O bagaceiro crescia, avultava: na <strong>br</strong>ancura esverdinhada punham notas escuras os suínos,<<strong>br</strong> />bovinos e muares que aí passavam o dia, mastigando, mascando, esmoendo. De repente<<strong>br</strong> />armava-se uma grande <strong>br</strong>iga; ouviam-se grunhidos agudos, mugidos roucos, orneios feros. Uma<<strong>br</strong> />dentada oblíqua, um guampaço, uma parelha de coices tinha dado ganho de causa ao mais forte.<<strong>br</strong> />O odor suave do primeiro ferver da garapa no <strong>com</strong>eço da moagem se acentuara em um<<strong>br</strong> />cheiro forte, entontecedor, de açúcar cozido, de sacarose fermentada que se fazia sentir a mais de<<strong>br</strong> />um quarto de légua de distância.
Capítulo 6<<strong>br</strong> />Terminara a moagem, ia adiantada a primavera.<<strong>br</strong> />A flora tropical rejuvenescera na muda de todos os anos: os gomos, os <strong>br</strong>otos, a fronde<<strong>br</strong> />nova rebentara pujante, aqui de um verde-claro deslavado, veludoso, muito tenro; ali lustrosa<<strong>br</strong> />vidrenta, cor de ferrugem; além ru<strong>br</strong>a. Depois tudo isso se expandira, se robustecera, se<<strong>br</strong> />consolidara em uma verdura forte, sadia, vivaz.<<strong>br</strong> />A natureza mudara de toilette e entrara no período dos amores.<<strong>br</strong> />Irrompia a florescência <strong>com</strong> todo o seu luxo de formas, <strong>com</strong> toda a sua prodigalidade de<<strong>br</strong> />matizes, <strong>com</strong> todo o seu esbanjamento de perfumes.<<strong>br</strong> />Por so<strong>br</strong>e os cafezais escuros atirara ela, <strong>com</strong> suave monotonia, um lençol de corolas<<strong>br</strong> />alvíssima, deslum<strong>br</strong>ante.<<strong>br</strong> />Na mata toda árvore, todo arbusto, toda planta tomava-se de estranha energia.<<strong>br</strong> />As flores, em uma abundância impossível, <strong>com</strong>primiam-se nos galhos, empurravam-se,<<strong>br</strong> />deformavam-se. No que<strong>br</strong>antamento volúpia amorosa pendiam, reviravam os cálices,<<strong>br</strong> />entornavam no ambiente ondas de pólen, de pulverulência fecundante.<<strong>br</strong> />À lascívia da flora se vinha juntar o furor erótico da fauna.<<strong>br</strong> />Por toda a parte ouviam-se gorjeios e assobios, uivos e <strong>br</strong>amidos de amor. Era o trilar do<<strong>br</strong> />inambu, o piar do macuco, o berrar do tucano, o grasnar gargalhado do jacu, o retinir da<<strong>br</strong> />araponga, o chiar do serelepe, o re<strong>br</strong>amar do veado, o miar plangente, quase humano dos felinos.<<strong>br</strong> />A essa tempestade de notas, a esse cataclismo de gemidos cúpidos, so<strong>br</strong>elevava o<<strong>br</strong> />regougo áspero do cachorro-do-mato, o guincho lancinante, frenético do carácará perdido na<<strong>br</strong> />amplidão.<<strong>br</strong> />A folhagem tremia agitada, esbarrada, machucada. Insetos <strong>br</strong>ilhantes, verdes <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />esmeraldas, ru<strong>br</strong>os <strong>com</strong>o rubins, revoluteavam em sussurro, agarravam-se frementes. Os<<strong>br</strong> />pássaros buscavam-se, beliscavam-se, em vôos curtos, fortes, sacudidos, <strong>com</strong> as penas arrufadas.<<strong>br</strong> />Os quadrúpedes retouçavam perseguiam-se, aos corcovos, arrepiando o pêlo. Serpentes silvavam<<strong>br</strong> />meigas, enroscando-se em luxúria aos pares.<<strong>br</strong> />A terra casava suas emanações quentes, ásperas, elétricas <strong>com</strong> o mormaço lú<strong>br</strong>ico da luz<<strong>br</strong> />do sol coada pela folhagem.<<strong>br</strong> />Em cada buraco escuro, em cada fenda de rocha, por so<strong>br</strong>e o solo, nas hastes das ervas,<<strong>br</strong> />nos galhos das árvores, na água, no ar, em toda a parte, focinhos, bicos, antenas, <strong>br</strong>aços, élitros<<strong>br</strong> />desejavam-se, procuravam-se, encontravam-se, estreitavam-se, confundiam-se, no ardor da<<strong>br</strong> />sexualidade, no espasmo da reprodução.<<strong>br</strong> />O ar <strong>com</strong>o que era cortado de relâmpagos sensuais, sentiam-se passar lufadas de tépida<<strong>br</strong> />volúpia. So<strong>br</strong>essaía a todos os perfumes, dominava forte um cheiro acre de semente, um odor de<<strong>br</strong> />cópula, excitante, provocador.<<strong>br</strong> />Lenita estava preguiçosa. Internava-se na mata e, quando achava uma barroca seca, uma<<strong>br</strong> />som<strong>br</strong>a bem escura, reclinava-se aconchegando o corpo na alfom<strong>br</strong>a espessa de folhas mortas,<<strong>br</strong> />entregava-se à moleza erótica que estilava das núpcias pujantes da terra. Voltava à casa,<<strong>br</strong> />estendia-se na rede, <strong>com</strong> uma perna estirada so<strong>br</strong>e outra, <strong>com</strong> um livro que não lia caído so<strong>br</strong>e o<<strong>br</strong> />peito, <strong>com</strong> a cabeça muito pendida para trás, <strong>com</strong> os olhos meio cerrados, e assim quedava-se<<strong>br</strong> />horas e horas em um lugar cheio de encantos.<<strong>br</strong> />Pensava constantemente, continuamente, sem o querer, no caçador excêntrico do<<strong>br</strong> />Paranapanema, via-o a todo o momento junto de si, robusto, atlético <strong>com</strong>o o ideara, dialogava<<strong>br</strong> /><strong>com</strong> ele.<<strong>br</strong> />Ficara cruel: beliscava as criolinhas, picava <strong>com</strong> agulhas, feria <strong>com</strong> canivete os animais<<strong>br</strong> />que lhe passavam ao alcance. Uma vez um cachorro reagiu e mordeu-a. Em outra ocasião pegou<<strong>br</strong> />num canário que lhe entrara na sala, que<strong>br</strong>ou-lhe e arrancou-lhe as pernas, desarticulou-lhe uma<<strong>br</strong> />asa, soltou-o, findo <strong>com</strong> prazer íntimo ao vê-lo esvoaçar miseravelmente, <strong>com</strong> uma asa só,<<strong>br</strong> />arrastando a outra, pousando os cotos sangrentos na terra pedregosa do terreiro.
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Capítulo 14<br />O veneno da cobra
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Lenita ainda conversou por algum te
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seu quarto, interrompe-lhe o sono,
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Capítulo 15<br />Que lindo está o
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- Não há que pensar.<br />- Esta
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Quando na mata se lhe deparava uma
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Ao virar do meio-dia, Barbosa acord
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Ao puxar uma gaveta da mesa de Barb
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da campina. Revoltada contra a meta
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Capítulo 18<br />Seis dias depois
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Queria chorar; o pranto, julgava, f
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Há em São Paulo fábricas de móv
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Não me guardes rancor. Fomos um pa
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