise histérica, o erotismo, o acesso de crueldade que tivera. Estudava o seu<<strong>br</strong> />abatimento atual irritadiço, dissolvente, cortado de desejos inexplicáveis. Surpreendia-se<<strong>br</strong> />amiudadas vezes a pensar sem o querer no filho do coronel, nesse homem já maduro, casado, a<<strong>br</strong> />quem nunca vira; sentia que lhe pulsava apressado o coração quando falavam nele na sua<<strong>br</strong> />presença. E concluía que aquilo era um estado patológico, que minava um mal sem cura.<<strong>br</strong> />Depois mudava de pensar: não estava doente, seu estado não era patológico, era<<strong>br</strong> />fisiológico. O que ela sentia era o aguilhão genésico, era o mando imperioso da sexualidade, era<<strong>br</strong> />a voz da carne a exigir dela o seu tributo de amor, a reclamar o seu contingente de fecundidade<<strong>br</strong> />para a grande o<strong>br</strong>a da perpetuação da espécie.<<strong>br</strong> />E lem<strong>br</strong>ava-lhe a ninfomania, a satiríase, esses horrores <strong>com</strong> que a natureza se vinga de<<strong>br</strong> />fêmeas e machos que lhe violam as leis, guardando uma castidade impossível; lem<strong>br</strong>ava-lhe o<<strong>br</strong> />horror sagrado que aos povos da Grécia e Roma inspiravam esses castigos de Vênus.<<strong>br</strong> />Entrevia <strong>com</strong>o em uma nuvem as ninfas gregas de Dictynne, as vestais romanas, as<<strong>br</strong> />odaliscas molitas, as monjas cristãs pálidas, convulsivas, <strong>com</strong> os lábios em sangue, <strong>com</strong> os olhos<<strong>br</strong> />em chamas, a contorcerem-se nos bosques, nos leitos solitários; a morderem-se loucas, bestiais,<<strong>br</strong> />espicaçadas pelos ferrões do desejo.<<strong>br</strong> />Desfilavam-lhe por diante, lú<strong>br</strong>icas, vivas, palpáveis quase, Pasifae, Fedra; Júlia,<<strong>br</strong> />Messalina, Teodora, Impéria; Lucrécia Borgia, Catarina da Rússia.<<strong>br</strong> />Um dia entrou na sala o coronel.<<strong>br</strong> />- Grande novidade! Aí me vem o rapaz... rapaz é um modo de falar, o velho, o caçador do<<strong>br</strong> />Paranapanema.<<strong>br</strong> />- Seu filho?<<strong>br</strong> />- Sim. Também era tempo, eu já estava <strong>com</strong> saudades.<<strong>br</strong> />- Mas não preveniu, não pediu condução...<<strong>br</strong> />- Pois eu não dizia? aquilo é assim mesmo, é espeloteado. Não quer, não sabe esperar;<<strong>br</strong> />não está para demoras. Alugou animais no Rio Claro, e aí vem vindo.<<strong>br</strong> />- Como soube?<<strong>br</strong> />- Por um caboclo que partiu de lá ao amanhecer, e que agora passou por aqui.<<strong>br</strong> />- Então seu filho vem tomando esta chuvarada?<<strong>br</strong> />- Isso para ele é um pau para um olho, está acostumado.<<strong>br</strong> />- A que horas acha que chega?
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seu quarto, interrompe-lhe o sono,
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Capítulo 15<br />Que lindo está o
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- Não há que pensar.<br />- Esta
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Quando na mata se lhe deparava uma
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Ao virar do meio-dia, Barbosa acord
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Ao puxar uma gaveta da mesa de Barb
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da campina. Revoltada contra a meta
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Capítulo 18<br />Seis dias depois
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Queria chorar; o pranto, julgava, f
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Há em São Paulo fábricas de móv
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Não me guardes rancor. Fomos um pa
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- Vi, meu sinhô. Ele está aí no