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FEVEREIRO DE 1921

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STAMOS sentindo o gesto de espanto<br />

que faz o leitor á vista destas palavras:<br />

um rei do Paraguay completamente<br />

-desconhecido e um imperador<br />

daquella famigerada gente, intrépida,<br />

orgulhosa e forte, que, durante quasi<br />

tresentos annos, "desbravou os invios<br />

sertões, para o sul, até á cordilheira<br />

dos Andes, transpondo, deste modo,<br />

a linha de Tordesilhas, e para o norte, até os confins<br />

do rio Amazonas, — obra admiravel que, com<br />

ter desvendado mais vastos horizontes á nacionalidade<br />

brazileira, constitue um cyclo heroico incomparável,<br />

único, sem rival na historia do continente<br />

colombiano.<br />

O caso- é realmente muito original e de imprevisto<br />

maravilhoso, e, quando, por um mero<br />

acaso, nos caiu nas mãos um curioso livrinho,<br />

anonymo e enigmático, intitulado pomposamente<br />

Histoire de Nicolás I, roy du Paraguai., et empereur<br />

des Mamelus, e dado- como impresso em São<br />

Paulo, em 1756, tivemos a.mesma sensação de surpresa.<br />

Não ha duvida que logo nos despertou uma<br />

reminiscência muito vaga de velha leitura, em que<br />

se fazia allusão, ou mesmo clara referencia, a um<br />

aventureiro que conseguira ser rei entre os indígenas<br />

do Paraguay. Onde, porém, iriamos agora<br />

descobrir o fio do, Ariadna que nos levasse seguro<br />

ao autor em que encontráramos ha tempos essa noticia,<br />

que então nos passára despercebida e só agora<br />

nos interessa? Tanto pelo seu conteúdo, quasi<br />

inexplicável, como pelo seu valor intrínseco, o livro,<br />

que tem ainda o sabor especial de obra contemporânea,<br />

é realmente desnorteador. Dest'arte,<br />

envolvia o nosso trabalho duas ordens de investigações,<br />

uma quanto á especie bibliographica e outra<br />

concernente á historia, o que mais aguçou a<br />

nossa curiosidade, sempre activa e solicita para esse<br />

genero de pesquizas.<br />

Nenhuma noticia .da preciosidade bibliographica<br />

nos deram os catalogos consultados. Ninguém<br />

conhecia o opusculo e muito menos a exquisita<br />

aventura que nelle se divulga com o caracter fie<br />

historia authentica. Havia o facto escapado ás pacientes<br />

investigações de Varnhagen, erudito de<br />

subido quilate e profundo autor da " Historia Geral<br />

do Brazil", como passára incógnita ao incansável<br />

Capistrano de Abreu, um dos raros conhecedores<br />

dos escondidos mananciaes da nossa chronica,<br />

mas sempre puerilmente cioso dos seus achados e<br />

fontes, e aos intelligentes estudiosos da vida colonial<br />

paulista Pedro Tacques, Azevedo Marques,<br />

Theodoro Sampaio, Affonso Taunay, Washington<br />

Luis e outros. O proprio Dr. José Carlos Rodrigues,<br />

um especialista que conseguira reunir cerca<br />

de 3.000 especies bibliographicas brazileiras, sendo<br />

a sua collecção a mais notável do paiz, ignorava<br />

absolutamente o livro e a existencia do suppositivo<br />

soberano das duas gentes (1).<br />

Tanto- meditámos ácerca de tal assumpto que<br />

afinal demos com o tenue fio revelador. Após pa-<br />

(1) Com effeito, na abundante "Bibliotheca<br />

Brasiliense" não figura a "Histoire de Nicolas<br />

embora se encontrem verdadeiros incunabulos,<br />

vários cimelios e innumeras raridades, taes como<br />

a edição latina, impressa em Roma. por Stephane<br />

Plannk, em 1493. da carta que Colombo endereçou<br />

a Sanchez, o thesoureiro do rei D. Fernando,<br />

referindo o descobrimento das "ilhas da índia<br />

além do Ganges", tido como o livro mais antigo<br />

sobre a America; a "Copia der Newe Zeitung<br />

aus Presillg Landt", de 1514, sem duvida o mais<br />

antigo impresso sobre o Rio da Prata, e de quo<br />

são conhecidos apenas quatro exemplares; a "Cosmographise<br />

Introductio", de Martinho Waldseemuller,<br />

que, sob o nome de Ilacomylus. neHa imprimiu,<br />

em S. Deodato, em 1507. a traducção latina<br />

das quatro cartas conhecidas de Américo<br />

Vespucio; e o "Paese nouamente retrouati". de<br />

Francanzio de Montalbodo estampado em Vicencia,<br />

em 1507, e contendo, pela primeira vez. impressa<br />

a narração' da viagem de Cabral ao Brazil.<br />

Além destas, registra o catalogo José Carlos<br />

Rodrigues outras muitas raridades, destacando-se<br />

ainda onze edições da "Cosmographia" de<br />

Ptolomeu, impressas entre 1508 e 1573, oito das<br />

"Décadas", de Pedro Martyr Angleria, obra que<br />

veiu pela primeira vez á luz em 1516, quatro da<br />

"Cosmographia" de Apiano, apparecidas em 1524<br />

a 1575, quatro da "Historia general y natural de<br />

las índias", de Oviedo, de 1535 a 1723, e a preciosíssima<br />

"Relacion y commentarios" de Cabeza<br />

Aiwa iiKVg/jiÇ&lçõo<br />

O IWï<br />

Jvpmtâa<br />

i&cv/cx<br />

cientes e penosas pesquizas, lendo os chronistas espanhóes<br />

do século XVIII e consultando os nossos<br />

principaes historiadores, Southey facilita-nos a tarefa.<br />

Ha mister, porém, assignalar aqui uma circumstancia<br />

assás curiosa, para que se veja quanto<br />

é verdadeira a maxima italiana do Traduttore,<br />

traditore. Na traducção brazileira da Historia do<br />

Brazil de Robert Southey (2), encontramos varias<br />

indicações a respeito, mas sem que delias pudéssemos<br />

inferir alguma cousa para identificar o<br />

livro que tanto nos intrigava. No nosso parecer,<br />

Southey conhecia-o não de visut mas por informação,<br />

se bem que bastante ampla. A transcripção<br />

de um trecho do opusculo, 110 original francez,<br />

feita pelo historiador britannico e reproduzida<br />

na traducção, nos deixou cuidadoso e pensativo.<br />

Ao mesmo tempo que nos fez especie o quasi silencio<br />

de Southey relativamente á Histoire de Nicolás<br />

I, quando mostrava ter tido noticia da obra,<br />

pela citação que fizera, começámos a desconfiar<br />

da probidade do traductor. Naturalmente, empenhados<br />

que estavamos em descobrir-lhe a procedência<br />

ou estabelecer a authenticidade do texto,<br />

procurávamos então consultar o autor -na edição ingleza<br />

e grande foi a nossa surpresa quando se nos<br />

depararam longos trechos de maxima importancia,<br />

que haviam sido esquecidos, senão sonegados pelo<br />

trasladador patrício, como é fácil verificar-se.<br />

Sem esses periodos, em que Southey fornece elementos<br />

para elucidação do problema, é claro que<br />

a nossa investigação, com ter sido mais demorada<br />

e difficultosa, talvez não chegasse á conclusão que<br />

adeante apresentamos. Só assim se explica, por outro<br />

lado, ter ficado por tanto tempo ignorado no<br />

Brazil, sob seu duplo aspecto, historico e bibliographico,<br />

a curiosíssima Histoire de Nicolas I, roy<br />

du Paraguai et empereur des Mamelus (3).<br />

Restabelecido o texto- de Southey, a cuja competência<br />

ficamos devendo agora a entrada para a<br />

nossa bibliographia histórica de uma verdadeira raridade,<br />

a pesquiza tomou outro rumo. Vejamos,<br />

portanto, o que ha de verdadeiro em relação á ousada<br />

aventura desse paraguayo, que, não contente<br />

de ser rei do povo guarany, se fez proclamar imperador<br />

dos paulistas. Tratando da repulsa dos<br />

indios das Missões á execução do tratado de 13 de<br />

Janeiro de 1750, celebrado entre Portugal e Espanha,<br />

particularmente na parte concernente á<br />

de Vacca, impressa em Valladolid, em 1555. Relativamente<br />

aos livros mais antigos sobre o Brazil,<br />

a collecção do eminente bibliophilo é quasi<br />

completa e, além das edições "princeps" dos trabalhos<br />

dê Duarte de Albuquerque, Laet, Barlaeus,<br />

Moreau, Calado, Raphaël de Jesus, Santa Thereza,<br />

Nieuhoff, Montanus, Britto Freire, etc. e de<br />

innumeros opusculos pouco vulgares impressos<br />

em Hollanda no século XVII, entre os quaes a<br />

primeira edição do famoso "Brasilsche Geet<br />

Sack", dado como impresso no Recife, em 1647, e<br />

não citado por Asher no seu clássico "Bibliographical<br />

Essay", conta a "Arte de grammatica da<br />

lingua mais usada na costa do Brasil", de Anchieta,<br />

publicada em Coimbra, em 1595, a primeira<br />

edição da obra de Thevet "Les Singularitez<br />

de la France Antarctique", publicada em Paris,<br />

em 1557, e quasi desconhecida dos bibliophilos. e<br />

as duas outras seguintes, doze edições da "Histoire<br />

d'un voyage fait en la terre du Brésil", de<br />

Jean de Léry. de 1578 a 1889, a "Histoire de la<br />

nouvelle France, de Lescarbot, de 1609, os quatro<br />

pamphletos de Willegaignon, datados de<br />

1542 e 1562, e as primeiras edições da "Conquista<br />

Espiritual" e do "Tesoro de la lengua guarany",<br />

de Montoya, impressos em Madrid, no anno<br />

de 1639, a "Relation succinte et sincère de la<br />

Mission des Cariris", de frei Martinho de Nantes.<br />

Quimper. 1707, e a obra de Antonil "Cultura e<br />

Opulência do Brasil", editada pela primèira veEf<br />

em Lisboa, em 1711, e raríssima. Falta, porém, a<br />

"Histoire de Nicolas I" e bem assim as edições<br />

"princeps" da " Walishafftige Beschreibung", de<br />

Hans Stade, Frankfort, 1556, a "Historia da província<br />

Santa Cruz", de Gandavo, Lisboa, 1576. e<br />

a "Prosopopéa ", do Bento Teixeira Pinto. Lisboa,<br />

1601, únicas lacunas que se notam, . talvez, na<br />

admiravel "Bibliotheca Brasiliense".<br />

(2) Roberto Southey: "Historia do Brazil".<br />

traduzida do inglez pelo Dr. Luiz Joaquim de Oliveira<br />

e Castro e annotada pelo conego Dr. J. C.<br />

Fernandes Pinheiro, Livraria B.. L. Garnier, Rio<br />

de-Janeiro, 1862, 6 volumes.<br />

(3) • Rocha Pombo, n'a sua monumental "Historia<br />

do Brazil", por exemplo, como verificámos<br />

depois, não conhece o facto senão através da nota<br />

truncada de Southey, que transcreve no vol. VI,<br />

pag. ' 479.<br />

IfloPlCCL<br />

mm<br />

mm<br />

evacuação daquelle territorio pelos sete povos que<br />

os jesuítas haviam aldeado nas reducções orientaes<br />

do rio Uruguay (4), escreve o historiador inglez:<br />

"Quando o então chefe dos guaranys soube do que<br />

se passava, mandou logo livrar o jesuíta da perigosa<br />

situação em que se achava, pedindo-lhe desculpas<br />

pelas indignidades a que se vira exposto. Era este<br />

novo capitão um certo Nicoláo Neenguirú, homem<br />

bom, humilde e inoffensivo, e excellente tocador<br />

de rabeca e que ambicionaria tão pouco o cargo<br />

para que fôra eleito, quanto para o mesmo não estava<br />

talhado, não podendo nunca passar-lhe pela<br />

imaginação que ia tornar-se famoso nas gazetas<br />

da Europa, sob o titulo de el-rei Nicoláo do Paraguay<br />

(5)". Southey, que dá Nicoláo Neenguirú<br />

como tendo succedido a Sepé Tyarayú, então chefe<br />

dos guaranys, mais adeante escreve: "Foram os<br />

jesuítas accusados de terem estabelecido no Paraguay<br />

um império, como dominio seu exclusivo,<br />

donde tiravam riquezas enormes. Affirinava-se defenderem<br />

elles este império á força de armas, e,<br />

negando todo o preito aos reis de Espanha, posto<br />

ali um monarcha de sua própria fabrica, Nicoláo<br />

por nome. Inventavam-se e faziam-se circular historias<br />

deste rei Nicoláo. E com tão zelosa malignidade<br />

se propagava esta falsidade, que até moeda<br />

se chegou a bater neste nome, fazendo-a passar de<br />

mão em mão na Europa, como irrefragavel prova<br />

da accusação. Ignoravam os forjadores deste nefasto<br />

plano não correr numerário 110 Paraguay,<br />

(4) Trata-se da chamada "guerra guaranitica",<br />

e o núcleo de resistencia contra os exercitos<br />

alliados de Portugal e Espanha foi apontado<br />

ao mundo civilisado como "uma poderosa republica<br />

de 31 povoações tão ricas e opulentas em<br />

frutos e cabedaes para os jesuítas, como pobres<br />

e infelizes para os desgraçados indios" (Rei.<br />

Abr.). Por mais banal ou ingrato que fosse o<br />

episodio, teve o seu cantor no poeta José Basilio<br />

da Gama, que escreveu o "Uruguay", obra em<br />

cinco breves cantos e em versos endecassylabos<br />

soltos, tyarm0ni0S(0s e sentidos, "como se não<br />

escrevera nunca melhores na lingua portugueza"<br />

(Veríssimo: "Obrs. poet. de Basilio da Gama", 40).<br />

Além do merecimento de ser na literatura lusitana<br />

o precursor do romantismo e nas letras brasileiras<br />

o creador da poesia americana, o poema,<br />

"admiravel epopéa". no dizer de Camillo ("Curso<br />

de Lit.",. 247), e "a melhor corôa da poesia brazileira",<br />

no pensar de. Garret ("Parn. Lusit."),<br />

contém alguns episodios formosos, como a morte<br />

da linda Lindoya, especie de Vénus guarany, em<br />

que refulge o celebre verso:<br />

Tanto era bella no seu rosto a morte!<br />

(Canto IV.)<br />

A obra impressionou os poetas contemporâneos.<br />

Joaquim Ignacio de Seixas Brandão, nym<br />

soneto ao autor, proclama:<br />

Não é presagio vão: lerá a gente<br />

A guerra do Uruguay, com a de Troya;<br />

E o lacrimoso caso de Lindoya<br />

Fará sentir o peito, que não sente.<br />

("Parn. Bras.", 3 o cad., 32.)<br />

Manoel Ignacio da Silva Alvarenga dedicoulhe<br />

também uma ode, que começa assim:<br />

•Génio fecundo e raro, que com polidos versos<br />

("Obras"; 1, 289.)<br />

e, por fim. Felinto Elysiio, no "Ultimo adeus ás<br />

musas", acClamava o seu antigo companheiro da<br />

"guerra dos. poetas":<br />

Novos Camões o nosso reino illustrem.<br />

Que cantem novos Gamas e Albuquerques.<br />

Basilio, em Canto antfloquo forceja<br />

Cantar Freire, na America famoso.<br />

("Obras", 1, 417.)<br />

O proprio Basilio, num assomo de legitimo<br />

orgulho e commovedora confiança no seu estro,<br />

terminou o poema, exclamando:<br />

Serás lido, "Uruguay"...<br />

(5) "History of Brazil", Longman Husst.<br />

Kees, Orme & Brown. London. 1819. vol. III, 468,<br />

trecho este a que o annotador da traducção brazileira,<br />

o conego Fernandes Pinheiro, ajuntou a<br />

seguinte nota: "Esta fabula foi de invenção jesuítica,<br />

para arredarem de si a imputação de conspiradores,'<br />

f;t'/enrin recahir a responsabilidade<br />

sobre esse po bi^ na ajT^q u i m " (Pag. 35).

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