Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
STAMOS sentindo o gesto de espanto<br />
que faz o leitor á vista destas palavras:<br />
um rei do Paraguay completamente<br />
-desconhecido e um imperador<br />
daquella famigerada gente, intrépida,<br />
orgulhosa e forte, que, durante quasi<br />
tresentos annos, "desbravou os invios<br />
sertões, para o sul, até á cordilheira<br />
dos Andes, transpondo, deste modo,<br />
a linha de Tordesilhas, e para o norte, até os confins<br />
do rio Amazonas, — obra admiravel que, com<br />
ter desvendado mais vastos horizontes á nacionalidade<br />
brazileira, constitue um cyclo heroico incomparável,<br />
único, sem rival na historia do continente<br />
colombiano.<br />
O caso- é realmente muito original e de imprevisto<br />
maravilhoso, e, quando, por um mero<br />
acaso, nos caiu nas mãos um curioso livrinho,<br />
anonymo e enigmático, intitulado pomposamente<br />
Histoire de Nicolás I, roy du Paraguai., et empereur<br />
des Mamelus, e dado- como impresso em São<br />
Paulo, em 1756, tivemos a.mesma sensação de surpresa.<br />
Não ha duvida que logo nos despertou uma<br />
reminiscência muito vaga de velha leitura, em que<br />
se fazia allusão, ou mesmo clara referencia, a um<br />
aventureiro que conseguira ser rei entre os indígenas<br />
do Paraguay. Onde, porém, iriamos agora<br />
descobrir o fio do, Ariadna que nos levasse seguro<br />
ao autor em que encontráramos ha tempos essa noticia,<br />
que então nos passára despercebida e só agora<br />
nos interessa? Tanto pelo seu conteúdo, quasi<br />
inexplicável, como pelo seu valor intrínseco, o livro,<br />
que tem ainda o sabor especial de obra contemporânea,<br />
é realmente desnorteador. Dest'arte,<br />
envolvia o nosso trabalho duas ordens de investigações,<br />
uma quanto á especie bibliographica e outra<br />
concernente á historia, o que mais aguçou a<br />
nossa curiosidade, sempre activa e solicita para esse<br />
genero de pesquizas.<br />
Nenhuma noticia .da preciosidade bibliographica<br />
nos deram os catalogos consultados. Ninguém<br />
conhecia o opusculo e muito menos a exquisita<br />
aventura que nelle se divulga com o caracter fie<br />
historia authentica. Havia o facto escapado ás pacientes<br />
investigações de Varnhagen, erudito de<br />
subido quilate e profundo autor da " Historia Geral<br />
do Brazil", como passára incógnita ao incansável<br />
Capistrano de Abreu, um dos raros conhecedores<br />
dos escondidos mananciaes da nossa chronica,<br />
mas sempre puerilmente cioso dos seus achados e<br />
fontes, e aos intelligentes estudiosos da vida colonial<br />
paulista Pedro Tacques, Azevedo Marques,<br />
Theodoro Sampaio, Affonso Taunay, Washington<br />
Luis e outros. O proprio Dr. José Carlos Rodrigues,<br />
um especialista que conseguira reunir cerca<br />
de 3.000 especies bibliographicas brazileiras, sendo<br />
a sua collecção a mais notável do paiz, ignorava<br />
absolutamente o livro e a existencia do suppositivo<br />
soberano das duas gentes (1).<br />
Tanto- meditámos ácerca de tal assumpto que<br />
afinal demos com o tenue fio revelador. Após pa-<br />
(1) Com effeito, na abundante "Bibliotheca<br />
Brasiliense" não figura a "Histoire de Nicolas<br />
embora se encontrem verdadeiros incunabulos,<br />
vários cimelios e innumeras raridades, taes como<br />
a edição latina, impressa em Roma. por Stephane<br />
Plannk, em 1493. da carta que Colombo endereçou<br />
a Sanchez, o thesoureiro do rei D. Fernando,<br />
referindo o descobrimento das "ilhas da índia<br />
além do Ganges", tido como o livro mais antigo<br />
sobre a America; a "Copia der Newe Zeitung<br />
aus Presillg Landt", de 1514, sem duvida o mais<br />
antigo impresso sobre o Rio da Prata, e de quo<br />
são conhecidos apenas quatro exemplares; a "Cosmographise<br />
Introductio", de Martinho Waldseemuller,<br />
que, sob o nome de Ilacomylus. neHa imprimiu,<br />
em S. Deodato, em 1507. a traducção latina<br />
das quatro cartas conhecidas de Américo<br />
Vespucio; e o "Paese nouamente retrouati". de<br />
Francanzio de Montalbodo estampado em Vicencia,<br />
em 1507, e contendo, pela primeira vez. impressa<br />
a narração' da viagem de Cabral ao Brazil.<br />
Além destas, registra o catalogo José Carlos<br />
Rodrigues outras muitas raridades, destacando-se<br />
ainda onze edições da "Cosmographia" de<br />
Ptolomeu, impressas entre 1508 e 1573, oito das<br />
"Décadas", de Pedro Martyr Angleria, obra que<br />
veiu pela primeira vez á luz em 1516, quatro da<br />
"Cosmographia" de Apiano, apparecidas em 1524<br />
a 1575, quatro da "Historia general y natural de<br />
las índias", de Oviedo, de 1535 a 1723, e a preciosíssima<br />
"Relacion y commentarios" de Cabeza<br />
Aiwa iiKVg/jiÇ&lçõo<br />
O IWï<br />
Jvpmtâa<br />
i&cv/cx<br />
cientes e penosas pesquizas, lendo os chronistas espanhóes<br />
do século XVIII e consultando os nossos<br />
principaes historiadores, Southey facilita-nos a tarefa.<br />
Ha mister, porém, assignalar aqui uma circumstancia<br />
assás curiosa, para que se veja quanto<br />
é verdadeira a maxima italiana do Traduttore,<br />
traditore. Na traducção brazileira da Historia do<br />
Brazil de Robert Southey (2), encontramos varias<br />
indicações a respeito, mas sem que delias pudéssemos<br />
inferir alguma cousa para identificar o<br />
livro que tanto nos intrigava. No nosso parecer,<br />
Southey conhecia-o não de visut mas por informação,<br />
se bem que bastante ampla. A transcripção<br />
de um trecho do opusculo, 110 original francez,<br />
feita pelo historiador britannico e reproduzida<br />
na traducção, nos deixou cuidadoso e pensativo.<br />
Ao mesmo tempo que nos fez especie o quasi silencio<br />
de Southey relativamente á Histoire de Nicolás<br />
I, quando mostrava ter tido noticia da obra,<br />
pela citação que fizera, começámos a desconfiar<br />
da probidade do traductor. Naturalmente, empenhados<br />
que estavamos em descobrir-lhe a procedência<br />
ou estabelecer a authenticidade do texto,<br />
procurávamos então consultar o autor -na edição ingleza<br />
e grande foi a nossa surpresa quando se nos<br />
depararam longos trechos de maxima importancia,<br />
que haviam sido esquecidos, senão sonegados pelo<br />
trasladador patrício, como é fácil verificar-se.<br />
Sem esses periodos, em que Southey fornece elementos<br />
para elucidação do problema, é claro que<br />
a nossa investigação, com ter sido mais demorada<br />
e difficultosa, talvez não chegasse á conclusão que<br />
adeante apresentamos. Só assim se explica, por outro<br />
lado, ter ficado por tanto tempo ignorado no<br />
Brazil, sob seu duplo aspecto, historico e bibliographico,<br />
a curiosíssima Histoire de Nicolas I, roy<br />
du Paraguai et empereur des Mamelus (3).<br />
Restabelecido o texto- de Southey, a cuja competência<br />
ficamos devendo agora a entrada para a<br />
nossa bibliographia histórica de uma verdadeira raridade,<br />
a pesquiza tomou outro rumo. Vejamos,<br />
portanto, o que ha de verdadeiro em relação á ousada<br />
aventura desse paraguayo, que, não contente<br />
de ser rei do povo guarany, se fez proclamar imperador<br />
dos paulistas. Tratando da repulsa dos<br />
indios das Missões á execução do tratado de 13 de<br />
Janeiro de 1750, celebrado entre Portugal e Espanha,<br />
particularmente na parte concernente á<br />
de Vacca, impressa em Valladolid, em 1555. Relativamente<br />
aos livros mais antigos sobre o Brazil,<br />
a collecção do eminente bibliophilo é quasi<br />
completa e, além das edições "princeps" dos trabalhos<br />
dê Duarte de Albuquerque, Laet, Barlaeus,<br />
Moreau, Calado, Raphaël de Jesus, Santa Thereza,<br />
Nieuhoff, Montanus, Britto Freire, etc. e de<br />
innumeros opusculos pouco vulgares impressos<br />
em Hollanda no século XVII, entre os quaes a<br />
primeira edição do famoso "Brasilsche Geet<br />
Sack", dado como impresso no Recife, em 1647, e<br />
não citado por Asher no seu clássico "Bibliographical<br />
Essay", conta a "Arte de grammatica da<br />
lingua mais usada na costa do Brasil", de Anchieta,<br />
publicada em Coimbra, em 1595, a primeira<br />
edição da obra de Thevet "Les Singularitez<br />
de la France Antarctique", publicada em Paris,<br />
em 1557, e quasi desconhecida dos bibliophilos. e<br />
as duas outras seguintes, doze edições da "Histoire<br />
d'un voyage fait en la terre du Brésil", de<br />
Jean de Léry. de 1578 a 1889, a "Histoire de la<br />
nouvelle France, de Lescarbot, de 1609, os quatro<br />
pamphletos de Willegaignon, datados de<br />
1542 e 1562, e as primeiras edições da "Conquista<br />
Espiritual" e do "Tesoro de la lengua guarany",<br />
de Montoya, impressos em Madrid, no anno<br />
de 1639, a "Relation succinte et sincère de la<br />
Mission des Cariris", de frei Martinho de Nantes.<br />
Quimper. 1707, e a obra de Antonil "Cultura e<br />
Opulência do Brasil", editada pela primèira veEf<br />
em Lisboa, em 1711, e raríssima. Falta, porém, a<br />
"Histoire de Nicolas I" e bem assim as edições<br />
"princeps" da " Walishafftige Beschreibung", de<br />
Hans Stade, Frankfort, 1556, a "Historia da província<br />
Santa Cruz", de Gandavo, Lisboa, 1576. e<br />
a "Prosopopéa ", do Bento Teixeira Pinto. Lisboa,<br />
1601, únicas lacunas que se notam, . talvez, na<br />
admiravel "Bibliotheca Brasiliense".<br />
(2) Roberto Southey: "Historia do Brazil".<br />
traduzida do inglez pelo Dr. Luiz Joaquim de Oliveira<br />
e Castro e annotada pelo conego Dr. J. C.<br />
Fernandes Pinheiro, Livraria B.. L. Garnier, Rio<br />
de-Janeiro, 1862, 6 volumes.<br />
(3) • Rocha Pombo, n'a sua monumental "Historia<br />
do Brazil", por exemplo, como verificámos<br />
depois, não conhece o facto senão através da nota<br />
truncada de Southey, que transcreve no vol. VI,<br />
pag. ' 479.<br />
IfloPlCCL<br />
mm<br />
mm<br />
evacuação daquelle territorio pelos sete povos que<br />
os jesuítas haviam aldeado nas reducções orientaes<br />
do rio Uruguay (4), escreve o historiador inglez:<br />
"Quando o então chefe dos guaranys soube do que<br />
se passava, mandou logo livrar o jesuíta da perigosa<br />
situação em que se achava, pedindo-lhe desculpas<br />
pelas indignidades a que se vira exposto. Era este<br />
novo capitão um certo Nicoláo Neenguirú, homem<br />
bom, humilde e inoffensivo, e excellente tocador<br />
de rabeca e que ambicionaria tão pouco o cargo<br />
para que fôra eleito, quanto para o mesmo não estava<br />
talhado, não podendo nunca passar-lhe pela<br />
imaginação que ia tornar-se famoso nas gazetas<br />
da Europa, sob o titulo de el-rei Nicoláo do Paraguay<br />
(5)". Southey, que dá Nicoláo Neenguirú<br />
como tendo succedido a Sepé Tyarayú, então chefe<br />
dos guaranys, mais adeante escreve: "Foram os<br />
jesuítas accusados de terem estabelecido no Paraguay<br />
um império, como dominio seu exclusivo,<br />
donde tiravam riquezas enormes. Affirinava-se defenderem<br />
elles este império á força de armas, e,<br />
negando todo o preito aos reis de Espanha, posto<br />
ali um monarcha de sua própria fabrica, Nicoláo<br />
por nome. Inventavam-se e faziam-se circular historias<br />
deste rei Nicoláo. E com tão zelosa malignidade<br />
se propagava esta falsidade, que até moeda<br />
se chegou a bater neste nome, fazendo-a passar de<br />
mão em mão na Europa, como irrefragavel prova<br />
da accusação. Ignoravam os forjadores deste nefasto<br />
plano não correr numerário 110 Paraguay,<br />
(4) Trata-se da chamada "guerra guaranitica",<br />
e o núcleo de resistencia contra os exercitos<br />
alliados de Portugal e Espanha foi apontado<br />
ao mundo civilisado como "uma poderosa republica<br />
de 31 povoações tão ricas e opulentas em<br />
frutos e cabedaes para os jesuítas, como pobres<br />
e infelizes para os desgraçados indios" (Rei.<br />
Abr.). Por mais banal ou ingrato que fosse o<br />
episodio, teve o seu cantor no poeta José Basilio<br />
da Gama, que escreveu o "Uruguay", obra em<br />
cinco breves cantos e em versos endecassylabos<br />
soltos, tyarm0ni0S(0s e sentidos, "como se não<br />
escrevera nunca melhores na lingua portugueza"<br />
(Veríssimo: "Obrs. poet. de Basilio da Gama", 40).<br />
Além do merecimento de ser na literatura lusitana<br />
o precursor do romantismo e nas letras brasileiras<br />
o creador da poesia americana, o poema,<br />
"admiravel epopéa". no dizer de Camillo ("Curso<br />
de Lit.",. 247), e "a melhor corôa da poesia brazileira",<br />
no pensar de. Garret ("Parn. Lusit."),<br />
contém alguns episodios formosos, como a morte<br />
da linda Lindoya, especie de Vénus guarany, em<br />
que refulge o celebre verso:<br />
Tanto era bella no seu rosto a morte!<br />
(Canto IV.)<br />
A obra impressionou os poetas contemporâneos.<br />
Joaquim Ignacio de Seixas Brandão, nym<br />
soneto ao autor, proclama:<br />
Não é presagio vão: lerá a gente<br />
A guerra do Uruguay, com a de Troya;<br />
E o lacrimoso caso de Lindoya<br />
Fará sentir o peito, que não sente.<br />
("Parn. Bras.", 3 o cad., 32.)<br />
Manoel Ignacio da Silva Alvarenga dedicoulhe<br />
também uma ode, que começa assim:<br />
•Génio fecundo e raro, que com polidos versos<br />
("Obras"; 1, 289.)<br />
e, por fim. Felinto Elysiio, no "Ultimo adeus ás<br />
musas", acClamava o seu antigo companheiro da<br />
"guerra dos. poetas":<br />
Novos Camões o nosso reino illustrem.<br />
Que cantem novos Gamas e Albuquerques.<br />
Basilio, em Canto antfloquo forceja<br />
Cantar Freire, na America famoso.<br />
("Obras", 1, 417.)<br />
O proprio Basilio, num assomo de legitimo<br />
orgulho e commovedora confiança no seu estro,<br />
terminou o poema, exclamando:<br />
Serás lido, "Uruguay"...<br />
(5) "History of Brazil", Longman Husst.<br />
Kees, Orme & Brown. London. 1819. vol. III, 468,<br />
trecho este a que o annotador da traducção brazileira,<br />
o conego Fernandes Pinheiro, ajuntou a<br />
seguinte nota: "Esta fabula foi de invenção jesuítica,<br />
para arredarem de si a imputação de conspiradores,'<br />
f;t'/enrin recahir a responsabilidade<br />
sobre esse po bi^ na ajT^q u i m " (Pag. 35).