A Carne, Júlio Ribeiro - Colegioecursoopcao.com.br
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Manuel Barbosa...<<strong>br</strong> />
Lenita leu a carta <strong>com</strong> impaciência: os detalhes, os dados exatos, as apreciações<<strong>br</strong> />
científicas de Barbosa so<strong>br</strong>e Santos, so<strong>br</strong>e a serra irritavam-na: passou por aquilo tudo<<strong>br</strong> />
rapidamente, nervosamente, sem aprofundar, <strong>com</strong>o quem percorre um catálogo. Procurava o que<<strong>br</strong> />
houvesse de íntimo so<strong>br</strong>e a sua pessoa, qualquer coisa que revelasse, que atraiçoasse o estado<<strong>br</strong> />
afetivo do espírito de Barbosa.<<strong>br</strong> />
Demorou-se muito na leitura dos trechos finais: teve um prazer vivíssimo, indizível ao ler<<strong>br</strong> />
que Barbosa a supunha, a figurava ao lado de si, e que se prazia nessa figuração. Repetiu as<<strong>br</strong> />
frases silabificando, quase deletreando, <strong>com</strong> o olho esquerdo fechado, <strong>com</strong> a atenção<<strong>br</strong> />
concentrada. Gostou imenso da maneira <strong>br</strong>usca por que terminava a carta.<<strong>br</strong> />
O semidelíquio erótico que tivera no quarto de Barbosa fora a confirmação de uma<<strong>br</strong> />
suspeita: reconhecera que amava a esse homem, loucamente, perdidamente.<<strong>br</strong> />
Ante a <strong>br</strong>utalidade do fato, ao pungir gozoso e acerbo da revelação da carne, revoltara-se<<strong>br</strong> />
<strong>com</strong> orgulho, esquivara-se em último assomo de resistência, evitara a Barbosa na véspera da<<strong>br</strong> />
partida.<<strong>br</strong> />
A insônia da noite, o vácuo enorme que a ausência de Barbosa lhe produzira em volta, a<<strong>br</strong> />
necessidade fatal em que se reconhecera de tê-lo junto de si para viver, desejo dele que a mordia,<<strong>br</strong> />
o ganho de causa que levava esse afeto novo so<strong>br</strong>e o amor profundo que votara ao pai, a Lopes<<strong>br</strong> />
Matoso; que tudo isso a convencera de que não podia recalcitrar, de que a resistência lhe era<<strong>br</strong> />
impossível.<<strong>br</strong> />
Com a resolução rápida dos espíritos decididos, aceitara o jugo, submetera-se à paixão,<<strong>br</strong> />
confessara-se vencida.<<strong>br</strong> />
Era o mais difícil.<<strong>br</strong> />
Em curvar-se, de si própria é que ela tinha vergonha, uma vez cônscia de estar curvada,<<strong>br</strong> />
pouco lhe fazia que o mundo inteiro a visse nessa posição.<<strong>br</strong> />
Amando, mas sem estar de todo vencida, lutaria, defender-se-ia até à morte contra o que<<strong>br</strong> />
desejava, isso em uma alcova, em um recinto vedado a todos os olhos; entregue, derrotada<<strong>br</strong> />
perante o seu foro íntimo, avaliava em nada o escândalo, desprezava a opinião, era capaz de<<strong>br</strong> />
submeter-se ao vencedor em público, no meio de uma praça, <strong>com</strong>o as prostitutas de Hyde-Park.<<strong>br</strong> />
Amava a Barbosa confessara-o a si própria: era capaz de lho dizer a ele, era capaz de o<<strong>br</strong> />
proclamar à face do mundo.<<strong>br</strong> />
E indignava-se, achava-o tímido, queria que ele a adivinhasse, que lhe retribuísse o amor,<<strong>br</strong> />
que sentisse por ela o que ela sentia por ele, que se confessasse por sua vez subjugado, cativo.<<strong>br</strong> />
Amar ela, Lenita, a um homem, e não ver esse homem a seus pés rendido, aniquilado,<<strong>br</strong> />
absorvido?! Impossível.<<strong>br</strong> />
Releu a carta, mas releu <strong>com</strong> atenção, meditadamente estudando. As apreciações<<strong>br</strong> />
originais de Barbosa, o seu modo profundamente individual de ver as coisas, o entusiasmo<<strong>br</strong> />
<strong>com</strong>unicativo a que se entregava por vezes, tudo isso reproduzia-o, aviventava-o no escrito, ao<<strong>br</strong> />
ponto de que a Lenita parecia-lhe tê-lo junto a si, ouvir-lhe a voz, sentir-lhe o hálito.<<strong>br</strong> />
As teorias so<strong>br</strong>e a formação da planície santista e so<strong>br</strong>e o enchimento do vale do Tietê<<strong>br</strong> />
fizeram-na pensar, recordar-se. Tinha estado uma vez em São Vicente, a banhos: conhecia<<strong>br</strong> />
Santos, conhecia a Serra. Os fatos que Barbosa consignava eram exatos, as explicações que deles<<strong>br</strong> />
oferecia eram plausíveis.<<strong>br</strong> />
Lenita admirava-lhe cada vez mais a flexibilidade do talento, que a tudo se abalançava,<<strong>br</strong> />
que para tudo tinha criterium, que de tudo decidia <strong>com</strong> justeza.<<strong>br</strong> />
A admiração pelas faculdades intelectuais elevadíssimas de Barbosa envolvia-se<<strong>br</strong> />
mansamente, naturalmente, para uma admiração pelas suas formas, para um desejo de seu físico,<<strong>br</strong> />
que a dementava a ela, que a punha fora de si.<<strong>br</strong> />
Compreendia então perfeitamente a história bíblica da mulher de Putifar. A vista segura<<strong>br</strong> />
que o escravo he<strong>br</strong>eu José revelara ter das coisas, a sua alta capacidade administrativa, a sua