15.04.2013 Views

A Carne, Júlio Ribeiro - Colegioecursoopcao.com.br

A Carne, Júlio Ribeiro - Colegioecursoopcao.com.br

A Carne, Júlio Ribeiro - Colegioecursoopcao.com.br

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Manuel Barbosa...<<strong>br</strong> />

Lenita leu a carta <strong>com</strong> impaciência: os detalhes, os dados exatos, as apreciações<<strong>br</strong> />

científicas de Barbosa so<strong>br</strong>e Santos, so<strong>br</strong>e a serra irritavam-na: passou por aquilo tudo<<strong>br</strong> />

rapidamente, nervosamente, sem aprofundar, <strong>com</strong>o quem percorre um catálogo. Procurava o que<<strong>br</strong> />

houvesse de íntimo so<strong>br</strong>e a sua pessoa, qualquer coisa que revelasse, que atraiçoasse o estado<<strong>br</strong> />

afetivo do espírito de Barbosa.<<strong>br</strong> />

Demorou-se muito na leitura dos trechos finais: teve um prazer vivíssimo, indizível ao ler<<strong>br</strong> />

que Barbosa a supunha, a figurava ao lado de si, e que se prazia nessa figuração. Repetiu as<<strong>br</strong> />

frases silabificando, quase deletreando, <strong>com</strong> o olho esquerdo fechado, <strong>com</strong> a atenção<<strong>br</strong> />

concentrada. Gostou imenso da maneira <strong>br</strong>usca por que terminava a carta.<<strong>br</strong> />

O semidelíquio erótico que tivera no quarto de Barbosa fora a confirmação de uma<<strong>br</strong> />

suspeita: reconhecera que amava a esse homem, loucamente, perdidamente.<<strong>br</strong> />

Ante a <strong>br</strong>utalidade do fato, ao pungir gozoso e acerbo da revelação da carne, revoltara-se<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> orgulho, esquivara-se em último assomo de resistência, evitara a Barbosa na véspera da<<strong>br</strong> />

partida.<<strong>br</strong> />

A insônia da noite, o vácuo enorme que a ausência de Barbosa lhe produzira em volta, a<<strong>br</strong> />

necessidade fatal em que se reconhecera de tê-lo junto de si para viver, desejo dele que a mordia,<<strong>br</strong> />

o ganho de causa que levava esse afeto novo so<strong>br</strong>e o amor profundo que votara ao pai, a Lopes<<strong>br</strong> />

Matoso; que tudo isso a convencera de que não podia recalcitrar, de que a resistência lhe era<<strong>br</strong> />

impossível.<<strong>br</strong> />

Com a resolução rápida dos espíritos decididos, aceitara o jugo, submetera-se à paixão,<<strong>br</strong> />

confessara-se vencida.<<strong>br</strong> />

Era o mais difícil.<<strong>br</strong> />

Em curvar-se, de si própria é que ela tinha vergonha, uma vez cônscia de estar curvada,<<strong>br</strong> />

pouco lhe fazia que o mundo inteiro a visse nessa posição.<<strong>br</strong> />

Amando, mas sem estar de todo vencida, lutaria, defender-se-ia até à morte contra o que<<strong>br</strong> />

desejava, isso em uma alcova, em um recinto vedado a todos os olhos; entregue, derrotada<<strong>br</strong> />

perante o seu foro íntimo, avaliava em nada o escândalo, desprezava a opinião, era capaz de<<strong>br</strong> />

submeter-se ao vencedor em público, no meio de uma praça, <strong>com</strong>o as prostitutas de Hyde-Park.<<strong>br</strong> />

Amava a Barbosa confessara-o a si própria: era capaz de lho dizer a ele, era capaz de o<<strong>br</strong> />

proclamar à face do mundo.<<strong>br</strong> />

E indignava-se, achava-o tímido, queria que ele a adivinhasse, que lhe retribuísse o amor,<<strong>br</strong> />

que sentisse por ela o que ela sentia por ele, que se confessasse por sua vez subjugado, cativo.<<strong>br</strong> />

Amar ela, Lenita, a um homem, e não ver esse homem a seus pés rendido, aniquilado,<<strong>br</strong> />

absorvido?! Impossível.<<strong>br</strong> />

Releu a carta, mas releu <strong>com</strong> atenção, meditadamente estudando. As apreciações<<strong>br</strong> />

originais de Barbosa, o seu modo profundamente individual de ver as coisas, o entusiasmo<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>unicativo a que se entregava por vezes, tudo isso reproduzia-o, aviventava-o no escrito, ao<<strong>br</strong> />

ponto de que a Lenita parecia-lhe tê-lo junto a si, ouvir-lhe a voz, sentir-lhe o hálito.<<strong>br</strong> />

As teorias so<strong>br</strong>e a formação da planície santista e so<strong>br</strong>e o enchimento do vale do Tietê<<strong>br</strong> />

fizeram-na pensar, recordar-se. Tinha estado uma vez em São Vicente, a banhos: conhecia<<strong>br</strong> />

Santos, conhecia a Serra. Os fatos que Barbosa consignava eram exatos, as explicações que deles<<strong>br</strong> />

oferecia eram plausíveis.<<strong>br</strong> />

Lenita admirava-lhe cada vez mais a flexibilidade do talento, que a tudo se abalançava,<<strong>br</strong> />

que para tudo tinha criterium, que de tudo decidia <strong>com</strong> justeza.<<strong>br</strong> />

A admiração pelas faculdades intelectuais elevadíssimas de Barbosa envolvia-se<<strong>br</strong> />

mansamente, naturalmente, para uma admiração pelas suas formas, para um desejo de seu físico,<<strong>br</strong> />

que a dementava a ela, que a punha fora de si.<<strong>br</strong> />

Compreendia então perfeitamente a história bíblica da mulher de Putifar. A vista segura<<strong>br</strong> />

que o escravo he<strong>br</strong>eu José revelara ter das coisas, a sua alta capacidade administrativa, a sua

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!