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Na estrada<br />
Histórias da BR-116<br />
pi<br />
primeira impressão<br />
nº 35 | julho de 2011 |
AO LEITOR<br />
Ainda que a ideia seja tentadora, não falaremos<br />
em metáforas neste número da Primeira<br />
Impressão. Falaremos de um caminho<br />
mesmo, uma estrada, dessas que nos<br />
levam e trazem de volta. Vindos do Sul ou do Norte,<br />
quase todos que trabalham, estudam e convivem na<br />
Unisinos passam pela BR-116. Passagem que, por princípio,<br />
é tempo e deslocamento. É ta<strong>mb</strong>ém vivência.<br />
Mais que um espaço de trânsito, a estrada é espaço<br />
de vida. Foram essas vidas, pelas quais simplesmente<br />
passamos, que dessa vez tentamos enxergar. Afinal,<br />
de quem são as roupas penduradas naqueles varais<br />
e<strong>mb</strong>aixo da ponte? Quem vende e que produtos são<br />
aqueles nas vendas pelas quais passamos velozmente?<br />
Um jardim em plena brutalidade da rodovia? Quem<br />
toma chimarrão naquela sacada? Quais as dores de<br />
quem faz a manutenção desse caminho? Quem é chapa<br />
ou não?<br />
Aprofundamos nossa percepção e contamos essas<br />
histórias. A edição 35 da Primeira Impressão — pautada<br />
e produzida por alunos do final do curso de Jornalismo<br />
da Unisinos — tem esta marca, uma das marcas<br />
que faz do jornalismo algo tão instigante: a possibilidade<br />
de ir atrás do que ainda não foi suficientemente<br />
contado e de perceber como as experiências podem<br />
ser narradas por quem as vive, longe do espaço confortável<br />
da redação. Para ser produzida, precisou que<br />
todos nós, intuições ligadas, olhássemos um pouco<br />
mais atentamente para o que se passa fora do carro,<br />
do trem, da van, do ônibus. E, lá fora, descobrimos<br />
um mundo cheio de histórias e de vida.<br />
Eduardo VEras<br />
FláVIo dutra<br />
thaís Furtado<br />
Professores-orientadores<br />
ANDRÉ ÁVILA<br />
CLARA ALLYEGRA
ÍNDICE<br />
4 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
8<br />
Viagem no tempo: como se fez a BR<br />
14<br />
Rota: o Rio Grande de ponta a ponta<br />
20<br />
Samu: socorro sobre quatro rodas<br />
24<br />
Autoridade: quem vigia a estrada<br />
28<br />
Confusão: imagens que poluem<br />
32<br />
Política visual: grafite e pichação<br />
36<br />
Religiosidade: “Só Jesus salva!”<br />
40<br />
Manutenção: homens trabalhando<br />
46<br />
Andança: um quilômetro a pé<br />
50<br />
Rota Romântica: o lado bom da rodovia<br />
54<br />
Afivele o cinto: na Praça do Avião<br />
58<br />
Entrevista: uma pista e dois mundos<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 5<br />
62<br />
Remendo: borracharias contemporâneas<br />
66<br />
Hoje é festa na BR: bailes e bailões<br />
70<br />
Bem passado, mal passado: churrascaria<br />
76<br />
Na lona: vou correndo ao encontro dela<br />
82<br />
Acelerando: diários de motocicleta<br />
86<br />
Meu chapa: quem ajuda o caminhoneiro<br />
90<br />
À margem do caminho: vida de índio<br />
94<br />
Vem comigo: em busca do sexo<br />
98<br />
Sustento: uma tenda familiar<br />
<strong>10</strong>2<br />
Caos: morando ao lado de um viaduto<br />
<strong>10</strong>6<br />
Habitação: oito debaixo da ponte<br />
1<strong>10</strong><br />
Recortes urbanos: uma cidade dividida<br />
CLARA ALLYEGRA
ATENÇÃO CLARA ALLYEGRA<br />
6 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong>
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | 7
cartola<br />
BR-116 chega ao extRemo sul<br />
do BRasil na década de 1950,<br />
atRavessando os campos dos<br />
aRRedoRes de pelotas<br />
Uma história em li<br />
8 | Primeira imPressÃo | JUlho/2011
nha longitUdinal<br />
Primeira imPressÃo | JUlho/2011 | 9
na década<br />
de 1930, a<br />
BR-116, ainda<br />
chamada<br />
de BR-2, eRa<br />
apenas um<br />
tRaçado<br />
de chão<br />
Batido entRe<br />
áReas pouco<br />
uRBanizadas<br />
Quando era criança, Mauri<br />
Adriano Panitz tornou-se<br />
popular entre os colegas<br />
de escola e vizinhos de<br />
rua porque gostava de<br />
desenhar. De família católica, ia à<br />
igreja aos domingos, mas desviava<br />
facilmente a atenção do sermão do<br />
padre para os afrescos no teto do<br />
templo. No centro de Porto Alegre,<br />
parava para ver um desenhista rabiscar<br />
pinturas de prédios públicos na<br />
Praça da Matriz. Mas o traçado que<br />
marcou a vida de Panitz seria bem<br />
mais simples de representar. Bastaria<br />
rabiscar uma linha longitudinal<br />
cortando o mapa do Brasil de norte<br />
a sul. De chinelo de dedo, na sala de<br />
seu apartamento, o engenheiro aposentado<br />
rabisca na fotocópia de um<br />
engenheiRo civil e especialista em<br />
pavimentação RodoviáRia, mauRi panitz, 69<br />
anos, fez caRReiRa na BR-116 desde os 26<br />
tEXto de taÍs seiBt | FotoS reProdUÇÕes e Pedro BarBosa<br />
antigo croqui o ponto inicial e o final<br />
de sua jurisdição como engenheiro<br />
residente do Departamento Nacional<br />
de Estradas de Rodagem (DNER), em<br />
São Leopoldo. Aos 69 anos, Panitz<br />
fala com saudosismo de seu trabalho<br />
pela BR-116, no trecho de aproximadamente<br />
300 quilômetros entre São<br />
Marcos e Camaquã, numa época em<br />
que as rodovias estavam em franca<br />
expansão no Brasil.<br />
Desde o Plano Rodoviário Nacional<br />
(PRN) criado em 1944, que pretendia<br />
ligar o país de ponta a ponta,<br />
foram feitos vários investimentos na<br />
construção de estradas. Especialista<br />
em pavimentação rodoviária e formado<br />
em Engenharia Civil, Panitz foi<br />
contratado em 1968 para ser assistente<br />
do então engenheiro residente<br />
do DNER em São Leopoldo, Nei Nunes<br />
Fortes de Oliveira. Um ano depois, o<br />
titular deixou a vaga em aberto e Panitz<br />
assumiu o comando da residência.<br />
O DNER, atual Departamento Nacional<br />
de Infraestrutura e Transportes<br />
(DNIT), chama de “residências” as<br />
unidades do órgão distribuídas pelas<br />
rodovias federais para monitorar os<br />
trechos. Cabia àquele jovem de 26<br />
anos comandar quase 500 empregados<br />
nas mais variadas funções: topógrafos,<br />
mecânicos, sobretudo operários.<br />
“Consegui me entrosar tão bem<br />
que eu gozava da confiança dos meus<br />
superiores e tinha a empatia dos subordinados”,<br />
diz Panitz.<br />
Os operários viviam em acampamentos,<br />
chamados de capatazias, à<br />
beira da estrada. “Era gente muito<br />
<strong>10</strong> | Primeira imPressÃo | JUlho/2011
simples, mas com grande espírito de<br />
doação”, le<strong>mb</strong>ra. “Muitos vinham da<br />
colônia, estavam acostumados a trabalhar<br />
na terra.” Daí o capricho que<br />
tinham com os canteiros da rodovia.<br />
Foi feita nesta época toda a arborização<br />
do trajeto entre Nova Petrópolis<br />
e Novo Ha<strong>mb</strong>urgo, com os plátanos<br />
amarelados no outono que estampam<br />
cartões-postais das cidades que<br />
se divulgam como a Rota Romântica.<br />
“Eu achava que plantar árvores na<br />
beira da estrada era uma maravilha,<br />
porque deixava o caminho mais bonito,<br />
mas com o tempo vi que causa<br />
alguns transtornos, como quedas de<br />
troncos e obstrução da sinalização”,<br />
avalia hoje, com a visão sistêmica<br />
que o tempo lhe deu.<br />
TraTores, NÃo carroças<br />
Cada capatazia tinha, além do<br />
acampamento dos trabalhadores,<br />
pedreira, usina de asfalto, depósito<br />
de sucata e horto florestal. Quando<br />
era preciso fazer um reparo, retirar<br />
árvores caídas ou remover pedras<br />
de quedas de barreiras, o material<br />
vinha da capatazia mais próxima.<br />
Na gestão de Panitz, já se dispunha<br />
de facilidades como tratores, carregadeiras,<br />
serra elétrica e dinamite<br />
áRea centRal de canoas<br />
nos anos 1950, hoje<br />
um dos tRechos mais<br />
movimentados da BR-116<br />
Primeira imPressÃo | JUlho/2011 | 11<br />
para executar o trabalho, mas a BR-<br />
116 começou a tomar forma no Rio<br />
Grande do Sul em tempos bem mais<br />
precários. A implantação do primeiro<br />
trecho, entre a divisa com o estado<br />
de Santa Catarina e a cidade gaúcha<br />
de Caxias do Sul, na Serra, data de<br />
1938, “aproveitando a mão-de-obra<br />
abundante, com auxílio de transporte<br />
em carroças, obedecendo aos<br />
padrões e possibilidades da época”,<br />
conforme registros do DNIT. Como<br />
“possibilidades da época”, entendase<br />
o uso de foices para afastar o mato<br />
e picaretas para detonar pedras.<br />
Até 1974, a rotina de Panitz foi<br />
dividida entre a burocracia de dar<br />
pareceres, despachar processos, fazer<br />
estudos técnicos, participar de<br />
reuniões e a parte técnica de visitar<br />
trechos, acompanhar obras, orientar<br />
trabalhos de campo. Não tinha jornada<br />
definida nem horário fixo. Fim<br />
de semana, feriado, madrugada. Era<br />
preciso estar sempre pronto para<br />
cair na estrada. O escritório, quase<br />
sempre, era a própria rodovia.<br />
Uma ocorrência no inverno de<br />
1971 é representativa para Panitz.<br />
Havia muitos buracos na pavimentação<br />
da ponte sobre o Rio Gravataí,<br />
entre Porto Alegre e Canoas. A lenti-<br />
nos anos 1960, a Rodovia<br />
já estava pavimentada<br />
e com duplicação em<br />
alguns tRechos<br />
dão no trecho, que já registrava um<br />
fluxo de 50 mil veículos por dia na<br />
época, obrigava os motoristas a enfrentar<br />
longos engarrafamentos todas<br />
as manhãs. “Mobilizei a equipe,<br />
pedi o apoio da Polícia Rodoviária Federal<br />
e passamos a madrugada trabalhando,<br />
das 23h às 5h, para recuperar<br />
a pavimentação”, conta. “Era um<br />
inverno rigoroso, fazia quase zero<br />
grau, mas todos estavam lá. Tinham<br />
um grande espírito de desafio”, completa.<br />
Na manhã seguinte, os usuários<br />
já podiam usufruir das melhorias<br />
no trecho, que, 30 anos mais tarde,<br />
continua sendo um dos grandes nós<br />
do trânsito na Região Metropolitana<br />
de Porto Alegre. “É um coração enfartado”,<br />
define Panitz, citando um<br />
artigo seu publicado recentemente.<br />
Ele compara a BR-116 à artéria principal<br />
de um coração que não suporta<br />
mais o alto fluxo de veículos, superior<br />
a <strong>10</strong>0 mil por dia. “A 116 precisa<br />
de safenas, estradas paralelas interligadas<br />
a ela, para desobstruir o entupimento”,<br />
ilustra.<br />
Vencer os desafios que a rodovia<br />
lhe oferecia a cada dia era a maior<br />
realização para aquele jovem engenheiro<br />
– e hoje a grande lição<br />
que ficou da BR-116 para sua vida.
panitz: “a BR-116 é um<br />
coRação enfaRtado”<br />
vista aéRea do tRecho canoaspoRto<br />
alegRe na década 1960<br />
mostRa o desenvolvimento da<br />
Região metRopolitana da capital<br />
“Nessa rodovia adquiri toda minha<br />
experiência, pelo método mais eficiente<br />
do mundo: errando e acertando”,<br />
avalia.<br />
Em 1974, Panitz deixou a residência<br />
do DNER em São Leopoldo,<br />
mas não se afastou da BR-116. Assumiu<br />
a chefia do serviço de trânsito<br />
da Polícia Rodoviária Federal. Segundo<br />
ele, 40% das ocorrências que<br />
precisava atender se concentravam<br />
Pedro BarBosa<br />
em 1968, o tRaçado da Rodovia<br />
coRta a cidade de canoas, sepaRada<br />
de poRto alegRe pelo Rio gRavataí,<br />
como mostRa a imagem aéRea<br />
na rodovia, por ter o maior tráfego<br />
do Estado. Paralelamente, a BR-116<br />
estava chegando ao seu quilômetro<br />
final no Rio Grande do Sul. O quilômetro<br />
654,2, em Jaguarão, na fronteira<br />
do Brasil com o Uruguai, foi<br />
concluído em 27 de abril de 1974. O<br />
Brasil enfim podia festejar a construção<br />
de sua “mais importante rodovia<br />
radial”, como registram os arquivos<br />
do Ministério dos Transportes.<br />
“Ter trabalhado em uma obra importante<br />
como a da BR-116 é fantástico!”,<br />
sintetiza Panitz. A dificuldade<br />
para encontrar as palavras certas<br />
para definir a importância da rodovia<br />
em sua vida se compara ao silêncio<br />
que ele faz quando tenta achar<br />
resposta para o que não gostava no<br />
trabalho. “É difícil achar o que era<br />
ruim”, dispara após alguns instantes.<br />
“A falta de recursos sempre atrapalhava”,<br />
comenta depois de pensar<br />
mais um pouco.<br />
Na linha longitudinal da vida de<br />
Mauri Panitz, houve tempo ainda<br />
para trabalhar no setor de planeja-<br />
12 | Primeira imPressÃo | JUlho/2011
mento do DNIT, ser diretor técnico da<br />
Secretaria de Transportes do Estado,<br />
integrar conselhos de engenharia,<br />
dar aulas na universidade, ministrar<br />
palestras e cursos, participar de<br />
debates e escrever artigos e livros.<br />
Além de casar e ter filhos. O mais<br />
velho, Carlos Eduardo, formou-se<br />
em Engenharia Civil, como o pai, e<br />
depois cursou Administração de Empresas.<br />
Luis Fernando, o mais novo,<br />
estudou Direito.<br />
Se é que a máxima consagrada<br />
faz algum sentido, Panitz pode considerar<br />
que cumpriu sua missão na<br />
vida: plantou árvores às margens da<br />
BR-116, teve filhos e escreveu livros.<br />
Uma das obras extrapola o conhecimento<br />
técnico que acumulou entre<br />
um quilômetro e outro da estrada<br />
mais importante do Brasil. Em A linguagem<br />
do silêncio, Panitz traça o<br />
próprio perfil a partir de sua paixão<br />
pelo desenho. De todos, o da fotocópia<br />
de um croqui amarelado resgatado<br />
dos arquivos do DNIT é a sua mais<br />
significativa contribuição.<br />
o tRáfego no tRecho canoas-poRto<br />
alegRe eRa intenso desde os anos<br />
1970: ceRca de 50 mil veículos poR dia.<br />
na foto, imagem RegistRada em 1972<br />
Primeira imPressÃo | JUlho/2011 | 13<br />
IMPrESSÕES DE rEPÓrtEr<br />
odovias não são obras da criação divina. são frutos do<br />
“Rtrabalho braçal de homens, quem sabe ta<strong>mb</strong>ém de algumas<br />
mulheres. para podermos hoje atravessar o Brasil de norte a sul<br />
pela BR-116, totalmente pavimentada, foi preciso que técnicos<br />
projetassem a estrada e operários fornecessem sua mão-deobra.<br />
não fazíamos ideia de quando a rodovia tinha começado<br />
a ser construída, mas queríamos encontrar uma das pessoas que<br />
trabalhou na sua construção. foi preciso insistir em contatos com<br />
ministério dos transportes, instituto de pesquisa Rodoviária, banco<br />
de dados de zero hora, museu da comunicação e câmara dos<br />
deputados, todos muito prestativos. descobrimos que a BR-116<br />
começou a ser construída na década de 1930. seria muito difícil que<br />
algum operário dessa época ainda estivesse vivo ou ao menos lúcido<br />
até hoje. a última esperança era a memória de um engenheiro<br />
aposentado do departamento nacional de infraestrutura e<br />
transportes (dnit), que nos levou à fonte desta reportagem. ainda<br />
foi possível ilustrar a matéria com a colaboração da historiadora<br />
danielle heberle viegas, que disponibilizou fotografias usadas em<br />
sua dissertação de mestrado. a lição que fica é acreditar na pauta,<br />
não desistir na primeira negativa.”<br />
imagem de 1983 mostRa a<br />
Região metRopolitana de poRto<br />
alegRe amplamente uRBanizada<br />
às maRgens da BR-116
SEIScEntOS<br />
E cInqUEntA<br />
E nOvE<br />
TEXTO DE AnDRÉ ÁvILA E EDUARDO HERRMAnn | FOTOS DE AnDRÉ ÁvILA<br />
A<br />
maior rodovia pavimentada<br />
do Brasil percorre o Rio<br />
Grande do Sul em 659 quilômetros.<br />
Começa em Vacaria,<br />
divisa com Santa Catarina, e termina<br />
em Jaguarão, na fronteira com<br />
o Uruguai. Nesse percurso, a BR-116<br />
cruza áreas urbanas de outros 23 municípios.<br />
Em alguns deles, a estrada<br />
funciona da mesma maneira que uma<br />
rua bastante movimentada, cortando<br />
seu bairro central. Seja na selva de<br />
pedras ou no meio dos pampas, muita<br />
gente tem o nome da rodovia em<br />
seu endereço residencial, comercial,<br />
ou em a<strong>mb</strong>os. O asfalto da BR liga<br />
pessoas tão distantes e tão diferentes,<br />
mas que garantem vida à via que<br />
muitos, entediados pela rotina, deixam<br />
cair na indiferença.<br />
Km 0 – No recuo da estrada, logo<br />
após a primeira curva da BR-116<br />
gaúcha, alguns carros param. Famílias<br />
tiram fotos junto à cuia gigante<br />
que dá as boas vindas no canteiro<br />
e depois seguem seu rumo. Poucos<br />
param na lancheria de Izeu Otílio<br />
Coelho da Silva, alguns metros acima.<br />
A pouca luz que entra pela janela<br />
ilumina mais que a lâmpada do<br />
bar — a penu<strong>mb</strong>ra parece dar o tom.<br />
Há mais de duas décadas no local,<br />
o tranquilo e descansado senhor de<br />
60 anos conta com a companhia de<br />
gatos, cachorros, galinhas, do amigo<br />
José e do tempo.<br />
Depois de 25 anos no final daquela<br />
curva, a única história que o dono<br />
da lancheria narra com emoção sobre<br />
a região onde sempre morou é<br />
de quando a ponte que separa os<br />
dois estados caiu, em 1964. Na época,<br />
o jovem Izeu trabalhava em uma<br />
serraria de Vacaria, perto da divisa.<br />
Foi com esse ofício que perdeu quatro<br />
dedos da mão esquerda (restou o<br />
polegar), deficiência que ele afirma<br />
não atrapalhar em nada o seu dia a<br />
dia, antes de chamar o amigo pedindo<br />
ajuda para abrir um garrafão<br />
de vinho: “Ô, José! Abre aqui, faz<br />
favor”. Do vinho tinto do garrafão,<br />
à temperatura a<strong>mb</strong>iente, serve um<br />
14 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | 15
LOGO DEPOIS DE ENTRAR NO<br />
ESTADO, A BR DESCREVE UMA<br />
CURVA EM DIREÇÃO AO SUL<br />
copo até a boca para outro senhor, morador das redondezas<br />
e cliente usual. No curto e desapressado diálogo dos<br />
senhores, a pauta é o tempo. Tempo, nesse caso, meteorológico.<br />
O tempo cronológico espera na penu<strong>mb</strong>ra,<br />
parece não importar muito para nenhum dos viventes.<br />
Km 9 – Dois casais param com certa pressa para tomar<br />
um café, deixando os apetrechos apoiados no balcão.<br />
“Não queremos chegar tarde”, avisa Hilário Herken Hoff.<br />
O destino é a festa de aniversário de um amigo, na cidade<br />
de Feliz, cerca de 180 quilômetros distante. No estacionamento<br />
do restaurante Bela Vista, na beira da estrada,<br />
duas imponentes motocicletas Harley Davidson esperam<br />
os quatro e destacam-se em meio aos demais veículos.<br />
É esse o hobby dos dois casais. Sempre que arranjam<br />
um tempo, viajam com suas motos. O último grande<br />
passeio teve origem em Daytona, nos Estados Unidos. Os<br />
casais, moradores de Blumenau, voaram até lá e alugaram<br />
motocicletas idênticas às que possuem para viajar<br />
por dois mil quilômetros pelo estado da Flórida em um<br />
encontro de motociclistas.<br />
Os funcionários já limpam o balcão enquanto os casais<br />
se preparam para seguir caminho. “Vamos lá, estamos<br />
atrasados”, insiste Hilário para sua mulher, Denise, enquanto<br />
acomoda o capacete na cabeça. Na outra moto,<br />
ao mesmo tempo em que Marcelo Teixeira acerta os braços<br />
na jaqueta, sua mulher, Izabete, testa o microfone<br />
que garante a comunicação entre o piloto e a carona.<br />
A mão já protegida com luva veste a outra. Os motociclistas<br />
ligam o motor, despedem-se e pegam a estrada<br />
novamente.<br />
Km 29 – “MAÇÃ 50MT” avisa a placa, fixada em uma<br />
pedra à beira da BR. A grafia esquisita não é problema,<br />
pois a placa é desnecessária, já que a pequena casa de<br />
madeira pode ser vista de uma distância muito maior. Gelson<br />
Mikna e sua mulher, Daniela, vendem maçãs e cuias na<br />
beira da estrada. Saíram de Iraí, 400 quilômetros distante,<br />
buscando melhores condições de vida e de trabalho.<br />
Com certa lástima, o vendedor conta que o local,<br />
com pouco mais de 25 metros quadrados, serve ta<strong>mb</strong>ém<br />
de moradia ao casal — até mesmo no gelado inverno de<br />
Vacaria. É difícil de adivinhar onde fica a cama e o banheiro,<br />
pois só o que se vê é a pequena televisão ligada,<br />
presa à parede.<br />
Por R$ 4, o casal vende dois quilos de maçã fuji. Por<br />
R$ 1 a mais, o cliente leva 2,5 quilos. As frutas são compradas<br />
de um agricultor cujo pomar tem quatro hectares.<br />
Uma pequena parcela, se comparada aos milhares<br />
de hectares das grandes empresas, onde trabalham milhares<br />
de homens. Essa abundância transforma o município<br />
no segundo maior produtor de maçãs do Brasil.<br />
Com a voz mansa, Gelson conta que o movimento é<br />
modesto, mas melhora no verão, quando o destino dos<br />
carros é o litoral catarinense e os motoristas param na<br />
única casa em uma distância que é<br />
bem maior do que 50 metros.<br />
Km <strong>10</strong>1 – A caricatura do gringo<br />
italiano da serra gaúcha prevê uma<br />
pessoa faladora e hospitaleira, que<br />
vive contando sobre sua família. O<br />
estereótipo é personificado atrás<br />
do balcão, na figura de Teresinha<br />
Mascarello Menegon. O estabelecimento<br />
que mantém com seu marido,<br />
Telipor Antônio Menegon, fica ao<br />
lado de sua casa, no sinuoso trecho<br />
da rodovia em São Marcos. Como a<br />
casa está em um pequeno recuo entre<br />
a estrada e a montanha, grandes<br />
caminhões — significativa parte do<br />
trânsito da região — têm dificuldade<br />
em estacionar no local. Dessa<br />
forma, famílias que viajam de carro<br />
representam a maior parte de sua<br />
clientela. Os produtos vão de guloseimas<br />
a souvenirs, incluindo toucas<br />
e luvas para proteger os mais friorentos<br />
no rigoroso clima serrano. O<br />
destaque fica para as comidas feitas<br />
pela Agroindústria Menegon 0151<br />
marca da família —, como mandolates,<br />
geleias e sucos.<br />
Km 159 – O antigo casarão de<br />
madeira chama a atenção de quem<br />
passa pela estrada em Galópolis,<br />
bairro do interior de Caxias do Sul.<br />
Mesmo com sua beleza rústica e centenária,<br />
a habitação não é to<strong>mb</strong>ada<br />
pelo patrimônio histórico do município.<br />
A explicação está no logradouro<br />
16 16 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong><br />
| JULHO/2011
onde se encontra. Por estar fixada<br />
às margens de uma rodovia federal,<br />
pode, futuramente, ser um empecilho<br />
para possíveis obras na via.<br />
Ao mesmo tempo em que poderia<br />
implicar em uma triste derrubada do<br />
belo casarão, uma eventual duplicação<br />
da BR-116 no local resolveria um<br />
recente problema. O trecho, que<br />
antes garantia tranquilidade para<br />
Otília Marchesini Stragliotto, de<br />
85 anos, há meia década se transformou<br />
em um local movimentado,<br />
com engarrafamentos diários.<br />
Seu filho Geraldo, que passa alguns<br />
dias da semana na casa, está<br />
até construindo um cômodo na parte<br />
de trás do terreno, para sua mãe<br />
descansar melhor. Ele conta que o<br />
barulho dos caminhões começa às<br />
4h30min, e o movimento acalma<br />
apenas depois das 7h30min.<br />
No outro lado da estrada há uma<br />
pousada. Maria Eliza, outra filha de<br />
Otília, conta que frequentemente<br />
flagra hóspedes registrando em fotografias<br />
a bela imagem da habitação,<br />
que começou a ser construída há mais<br />
de cem anos pela família Stragliotto<br />
e foi finalizada em 1914. O casarão,<br />
que já foi casa de comércio e restaurante,<br />
parece que, infelizmente, não<br />
chegará nem perto de mais um século<br />
de história. E quem se interessa<br />
em comprá-lo, diz Geraldo, ao invés<br />
de adquirir parte da história de Caxias,<br />
vislu<strong>mb</strong>ra apenas uma enorme<br />
quantidade de madeira.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | JULHO/2011 | 17 | 17<br />
Km 609 – De março a sete<strong>mb</strong>ro, a vida de Astrogildo<br />
Lemos Gonçalves — curiosamente conhecido como<br />
Dudu — é pura tranquilidade. Com sua esposa e seus<br />
cachorros, apenas espera o tempo passar. No restante<br />
do ano, o zelador do Aeroporto Municipal de Arroio<br />
Grande, há seis anos na função, tem bastante trabalho.<br />
“O movimento começa às 5h30min e só para de<br />
noite”, conta. O destino das máquinas que levantam<br />
voo da pista de mais de um quilômetro são as grandes<br />
plantações da região.<br />
Km 6<strong>10</strong> – O Brasil é um dos maiores exportadores<br />
de commodities do mundo. Entre as principais mercadorias<br />
de origem primária produzidas no país, estão o<br />
arroz e soja. O sul do estado se destaca no plantio desses<br />
produtos. Para ajudar no cultivo desses infinitos hectares,<br />
entra em campo aquele que é um vilão aos olhos<br />
de muita gente: o agrotóxico. Utilizados no co<strong>mb</strong>ate a<br />
pragas que danificam as grandes plantações, os produtos<br />
são mal vistos porque poluem o solo e são prejudiciais à<br />
saúde humana. Como grandes sí<strong>mb</strong>olos dessas substâncias,<br />
estão os aviões para pulverização da lavoura, que<br />
despejam enormes quantidades de pesticidas, herbicidas<br />
e fungicidas nas plantações.<br />
Vogler Fernandes e sua família, proprietária da Aero<br />
Agrícola Quatroas, sofrem com essa ideia. “Agrotóxico<br />
não é veneno, é defensivo agrícola. A aviação agrícola<br />
é vista como mau troço, mas não é. É uma ferramenta<br />
para o produtor rural”, afirma Vogler. Fundada em 1980<br />
por Ariel Fernandes, a empresa respeita todas as exigências<br />
a<strong>mb</strong>ientais legais para funcionar, segundo Vogler.<br />
Por conta disso, enfrenta uma concorrência desleal de<br />
quem aplica agrotóxicos com tratores e não tem os mesmos<br />
cuidados com o meio a<strong>mb</strong>iente. Além desse fator, a<br />
manutenção dos aviões custa caro, tendo em vista que<br />
as peças vêm do exterior. Sendo assim, apesar dos cerca<br />
de 30 clientes fixos da empresa, o negócio não é tão bom<br />
quanto antigamente, admite Vogler.<br />
IzEU (À ESQUERDA)<br />
PERDEU OS DEDOS<br />
AINDA JOVEM, QUANDO<br />
TRABALHAVA EM UMA<br />
SERRARIA. HOJE, DONO<br />
DE LANCHERIA, TEM<br />
A COMPANHIA DOS<br />
BICHOS NO COMBATE<br />
à SOLIDÃO. GELSON<br />
(ACIMA) AGUARDA<br />
CLIENTES NA PORTA DE<br />
CASA, NO KM 29 DA<br />
BR, ENfRENTANDO A<br />
CONCORRêNCIA DOS<br />
GRANDES PRODUTORES<br />
DE MAÇÃ
è<br />
O CASARÃO DA<br />
fAMíLIA STRAGLIOTTO<br />
CHAMA A ATENÇÃO DE<br />
QUEM PASSA POR SEU<br />
QUINTAL: A BR-116<br />
Km 657 – Nas últimas décadas, a humanidade evoluiu<br />
incrivelmente em termos tecnológicos. O leque de<br />
eletrônicos e máquinas que facilitam nossa vida apenas<br />
aumenta. No meio de tudo isso, porém, parece que algumas<br />
coisas nunca mudarão. A vida no campo, por exemplo,<br />
não deixará de ter a simplicidade e pureza da natureza.<br />
O cavalo será sempre, ao lado do cão perdigueiro,<br />
o grande companheiro dos peões. Ou será possível uma<br />
máquina substituí-lo?<br />
Winston Batalla revende, há seis meses, quadriciclos<br />
motorizados da marca argentina Zanella, fabricados<br />
na China. O castelhano confirma que os veículos de<br />
maior porte estão sendo usados no campo para, entre<br />
outros afazeres, recolher o gado. Os quadriciclos, vendidos<br />
a um preço de R$ 4 mil a R$ 9 mil, são tão econômicos<br />
— no consumo de gasolina — quanto uma moto.<br />
A vantagem para seu uso no campo é a estabilidade<br />
em terrenos mais difíceis. Os de menor porte são mais<br />
procurados para trilhas.<br />
Grande parte dos clientes mora na serra gaúcha,<br />
mas já saíram vendas até para Santa Catarina. Segundo<br />
o vendedor, são pessoas que viajam a Jaguarão e, ao<br />
percorrer os últimos quilômetros da BR-116, interessam-se<br />
pelos quadriciclos, que chegam ao seu destino<br />
via frete.<br />
Km 659 – Após ser reconhecida pelo Brasil como nação<br />
independente, a República Oriental do Uruguai permaneceu<br />
com uma dívida de mais de cinco milhões de<br />
pesos-ouro com os vizinhos do leste. O pagamento aconteceu<br />
entre 1927 e 1930, não em dinheiro, mas com a<br />
construção da Ponte Internacional Barão de Mauá. A imponente<br />
construção, erguida sobre o Rio Jaguarão, liga a<br />
cidade gaúcha de Jaguarão a Rio Branco, no Uruguai.<br />
A ponte é um belo cartão de visitas, com intenso<br />
trânsito de turistas em finais de semana – especialmente<br />
quando há um feriado colado. A maioria se hospeda em<br />
Jaguarão, mas o motivo de sua passagem fica no outro<br />
lado do rio. Na zona franca de Rio Branco estão os adorados<br />
free-shops, lojas com isenção ou redução de impostos<br />
que, em razão disso, oferecem produtos mais baratos<br />
e atraem viajantes de muito longe que buscam economia<br />
na compra de, principalmente, bebidas e perfumes.<br />
O extremo sul da BR-116 no Brasil termina exatamente<br />
na Ponte Mauá, e os viajantes que vão e voltam, carregados<br />
de mercadorias, mal sabem que ali é a ponta de<br />
uma rodovia repleta de histórias. Novas estradas surgem<br />
no horizonte e novas vidas, novas histórias, novas rotinas<br />
e novos sentimentos se apresentam ao viajante que, de<br />
fronteira em fronteira, tem sempre a estrada como inseparável<br />
companheira.<br />
18 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
epois da primeira entrevista, o silêncio<br />
“Dtomou conta do carro. O entrevistado<br />
era a personificação da melancolia, da tristeza,<br />
da vida tortuosa. ‘A BR-116 vai ser assim?’, vai,<br />
ta<strong>mb</strong>ém. A nossa pauta teve de tudo. Vimos<br />
e ouvimos muitas histórias distintas, mas<br />
sempre interessantes. A única coisa em comum<br />
entre os protagonistas é a rodovia, aspecto<br />
fundamental em seus cotidianos. Pessoas, só<br />
pessoas interessavam. Cruzar o estado ao longo<br />
de 659 quilômetros nos permitiu ver que a vida<br />
ta<strong>mb</strong>ém está na curva, no acostamento, quase<br />
dentro da estrada. O movimento de todos os<br />
personagens que moram, trabalham, atravessam<br />
ou simplesmente estão ali, nos mostra que,<br />
para a história ser interessante, basta haver<br />
alguém interessado em ouvi-la. E se tivéssemos<br />
parado em todos os lugares que nos chamavam<br />
minimamente a atenção durante o trajeto, as<br />
histórias caberiam apenas em um livro. A estrada<br />
que, antes, representava para nós apenas uma via<br />
de locomoção, ganhou outro significado. Virou,<br />
na nossa percepção, uma estrada cheia de vida.”<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 19<br />
NOVAS HISTóRIAS SURGEM<br />
A PARTIR DA BELA PONTE<br />
SOBRE O RIO JAGUARÃO,<br />
DESTINO fINAL DA BR NO<br />
SUL DO BRASIL
A AfLIçÃO dA<br />
dEMORA<br />
QUASE METADE<br />
DOS CHAMADOS<br />
PARA A SAMU DE<br />
SÃO LEOPOLDO<br />
É PARA A BR-116<br />
Sete médicos, seis enfermeiros, 12 técnicos de enfermagem<br />
e 21 motoristas revezam em turnos de<br />
24 horas no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência<br />
(Samu) na unidade da cidade de São Leopoldo,<br />
Região Metropolitana de Porto Alegre. A base recebe<br />
por dia mais de 24 chamados, são mais de 600 pedidos de<br />
ajuda por mês pelo telefone 192. Três a<strong>mb</strong>ulâncias - duas<br />
de atendimento básico e uma de atendimento avançado -,<br />
um carro e uma moto, para o deslocamento rápido, fazem<br />
a cobertura do trecho da BR-116 que corta a cidade ao<br />
meio. Quarenta e cinco por cento dos chamados mensais<br />
são para atendimentos na rodovia no trecho de São Leopoldo.<br />
Muitas pessoas dizem que trabalhar com urgência<br />
é algo para quem tem sangue frio. Nas horas que passei<br />
naquela unidade, percebi que, além de sangue frio, o importante<br />
é ter amor pela vida. Não digo amor pela própria<br />
vida, mas sim pela vida do próximo.<br />
A unidade está localizada em uma casa nos fundos do<br />
Hospital Centenário, o único da cidade. Lá a equipe tem<br />
dois quartos com camas, banheiro com chuveiro, uma<br />
sala de estar, cozinha, escritório, expurgo, farmácia e<br />
almoxarifado. O lugar de troca da equipe é a sala da<br />
frente, com um sofá de dois lugares doado e banquinhos<br />
para sentar. É ali que eles ficam entre um chamado e<br />
outro. A equipe faz uma caixinha para comprar móveis ou<br />
eletrodomésticos, e o dinheiro é arrecadado dos funcionários<br />
todos os meses. Quando dá, eles próprios fazem<br />
alguma manutenção nos veículos, tudo para evitar que<br />
uma a<strong>mb</strong>ulância fique parada na oficina esperando que o<br />
Governo Estadual libere a verba para o conserto, o que<br />
pode demorar até dois meses. Júlio de Oliveira Espineli,<br />
TEXTO E FOTOS dE LIEGE fREITAS<br />
chefe médico da unidade, conta que, em outra cidade da<br />
região, fazia o mesmo tipo de trabalho. Faltavam a<strong>mb</strong>ulâncias<br />
para o atendimento devido à demora na liberação<br />
da verba de manutenção das mesmas. “A gente usava as<br />
a<strong>mb</strong>ulâncias do município, sempre acompanhados de um<br />
carro de resposta rápida. E, quando não tínhamos mais o<br />
carro, continuamos com os atendimentos mesmo assim.<br />
O importante era o serviço não parar.”<br />
Com a BR-116 cortando São Leopoldo ao meio, existem<br />
cinco jeitos de se ir de um lado para o outro: a entrada da<br />
Unisinos, pela Avenida João Correa, pelo viaduto do Centro,<br />
pela Avenida Caxias do Sul e pela entrada da RS-240.<br />
São cinco bairros de um lado e 19 de outro. A base fica<br />
no lado com maior número de bairros, mas um dos grandes<br />
problemas é a locomoção até o outro lado. Devido ao<br />
congestionamento da BR-116, o deslocamento da base até<br />
um dos cinco bairros é mais demorada que nos outros 19.<br />
Dependendo de onde é o local do chamado, a a<strong>mb</strong>ulância<br />
fica parada na estrada. “Não podemos passar por cima dos<br />
outros carros. Quando é possível, andamos pela lateral da<br />
rodovia, ou pelo meio da pista, obrigando os carros a irem<br />
para o lado, senão, é esperar pela boa vontade dos motoristas”,<br />
relata o coordenador da unidade, o enfermeiro<br />
Roberto Tiska. Quanto à quantidade de acidentes graves<br />
que tem na rodovia, a resposta é otimista: “Antes havia<br />
bem mais. Como vão ter acidentes graves se o motorista<br />
não pode mais correr? A BR está simplesmente parada”.<br />
Uma das alternativas é a utilização de duas motos de resposta<br />
imediata para a locomoção mais rápida, mas São<br />
Leopoldo só tem uma moto e aguarda a segunda.<br />
ADRENALINA E INCERTEZA<br />
Toda a vez que uma equipe entra numa das a<strong>mb</strong>ulâncias,<br />
a adrenalina sobe juntamente com a vontade de<br />
atender o paciente o mais rapidamente possível. Com<br />
as dificuldades de locomoção por causa do congestionamento,<br />
aumenta a tensão com a incerteza de que o<br />
tempo perdido no trânsito, durante o trajeto, pode ser<br />
crucial para salvar uma vida. Quando ocorre um acidente<br />
na BR-116 na divisa da cidade de São Leopoldo com Sapucaia<br />
do Sul, no sentido norte, a equipe percorre mais<br />
de cinco quilômetros no sentido sul para conseguir voltar<br />
20 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMBRO/20<strong>10</strong> | 21
para o sentido norte, através do viaduto<br />
da RS-118. Existe um principio<br />
no atendimento pré-hospitalar que<br />
é preservar a segurança da equipe<br />
durante o deslocamento das a<strong>mb</strong>ulâncias.<br />
Por mais importante que<br />
seja a vontade de atender o paciente,<br />
a equipe não pode se expor a<br />
riscos. Andar na contramão e fazer<br />
um retorno no meio da rodovia só<br />
quando for muito seguro, e mesmo<br />
assim não é aconselhado.<br />
O chefe médico da equipe, Dr.<br />
Espineli, explica que, de acordo<br />
com a gravidade da ocorrência, os<br />
profissionais que se deslocam para<br />
atender utilizam códigos. “Para<br />
cada gravidade o motorista deve<br />
empregar uma maneira diferente<br />
de conduzir a a<strong>mb</strong>ulância de forma<br />
segura. Assim como deve ser o tom<br />
emitido pela sirene. O código vermelho,<br />
por exemplo, é usado em<br />
casos de vida ou morte. O motorista<br />
emprega uma velocidade maior<br />
e o aviso sonoro é intenso, com pequenos<br />
espaços de tempo”.<br />
Engana-se quem pensa que o<br />
deslocamento para o hospital, após<br />
o atendimento, deve ser igualmente<br />
rápido. Júlio explica que existem<br />
procedimentos médicos de<br />
salvamento que exigem que a a<strong>mb</strong>ulância<br />
esteja a uma determinada<br />
velocidade e ângulo para a estabilização<br />
do enfermo. “Cabe em uma<br />
mão as vezes em que tive que pedir<br />
para o motorista pisar no acelerador<br />
e chegar o mais rápido possível<br />
ao hospital, porque a vida do ferido<br />
dependia disso. O movimento dentro<br />
da a<strong>mb</strong>ulância em alta velocidade<br />
pode dificultar a estabilização<br />
do paciente. Se há necessidade,<br />
peço para o motorista parar, esperar<br />
até eu estabilizar o paciente e<br />
depois continuar com o trajeto”,<br />
conta Espinelli.<br />
Durante o deslocamento de um<br />
chamado, ou até uma ida ao posto<br />
para abastecer, as atividades podem<br />
ser interrompidas para um atendimento,<br />
e ele nem precisa vir da central<br />
de regulamentação. Uma normativa<br />
internacional diz que nenhuma equipe<br />
de salvamento pode negar atendimento<br />
a um paciente em via pública.<br />
Todos conferem o material e reabastecem<br />
as a<strong>mb</strong>ulâncias depois<br />
de cada atendimento. “Tratamos<br />
todo paciente como se fosse nossa<br />
mãe, pai ou algum irmão. O paciente<br />
deve ser tratado como nós queríamos<br />
que um familiar nosso fosse,<br />
com todo o empenho e dedicação<br />
possível”. Segundo Roberto Tiska,<br />
todo o dia acontece alguma coisa<br />
para marcar a memória desses profissionais<br />
da saúde.<br />
O SAMU NÃO<br />
PODE NEGAR<br />
ATENDIMENTO,<br />
MESMO DURANTE<br />
UMA IDA AO POSTO<br />
DE GASOLINA<br />
22 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMBRO/20<strong>10</strong>
ANTES DE QUALQUER SAÍDA,<br />
A EQUIPE CONFERE O MAPA<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
uando escolhi fazer o curso de jornalismo,<br />
“Qminha mãe achou que eu iria passar fome<br />
no futuro, então me obrigou a fazer o curso Técnico<br />
de Enfermagem. Assim, eu teria outra opção se no<br />
jornalismo não desse certo. Por isso tive autorização<br />
para fazer esta reportagem e acompanhar alguns<br />
deslocamentos da Unidade do Samu de São Leopoldo.<br />
Por ser, ta<strong>mb</strong>ém, profissional da área de enfermagem,<br />
durante duas sextas-feiras, por três horas, fiquei lá na<br />
unidade conversando, perguntando, fotografando,<br />
absorvendo e observando tudo. Vi o cuidado e a<br />
dedicação que as equipes de socorro empregam nas<br />
suas atividades diárias. Desde limpar, abastecer e checar<br />
tudo nas a<strong>mb</strong>ulâncias após cada atendimento, até gritar<br />
e gesticular para que os outros carros saiam da frente<br />
durante um trânsito pesado na BR-116. Agradeço a<br />
todas as equipes que me deixaram acompanhar nos<br />
deslocamentos, a paciência que o enfermeiro Tiska teve<br />
comigo e ao Dr. Júlio, por sempre explicar tudo nos<br />
mínimos detalhes, mesmo quando não precisava.”<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 23<br />
MANUTENÇÕES SIMPLES, COMO TROCAR<br />
A BATERIA, SÃO FEITAS NA PRÓPRIA BASE<br />
TROTE<br />
NA AMBULÃNCIA, O SOCORRISTA<br />
CONFERE OS SINAIS VITAIS DO PACIENTE<br />
Quando alguém liga para o 192, a ligação cai na<br />
central de regulamentação do Samu, localizada em<br />
Porto Alegre. A central faz perguntas importantes para<br />
determinar se é trote e depois avalia o caso. Em seguida,<br />
entra em contato com a unidade mais próxima<br />
do chamado. O Rio Grande do Sul é líder em trotes<br />
passados para o 192, 60% dos chamados.
Os hOmens DA<br />
O POSTO DA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL<br />
NO TRECHO ENTRE DOIS IRMÃOS E PORTO<br />
ALEGRE É RESPONSÁVEL POR ATENDER 30% DAS<br />
OCORRÊNCIAS NA BR-116 NO RIO GRANDE DO SUL<br />
TEXTO De GUILheRme mÖLLeR<br />
FOTOS De GABRIeL GABARDO
LeI
MAIS DE <strong>10</strong>0 MIL<br />
VEÍCULOS PASSAM<br />
DIARIAMENTE PELO<br />
POSTO DA PRF<br />
Uma brincadeira que virou profissão. Assim Luciano<br />
Lawisch começou a carreira na Policia<br />
Rodoviária Federal. Ele era empresário no<br />
ramo de Instalações Elétricas quando apostou<br />
com o sócio para ver quem ficava em melhor colocação<br />
na prova da PRF. Se inscreveu no último dia e teve<br />
ajuda apenas de um polígrafo. Sorte, destino, não se<br />
sabe ao certo. O que Luciano tem certeza é sobre sua<br />
profissão. Sempre foi sua vocação ajudar os outros e<br />
esse é seu principal objetivo no trabalho diário.<br />
A rotina dos policiais rodoviários federais é observar<br />
o que acontece na BR-116, atentos aos problemas<br />
do trânsito na rodovia. Eles trabalham na prevenção<br />
de acidentes e buscam evitar a criminalidade. O posto<br />
da PRF em São Leopoldo presta atendimento na<br />
rodovia no trecho de Dois Irmãos até Porto Alegre,<br />
sendo responsável por atender 30% das ocorrências na<br />
BR-116 no Rio Grande do Sul.<br />
O principal posto do Estado, que fiscaliza a Região<br />
Metropolitana, calcula um fluxo de mais de <strong>10</strong>0 mil<br />
veículos diariamente. Para os policiais Luciano Lawisch<br />
e Alberto Magnani, a quantidade grande de veículos<br />
é um problema na maioria das rodovias do Brasil.<br />
“Houve um aumento significativo no número de veículos<br />
nas autoestradas nos últimos anos, sendo que<br />
a tecnologia e a potência dos automóveis evoluíram.<br />
Porém as estradas seguem iguais”, explica Lawisch.<br />
A BR-116 sofre com problemas em sua infraestrutura,<br />
sendo que a maior parte do percurso fica localizada<br />
em áreas urbanas, o que dificulta a trafegabilidade e aumenta<br />
o número de ocorrências. O fluxo de pedestres é<br />
intenso na rodovia que corta cidades da região metropolitana<br />
como Novo Ha<strong>mb</strong>urgo, São Leopoldo, Sapucaia do<br />
Sul, Esteio, Canoas e Porto Alegre. Conforme estatísticas<br />
da PRF, 90% das ocorrências na rodovia acontecem no<br />
perímetro urbano, onde o fluxo de pedestres é maior.<br />
Para os policiais, a melhor<br />
maneira de evitar transtornos é<br />
a educação do motorista. “Precisamos<br />
educar adultos e crianças,<br />
futuros usuários. Assim teremos<br />
condutores mais conscientes,<br />
e o número de acidentes tende<br />
a diminuir”, ressalta Magnani.<br />
Hoje as ocorrências mais frequentes<br />
acontecem devido à falta<br />
de atenção dos condutores. “A<br />
maioria dos problemas ocorre por<br />
falta de preparo. É o caso das colisões<br />
traseiras e infrações como<br />
alta velocidade e desrespeito às<br />
leis de trânsito. Essas situações<br />
ocupam a maior parte do tempo<br />
dos policiais”, explica Lawisch.<br />
A BR-116 é usada como rota da<br />
criminalidade, servindo de ligação<br />
entre Brasil e Paraguai. “Hoje temos<br />
um grau de alerta maior contra<br />
a criminalidade na rodovia,<br />
sendo que o trecho é rota para o<br />
Paraguai”, conta Lawisch. Apreensões<br />
de drogas e contrabandos<br />
são comuns no trecho. “Abordamos<br />
muitos usuários de drogas,<br />
principalmente porque a rodovia<br />
é passagem para diversas festas<br />
na região. O consumo de álcool<br />
é o mais comum, mas ta<strong>mb</strong>ém há<br />
usuários de maconha e cocaína”,<br />
cita Magnani.<br />
O consumo de bebidas alcoólicas<br />
é outra situação que agrava os<br />
problemas no trânsito da rodovia.<br />
Depois da entrada em vigor da lei<br />
seca, a fiscalização aumentou e<br />
o número de autuações ta<strong>mb</strong>ém.<br />
Mesmo assim, fica impossível fiscalizar<br />
todo mundo. “É difícil<br />
conter todos os condutores que<br />
trafegam sob o efeito do álcool.<br />
Como há muitas casas noturnas no<br />
trecho da BR, é impossível cuidar<br />
o deslocamento que ocorre todas<br />
as noites. Os motoristas precisam<br />
se conscientizar que bebida alcoólica<br />
e direção não co<strong>mb</strong>inam”,<br />
diz Lawisch.<br />
O trabalho da PRF não se limita<br />
apenas ao trânsito, são diversas<br />
ocorrências. “Atendemos tudo<br />
que é tipo de caso, muitas vezes<br />
somos mais que policiais. Somos<br />
um pouco psicólogos, conselheiros,<br />
amigos... É muito bom poder<br />
26 | PRImeIRA ImPRessÃO | JULhO/2011
ajudar a sociedade, ficamos felizes<br />
com nosso trabalho”, DIZ Lawisch.<br />
Ele cita casos de pessoas que procuram<br />
o posto da PRF solicitando<br />
auxílio em situações que não são<br />
de sua competência. “Teve um homem<br />
aqui no posto pedindo ajuda,<br />
pois ele estava sendo traído pela<br />
esposa. Ele nós procurou para ser<br />
escutado, queria conselhos, atenção.<br />
Nesses casos, conversamos,<br />
aconselhamos e procuramos encaminhar<br />
o caso para o órgão responsável”,<br />
conta Magnani.<br />
uma tarde, duas infrações<br />
Numa tarde de trabalho, os<br />
policiais se depararam com dois<br />
casos de infração na rodovia. O<br />
primeiro foi a abordagem de um<br />
caminhão parado em local impróprio<br />
e com problemas de documentação.<br />
“O caminhão estava<br />
estacionado num acesso da rodovia,<br />
o que não pode acontecer.<br />
Mesmo com o caminhoneiro alegando<br />
que o veículo tinha problema,<br />
ele deveria ter parado no<br />
acostamento ou em algum local<br />
que não atrapalhasse o trânsito.<br />
Além disso, o tacógrafo (equipamento<br />
que monitora o tempo de<br />
uso, velocidade e a distância percorrida<br />
pelo veículo) não estava<br />
funcionando”, explica Magnani.<br />
A segunda infração é comum de<br />
ver no trecho, o tráfego de motos<br />
e veículos pelo acostamento. Em<br />
hipótese alguma o motorista pode<br />
dirigir pelo acostamento, sendo<br />
que está infração é considerada<br />
gravíssima, com a perda de sete<br />
pontos na carteira de motorista e<br />
multa no valor de R$ 574. Em Sapucaia<br />
do Sul, Lawisch e Magnani<br />
abordaram um motociclista trafegando<br />
pelo acostamento. Este foi<br />
imediatamente parado e a multa<br />
foi aplicada. “Não estamos aqui<br />
para tirar dinheiro do motorista.<br />
Não recebemos nada ao dar multas.<br />
Queremos que os condutores<br />
entendam que o trânsito tem leis<br />
e elas precisam ser seguidas. Nossa<br />
função é fiscalizar para que as<br />
leis sejam cumpridas e os acidentes<br />
evitados”, ressalta Lawisch.<br />
Mesmo com problemas, como<br />
PRImeIRA ImPRessÃO | JULhO/2011 | 27<br />
a falta de efetivo e equipamentos em boas condições,<br />
a Policia Rodoviária Federal atende a demanda<br />
de mais de <strong>10</strong>0 mil veículos por dia. “Nem sempre<br />
temos à disposição equipamentos e efetivo para<br />
co<strong>mb</strong>ater todos os problemas da rodovia. Porém,<br />
com muito trabalho, conseguimos atender o grande<br />
número de ocorrências todos os dias. É um trabalho<br />
gratificante, mas gostaríamos de poder fazer mais<br />
pela rodovia e pela sociedade que depende dela”,<br />
concluí Lawisch.<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
MUITAS VEZES OS<br />
POLICIAIS ACABAM<br />
AUXILIANDO PESSOAS<br />
EM SITUAÇÕES QUE<br />
NÃO SÃO DE SUA<br />
COMPETÊNCIA<br />
uando a BR-116 foi o tema escolhido para a Primeira<br />
“QImpressão, minha preferência foi acompanhar o trabalho da<br />
Polícia Rodoviária Federal . Sempre achei fundamental e interessante<br />
as ações desenvolvidas pela PRF. Tinha curiosidade sobre a rotina<br />
e os problemas enfrentados diariamente pelos policiais com o<br />
trânsito caótico da rodovia. Naquela tarde de sol, aprendi que o<br />
trabalho de policial não se limita apenas às ocorrências. Na rodovia<br />
não há uma rotina, um dia sempre é diferente do outro. Assim, ser<br />
apenas policial não basta, é necessário ser humano para lidar com<br />
todos os transtornos. Entendi como é importante a educação e o<br />
cumprimento das leis para termos uma trafegabilidade mais segura.<br />
Como motorista, a matéria desenvolvida para revista, mostrou-me<br />
as reais dificuldades enfrentadas no trânsito. Foi gratificante esta<br />
tarefa, pois passar um dia acompanhando os policiais me trouxe<br />
lições de vida, como, por exemplo, respeitar as leis. As pessoas<br />
precisam saber que as regras foram criadas para serem seguidas,<br />
principalmente no trânsito.”
O crescimentO da<br />
publicidade aO ar<br />
livre às margens<br />
da br-116 desperta<br />
diversas sensações<br />
e Opiniões entre<br />
Os mOtOristas<br />
TEXTO DE ARLETE ROUSSELET<br />
E ELLEN MATTIELLO<br />
FOTOS DE DÉBORA SOYLO<br />
VIA MULTIMÍ<br />
28 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
DIA<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 29
Quarta-feira, 22h. Uma noite<br />
de outono, com o céu<br />
reluzente de estrelas cintilantes:<br />
cenário escolhido<br />
para um passeio rumo<br />
à região metropolitana, saindo de<br />
Porto Alegre em direção a Canoas.<br />
Trafegamos em uma estrada iluminada,<br />
não pelas estrelas do céu, mas<br />
pelo contraste das luzes coloridas e<br />
ofuscantes em toda a parte. Lá estão<br />
eles: frutos da mídia visual, num verdadeiro<br />
show pirotécnico, outdoors,<br />
frontlights, painéis, logos e paredões<br />
pintados, cada um dividindo e<br />
querendo roubar o cenário das estrelas<br />
que brilham no céu. Espalhados<br />
pelas laterais da via, num verdadeiro<br />
descompasso visual e desencontrados,<br />
são captados por nossas mentes<br />
ao longo do percurso. Desordenados,<br />
confundem grifes de roupas femininas<br />
com casas de massagem, carros<br />
com anúncio de sapatos, postos de<br />
co<strong>mb</strong>ustíveis com fast-foods... E<br />
tudo passa a fazer parte de um universo<br />
de informações caóticas.<br />
Passando a Estação Niterói do<br />
metrô, há um anúncio de sapatos<br />
que duas semanas antes era de uma<br />
concessionária. Em seguida, avistamos<br />
um enorme letreiro luminoso<br />
com a marca de um co<strong>mb</strong>ustível, sinalizando<br />
se tratar de um posto com<br />
loja de conveniência. Perfilado, segue<br />
um gigantesco e desproporcional<br />
painel em formato de retrato,<br />
espelhando uma atriz de novela que<br />
cede sua imagem à campanha publicitária<br />
de uma marca de cozinha<br />
da indústria moveleira. Tudo isso vai<br />
sendo registrado, silenciosamente,<br />
pelo nosso cérebro, despertando a<br />
atenção de milhares de pessoas que<br />
trafegam, diariamente, às margens<br />
dessa via multimídia.<br />
O cenário descrito acima é familiar<br />
àqueles que percorrem a<br />
BR-116 com frequência, no trecho<br />
Porto Alegre–Canoas e vice-versa.<br />
O excesso das mídias visuais, além<br />
de chamar a atenção do público,<br />
modifica a paisagem urbana e pode<br />
ser prejudicial à saúde. Sendo assim,<br />
surge o conceito de poluição<br />
visual, que se tornou muito comum,<br />
sobretudo nas rodovias das grandes<br />
cidades. De acordo com o coordena-<br />
dor do curso de Publicidade e Propaganda<br />
da Unisinos, Sérgio Roberto<br />
Trein, nos últimos anos, tem crescido<br />
muito a publicidade externa em<br />
geral: “Quanto mais surgem novas<br />
tecnologias, surgem novos espaços,<br />
e maior acaba sendo a poluição visual<br />
nas estradas e nas ruas. Como o<br />
texto, por si só, não é tão atraente,<br />
começa o uso de imagens, cada vez<br />
maiores e mais coloridas. E, evidentemente,<br />
elas acabam sujando um<br />
pouco a paisagem”.<br />
Para Cristiano Peraço, usuário da<br />
BR-116 e motorista de van há dez<br />
anos, qualquer tipo de publicidade<br />
é válida, desde que não atrapalhe<br />
os motoristas. “Já presenciei muitos<br />
acidentes provocados pela distração<br />
causada pelo acúmulo de anúncios.<br />
Nunca aconteceu algo semelhante<br />
comigo. Geralmente, esse tipo de<br />
situação ocorre com pessoas mais<br />
inexperientes no trânsito”, afirma.<br />
De acordo com o secretário municipal<br />
do Meio A<strong>mb</strong>iente de Canoas,<br />
Celso Baroni, a Polícia Rodoviária Federal<br />
estima que 40% dos acidentes<br />
acontecem justamente pelo excesso<br />
de mídias visuais.<br />
Considerando esse fator e pensando<br />
na revitalização da rodovia,<br />
o prefeito de Canoas, Jairo Jorge da<br />
Silva, desenvolveu um projeto que<br />
prevê a diminuição dos anúncios na<br />
BR-116. A minuta do projeto está<br />
sob a análise técnica do Diretor de<br />
Relações Governamentais do município,<br />
Ernani Daniel, para que uma<br />
nova lei possa ser sancionada e pro-<br />
30 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
mulgada pelo prefeito, após ser votada<br />
e aprovada pela Câmara Municipal<br />
de Vereadores.<br />
A iniciativa visa a padronização<br />
dos painéis, limitando a distância,<br />
o tamanho e a quantidade de texto.<br />
Baroni explica que as mídias<br />
indicativas, utilizadas para sinalizar<br />
que há um estabelecimento no<br />
local, ta<strong>mb</strong>ém terão de se adequar<br />
às normas estabelecidas. “Com esse<br />
regramento, temos como pretensão<br />
reduzir pelo menos 50% da mídia<br />
existente”, projeta.<br />
Atualmente, aqueles que desejam<br />
anunciar às margens da rodovia<br />
necessitam ter a autorização<br />
da Secretaria Municipal do Meio<br />
A<strong>mb</strong>iente. No entanto, a presença<br />
de anúncios clandestinos é grande,<br />
pois muitos donos de terrenos<br />
baldios vendem o espaço para diferentes<br />
empresas, sem a licença da<br />
secretaria do Meio A<strong>mb</strong>iente. Na visão<br />
do secretário, essa atitude compromete<br />
a segurança, pois se trata<br />
de algo feito de maneira irregular,<br />
além de aumentar a poluição visual.<br />
Outra questão muito presente, em<br />
se falando de publicidade ao ar livre,<br />
são os anúncios de motéis e casas<br />
de massagem. “A ideia é impor<br />
a utilização de chamamentos mais<br />
discretos nesse desse tipo de anúncio,<br />
pois, desse modo, sem elementos<br />
apelativos na estrada, podemos<br />
evitar acidentes”, frisa Baroni.<br />
João Pedro Nunes da Silveira,<br />
diretor geral da Hmídia, empresa<br />
desenvolvedora de publicidade ao<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 31<br />
ar livre e presidente da Associação<br />
Gaúcha das Empresas de Propaganda<br />
ao Ar Livre (Agepal), acredita que<br />
os anúncios irregulares prejudicam<br />
o conceito de mídia exterior. “A<br />
empresa possui um engenheiro responsável<br />
pela estrutura dos painéis,<br />
além de trabalhar com designers e<br />
agências de publicidade no desenvolvimento<br />
do conteúdo dos anúncios.<br />
Tudo é planejado para oferecer<br />
um bom serviço”, garante.<br />
Além disso, crê que o projeto de<br />
lei só trará benefícios para as empresas<br />
e seus clientes. “A fiscalização<br />
vai aumentar, e os espaços para<br />
a publicidade serão restritos, fazendo<br />
com que os anúncios fiquem mais<br />
destacados. O conceito de mídia visual<br />
vai melhorar muito”, prevê. A<br />
publicidade externa é uma das mais<br />
acessíveis, juntamente com a publicidade<br />
feita no rádio. Pequenas e<br />
médias empresas veem nela a possibilidade<br />
de fornecer maior visibilidade<br />
ao seu produto, principalmente<br />
nas estradas mais movimentadas,<br />
como a BR-116, que já carece de vagas<br />
para anúncios. O custo varia de<br />
R$ 800 a R$1.500 reais, dependendo<br />
do tipo de mídia utilizada.<br />
Usuária da BR-116, a presidente<br />
da OAB, Subseção de Canoas, Neusa<br />
Maria Rolim Bastos, acredita que o<br />
projeto irá melhorar o aspecto visual<br />
da cidade: “As propagandas chamam<br />
a atenção de uma forma indevida.<br />
Com a padronização, teremos<br />
maior possibilidade de perceber<br />
a nossa cidade”. Para o motorista<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
uando o tema br-116 foi escolhido,<br />
“Qa primeira impressão que nos veio à<br />
mente foi a da poluição visual que ladeia a<br />
rodovia. le<strong>mb</strong>ranças dos mais variados tipos<br />
de frontlights, outdoors e painéis nos fizeram<br />
refletir sobre o contexto que está inserido<br />
em uma propaganda externa. além disso, o<br />
município le<strong>mb</strong>rado como o mais “poluído”<br />
pelas mídias foi canoas. tínhamos a ideia<br />
de que essa poluição visual era bem aceita<br />
por todos que desfrutavam dos anúncios<br />
publicitários espalhados ao longo da rodovia.<br />
Jacques Cardoso, que há sete anos<br />
realiza o transporte universitário de<br />
Porto Alegre até a Unisinos, a publicidade<br />
na rodovia é indiferente.<br />
“Até percebo que o anúncio mudou,<br />
mas como sou responsável por outras<br />
vidas, procuro não prestar muita<br />
atenção nisso. Já vi um anúncio<br />
caindo dentro de um pátio, durante<br />
uma ventania”, relata.<br />
De acordo com o coordenador<br />
Trein, a sanção do projeto não<br />
prejudicará a comunicação: “Os<br />
anunciantes podem perder o espaço,<br />
mas vão achar outras formas de<br />
anunciar seus produtos”. As mídias<br />
visuais abrangem um universo composto<br />
por desejo, economia, produtos,<br />
cores, formas e polêmicas que<br />
transmitem diferentes sensações<br />
aos espectadores.<br />
Diante do universo das mídias visuais,<br />
que contracenam com o brilho<br />
das estrelas, não podemos negar que<br />
esse desordenado mundo midiático<br />
protagoniza nossa viagem. Centenas<br />
de apelos publicitários roubam o cenário<br />
da natureza, a fim de compor o<br />
desejo do ser humano, seja ele qual<br />
for. Cabe a cada um de nós refletir<br />
até onde queremos ser abduzidos<br />
pelos apelos publicitários e conviver<br />
em harmonia com essa imensidade<br />
de tecnologias desenfreadas e largadas<br />
ao léu, sem que haja prejuízo<br />
para a nossa saúde. Quiçá que as estrelas<br />
permaneçam protagonizando<br />
o cenário de nossas rodovias e possamos<br />
andar livres das amarras da<br />
poluição visual.<br />
entendíamos, ainda, que a iniciativa do<br />
projeto legalizando e limitando o número<br />
dessas mídias traria impactos negativos à<br />
população em geral. a partir do momento<br />
em que começamos a ouvir nossas fontes,<br />
constatamos que a nossa primeira impressão<br />
era contrária à realidade investigada. Foi muito<br />
gratificante realizar esta pauta. corremos<br />
contra o tempo e passamos vários dias em<br />
canoas, ouvindo diferentes fontes, que<br />
geraram as opiniões e nos ajudaram a refletir<br />
sobre o tema.”
NA PONtA<br />
dO SPRAy<br />
Três coisas não mudam<br />
na Br-116: o consTanTe<br />
fluxo, o sTress e a<br />
informação gráfica.<br />
em um emaranhado<br />
de cores e formas, o<br />
grafiTe e a pichação dão<br />
um Toque arTísTico à<br />
paisagem urBana<br />
TEXTO dE CAROLINA tREMARIN E CRIStINA ARIKAWA<br />
FOTOS dE CLARA ALLyEGRA E GUILHERME BARCELOS<br />
No trecho da BR-116 que compreende as cidades<br />
da Região Metropolitana de Porto Alegre (RS), um<br />
misto de arte e manifestação política converge<br />
com a desordem urbana. A paisagem, ladeada por<br />
edificações cinzentas, ganha um toque de cor a partir do<br />
grafite e da pichação, que adornam os prédios que a compõe.<br />
Como em uma gigantesca tela em branco, imagens<br />
e frases de diferentes temáticas permitem uma reflexão<br />
nada óbvia: seria a BR-116 um palco da arte de rua?<br />
Por definição, o grafite é caracterizado pela intenção<br />
artística e estética extremamente comunicacional.<br />
A pichação tende ao apelo político-social. Na prática,<br />
porém, essa diferenciação é dificilmente aplicada e<br />
reconhecida, como explica Fabrício Silveira, professor<br />
de Comunicação da Unisinos e autor do livro O parque<br />
dos objetos mortos — E outros ensaios da comunicação<br />
urbana: “O grafite tem uma intenção que é estética,<br />
expressiva, de e<strong>mb</strong>elezamento. De certa forma, pode<br />
ser considerado político por popularizar essa poética<br />
GUILHERME BARCELOS<br />
inTervenções<br />
gráficas renovam<br />
o visual de espaços<br />
mal aproveiTados<br />
na Br, como ponTes<br />
e viaduTos<br />
visual. A pichação vai explorar, sobretudo, a tipografia,<br />
as letras. É uma fala para iniciados, eu falo para quem<br />
me conhece, quem é da minha crew [grupo] ou rival. Eu<br />
falo para alguém do meu meio ”.<br />
Em São Leopoldo, no bairro Scharlau, a extinta fábrica<br />
de artefatos de borrachas Franca optou por enfeitar<br />
suas paredes externas justamente com o grafite.<br />
A imagem, composta por desenhos gigantescos, coloriu<br />
o edifício de cima a baixo. Orgulhosamente, a frase<br />
“Espaço reservado para os artistas do grafite” passou<br />
a estampar a empresa. A ousadia, porém, ainda é bastante<br />
incomum na rodovia.<br />
Por estar à margem de diversas cidades, a BR-116<br />
poderia ser ainda mais explorada pelo uso do grafite<br />
devido à sua intrínseca visibilidade. Segundo Fabrício,<br />
a comercialização dessa arte tem se mostrado muito<br />
mais presente do que a pura arte-manifesto. Ta<strong>mb</strong>ém<br />
é o que diz o grafiteiro Jonathan Peres, o Jotapê, do<br />
grupo Núcleo Urbanóide, de Porto Alegre. Segundo<br />
32 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
ele, a ideia e o propósito do grafite<br />
vão além das formas que enfeitam<br />
as fachadas de estabelecimentos<br />
comerciais. “Na verdade, o grafite<br />
tem uma característica muito mais<br />
street, mais marginal, que é o<br />
spray, a latinha. É pegar uma parede<br />
suja e pintar. Grafite em si não<br />
é comercial. Grafite é apropriar-se<br />
do lugar que está sendo mal utilizado<br />
e fazer o que você quiser.<br />
No momento em que alguém pede<br />
pra você fazer uma arte, te dá um<br />
briefing para isso, se perde o sentido<br />
do grafite original.”<br />
Em contraposição, a pichação<br />
pode ser associada a dois grandes<br />
problemas enfrentados na estrada:<br />
o trânsito e a poluição. “A pi-<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 33<br />
CLARA ALLyEGRA
os Traços do grafiTe<br />
e da pichação se<br />
fundem nas criações<br />
esTampadas na Br-116<br />
chação é uma resistência em relação a isso. Mas só<br />
aumenta a experiência de uma coisa tensa, carregada<br />
e suja que temos quando atravessamos aquele trecho”,<br />
explica Fabrício.<br />
Até onde isso pode se tornar um problema, considerando<br />
o aspecto funcional da BR-116? Fabrício explica<br />
que alguns estudos analisam os riscos que as manifestações<br />
poderiam causar à atenção do motorista. “Houve<br />
uma intervenção urbana em Porto Alegre em que<br />
um grupo de pessoas limpou o túnel da Conceição e<br />
escreveu a frase ‘Por uma Porto Alegre mais limpa’. O<br />
órgão encarregado da prefeitura apagou a manifestação<br />
sob a alegação de que estava chamando atenção<br />
demais e atrapalhando o trânsito. Talvez isso tenha um<br />
fundo de verdade.”<br />
É de se pensar, portanto, que o ato de livrar o motorista<br />
das distrações deveria se estender a uma das estradas<br />
gaúchas que mais registra acidentes. Em 20<strong>10</strong>, a<br />
BR-116 ficou em primeiro lugar no ranking que elegeu as<br />
cinco rodovias mais violentas do Rio Grande do Sul, com<br />
117 mortes. Porém, uma pausa no excesso de informação<br />
existente na BR causaria, na opinião de Fabrício, ainda<br />
mais estranhamento, já que a população que faz uso da<br />
estrada convive diariamente com a aparência carregada<br />
do local. “O que muitas vezes me chama atenção são os<br />
outdoors em branco. Existem espaços que não têm nada<br />
anunciado. Essa não-ocupação é que seria curiosa, quando<br />
o ‘normal’ é a sujeira. Não consigo imaginar aquilo<br />
branco, milimetricamente organizado”,<br />
afirma.<br />
Pelo lado do artista, Jotapê<br />
não diminui nem nega a distração<br />
que as manifestações podem causar,<br />
mas não acredita ser essa a<br />
razão para tantos transtornos na<br />
rodovia. Para ele, deveria haver<br />
uma mudança no modo como cada<br />
cidade lida com a ação. “Acho que<br />
falta uma parceria com as prefeituras<br />
para apoiar um pouco mais o<br />
grafite em lugares como pontes e<br />
viadutos, espaços mal utilizados.<br />
Para que, quando se pare no sinal,<br />
se possa ter uma arte para apreciar,<br />
prestigiar”, completa. Ou<br />
seja, fazer grafite, em meio ao<br />
caos que toma grandes centros urbanos,<br />
pode representar um lugar<br />
de escape para a correria frenética<br />
e – por que não? – democratizar<br />
uma arte urbana que tem no<br />
grafite uma das suas formas mais<br />
antigas de manifestações, presente<br />
desde a década de 1980 e vinda<br />
de lugares como Filadélfia e Nova<br />
Iorque para o mundo.<br />
FOtOS GUILHERME BARCELOS<br />
34 34 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMBRO/20<strong>10</strong><br />
| JULHO/2011
Assim como o material, a forma<br />
e o público para o qual se dirigem<br />
definem o que é pichação e o que é<br />
grafite. O espaço onde a intervenção<br />
é feita ta<strong>mb</strong>ém merece atenção especial.<br />
Pensar grafite para uma cidade<br />
é bem diferente de sair por uma<br />
rodovia, como é a BR-116, com uma<br />
lata de spray na mão: apesar de a<strong>mb</strong>as<br />
apresentarem um tráfego constante<br />
— seja de motoristas, seja de<br />
pedestres — o desenho em um muro<br />
dentro de um bairro qualquer permite<br />
uma apreciação muito mais atenta do<br />
trabalho. Segundo Jotapê, o grafite já<br />
é algo grande, pensado para ser visto<br />
e compreendido rapidamente.<br />
Na BR-116, essas mesmas dimensões<br />
teriam de ser retrabalhadas e<br />
outros elementos ainda seriam adicionados:<br />
a estrutura da parede, sua<br />
forma e sua textura, por exemplo. “O<br />
grafite em si é feito para ser visto de<br />
longe. Não se preocupa muito com detalhes”.<br />
O artista explica que o spray<br />
tem como característica o escorrido,<br />
uma linha mais esfumaçada, diferente<br />
do que se pinta em uma tela. “No caso<br />
de uma rodovia, o grafite precisa apresentar<br />
uma leitura mais rápida, mais<br />
simplificada, porque a pessoa deve<br />
entender se estiver passando de carro,<br />
de ônibus. É uma coisa que ninguém<br />
vai parar para perceber detalhes.”<br />
COMUNICAÇÃO ESTÉTICA<br />
Apesar de não serem poucos aqueles<br />
que veem a pichação como um ato<br />
de vandalismo, essa manifestação<br />
consiste em uma forma de comunicação<br />
estética muito reconhecida<br />
fora do Brasil. Em 2009, a Fundação<br />
Cartier, em Paris, realizou uma retrospectiva<br />
mundial do grafite. O destaque<br />
ficou por conta de Djan Ivson,<br />
paulista, convidado a realizar uma<br />
intervenção no muro do museu com<br />
os traços brasileiros da pichação — a<br />
linha preta, vertical, geralmente explorando<br />
a caligrafia.<br />
Portanto, para você que acha que<br />
perde muito tempo parado na BR-116,<br />
em vez de ficar só bufando, dê uma<br />
olhada em volta. Se o que você vê é<br />
arte ou não, pode ser assunto para outro<br />
engarrafamento. Mas o fato é que à<br />
sua frente está, literalmente, um traço<br />
da arte urbana brasileira.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMBRO/20<strong>10</strong> | JULHO/2011 | 35 | 35<br />
a pichação<br />
na Br-116, ao<br />
mesmo Tempo<br />
que conTrasTa,<br />
pode conTriBuir<br />
com a poluição<br />
urBana<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
uando a pauta Br-116 foi escolhida, ficamos muito desanimadas.<br />
“qcomo tornar a estrada, nosso elemento diário de tortura, um assunto<br />
interessante e que fugisse da obviedade? certamente não queríamos abordar<br />
a bagunça do trânsito, já que é justamente isso que nos tira do sério logo<br />
pela manhã. foi assim que surgiu a idéia de enxergarmos a Br-116 a partir<br />
da expressão gráfica impressa em muros e viadutos das suas margens. não<br />
podíamos ter feito aposta melhor: quebramos um tabu interno e aprendemos<br />
que até mesmo a pichação tem sua função informativa no cenário da estrada.<br />
amparadas pelo registro de imagens, pudemos casar as informações textuais<br />
com as fotografias, o que facilitou a análise artística dos elementos do grafite<br />
e da pichação. mas nem tudo são flores. uma de nossas intenções de fonte<br />
havia falecido no último ano, informação que não tínhamos até tentar o<br />
contato com o finado. Já que a contratação de um médium não seria a melhor<br />
solução, resolvemos procurar outra pessoa com propriedade para falar sobre<br />
o assunto. muitos e-mails e um feriado depois, pudemos orgulhosamente<br />
finalizar esses 7.000 caracteres, escritos com muito entusiasmo.”
A<br />
PALAvRA<br />
NO<br />
CAMINHO<br />
placas e pichações ao longo da rodovia<br />
incluem frases que anunciam a fÉ em<br />
crisTo e ouTros aforismos religiosos<br />
TEXTO dE BRUNA ELIdA CONFORtE E MARCO ANtONIO FILHO<br />
FOTOS dE MARCO ANtONIO FILHO<br />
36 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 37
A<br />
placa apoiada na árvore ao lado da estrada está pintada<br />
de branco, mas, olhando de perto, percebe-se<br />
o que ela trazia anteriormente: um anúncio publicitário<br />
de certa agência imobiliária. Era a forma<br />
que o dono do negócio utilizava para se comunicar com seus<br />
possíveis clientes. Agora há outra mensagem nela. Sobre a<br />
tinta branca – com aspecto de que foi pintada às pressas, sem<br />
muito cuidado –, vemos letras tortas que parecem ter sido escritas<br />
por um analfabeto, que as desenhou em um exercício<br />
de caligrafia. O texto, um tanto quanto surreal, apresenta<br />
um alerta: “Não saia de casa sem convidar Jesus”. Ao lado,<br />
em letras menores, completa: “Ele te ama”.<br />
Logo em seguida, se avista um viaduto. Inúmeros carros<br />
cruzam-no, por cima e por baixo; de um lado e de outro;<br />
zunindo como moscas, soltando fumaça, deixando o ar de<br />
fim de tarde tão cinza quanto o cimento do viaduto. Eis que<br />
em um canto de difícil acesso, na parte de baixo do viaduto,<br />
sobre o cinza, surgem as letras brancas que formam outra<br />
mensagem. Tão surreal quanto a primeira, o texto parece<br />
suplicar: “Deixa Jesus agir na tua vida”. E completa, como<br />
na placa escorada na árvore: “Ele te ama”.<br />
Jesus Cristo – aquele que, afirmam, morreu na cruz<br />
para nos salvar, ressuscitou no terceiro dia e depois subiu<br />
aos céus – é o assunto de inúmeras intervenções encontradas<br />
ao longo da BR-116. Assim como seu pai – o<br />
onipresente Deus –, o nome de Jesus aparece em várias<br />
marquises, viadutos, placas e pedras, nas quais podemos<br />
ler, em linhas tortas, mensagens que afirmam que ele<br />
voltará, que nos ama, e que, como<br />
sugere a placa escorada na árvore,<br />
nunca devemos sair de casa<br />
sem convidá-lo.<br />
São mensagens anônimas, que<br />
não buscam vender nada (como os<br />
anúncios publicitários), marcar território<br />
(como as pichações comuns)<br />
ou informar (como os sinais de trânsito).<br />
Buscam, talvez com certo desespero,<br />
levar uma mensagem que possa ajudar os desamparados,<br />
ou simplesmente tentar salvar suas almas. Por trás<br />
dessas mensagens estão personagens invisíveis, cuja motivação<br />
e a forma de agir são um mistério para as milhares de<br />
pessoas que, diariamente, cruzam com elas na BR-116.<br />
FANTASMAS<br />
As inscrições, sem identidade, ou qualquer tipo de assinatura<br />
que possibilite rastrear os responsáveis pela sua<br />
produção, tornam os autores fantasmas. Fantasmas pairados<br />
em suas próprias mensagens. Sua aparição é dada sem<br />
que estejam no local, são autores flutuantes expondo uma<br />
verdade pessoal sem a preocupação de se fazer entender.<br />
É um estado de presença/ausência, como afirma o doutor<br />
em Comunicação Fabrício Silveira. A mensagem não<br />
deve ser entendida literalmente, mas analisada em paralelo<br />
ao gesto utilizado na produção. A importância está na<br />
ação. Autor de artigos sobre o espaço da cidade, Fabrício<br />
volta sua pesquisa para o que é conhecido como “fantasmagoria<br />
urbana”, conceito que pode ser definido, em bre-<br />
ves palavras, como um lugar conceitual no limite do real<br />
e da imaginação, uma indefinição sobre a veracidade de<br />
algo encontrado no espaço urbano.<br />
Segundo Fabrício, os personagens por trás das intervenções<br />
religiosas – e as próprias inscrições – se enquadrariam<br />
nesse conceito de “fantasmagoria”, por estarem nesse estado<br />
limite entre presença e ausência: “É alguém que fala,<br />
mas quem é esse alguém? É alguém que está ali presente,<br />
mas que presença é essa?”, questiona-se Fabrício.<br />
Apesar da dificuldade em localizar e identificar essas<br />
pessoas, é possível ir atrás de seus rastros na tentativa de<br />
traçar um perfil. Esse perfil ta<strong>mb</strong>ém está ligado à ação e<br />
à forma que esses autores utilizam. “O que motiva o cara<br />
a escrever lá no muro, subir em cima de uma ponte, é fazer<br />
aquilo. Ele poderia escrever ‘Inter’ lá, mas escreveu<br />
‘Jesus voltará’. O que motiva ele, o que dá a adrenalina<br />
não é escrever ‘Inter’ ou ‘Jesus’, é escrever lá, naquele<br />
lugar.”, reflete Fabrício. Seguindo sua linha de raciocínio,<br />
Fabrício afirma que, em contrapartida, o autor que<br />
pinta suas inscrições em placas e pedras assume sim um<br />
caráter de pregação: “Isso não é pichação. Isso é anunciabilidade.<br />
Tosca, informal. Eu acredito que quem fez<br />
tinha um propósito religioso”, afirma Fabrício.<br />
Já o autor das placas “Jesus breve voltará” – fixadas em<br />
inúmeros postes ao longo da região metropolitana de Porto<br />
Alegre e ta<strong>mb</strong>ém da BR-116 – utiliza o caráter de bordão,<br />
e isso ta<strong>mb</strong>ém revela algo em relação a seu perfil. Para<br />
Fabrício, a ação praticada por esse autor é a de esvaziar<br />
o seu sentido ao torná-lo reprodutível,<br />
atribuindo à frase um caráter<br />
de slogan, assim ela deixa de ter o<br />
caráter da pregação. Esse jargão<br />
vai ser encontrado onde as pessoas<br />
menos esperam, e nesse sentido<br />
ele é fantasmagórico.<br />
Para Adriana Daccache, artista<br />
plástica e pesquisadora, que<br />
há 11 anos desenvolve ações inspiradas<br />
em José Datrino, o Profeta Gentileza (conhecido<br />
a partir de 1980 por fazer inscrições sob um viaduto<br />
do Rio de Janeiro), esses autores anônimos se utilizam<br />
das palavras para, de alguma maneira, levar as pessoas<br />
a Deus. “A diferença entre eles é a intenção da palavra.<br />
Talvez um acredite na palavra de Deus, como ‘Cristo<br />
salva’, e o outro na ação da palavra gentileza, por<br />
exemplo, no efeito de sua ação”, afirma ela.<br />
Assim como Fabrício, Adriana ta<strong>mb</strong>ém pensa que a importância<br />
está na ação. Ao ser questionada se encontra<br />
alguma relação entre as inscrições dessas pessoas e as do<br />
profeta Gentileza, ela responde enfaticamente que não.<br />
“Na verdade, a<strong>mb</strong>os usam a palavra como veículo, mas são<br />
ações diferentes. Basta saber sobre o Gentileza: ele tinha<br />
contato direto com as pessoas, ele distribuía flores e palavras<br />
de gentileza, de ajuda ao próximo, largou sua vida<br />
em função do outro”, explica. “Acredito que façamos, a<br />
princípio, o que conhecemos. Escrever, grafitar ou pintar<br />
em um muro é mais fácil que qualquer outra coisa.”<br />
Adriana já perdeu a conta de quantos mil adesivos<br />
38 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
com a frase “Gentileza gera gentileza” ela produziu ao<br />
longo de 11 anos. Para ela, estar em uma via de acesso<br />
não garante que o passante, seja pedestre ou condutor,<br />
lerá o escrito, a mensagem. “Portanto, não garante ta<strong>mb</strong>ém<br />
um seguidor”, conclui.<br />
O vENdEdOr dE SUCOS E O prOFETA<br />
Airton Valenti, está parado no canteiro central da<br />
Avenida dos Estados – ligação direta entre Porto Alegre e<br />
a BR-116 – com seus olhos de um brilho úmido fitando o<br />
movimento de carros que vêm e vão. Não é ele o homem<br />
que pinta mensagens religiosas nas placas brancas, mas<br />
diz conhecê-lo. “Somos amigos, é uma pessoa muito querida”,<br />
afirma com um sorriso largo, de poucos dentes. O<br />
amigo – do qual não sabe o nome – vende suco de laranja<br />
no local, rodeado pelas placas com mensagens religiosas<br />
que ele próprio pinta. É conhecido de quem costuma<br />
entrar ou sair de Porto Alegre pela avenida como uma<br />
espécie de profeta.<br />
Airton é um grande admirador do trabalho de seu amigo:<br />
“É comovente, dá um astral para quem está chegando<br />
a Porto Alegre. É como chegar na casa de Deus”. Se autodenominando<br />
“crente”, conta que muitas vezes a prefeitura<br />
recolhe as placas que ficam dispostas em diversos<br />
pontos ao longo da avenida, que vai do Viaduto Leonel<br />
Brizola à divisa com a cidade de Canoas. Mas isso não desmotiva<br />
o vendedor de sucos a produzir novas mensagens.<br />
“Ele procura viver em um mundo melhor, ele é bom para<br />
humanidade. Hoje em dia, com tanta violência é importante<br />
le<strong>mb</strong>rar de Deus”, finaliza Airton.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 39<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
osso maior desafio nessa pauta era o fato de nossas<br />
“nprincipais fontes serem praticamente inacessíveis.<br />
verdadeiros ‘fantasmas’, como destacamos na matéria.<br />
fomos então, primeiramente, investigar os locais, buscando<br />
rastros e evidências – se não das identidades, pelo menos<br />
da personalidade desses homens invisíveis. na saída de<br />
porto alegre, na divisa entre a avenida dos estados e a Br-<br />
116, encontramos placas e pedras pintadas de branco com<br />
inscrições religiosas pintadas em preto, em um padrão que não<br />
deixava dúvida de que se tratava do mesmo autor. por perto<br />
residia ainda o pote de tinta, mas nenhum pincel. algumas<br />
pessoas afirmaram ter visto em um cruzamento um senhor<br />
que seria o autor das placas brancas, mas não conseguimos<br />
localizá-lo nas tentativas que fizemos. dizem que se chama<br />
paulo – assim como o apóstolo que se converteu cristão após<br />
ter uma visão de cristo na cruz – e que, entre uma pregação<br />
e outra, vende sucos. porém, para nós, paulo continua sendo<br />
apenas um fantasma.
engenheiros, TÉcnicos e<br />
operários precisam manTer<br />
a rodovia em condições<br />
Trafegáveis para os 120<br />
mil veículos que por ela<br />
passam diariamenTe<br />
ENGENHARIA A S<br />
40 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMBRO/20<strong>10</strong>
EU SERvIçO esTudo,<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMBRO/20<strong>10</strong> | 41<br />
JANKIEL AZEvEdO<br />
planeJamenTo<br />
e execução<br />
garanTem a<br />
segurança<br />
daqueles que<br />
Trafegam pela via<br />
TEXTO dE táRLIS SCHNEIdER<br />
FOTOS dE CLARA ALLyEGRA<br />
E JANKIEL AZEvEdO<br />
Deixando o engarrafamento<br />
de lado, a BR-116 se mantém<br />
em excelente forma, silhuetada<br />
e com uma “textura de<br />
pele” de dar inveja às “coroas” como<br />
ela. Impressiona quando se pensa<br />
na relação entre volume de fluxo de<br />
veículos e estado de conservação. A<br />
difícil tarefa de manutenção dessa<br />
que é uma das principais vias do Rio<br />
Grande do Sul fica a cargo de dezenas<br />
de profissionais, entre engenheiros,<br />
técnicos e operários. São eles os encarregados<br />
da recuperação asfáltica<br />
contínua, com a importante missão<br />
de manter a rodovia em condições<br />
trafegáveis para os 120 mil veículos<br />
que por ela passam diariamente.<br />
Há mais de 30 anos, o Departamento<br />
Nacional de Infraestrutura de<br />
Transportes (DNIT) não mantém funcionários<br />
próprios com as atribuições<br />
de realizar obras ou reformas em<br />
vias federais. Desde a década de 70,<br />
a principal função do órgão é fiscalizar<br />
as obras realizadas por empresas<br />
licitadas. Os contratos limitam o<br />
tempo necessário para realização do<br />
projeto e ditam quais recursos materiais<br />
serão utilizados, segundo informa<br />
o engenheiro civil e analista em
a manuTenção<br />
consTanTe É<br />
fundamenTal<br />
para o<br />
andamenTo<br />
da esTrada<br />
CLARA ALLyEGRA<br />
JANKIEL AZEvEdO<br />
infraestrutura de transportes Luciano<br />
Santarém. Além dele, outros 24<br />
engenheiros são os responsáveis por<br />
analisar e fiscalizar cada operação<br />
nas estradas federais do Rio Grande<br />
do Sul. Cada projeto licitado tem<br />
a supervisão de dois engenheiros,<br />
sendo um titular e outro reserva.<br />
“Temos uma função muito importante,<br />
pois trabalhamos para<br />
melhorar as condições das estradas”,<br />
comenta o engenheiro. Ele<br />
enfatiza que a segurança dos motoristas<br />
aparece como um dos objetivos<br />
de seu trabalho. Santarém<br />
salienta que o serviço prestado<br />
pelos profissionais responsáveis<br />
pela fiscalização poderia ser melhor.<br />
“Temos boas condições materiais,<br />
carros para locomoção e<br />
uma situação predial boa, mas o<br />
ideal seria duplicar a quantidade<br />
de fiscais”, comenta.<br />
O trabalho de fiscalização de<br />
Santarém ta<strong>mb</strong>ém conta com o<br />
auxilio de técnicos como Eloir Sehnem,<br />
60 anos, 23 deles passados<br />
dentro do DNIT. “Sou da época em<br />
que calculávamos tudo a mão. Hoje<br />
a tecnologia nos ajuda muito para<br />
a realização do trabalho. Vai tudo<br />
para um chip!”, diz o técnico que<br />
carrega na genética a profissão.<br />
Seu pai foi funcionário do DNIT por<br />
décadas e exercia praticamente a<br />
mesma função de Eloir.<br />
Por ser um trabalho que envolve<br />
alto risco, o técnico rele<strong>mb</strong>ra<br />
fatos que marcaram sua trajetória<br />
no órgão, como um deslizamento de<br />
encosta que atingiu operadores de<br />
máquinas durante uma intervenção<br />
em Galópolis, ou a explosão de um<br />
caminhão de co<strong>mb</strong>ustível durante a<br />
duplicação da BR-116 entre São Leopoldo<br />
e Estância Velha. Na mesma<br />
época, um acontecimento que ainda<br />
arranca sorrisos do técnico foi o<br />
pouso de um pequeno avião em uma<br />
cancha de brita que serviria de base<br />
para a atual rodovia. “Estávamos<br />
trabalhando na via lateral, perto do<br />
antigo aeroporto de Novo Ha<strong>mb</strong>urgo,<br />
quando vi o teco-teco pousando<br />
na estrada de brita. Paramos o<br />
trabalho e fomos ver se estava tudo<br />
bem. O piloto saiu caminhando,<br />
como se nada tivesse acontecido”.<br />
42 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
Santarém e Sehnem afirmam<br />
que, mesmo com o intenso fluxo de<br />
veículos que trafegam diariamente<br />
pelo trecho da BR-116 entre Porto<br />
Alegre e Nova Petrópolis, as condições<br />
físicas da via são excelentes<br />
devido à forma como a rodovia foi<br />
construída. Eles comentam que o<br />
tipo de construção e o solo no qual a<br />
rodovia foi concebida propicia uma<br />
manutenção de qualidade, dotando-a<br />
de grande durabilidade.<br />
QUEM ExECUTA?<br />
Se a principal finalidade do DNIT<br />
é fiscalizar, então, quem executa as<br />
operações de manutenção? Atualmente,<br />
o trecho entre Porto Alegre e<br />
Nova Petrópolis é atendido pela empresa<br />
Sultepa sob regime de contrato<br />
através de licitação federal. Nos<br />
últimos dois anos, quem esteve e<br />
permanece à frente da árdua incu<strong>mb</strong>ência<br />
de manter em boas condições<br />
físicas a BR-116 é o engenheiro Marco<br />
Túlio Britto Macedo. Formado em<br />
1987, comandou no auge das obras<br />
de recuperação efetiva da via, cerca<br />
de <strong>10</strong>0 operários, divididos em equipes<br />
pré-definidas de acordo com as<br />
funções a serem desempenhadas.<br />
“Hoje contamos com um efetivo<br />
de cerca de 40 operários, responsáveis<br />
pela roçagem e operações emergenciais,<br />
como conserto de fissuras<br />
ou buracos”, relata o engenheiro.<br />
Ele diz que se sente gratificado ao finalizar<br />
os serviços de reparo sem que<br />
acidentes de trabalho graves aconteçam<br />
com algum de seus subordinados.<br />
“A segurança é fundamental em<br />
nosso trabalho”.<br />
No trecho da Região Metropolitana,<br />
em julho de 20<strong>10</strong>, as equipes<br />
de engenharia da BR-116 enfrentaram<br />
um desafio inédito na via: a<br />
substituição de um viaduto de 50<br />
metros, localizado próximo à Refinaria<br />
Alberto Pasqualini, em Esteio.<br />
Com ajuda de um guindaste de 500<br />
toneladas, o uso de explosivos e da<br />
força de trabalho de uma equipe de<br />
50 homens, foi possível retirar a antiga<br />
estrutura de concreto, dando<br />
lugar ao novo viaduto de aço. Após<br />
56 horas de operação sob o tempo<br />
chuvoso do inverno gaúcho, os<br />
quatro módulos de metal, pesando<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 43<br />
60 toneladas cada, foram içados e<br />
montados no mesmo local. Esse tipo<br />
de ação nunca havia sido realizado<br />
no Rio Grande do Sul, e pela primeira<br />
vez na história do trecho gaúcho<br />
da BR-116 houve o fechamento total<br />
da via, obrigando o tráfego de veículos<br />
a ser desviado pelas vias laterais.<br />
Mas o rápido transtorno valeu<br />
a pena. A nova estrutura de R$ 6,8<br />
milhões tem previsão de durabilidade<br />
de 80 anos, sendo dez vezes mais<br />
resistente que sua predecessora.<br />
Uma simples roçagem, ou a pintura<br />
rápida de um trecho, até a substituição<br />
de todo um pavimento...<br />
se for preciso, move-se pontes! A<br />
necessidade em qualificar a problemática<br />
BR-116 é o desafio que move<br />
esses profissionais. A luta constante<br />
contra o tempo, que urge em se fazer<br />
de tudo um pouco; intempéries<br />
que variam temperaturas e níveis de<br />
umidade que desmotivam até o mais<br />
afinco trabalhador; em amenizar<br />
congestionamentos causados por reparos<br />
e conseqüências sofridas pelos<br />
usuários já cansados com a falta de<br />
alternativa em mobilidade urbana;<br />
e na busca constante em adequar os<br />
recursos à realidade pela qual passa<br />
a BR-116. Aos serviços da rodovia<br />
mais movimentada do Rio Grande do<br />
Sul, estão todos esses profissionais:<br />
engenheiros e suas equipes, diariamente<br />
em planejamento, executando<br />
e finalizando obras.<br />
O ciclo não se encerra, apenas<br />
é repassado para a próxima equipe.<br />
Os escultores de rodovia fazem a<br />
sua parte. Os milhares de motoristas<br />
que penam ao tomar a estrada como<br />
caminho, ta<strong>mb</strong>ém têm a sua participação,<br />
quando no final das contas<br />
segregam uma porção dos seus ganhos<br />
aos impostos, confiando-os aos<br />
administradores desse pais. Quantas<br />
horas perdidas no caos do trânsito,<br />
nesta e em outras BRs, serão necessárias<br />
para que se deixe de apenas<br />
amenizar os problemas de locomoção<br />
urbana, e sim, investir massivamente<br />
em alternativas que modifiquem o<br />
perfil do transporte brasileiro? Nem<br />
engenheiros, nem matemáticos,<br />
nem ninguém é capaz de responder<br />
essa questão.<br />
A mudança é bem-vinda, e, quem<br />
sabe, as próximas histórias a serem<br />
contadas serão a de outros engenheiros<br />
civis, responsáveis por trens<br />
que não poluam, por aeromóveis<br />
silenciosos ou pela simples integração<br />
entre bicicletas e veículos. O<br />
que mais precisamos para qualificar<br />
nossa logística?<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
or questões acadêmicas e pessoais, trafego quase<br />
“pque diariamente pela Br-116. Todos sabemos<br />
dos problemas causados pelo intenso fluxo de veículos,<br />
como bem conhecemos os transtornos decorrentes das<br />
obras de recuperação. ao fazer a reportagem sobre a<br />
manutenção da rodovia, conheci o outro lado: o lado dos<br />
engenheiros. descobri as dificuldades e as preocupações<br />
pelas quais passam esses profissionais, que diariamente<br />
trabalham para melhorar (e amenizar) os obstáculos<br />
que enfrentamos ao pegar a estrada. os cuidados com<br />
a segurança dos usuários estão entre os principais<br />
pontos citados por eles. são conscientes de que suas<br />
ações atrapalham o trânsito, mas o fazem da maneira<br />
mais otimizada possível, afim de não interromper ou<br />
prejudicar o fluxo da Br-116. sentem-se satisfeitos com<br />
seu trabalho, pois sabem da importância em manter a via<br />
nas melhores condições. Tudo para transformar o trajeto<br />
numa via mais agradável e segura para todos àqueles que<br />
por ela se deslocam, seja a trabalho, estudo, passeio...”
ATENÇÃO CLARA ALLYEGRA
UM qUILôMEtRO<br />
passo a passo, passa um<br />
quilômeTro. e a cada passo,<br />
curiosidades e personagens<br />
aparecem suTilmenTe. soB os<br />
nossos olhares, o espaço enTre os<br />
km 264 e 265 da Br se Torna mais<br />
humano, ganha vida, ou melhor,<br />
as vidas e hisTórias se apresenTam<br />
TEXTO dE ANA PAULA FIGUEIREdO E tAMIRES GOMES<br />
FOTOS dE AtHOS BEUREN E ROBERtA REIS<br />
Passos curtos e olhos atentos, debaixo de uma<br />
so<strong>mb</strong>rinha, observamos o que havia ao redor. Era<br />
difícil andar por entre os obstáculos: lixo, pedras,<br />
poças de água, garrafas e até mesmo roupas jogadas<br />
pelo caminho. Depois de alguns metros de andança,<br />
uma surpresa. Uma casinha, perdida em meio à paisagem<br />
de concreto, asfalto e prédios monocromáticos,<br />
chama a atenção por manter um pátio florido de hibiscos<br />
e parreiras. Ali mora há mais de 50 anos o aposentado Vitalino<br />
Angelo Frá. O senhor de 62 anos gasta pouca saliva<br />
para contar as le<strong>mb</strong>ranças do seu tempo de piá. “Le<strong>mb</strong>ro<br />
quando era menino, eu e meu irmão jogávamos bola aqui<br />
na faixa, agora está muito perigoso. Naquela época ficávamos<br />
até tarde na rua e era bem iluminado”, compara<br />
Vitalino, que se refere à BR-116 como faixa, assim chamada<br />
popularmente.<br />
O trecho da rodovia entre os quilômetros 264 e 265,<br />
um local inóspito, com calçadas irregulares e prédios depredados,<br />
foi definido como roteiro da nossa caminhada,<br />
em uma manhã fria e chuvosa de sábado. Ao explorar<br />
46 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
dE HIStóRIAS<br />
esse percurso, acompanhadas pelos colegas fotógrafos,<br />
encontramos essa e outras histórias, que talvez nunca<br />
fossem contadas.<br />
Vitalino preserva o legado dos pais, mas informa que o<br />
pátio já esteve mais bem cuidado, hoje o tempo escasso<br />
impede que a jardinagem esteja em dia. O aposentado<br />
dedica seu tempo para plantar alguns pés de alface, cuidar<br />
dos três cachorros e dos afazeres domésticos. Mesmo<br />
assim, a residência se destaca pela grande quantidade<br />
de verde avistada de longe, e assim o contraste da natureza<br />
com o urbano é inevitável. Localizada entre<br />
um hotel e um motel, onde as pessoas costumam<br />
permanecer por poucas horas, ou no<br />
máximo por alguns dias, a casa de Vitalino<br />
resiste ao tempo e ultrapassa<br />
gerações. “O hotel existe há muitos<br />
anos, mas era bem diferente.<br />
No lugar do motel havia um ferro<br />
velho, com sucata de caminhão.<br />
Tinha poucas casas e a estrada<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 47<br />
era uma única pista larga de paralelepípedos.”<br />
A família veio da cidade de Farroupilha no início dos<br />
anos 60 para tentar uma vida melhor em Canoas, conta<br />
Vitalino. Depois de perder a esposa, ele assumiu os cuidados<br />
da residência onde cresceu e passou a dividir o<br />
espaço com o irmão mais novo, Luiz. No pátio, estão duas<br />
casas, uma onde a família morou, e onde ele ainda reside,<br />
e a outra que serviu de estabelecimento comercial.<br />
A<strong>mb</strong>as foram construídas pelo seu pai na época em que<br />
o trânsito e o barulho não eram constantes. Hoje, o som<br />
AtHOS BEUREN<br />
canoas cresceu, e a<br />
casa de viTalino<br />
conTinua lá, do mesmo<br />
JeiTo que foi consTruída,<br />
há mais de 50 anos
FOtOS AtHOS BEUREN<br />
dos veículos torna impossível imaginar a cena presente<br />
somente na memória de Vitalino.<br />
Até uma hora da manhã o tráfego é intenso, e, mesmo<br />
sendo difícil de se acostumar, ele já tira de letra e<br />
dorme bem à noite. “Entre uma e três da madrugada, o<br />
barulho diminui um pouco, mas sempre tem movimento.<br />
Caminhões e motos passam a toda hora.”<br />
Mesmo habituado aos incômodos provenientes do fluxo<br />
dos carros, Vitalino sonha com o dia em que poderá<br />
retornar para a terra natal. “Tenho vontade de voltar<br />
para Farroupilha, mas falta coragem para a mudança,<br />
pois vivo aqui há 50 anos”, confessa.<br />
Chega a hora da despedida, a caminhada segue no<br />
ritmo anterior, frio e cinza. Não há mais flores e jardins.<br />
O SUSTENTO à bEIrA dA ESTrAdA<br />
Cerca de 400 metros à frente, há o comércio do casal<br />
Magda Isabel Pizzi Rodrigues e José Carlos Rodrigues. Estabelecidos<br />
no ponto comercial há dez anos, trabalham<br />
com a venda de kits para identificação de cargas perigosas,<br />
via telefone. A renda obtida com o trabalho financiou<br />
a formação em ensino superior de seus três filhos.<br />
O casal conta o que já presenciou nessa década<br />
de ofício, descrevendo com detalhes os acidentes e<br />
atropelamentos ocorridos no local. Magda chama a<br />
atenção para outro ponto crítico, o transporte público.<br />
“Os ônibus aqui são precários. Não ando de ônibus,<br />
mas a minha secretária precisa usar o transporte<br />
e passa muito trabalho. Diminuíram a quantidade de<br />
veículos, e alguns nem param, passam reto ou ficam<br />
cheios de gente”, avalia. Magda e José apenas utilizam<br />
o ônibus quando é estritamente necessário, como<br />
no caso de algum serviço a ser realizado fora do município.<br />
“Quando vamos a Porto Alegre, procuramos<br />
cuidar para não sair em horários de pico, pois, caso<br />
contrário, já sabemos, será preciso ter paciência, ligar<br />
o radinho”, brinca Magda.<br />
As paradas lotadas são alvo para assaltantes, o que<br />
mostra a insegurança presente às margens da rodovia. O<br />
estabelecimento de Magda e José Carlos ta<strong>mb</strong>ém já foi<br />
vítima de roubos. “Arro<strong>mb</strong>aram aqui quatro vezes, mas<br />
sempre à noite, quando já tínhamos ido e<strong>mb</strong>ora”, afirma<br />
Magda.<br />
ANdANÇA SOlITárIA<br />
O que mais se encontra no trecho são concessionárias<br />
de carros, postos de gasolina, motéis, casas noturnas,<br />
mas gente pouco se vê pelos arredores. Andamos um pouco<br />
desconfiados com a falta de vida aparente nas imediações,<br />
receio típico provocado por lugares desertos. Volta<br />
e meia surge um vivente apressado, principalmente nas<br />
proximidades do supermercado Zaffari Bourbon, que emprega<br />
muitos funcionários.<br />
Allane Rodrigues Pereira trabalha no local e está acostumada<br />
com o percurso. Moradora de Esteio, ela vai ao<br />
hipermercado pelo menos seis dias por semana para trabalhar<br />
em uma loja de roupas. “Seguro não é, mas medo<br />
não tenho”, conta. A segurança vem da experiência. Com<br />
apenas 20 anos, Allane já teve outros empregos e precisava<br />
andar sozinha até o serviço. “Trabalhei em Esteio,<br />
ta<strong>mb</strong>ém na BR.”<br />
Mais alguns metros à frente, surge um ponto interessante<br />
do percurso: uma estreita e alta passarela de madeira,<br />
cujos vãos permitem enxergar os carros passando<br />
48 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
por baixo dos pés. Reza a lenda que a Passarela da Cabeça,<br />
como é conhecida, recebeu este nome por causa de<br />
uma briga, em que um dos inimigos jurou que mataria o<br />
outro e colocaria a cabeça dele exposta na passarela. O<br />
homem jurado de morte, sabendo da ameaça, adiantouse<br />
e reverteu a situação, expondo a cabeça daquele que<br />
desejava ser seu algoz.<br />
FINdA A jOrNAdA<br />
Um trecho curto, de carro, é atravessado em apenas<br />
dois minutos. Porém, as histórias interessantes que<br />
descobrimos pelo caminho fizeram com que a caminhada<br />
durasse mais de uma hora. O trajeto compreende uma<br />
das passagens da BR-116 mais movimentadas da Região<br />
Metropolitana. Mesmo com tanta gente indo e vindo, nitidamente<br />
é um lugar não planejado para o passeio, por<br />
isso a caminhada por ali é solitária.<br />
A placa que marca o quilômetro 265 indica que chegou<br />
a hora de ir e<strong>mb</strong>ora. Vamos. Todos cansados, molhados<br />
e com coisas para contar em forma de texto e<br />
fotografias. As histórias que ficaram por ser contadas<br />
são muitas. A cada esquina, com um pouco mais de tempo<br />
e atenção, seria possível extrair um caso merecedor<br />
das páginas da revista.<br />
A correria do dia a dia torna as milhares de pessoas que<br />
passam pelo local indiferentes às peculiaridades do caminho,<br />
que, como comprovado pela jornada descrita, escondem<br />
casos interessantes em meio à paisagem e<strong>mb</strong>rutecida<br />
e envelhecida pela fumaça dos carros e caminhões.<br />
Cada colega leva para casa suas impressões sobre<br />
a tarefa e uma conclusão em comum: possuímos visão<br />
seletiva.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 49<br />
viTalino se acosTumou com o<br />
Barulho do TrÂnsiTo inTenso<br />
da Br. um dia, ele preTende<br />
percorrê-la para volTar a<br />
sua Terra naTal, farroupilha<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
uantas vezes andamos por aí sem olhar para<br />
“qos lados, concentrados no destino e não no<br />
percurso. depois de caminhar com esse objetivo pela<br />
Br-116, os lugares comuns se apresentaram sob<br />
nova forma, quase sempre negativa. entre as fontes,<br />
sem desmerecer ninguém, o senhor vitalino ganhou<br />
destaque, não só pelas histórias de infância, mas por<br />
manter vivo o a<strong>mb</strong>iente em que cresceu, mesmo que<br />
tudo na volta tenha mudado. Todos os sentidos foram<br />
explorados. a visão não foi a mais privilegiada, pois<br />
o cenário incomoda, perturba no início. foi difícil<br />
acreditar que boas histórias poderiam surgir daquele<br />
espaço aparentemente desabitado. a audição não teve<br />
paz, solicitada a todo instante pelo barulho dos carros,<br />
que abafam a maioria dos sons ao redor. os cheiros se<br />
misturavam, o nariz não diferenciava mais o odor de<br />
lixo, co<strong>mb</strong>ustível e fumaça dos carros. o tato foi sentido<br />
pelos pés, que pisavam o chão irregular e as poças de<br />
água. o único que escapou foi o paladar, mas por pouco.<br />
no caminho, o aroma de carne assada vindo de uma<br />
churrascaria atiçou as papilas gustativas. o percurso foi<br />
igual, os sentidos é que ficaram mais aguçados.”<br />
ROBERtA BECKER
EncAntOS dA<br />
O ANTIGO MOINHO FAZ<br />
PARTE DAS ATRAÇÕES<br />
DO PARQUE HISTÓRICO<br />
MUNICIPAL JORGE KUHN<br />
50 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
SUbIdA dA SERRA<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 51<br />
Não são em paisagens verdes,<br />
riachos despoluídos,<br />
obras de arte e em calmaria<br />
que você pensa quando<br />
falamos da BR-116. O trânsito lento,<br />
acidentes, as horas perdidas dentro<br />
de um automóvel, a poluição sonora<br />
e visual parecem co<strong>mb</strong>inar bem<br />
mais com ela. No entanto, um trecho<br />
da estrada que passa pelo caminho<br />
turístico conhecido como Rota<br />
Romântica, no Rio Grande do Sul,<br />
tem grandes chances de isentá-la,<br />
pelo menos por alguns quilômetros,<br />
de tantas reclamações.<br />
Localizada entre as cidades de<br />
São Leopoldo e São Francisco de<br />
Paula, a Rota tem diversos pontos<br />
bem conhecidos, como a Cascata<br />
do Caracol, em Canela, e o Labirinto<br />
Verde, em Nova Petrópolis.<br />
Anualmente milhares de turistas<br />
movimentam a economia dos municípios,<br />
especialmente no inverno. O<br />
charme do roteiro não está somente<br />
nesses lugares já tão badalados,<br />
mas ta<strong>mb</strong>ém em pequenas raridades<br />
cortadas pela BR-116. Entre Dois Irmãos<br />
e Picada Café, respectivamente<br />
quinta e nona cidades do roteiro,<br />
é possível se surpreender.<br />
A primeira parada, no sentido<br />
TEXTO dE FERnAndA bRAndt E REnAtA PARISOttO<br />
FOTOS dE ROGERIO bERnARdES<br />
A ROTA ROMâNTICA, QUE ATRAVESSA<br />
13 CIDADES ENTRE SãO LEOPOLDO E<br />
SãO FRANCISCO DE PAULA, é UM DOS<br />
CAMINHOS MAIS VISITADOS PELOS<br />
TURISTAS NO RIO GRANDE DO SUL<br />
Capital-Interior, é ponto de encontro de motociclistas<br />
e turistas de passagem. Não somente pela roda de conversa<br />
que pode se formar, mas pela vista panorâmica de<br />
Dois Irmãos e outras cidades do Vale do Sinos. O Belvedere<br />
fica no quilômetro 218, na entrada de Morro Reuter,<br />
ex-distrito da cidade, emancipado em 1992. Com<br />
extensão de cerca de 60 metros, o Belvedere oferece<br />
um espaço para estacionamento e é rodeado por plátanos,<br />
árvores que estão por boa parte do caminho e<br />
que, no outono, trocam o verde das folhas pelo amarelo<br />
queimado e pelos tons avermelhados. São os plátanos,<br />
aliás, que em vários trechos da BR-116 formam túneis<br />
naturais que encantam.<br />
Um quilômetro após, está o ateliê da artista plástica<br />
Anelise Bredow. Visitado por turistas do mundo todo que<br />
passam pela região do Vale do Sinos e sobem a Serra<br />
através da Rota Romântica, o ateliê representa bem o<br />
que os turistas podem encontrar pelo caminho. A beleza<br />
e originalidade do trabalho da artista ganharam destaque<br />
ainda maior em 20<strong>10</strong>, quando suas peças foram parar<br />
na decoração de cenários das novelas Passione e Ti Ti<br />
Ti, da Rede Globo.<br />
A casa antiga, com traços da colonização alemã,<br />
transformada em a<strong>mb</strong>iente de trabalho, chama a atenção.<br />
No entanto, de acordo com a artista, o vermelho<br />
das paredes não é suficiente para atrair um maior número<br />
de pessoas que seguem pela rodovia. “Os turistas<br />
chegam aqui por acaso. A gastronomia ou a indicação de<br />
alguém que já conhece meu trabalho ajudam.” O fato<br />
se justifica pelo ponto comercial, que fica alguns metros<br />
antes do trevo de acesso à cidade de Morro Reuter, por<br />
isso tem pouca visibilidade, além da falta de espaço para
o estacionamento de veículos. No entanto, a artista não<br />
pensa em sair do local. “Não existem pontos comerciais<br />
na BR-116, desde Ivoti até São Francisco de Paula. Esse<br />
é um grande problema que enfrentamos. Certamente, se<br />
houvesse novas opções e maior divulgação do turismo na<br />
BR, o movimento de turistas poderia ser muito maior”,<br />
destaca a artista.<br />
A falta de imóveis para locação pode ser verificada<br />
durante todo o trajeto entre as duas cidades. A geografia<br />
do local, composta por paredões, penhascos e vegetação<br />
fechada, impede que novos estabelecimentos sejam<br />
construídos. Além disso, aponta Anelise, a estrada sem<br />
acostamentos em alguns pontos e a neblina prejudicam<br />
a visitação: “A maior parte da divulgação para subir a<br />
Serra é através da RS-122. Em dias nublados, a BR-116 se<br />
torna mais perigosa, e acabamos perdendo grande parte<br />
do movimento. No entanto, em dias de sol, os turistas<br />
podem apreciar uma paisagem muito mais bonita através<br />
dos caminhos da Rota. Para se ter uma ideia, nos finais<br />
de semana com tempo bom, são cerca de <strong>10</strong>0 a 150 pessoas<br />
que vêm visitar o ateliê. Nos dias com neblina, o<br />
número cai para 20 a 25.”<br />
Apesar dos problemas de divulgação e infraestrutura<br />
da BR-116, as obras de arte encantam visitantes brasileiros<br />
e estrangeiros. São vasos em cerâmica, quadros,<br />
pequenas le<strong>mb</strong>ranças, como chaveiros, expostos por<br />
todo o ateliê, com estilo próprio. Uma geladeira antiga<br />
vermelha, mesas de madeira, móveis brancos, estantes e<br />
até um velho baleiro transformam um simples a<strong>mb</strong>iente<br />
de casa em obra de arte. Anelise reforça: “Eu não me<br />
inspirei no estilo de ninguém, tenho minha linguagem<br />
própria”. É por isso que o ateliê se torna um dos pontos<br />
atraentes do caminho.<br />
A pArAdA obrigAtóriA dA br<br />
Seguindo viagem, a Tenda do U<strong>mb</strong>u, em Picada Café,<br />
chama a atenção pelo número de motociclistas que ali param<br />
para descansar, realizar suas refeições, conversar. Há<br />
possibilidade ta<strong>mb</strong>ém de fazer compras. Afinal, são inúmeros<br />
itens à venda, que vão desde casacos de couro e lã, artigos<br />
femininos, peças decorativas, até pequenas le<strong>mb</strong>ranças,<br />
como enfeites para o chimarrão, cuias e chaveiros.<br />
De acordo com uma das proprietárias da Tenda do U<strong>mb</strong>u,<br />
Miriam Rückert Maurer, aos finais de semana cerca de mil<br />
pessoas se reúnem no local. Os turistas são de todo país, e,<br />
no período de férias, chegam por ali até estrangeiros.<br />
A tenda teve início em 1963, antes da emancipação<br />
do município, em 1992, quando o pai de Miriam comercializava<br />
frutas à so<strong>mb</strong>ra de um u<strong>mb</strong>uzeiro, à beira da<br />
BR, atividade que ainda pode ser vista em trechos da<br />
Rota Romântica. O negócio da família foi aumentando<br />
com o tempo, e atrás da árvore foram construídas as primeiras<br />
instalações. Hoje, o local abriga loja, restaurante<br />
e área com churrasqueiras para quem prefere preparar o<br />
almoço. “O nosso objetivo é oportunizar lazer para todos<br />
nossos clientes, por isso a diversidade”, diz Miriam.<br />
Ainda na cidade de 5.182 habitantes, o Parque Histórico<br />
Municipal Jorge Kuhn integra os pontos que valem a pena vi-<br />
52 52 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong><br />
| JULHO/2011
sitar na rodovia. Com um acervo histórico<br />
que inclui construções centenárias,<br />
como moinho, armazém, residência,<br />
cozinha com sala de refeições, açougue,<br />
galpões, estrebarias, chiqueiros e matadouro.<br />
No local, encontra-se ta<strong>mb</strong>ém a<br />
Biblioteca Municipal José Lutze<strong>mb</strong>erger<br />
e o prédio de uma antiga funilaria.<br />
Arte nA beirA dA estrAdA<br />
Em meio às árvores, é possível<br />
avistar uma pequena casa de madeira<br />
e teto baixo. No alto, do lado direito,<br />
um distintivo do tricolor gaúcho,<br />
Grêmio, e do lado esquerdo, o<br />
do time rival, Internacional. Feitos<br />
em madeira maciça, pintados cuidadosamente,<br />
os escudos são amostras<br />
do que pode ser encontrado no<br />
local. Outros pequenos e enormes<br />
quadros, esculpidos artesanalmente,<br />
retratam cenas como a da Santa<br />
Ceia, cidades pacatas, pais e filhos,<br />
animais e até um pôr do sol. José<br />
Dércio Knorst e Ilaine Schnorenberger<br />
são os responsáveis por encantar<br />
turistas dos Estados Unidos, Alemanha<br />
e ta<strong>mb</strong>ém brasileiros, que pagam<br />
até R$ 3.200 por uma peça com<br />
dois metros de largura. Para quem<br />
não pode pagar esse valor, mas quer<br />
ter a exclusividade em casa, a opção<br />
é o número de residência, que sai<br />
por cerca de R$ 180.<br />
Há 15 anos no local, Ilaine atribui<br />
à BR-116 o sucesso das vendas, mas<br />
admite que a Rota Romântica ainda é<br />
pouco divulgada. Mesmo assim, o casal<br />
não pretende sair do local onde nasceu.<br />
Do negócio, vem a principal renda<br />
da família, mas não a única. Durante<br />
a semana, Ilaine trabalha em uma fábrica<br />
de calçados de Dois Irmãos para<br />
complementar o orçamento. Na pequena<br />
casa de beira de estrada, além<br />
dos quadros, são comercializadas ainda<br />
flores e mel, uma opção para turistas e<br />
ta<strong>mb</strong>ém para os vizinhos da localidade<br />
de Picada São Paulo.<br />
Paisagens, centros culturais, esculturas,<br />
produções locais. As atrações<br />
encontradas entre as cidades<br />
de Dois Irmãos e Picada Café remetem<br />
a uma vida simples de cidade do<br />
interior. A calmaria encontrada no<br />
trecho pode amenizar as impressões<br />
ruins de quem enfrenta diariamente<br />
o lado exaustivo da rodovia.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong> | JULHO/2011 | 53 | 53<br />
um pedAcinho dA<br />
AlemAnhA no brAsil<br />
A inspiração para a criação da Rota Romântica<br />
brasileira veio do norte da Alemanha. Engana-se quem<br />
pensa que é apenas a beleza dos plátanos ao longo da<br />
BR-116 que impõe o ar europeu.<br />
A região que abriga as cidades da Rota Romântica<br />
foi colonizada pelos imigrantes alemães que povoaram<br />
a região em meados do século XIX. Vindos de regiões do<br />
Norte da Alemanha, 5.350 alemães chegaram à encosta<br />
do Vale do Sinos, à Serra Gaúcha e ao Nordeste do Rio<br />
Grande do Sul entre 1824 e 1830, uma região desabitada<br />
até então.<br />
A influência germânica pode ser vista hoje nas casas<br />
em estilo bávaro e enxaimel, no dialeto deixado pelos<br />
imigrantes e nas festas populares com bandas típicas,<br />
regadas a muito chope e alegria. A culinária local<br />
ta<strong>mb</strong>ém é repleta de iguarias da típica culinária alemã,<br />
com um bom schmier colonial, o delicioso apfelstrudel<br />
(torta de maçã) ou uma cuca bem caseira.<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
uando o assunto em pauta é a BR-116, a<br />
“Qprimeira le<strong>mb</strong>rança que a grande maioria das<br />
pessoas tem é da poluição, dos engarrafamentos e do<br />
estresse causado pelos grandes congestionamentos,<br />
principalmente no trecho que liga a Grande Porto Alegre<br />
ao Vale do Sinos. E essa ta<strong>mb</strong>ém era a nossa ideia. Foi<br />
nessa hora que a colega e amiga Gabriela Silva sugeriu<br />
mostrar que nem só de fumaça vive a 116. E aceitamos<br />
o desafio. Escolhemos uma manhã de sábado para<br />
subir a Serra e, mesmo com chuva, a cada quilômetro<br />
era possível apreciar belas paisagens, conversar com<br />
moradores e descobrir pequenos detalhes que fazem<br />
da região um dos berços da colonização alemã. A saída<br />
foi da cidade de Dois Irmãos, e, conforme percorríamos<br />
a Rota Romântica, a reportagem se construía em<br />
pensamento. Seria impossível não falar dos plátanos, que,<br />
em alguns pontos, chegam a formar túneis verdes. Como<br />
não se encantar com a beleza natural e ainda pouco<br />
explorada pelos pontos comerciais? Aliás, a maioria dos<br />
entrevistados reclamou da falta deles. Mas seria tão<br />
prazeroso andar por ali se o trecho fosse igual ou muito<br />
parecido com o restante da BR-116?”
QUAndO éRAMOS<br />
cRIAnçAS<br />
54 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
QUEM PASSA PELA PRAÇA SANTOS<br />
DUMONT, JUNTO À BR-116, NA ALTURA<br />
DE CANOAS, NORMALMENTE DÁ UMA<br />
ESPIADINHA NO MONUMENTO DO<br />
AVIãO. MAS COMO ELE FOI PARAR ALI?<br />
AS CRIANÇAS TÊM ALGUMAS VERSÕES<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 55<br />
JOAnnA GIL<br />
JOAnnA GIL<br />
cEcÍLIA MEdEIROS<br />
cEcÍLIA MEdEIROS
TEXTO dE HEctOR MORAES<br />
FOTOS dE cEcÍLIA MEdEIROS,<br />
cLARA ALLYEGRA E JOAnnA GIL<br />
A<br />
Praça Santos Dumont, em<br />
Canoas, popularmente conhecida<br />
como “Praça do<br />
Avião”, desperta a atenção<br />
de qualquer um que trafegue pela BR-<br />
116. Seja durante o dia, sob um céu<br />
de brigadeiro, ou então à noite, quando<br />
é iluminada pelas luzes que destacam<br />
a aeronave, não há quem passe<br />
pela rodovia sem dar uma conferida<br />
no monumento.<br />
Visitei a Praça em um domingo à<br />
tarde e pude ver o modelo F-8 Gloster<br />
Meteor de perto. Bem maior do<br />
que parece quando visto da BR-116,<br />
ele é sustentado por um suporte de<br />
concreto e fica levemente inclinado,<br />
passando uma sensação de movimento<br />
e voo infinitos.<br />
O desgaste do tempo é perceptível,<br />
principalmente nas asas e na cauda,<br />
partes que estão um pouco descascadas.<br />
Pudera, como monumento,<br />
foi inaugurado em 1968, como uma<br />
homenagem da Força Aérea Brasileira<br />
(FAB) para a comunidade canoense,<br />
que tem o desenvolvimento municipal<br />
diretamente ligado à Aeronáutica.<br />
Trazido para o Brasil em 1953, o F-8<br />
Gloster Meteor foi o primeiro modelo<br />
à jato do país, e podia atingir a velocidade<br />
máxima de 960Km/h.<br />
Todas essas informações perdem<br />
o sentido quando perguntamos a<br />
uma criança se ela saberia responder<br />
por que aquele avião está ali. É<br />
na imaginação delas que a homenagem<br />
da FAB ganha contornos mágicos,<br />
com histórias de guerra, salvação<br />
e co<strong>mb</strong>ates ingênuos. Histórias<br />
sempre contadas rapidamente, com<br />
palavras curtas e em volume baixo.<br />
Quase um contraste com as mais de<br />
21 mil horas de voo e o ruído dos<br />
motores do hoje aposentado Gloster<br />
Meteor. São contos que atravessam<br />
a tênue linha entre o sonho e a realidade,<br />
sem se preocupar com as<br />
barreiras possível. E foi isso o que<br />
fizeram alguns ilustres visitantes da<br />
Praça do Avião, com idades entre<br />
cinco e <strong>10</strong> anos, quando perguntados:<br />
“De onde veio este avião?”<br />
A imAginAÇÃo VoA<br />
De calça laranja e moletom azul,<br />
com cabelo cortado no melhor estilo<br />
tigelinha, Lucas Azevedo, de apenas<br />
cinco anos, conta que viu o avião caindo<br />
do céu até aterrissar ali: “Eu estava<br />
aqui com meu pai e aí BUUUUM! ele<br />
veio descendo... descendo... e parou<br />
aí.” O que aconteceu depois? A resposta<br />
do pequeno foi um envergonhado<br />
sorriso que se escondeu nos braços da<br />
mãe. Mas essa não é a mesma história<br />
que o Jonatas Barcelos, de camiseta<br />
do Grêmio e oito anos, conta: “Acho<br />
que teve uma guerra, lá em cima derrubaram<br />
ele, e ele caiu aqui.” Mas e<br />
por que não explodiu? “Meu avô disse<br />
que tinha acabado a gasolina.” Avô?<br />
“É, meu avô era o piloto. Ele que me<br />
contou essa história”, disse ele.<br />
Janaína Pereira, de <strong>10</strong> anos, conta<br />
uma versão bem mais tranquila<br />
que a dos meninos: “Ahh, esse avião<br />
aí meu pai falou que o quartel não<br />
queria mais, que ele estava velho.<br />
Daí colocaram ele aí. No colégio<br />
ta<strong>mb</strong>ém contaram algo tipo isso, que<br />
foi o quartel que deu ele pra cidade.”<br />
Mas antes de saber a verdadeira<br />
história, ela conta que achava que<br />
ele não era de verdade, que era só<br />
imitação. Sara Silveira, de sete anos,<br />
tem certeza que o avião é de verdade<br />
porque a mãe dela contou que esse<br />
avião caiu. “Daí colocaram ele aqui”.<br />
Mas ela vai mais além: “Eu queria entrar<br />
lá. Pode?”, pergunta apontando<br />
para o cockpit da aeronave.<br />
Mesmo sem ligar as turbinas e alçar<br />
voo há 43 anos, o velho Gloster Meteor<br />
ainda mexe com a imaginação das<br />
pessoas. Mantém a mesma magia que<br />
faz com que tanto os que freqüentam<br />
a Praça Santos Dumont quanto os que<br />
passam pelo Km 256 da BR-116 voltem<br />
a ser criança por alguns instantes.<br />
56 56 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong><br />
| JULHO/2011
JOAnnA GIL<br />
cLARA ALLYEGRA<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
ive sorte e azar quando visitei a Praça Santos<br />
“TDumont, mais conhecida como Praça do<br />
Avião, em Canoas. Sorte porque fazia um dia bonito<br />
e ensolarado nas duas vezes em que estive lá, o que<br />
tornou minha viagem de trem uma espécie de relaxante<br />
passeio de domingo. Azar porque, apesar do clima<br />
agradável, não encontrei tantas crianças quanto<br />
imaginava que poderia encontrar. é que a idEia era<br />
conversar apenas com os pequenos para tentar entender<br />
como a imaginação deles explicaria o fato de um avião<br />
estar no meio de uma praça localizada justamente ao<br />
lado de uma estrada. Convenhamos, algo bastante<br />
inusitado. No início, apenas observava a movimentação<br />
deles, tentando entender do que estavam brincando e<br />
o que poderiam estar imaginando. Depois, localizava<br />
os pais, me aproximava e explicava o motivo de querer<br />
entrevistar o filho deles. Não ouvi nenhuma negativa<br />
por parte dos adultos, mas não posso dizer o mesmo<br />
dos meus entrevistados mirins. Mas eu os compreendia,<br />
afinal, quem nunca se sentiu envergonhado? Em<br />
outros casos, eles apresentarem aquela bonita falta de<br />
articulação e conexão textual natural da idade, o que<br />
me deixava ainda mais curioso pra saber o que será<br />
que eles me contariam, caso pudessem fazer isso. E<br />
ainda teve aqueles que seguiram brincando ainda mais<br />
entusiasmados, porque finalmente podiam fazer aquilo<br />
que mais gostam: utilizar superpoderes mágicos para<br />
impressionar estranhos como eu.”
dOIS A<br />
58 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
ROdAR<br />
NA PRINCIPAL RODOVIA DO BRASIL,<br />
ELA CANSA DA ROTINA CONFORME<br />
DESBRAVA CAMINHOS, ENQUANTO ELE<br />
PROCURA UM TETO PARA SOBREVIVER<br />
E AGRADECE PELO DIA DE HOJE<br />
TEXTO dE EdUARdO PEdROSO<br />
FOTOS dE AndRé ÁVILA E cLARA ALLYEGRA<br />
Um trecho da BR-116 que corta São Leopoldo serve de fronteira<br />
para o bairro mais rico da cidade. Neste local, a estrada muda<br />
um pouco sua configuração convencional, pois há um viaduto,<br />
usado para que o intenso fluxo não seja interrompido pelos cruzamentos,<br />
retornos e sinaleiras. No bairro, entre outros estabelecimentos<br />
menos representativos, há uma universidade, um grupo de artilharia<br />
do exército brasileiro, um clube de futebol e até um cemitério. Com<br />
tanta estrutura, o bairro Cristo Rei é quase como uma cidade dentro<br />
de outra, e fica fácil entender sua valorização. Difícil é entender<br />
como alguém consegue morar de graça nele.<br />
Números de distâncias que separam mundos normalmente são<br />
estratosféricos, mas neste caso mal ultrapassam os 1500 m,<br />
distância percorrida em pouco mais de três segundos pelos<br />
melhores competidores do atletismo. Estranho é que se ele<br />
fosse até ela, seriam ao menos 20 minutos, mas se ela fosse<br />
até ele, não seriam nem cinco. Nenhum dos dois quis<br />
dizer o nome. Ela iria sozinha, dirigindo o terceiro carro<br />
da família, que lhe fora presenteado há pouco mais de<br />
um ano. Os dois dizem ter 21 anos. Morador de rua,<br />
ele iria caminhando, acompanhado de Belo, Sextafeira<br />
e Pipo. A seguir, a<strong>mb</strong>os caminham sobre<br />
um muro entre dualidade e dueto enquanto<br />
respondem as mesmas perguntas de<br />
perspectivas opostas, mas conectadas<br />
pelo asfalto da principal<br />
rodovia do Brasil.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 59<br />
cLARA ALLYEGRA
Quem mora contigo?<br />
Ela: Minha mãe, meu pai e meu irmão. Meu irmão tem duas<br />
cadelas, uma labradora e uma border collie.<br />
Ele: Só eu. Aqui eu fico mais na minha. Gosto de ficar na minha.<br />
Meu parceiro que me trouxe pra São Leopoldo já morreu,<br />
e foi por causa de cabeça fraca, indo pelas ideias dos outros.<br />
Gosto daqui. Tem só três cachorros que ficam por aqui. Mas<br />
só o Belo é meu, os outros são do Belo, ele que cuida deles e<br />
divide comida, eu não sou assim. Sempre fui mais sozinho.<br />
O que é a BR-116 para você?<br />
Ela: Uma estrada que é para ser de fluxo rápido, mas que<br />
acaba se tornando um pesadelo devido ao movimento e aos<br />
engarrafamentos.<br />
Ele: Um cantinho. Tem muita paz das pessoas e abrigo da chuva,<br />
mas o barulho é chato mesmo.<br />
Há quanto tempo você usa a via?<br />
Ela: Desde que tirei a carteira, há três anos. Foi bem diferente,<br />
essa foi a primeira estrada de fluxo mais intenso que<br />
encarei. No início, le<strong>mb</strong>ro que achava 80 km/h muita coisa,<br />
hoje é normal.<br />
Ele: Não sei. Mas já tem mais de ano.<br />
Quanto tempo por dia fica nela?<br />
Ela: Em média uma hora e meia, mas cheguei a ficar quase<br />
três horas, quando peguei tranqueira. Agora evito ao máximo<br />
trafegar entre 7h30min e 9h e entre 17h30min e 19h. Só ando<br />
nesses horários quando preciso.<br />
Ele: Mais é na noite. De dia eu fico no centro, ou perto da<br />
rodoviária.<br />
De onde sai e para onde vai?<br />
Ela: Saio de São Leopoldo, vou até a Feevale, em Novo Ha<strong>mb</strong>urgo,<br />
ou até Porto Alegre para trabalhar. Fazendo uma média<br />
semanal, ando cerca de 50 quilômetros diariamente.<br />
Ele: Nasci em Sapucaia, já tive casa lá, mas já morei na rua<br />
lá e depois vim para São Leopoldo. Um amigo disse que aqui<br />
era melhor, mas não viemos para esse viaduto direto, fomos<br />
no palco do metrô.<br />
o “palco” citado por ele é uma área da estação são<br />
leopoldo que tem apenas dois degraus de elevação e é<br />
usada de entrada pelos funcionários do local. protegida<br />
da chuva pela pista elevada do metrô, nunca está vaga,<br />
sempre serve de lar para algum desabrigado. de fato, é um<br />
palco, menor do que a menor das peças da casa dela, onde<br />
se desenrola uma peça sobre descaso e abandono. males<br />
que ta<strong>mb</strong>ém circulam pela br-116.<br />
O que deveria ser melhorado na BR-116?<br />
Ela: O fluxo de veículos nos horários de pico, com mais organização<br />
ou mais pista. A estrada não é ruim, não tem muito buraco<br />
e anda bem nos horários normais, mas está mais largada<br />
de uns tempos para cá.<br />
Ele: Não sei. Era bom ter um fogãozinho. Na real, só não gosto<br />
de pessoas que passam aqui por baixo e ficam com medo de<br />
mim. Não sou ladrão nem nada.<br />
“Já vi carro bater em<br />
caminhão, carro bater<br />
em carro e um carro<br />
pegando fogo sozinho”<br />
Ela<br />
Qual o acontecimento mais inusitado que já viu na via?<br />
Ela: Uma vez estava engarrafado no viaduto e havia um carro<br />
voltando de ré pelo acostamento. Muita imprudência, algo que<br />
não vi em nenhum outro local.<br />
Ele: Uma briga de skatistas com uma torcida organizada. Foi<br />
uma barbaridade, ver uma gurizada da minha idade, mas com<br />
condição, se matando. E tem o perigo dos carros ainda, por<br />
pouco não atropelaram uns.<br />
O que mais te preocupa ao estar na BR-116?<br />
Ela: Os motoqueiros e pedestres que atravessam. E os engarrafamentos<br />
repentinos, com paradas bruscas.<br />
Ele: Não tenho medo de ser abordado pelos homens (policiais),<br />
sou homem ta<strong>mb</strong>ém. Tenho medo é de dormir e ser<br />
pego de surpresa. Tem que dormir de olho aberto, mas aqui<br />
é mais tranquilo que o metrô. Se passa menos pessoa, corro<br />
menos risco.<br />
Costuma ver muitos acidentes?<br />
Ela: Não muitos. Mas já vi carro bater em caminhão, carro<br />
bater em carro e um carro pegando fogo sozinho.<br />
Ele: Vi alguns, mas é mais é buzinaço e pneu cantando, só,<br />
mas isso é normal. Acho que posso dizer que eu sou um acidente<br />
da BR-116. Não era para eu estar aqui, né?<br />
não se sabe como ele chegou até a br-116, assim como não<br />
se sabe como ela decidiu fazer duas faculdades e trabalhar.<br />
essas questões, ainda que de cenários antagônicos, são<br />
muito semelhantes na origem. surgem, não são escolhidas.<br />
são moldadas mais pelas negativas do que pelos desejos<br />
e aspirações. eu poderia exigir uma explicação, mas ela<br />
surgiria mutilada, obscura ou límpida demais. Voltar os<br />
olhos para um passado distante ou conturbado é como<br />
tentar iluminar uma paisagem imersa na neblina com uma<br />
lanterna. não se vê muito mais do que fumaça.<br />
É uma via limpa ou não?<br />
Ela: A principal poluição é a fumaceira dos carros e fábricas.<br />
No geral é limpa. É mais poluída nos acostamentos, nos canteiros.<br />
Cai muita sujeira de outdoor. Há ta<strong>mb</strong>ém mau cheiro<br />
de caminhões, normalmente em péssimas condições. Esses caminhões<br />
carregam entulho que cai na estrada, então procuro<br />
ficar longe deles.<br />
Ele: Eu mesmo tento manter limpa a minha área, ninguém<br />
gosta de morar na sujeira. Mas cai muito lixo dos carros. Cai<br />
não, os caras jogam mesmo, não estão nem aí. Sei que eu<br />
moro na rua, mas é minha casa. Eu não jogo lixo na casa de<br />
ninguém.<br />
O que muda quando chove e você está na BR?<br />
Ela: Fico muito mais atenta, a visibilidade piora e eu diminuo<br />
a velocidade. Dependendo da intensidade, forma poças<br />
60 60 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong><br />
| JULHO/2011
“Sei que eu moro na rua,<br />
mas é minha casa. Eu<br />
não jogo lixo na casa de<br />
ninguém”<br />
Ele<br />
nas faixas periféricas. Aliás, tem muitas poças na parte de<br />
Esteio, até a Unisinos.<br />
Ele: O melhor daqui é isso, não chove, tenho um teto, bem<br />
grosso até. O bom é que posso caminhar aqui sem me molhar<br />
ta<strong>mb</strong>ém, mas sair já fica complicado. Me sinto meio preso<br />
quando chove, mas é bom estar seco.<br />
Durante a noite, a BR muda muito?<br />
Ela: Depois das 20h é mais tranquilo de andar, mas muitos<br />
trechos não têm iluminação, Acredito que vai mudar em vista<br />
das câmeras que serão instaladas. Fico mais tensa em relação<br />
a assaltos em sinaleiras. No trecho de Sapucaia, no pórtico,<br />
principalmente.<br />
Ele: Passa menos carro, tem menos barulho, e isso engana,<br />
mas tem que ficar ligado igual. Tudo é menos, só aumenta o<br />
frio, tem muito vento aqui.<br />
Como é a iluminação da BR?<br />
Ela: É boa, mas no trecho do Zoológico é muito escura. Na<br />
chegada de Esteio ta<strong>mb</strong>ém.<br />
Ele: Onde eu fico até que é ruim, mas gosto assim. Eu vejo<br />
eles e ninguém me vê.<br />
Já precisou de ajuda em alguma ocasião na BR?<br />
Ela: Não. Graças a Deus.<br />
Ele: A gente sempre precisa de ajuda, né? De fé ta<strong>mb</strong>ém.<br />
Fazem muita barbaridade com quem mora na rua.<br />
Eu já escapei de ser esfaqueado, gritei por socorro e<br />
algumas pessoas gritaram ta<strong>mb</strong>ém. Mas na rua tu não<br />
pode precisar da ajuda de ninguém. Aquilo foi sorte,<br />
por acaso. Ninguém vai se meter em nada com morador<br />
de rua no meio.<br />
E o policiamento na BR?<br />
Ela: Não há, só em momentos de acidente.<br />
Ele: É difícil virem aqui, mas não devo nada. Podem vir.<br />
Se sentir fome, consegue comida na BR?<br />
Ela: Sim, em posto de gasolina, tem vários postos. Ou no Bourbon<br />
de Canoas.<br />
Ele: Tem uma moradora daqui de perto que seguido me dá<br />
alguma coisa. Ela me ajuda, mas não é sempre. Às vezes peço<br />
nos restaurantes aqui perto, outras fico no McDonald’s, mas<br />
não é bom. Prefiro ganhar dinheiro e comprar comida do que<br />
ganhar comida direto.<br />
Costuma ver muitas obras na BR?<br />
Ela: Ultimamente não, mas há uns anos, estavam recapando.<br />
Agora acredito que estão focando o viaduto da Unisinos e perto<br />
da Feevale. O da Feevale está demorando demais, mas o da<br />
Unisinos até que está bem rápido.<br />
Ele: Não. Aqui nunca fizeram nada.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong> | JULHO/2011 | 61 | 61<br />
Quando o assunto é ajuda, a<strong>mb</strong>os se apoiam de alguma forma<br />
na fé. Quando o assunto é obras, quem tem algo para falar é<br />
quem vai passar pelos futuros viadutos, não quem adormece<br />
diariamente sob os blocos de concreto de um que já existe.<br />
Quando as perguntas recorrem mais ao imaginário do que à<br />
realidade, as mentes viajam em velocidades semelhantes.<br />
Quando acredita que vai deixar de usar a BR-116?<br />
Ela: Não vislu<strong>mb</strong>ro este dia. Enquanto morar no Rio Grande do<br />
Sul, tenho que usar, mas acredito que vou morar no exterior<br />
dentro de alguns anos.<br />
Ele: Não tem como dizer. Gosto daqui e não tenho outro lugar.<br />
Só se eu mudar de cidade.<br />
O que pensa sobre a outra pessoa que entrevistei?<br />
Ela: Só pode estar com grandes dificuldades, morar na faixa<br />
deve ser pior do que nas ruas da cidade.<br />
Ele: Deve ser legal ter um carro e tal, eu queria um. Acho que<br />
dá dignidade e tu ainda te diverte. Mas não ia correr tanto eu<br />
acho, não sei. Trabalhar ta<strong>mb</strong>ém, se ela gosta e é feliz. Estudar<br />
tanto que não deve ser bom.<br />
Como deve ser a rotina dessa pessoa?<br />
Ela: Deve ser bem complicada. Qualquer pessoa que mora na<br />
rua vai estar numa situação ruim, mas ele ainda vai ter o negócio<br />
da poluição. Ainda tem muita gente voltando da balada,<br />
que dirige bêbada e pode atropelar até quem toma cuidado.<br />
Ele: Comer, beber e dormir todo mundo faz. Não deve ser<br />
muito diferente da minha. Ta<strong>mb</strong>ém tenho uns parceiros, uns<br />
trocados e uns problemas, sabe? Rico e pobre é assim, não<br />
adianta. É ser humano. Mas deve ser uma vida bacana.<br />
Se pudesse fazer uma pergunta para a outra pessoa, qual<br />
seria?<br />
Ela: Como ela foi parar ali?<br />
Ele: Sei lá. Se ela já me viu aqui?<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
eu principal receio foi<br />
“Mcomo expor de maneira<br />
compreensível minha proposta<br />
ao leitor. Não é uma matéria<br />
convencional, por isso a opção de<br />
lidar com um jornalismo mais literário.<br />
Abordei cada um deles de diferentes<br />
maneiras, mas a<strong>mb</strong>os me trataram<br />
da mesma forma, foram abertos e se<br />
mostraram interessados em contar o<br />
que pensam sobre a rodovia. Creio que<br />
o anonimato dos envolvidos contribuiu<br />
para que a história fosse narrada de<br />
maneira direta e mais focada apenas<br />
no convívio com a rua em si.”<br />
AndRé ÁVILA
cOnSERtAM-SE PnEUS
ESTABELECIMENTOS<br />
AGREGAM HISTÓRIAS QUE<br />
MISTURAM ASFALTO E<br />
BORRACHA À BR-116<br />
TEXTO dE FELIPE nAbInGER E RIcARdO SAntOS<br />
FOTOS dE LISIAnE AGUIAR<br />
Ser um dos maiores inventos criados pelo homem<br />
não coloca a roda como item de colecionador<br />
e sim como um objeto constantemente em dia<br />
com as necessidades culturais e tecnológicas<br />
das diversas sociedades. Desde as origens, atribuídas<br />
às civilizações suméria e egípcia, na Idade Antiga, às<br />
eras seguintes, o deslizar sob esse tão famoso círculo<br />
propicia menos esforços, mais celeridade e a sucessão<br />
de criações que revolucionam as práticas humanas<br />
de modo intenso.<br />
Artesanato, tecelagem, carro de boi, bicicleta,<br />
relógio, máquinas à vapor e trem são alguns itens<br />
cujo desenvolvimento está ligado à roda. Mas o veículo<br />
automotor é talvez o primeiro que vem à mente,<br />
pela disponibilidade em número de unidades e o<br />
acesso a praticamente todos os bolsos. Essa liberdade<br />
para atingir distâncias movimenta uma indústria<br />
variada que abrange a siderúrgica, têxtil, química,<br />
eletrônica, publicitária, e, claro, a pneumática. Todo<br />
o aparato automobilístico gera cifras astronômicas,<br />
porém, nada seguiria adiante, literalmente, de pneus<br />
vazios! Os motores que locomovem cidadãos e riquezas<br />
não iriam longe, portanto, sem as borracharias.<br />
A BR-116, no trajeto de Porto Alegre a Novo Ha<strong>mb</strong>urgo,<br />
no Rio Grande do Sul, pode ser considerada uma síntese<br />
do exposto. Detentor do maior tráfego do Estado e<br />
o quarto em nível nacional, o trecho metropolitano apresenta<br />
o índice de aproximadamente 1,5 milhões de veículos<br />
por mês ou 120 mil por dia, segundo dados de 2008<br />
da Polícia Rodoviária Federal. Afinal, da capital gaúcha<br />
ao seu destino final constam mais quatro municípios que,<br />
junto a outras 28 cidades da região, respondem por 4<br />
milhões de pessoas. Trânsito é o que não falta.<br />
Viajar desde Porto Alegre, passando por Canoas, Sapucaia,<br />
Esteio, São Leopoldo e Novo Ha<strong>mb</strong>urgo, revela a<br />
conurbação que mais se assemelha a um só logradouro,<br />
ou uma sucessão de vários com poucos espaços de densidade<br />
populacional e comercial. Todo o aparato de suporte<br />
mercadológico encontra-se às margens da rodovia nas<br />
ruas laterais, além de algumas residências.<br />
Apesar da importância das borracharias, não significa<br />
que os melhores pontos de venda do trajeto, tanto em<br />
localização quanto em construção vistosa, sejam delas.<br />
Le<strong>mb</strong>rados basicamente quando o sinal de pisca-alerta
e o acostamento fazem companhia<br />
aos motoristas, os borracheiros ocupam<br />
espaços em forte disputa com<br />
a especulação imobiliária, fato que<br />
nem os <strong>10</strong>0 quilômetros de ida e volta<br />
conseguem amenizar. Se a quebra<br />
de braço fosse literal, a turma que<br />
cuida dos calibradores de pneus ficaria<br />
com os melhores locais, mas<br />
na economia nem sempre é a imprescindibilidade<br />
que voga. Ainda<br />
mais ante a diversidade de ramos<br />
que margeiam uma pista de rolagem<br />
com as características da BR-116.<br />
A AlmA do negócio<br />
É verdade que erros de Português<br />
são recorrentes no universo das<br />
borracharias, mas nunca fizeram tão<br />
bem como para Marcos e Luiz Collor.<br />
A placa “Borraxaria” é familiar para<br />
os condutores da BR-116 que passam<br />
por Sapucaia do Sul. E o letreiro não<br />
está em carcaças de pneus ou madeiras,<br />
mas num vistoso fundo branco<br />
de letras azuis bem escritas.<br />
Desde 1994 em funcionamento,<br />
sem atender veículos de grande<br />
porte, reclamações, até mesmo por<br />
e-mail, não calibram uma eventual<br />
alteração do “erro”. Sagazes, os<br />
proprietários da borracharia próxi-<br />
ma ao Zoológico têm até pasta com<br />
recortes da mídia espontânea que<br />
a brincadeira proporciona. Como se<br />
fossem poucas as curiosidades, eles<br />
contam com dois carros em serviço<br />
de táxi... com “x”.<br />
o grAnde e o peQueno<br />
Juarez Melo, no bairro Campina,<br />
em endereço limítrofe com o bairro<br />
Scharlau, em São Leopoldo, é a antítese<br />
da maioria dos borracheiros,<br />
que preferem trabalhar com veículos<br />
de pequeno e médio porte. “O<br />
que faz o pesado faz o leve, o que<br />
faz o grande faz o pequeno, o pessoal<br />
já não quer mais fazer força”,<br />
afirma enquanto troca os pneus de<br />
uma carreta. Sem escolher o tipo de<br />
veículo, não é à toa que Melo construiu<br />
junto com o pai a estrutura de<br />
um comércio que pelo nome deve<br />
acalmar muita gente à deriva – Borracharia<br />
do Salvador! Salvador era o<br />
seu pai, falecido recentemente.<br />
Hoje, a vistosa oficina está envolta<br />
no barulho da maré de máquinas<br />
com a pressa contemporânea<br />
de chegar, própria da rodovia. Para<br />
não perder clientes, o local conta<br />
com teleatendimento, mas, por<br />
questões de (in)segurança, subme-<br />
te a antiga Blazer e o saudoso Fusca<br />
apenas para a clientela assídua.<br />
locAl e dono sem nomes<br />
No bairro Rio Branco, em Canoas,<br />
há 20 anos no ramo das marretas e<br />
macacos hidráulicos – e há sete neste<br />
local –, um borracheiro sorve seu chimarrão<br />
em uma tarde fria. Tímido,<br />
assustado, ele é o contraponto do<br />
cachorro que, alegre, salta sobre os<br />
clientes. O profissional aceita contar<br />
sua história, porém não quer dizer<br />
seu nome completo. Júnior, como<br />
pede para ser chamado, personifica<br />
o receio e a desconfiança que parece<br />
ser regra nos profissionais do ramo.<br />
Na empresa de pequeno porte,<br />
ele trabalha com venda e reparos de<br />
câmaras de ar e pneus, quase sempre<br />
usados: “Aqui é um negocinho pequeno,<br />
só pra mim, têm muitos que<br />
são maiores. Vendem escapamentos,<br />
material para suspensão... A diferença<br />
entre a minha e essas outras é o<br />
caixa, o dinheiro. Estar na BR facilita,<br />
mas depende do ponto”.<br />
A placa que indica seu estabelecimento<br />
diz apenas “Borracharia” e<br />
traz uma seta apontando para a pequena<br />
oficina. Assim como ele, sem<br />
nome. “Graças a Deus, tenho o nome<br />
O GIRO DOS<br />
PNEUS SE<br />
CONFUNDE COM<br />
O MOVIMENTO<br />
EVOLUTIVO: OS<br />
DOIS CADA VEZ<br />
MAIS VELOZES E<br />
DESGASTANTES
limpo. Mas a gente ouve tanta coisa<br />
que fica com medo”, conclui ao voltar<br />
para seu chimarrão.<br />
cAlendários e sex AppeAl<br />
Apesar da correria, houve momento<br />
para descontrair e sanar<br />
dúvidas do imaginário popular atribuído<br />
aos borracheiros. Do riso,<br />
inevitável para Juarez e Luiz, logo<br />
veio a negativa de um estereótipo<br />
do borracheiro: não há uma provocante<br />
modelo sequer em calendários<br />
nas paredes. Juarez garante<br />
que as marcas de pneus ainda produzem<br />
os impressos com fotos de<br />
mulheres nuas, mas a coisa mudou<br />
devido à alteração de tática publicitária<br />
dos donos dos recintos. Borracharias<br />
são agora um “a<strong>mb</strong>iente<br />
familiar”. Quanto ao fetichismo em<br />
torno da categoria, garante que<br />
tanto ele quanto a rapaziada com<br />
quem trabalha não recebem propostas<br />
indecentes das clientes.<br />
No caso do Luiz, além de não<br />
constar qualquer garota sexy em<br />
versão impressa, vê-se um violão<br />
pendurado e, ao lado, uma sanfona!<br />
A metrópole exige discrição nessas<br />
paredes onde a música dá lugar à<br />
frenética sinfonia dos carros.<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
omo nenhum de nós, repórteres, tem<br />
“Ccarro, a familiaridade com borracharias era<br />
quase nula. Assim, pudemos observar com olhos<br />
totalmente desprovidos de preconceitos esse tipo de<br />
estabelecimento. O problema foi o tempo. Do mesmo<br />
modo que os pneus rodam pela BR-116, os ponteiros<br />
dos nossos relógios pareciam não se sincronizar.<br />
Problemas com trabalho, estudos e até a forte gripe<br />
de um dos componentes do grupo tiveram que ser<br />
superados. Impressionou a forma tímida e até mesmo<br />
desconfiada com que fomos recebidos em algumas<br />
visitas. O estereótipo do borracheiro bonachão, com<br />
fotos de mulheres nuas nas paredes, ruiu ante nossos<br />
olhos. A fotógrafa Lisiane, única motorizada, teve<br />
uma curiosa relação com a pauta: calibrou os pneus<br />
de seu carro com nitrogênio na “Borraxaria”. Por fim,<br />
conseguimos cases que valem ouro, pois encontrar<br />
borracharias e, principalmente, profissionais que<br />
aceitassem falar com a reportagem foi mais difícil que<br />
o esperado! A BR-116, diferente do automóvel da Lisi,<br />
anda com pneus murchos.“<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 65
PREPARADAS PARA<br />
ARRASAR NA<br />
PISTA, AS AMIGAS<br />
LUCIANA E VERA<br />
LÚCIA ESPERAM A<br />
FESTA COMEÇAR
Até A MEIA-nOItE,<br />
ELAS nÃO PAGAM<br />
Sexta-feira à noite é dia de<br />
casa cheia no clube de dança<br />
Gigante do Vale, às margens<br />
da BR-116, em São Leopoldo.<br />
Falta meia hora para a festa começar<br />
e os músicos fazem uma última<br />
passagem de som no palco secundário.<br />
A pista de madeira, marcada por<br />
sinais de bailados e rodopios, espera<br />
por novos passos.<br />
Do lado de fora, já há dezenas<br />
de pessoas na fila. Iluminadas<br />
pelos holofotes voltados para o<br />
nome da casa, as amigas Luciana<br />
Marcante, 29 anos, e Vera Lúcia<br />
Flores, 24, ta<strong>mb</strong>ém esperam sua<br />
vez. Há poucas horas, as duas estavam<br />
cada uma em sua casa, em<br />
Portão, sem grandes planos para<br />
a noite. “Liguei pra ela e disse:<br />
bota uma roupa que eu estou subindo”,<br />
conta Vera.<br />
Depois de encontrar com um<br />
conhecido no caminho, as amigas<br />
acabaram indo para o Gigante do<br />
Vale. “Sempre ficamos sozinhas,<br />
viemos para curtir uma festa mesmo,<br />
beber, dançar”, conta Vera.<br />
Entusiasmada com a música que<br />
está por vir, ela já começa a cantar<br />
e ensaiar uns passos para arrasar<br />
na pista. Timidamente, Luciana<br />
apenas comenta: “O pessoal é bem<br />
festeiro por aqui”.<br />
O público começa a chegar aos<br />
poucos, entrando quase em coreografia,<br />
à procura daquilo que todos<br />
foram ali encontrar: diversão.<br />
E pode entrar todo mundo. O jeito<br />
de vestir e o tamanho da conta<br />
bancária é o que menos importa.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 67<br />
TEXTO dE GAbRIELA dA SILVA E PAtRÍcIA cARVALHO | FOTOS dE MAURÍcIO WOLF<br />
NãO HÁ PRé-REQUISITO PARA<br />
ENTRAR NA FESTA DO CLUBE DE<br />
DANÇA GIGANTE DO VALE, EM<br />
SãO LEOPOLDO. BASTA QUERER<br />
DIVERSãO A NOITE INTEIRA<br />
Alguns começam a se ajeitar às mesas, cadeiras<br />
e camarotes ao redor do salão. O centro fica para a<br />
penu<strong>mb</strong>ra que acoberta os casais dançarinos. Mal começou<br />
a música, e uma jovem loira de cabelos até<br />
a cintura já é conduzida com habilidade por seu par,<br />
deixando o restante do público só a assistir.<br />
O corredor lateral é iluminado por lâmpadas fluorescentes<br />
que indicam o caminho para a copa. É ali<br />
que os encontros cara a cara acontecem. Um grupo de<br />
amigas chega e uma a uma vão acendendo seus cigarros.<br />
São surpreendidas por um já empolgado dançarino,<br />
querendo um par para bailar. Diante da recusa<br />
das moças, e segue o compasso com sua companheira<br />
imaginária, sem perder o ritmo.<br />
Próximo ao palco, o estudante de Direito Mateus da<br />
Silva, 21 anos, de Novo Ha<strong>mb</strong>urgo, vai entrando no clima.<br />
Junto com os amigos e com o irmão, o estudante<br />
de Engenharia Química Cássio da Silva, de 17, Mateus<br />
já se sente em casa: “Conheço todo mundo. Aqui a<br />
festa é certa”.<br />
Com o gel bem aplicado no cabelo, para garantir<br />
os topetes armados até o fim da noite, os dois irmãos<br />
parecem ter co<strong>mb</strong>inado no modelito: camiseta colorida,<br />
calça jeans e tênis novinho. Visual caprichado.
è<br />
Afinal, segundo Mateus, a paquera<br />
pode rolar e é sempre bom causar<br />
uma ótima impressão.<br />
pArA ficAr nA históriA<br />
Um senhor de cabelos brancos<br />
bem penteados, camisa engomada<br />
e jeito manso de falar, espera por<br />
novos clientes sentado em uma das<br />
mesas à beira do salão. O funcionário<br />
público aposentado Henrique<br />
Sales Fagundes tem 74 anos, 32 deles<br />
trabalhando como fotógrafo do<br />
Gigante do Vale.<br />
Presença confirmada nas sextasfeiras,<br />
sábados e domingos, ele faz<br />
o retrato em um final de semana<br />
e entrega no seguinte. Todo o ma-<br />
NALDO GARANTE QUE COLOCA<br />
EM PRIMEIRO LUGAR O<br />
ATENDIMENTO AO PÚBLICO<br />
terial produzido com sua nova câmera<br />
digital é exposto em álbuns<br />
que carrega para lá e para cá. As<br />
imagens revelam casais, amigos e<br />
ta<strong>mb</strong>ém festeiros solitários. Todos<br />
são só sorrisos.<br />
“É bom para o bolso e bom para<br />
a saúde”, comemora o morador de<br />
Porto Alegre. Por isso, pegar a estrada<br />
todos os finais de semana a<br />
caminho da festa não é problema<br />
nenhum, mesmo que o número de<br />
“modelos” tenha diminuído nos últimos<br />
anos, em função das câmeras<br />
no celular, considera Fagundes.<br />
Só quem não acha esse passatempo<br />
tão bom assim é a sua esposa,<br />
Idalva. O aposentado conta que ela<br />
não gosta muito do hobby que lhe<br />
rende uns extras. “Fazer o quê?”<br />
o dono dA festA<br />
A festa no Gigante do Vale só<br />
começa com a autorização de Reginaldo<br />
Vitorino da Rosa ou Naldo,<br />
como é chamado carinhosa e respeitosamente<br />
pelos funcionários e<br />
frequentadores da casa noturna.<br />
Aos 55 anos, ele chega poucos<br />
minutos antes do baile começar<br />
e logo é cercado por seguranças.<br />
Antes de seguir para o escritório,<br />
Naldo ainda recebe o pedido de<br />
emprego de duas moças. A<strong>mb</strong>as<br />
gostariam de uma oportunidade<br />
para trabalhar na copa. O administrador<br />
pensa por alguns minutos,<br />
avalia a situação e, no seu estilo<br />
UM TROUXE O<br />
OUTRO, E AGORA<br />
OS IRMãOS<br />
CÁSSIO E MATEUS<br />
SãO PRESENÇAS<br />
CONFIRMADAS<br />
NAS FESTAS DE<br />
SEXTA-FEIRA<br />
boa praça, aceita que as meninas<br />
façam um teste naquela mesma<br />
noite. Em seguida, as duas já estão<br />
ajudando a ajeitar garrafas nos<br />
refrigeradores e limpando o balcão<br />
à espera do público.<br />
Há 23 anos, Naldo administra o<br />
clube de dança junto com o sogro,<br />
Dezidério Luiz Brusda, e o cunhado,<br />
Luiz Carlos Brusda. A posição<br />
de gerente veio a convite do pai de<br />
sua esposa, um dos fundadores do<br />
local. Seu escritório fica instalado<br />
em uma modesta sala aos fundos<br />
do salão, praticamente escondido<br />
atrás do palco principal. É dali, em<br />
meio a papéis e em frente a uma<br />
fotografia com a vista aérea do Gigante<br />
do Vale, devidamente emoldurada,<br />
que ele toma as decisões e<br />
faz os negócios necessários para o<br />
andamento do clube.<br />
Com os três no comando, a casa<br />
está sempre lotada, de sexta-feira<br />
a domingo. “Fazemos reformas<br />
para acompanhar o que o público<br />
gosta”, afirma Naldo. Diz que<br />
o trabalho de sua equipe e o desempenho<br />
das bandas que se apresentam<br />
contribuíram para que o<br />
local tenha chegado ao ponto que<br />
chegou. “Aqui vem desde o grupo<br />
Fama até o Tchê Barbaridade. Mas<br />
os que mais lotam são San Marino,<br />
Toque de Mágica e Passarela”, comenta<br />
Naldo.<br />
Como bom empresário, ele acredita<br />
que a fórmula para fidelização<br />
68 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
dos seus clientes é andar junto com<br />
eles, acompanhar suas modificações,<br />
seus gostos, comportamentos,<br />
ir se modernizando e atendendo<br />
a todos como merecem.<br />
Enquanto Naldo fica na retaguarda,<br />
atento à movimentação,<br />
a festa segue no clube, cada vez<br />
mais cheio. O público não para de<br />
chegar ao longo da madrugada, e a<br />
banda leva todos para o centro do<br />
salão. Alguns casais fazem da pista<br />
o seu palco. Com técnica, habilidade<br />
e coreografias que parecem<br />
ter sido ensaiadas em casa. Dão<br />
um show à parte.<br />
Mas não ter par e não saber<br />
dançar não significa estar de fora.<br />
Dança-se de qualquer jeito, vale<br />
mulher com mulher, amigo com<br />
amigo e até sozinho. Só não pode<br />
ficar parado. O importante mesmo<br />
é se deixar levar pela música e<br />
curtir a festa até o fim.<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
ecidimos escrever sobre festas às margens da BR-116<br />
“De logo entramos em contato com as duas principais<br />
casas noturnas de São Leopoldo instaladas próximo à<br />
rodovia. A primeira nos disse não, mas a segunda aceitou e<br />
nos recebeu muito bem. Era sexta-feira, chegamos ao clube<br />
Gigante do Vale. Logo percebemos que o principal desafio<br />
que encararíamos ao preparar esta reportagem seria deixar os<br />
preconceitos de lado. Nem nós, repórteres, e nem o fotógrafo<br />
que nos acompanhou, conhecíamos o lugar. Tínhamos uma<br />
imagem pré-concebida do local, construída apenas em cima de<br />
comentários alheios. Algumas expectativas foram confirmadas<br />
e tantas outras derrubadas. Nos surpreendemos com pessoas<br />
completamente diferentes de nós. De certa forma, conhecemos<br />
um outro mundo, onde valores, sonhos, vidas são tão<br />
diferentes e tão iguais às nossas. A grande lição que tivemos<br />
ao escrever sobre um lugar que não conhecíamos foi a de<br />
que ser ‘filho da pauta’ é absolutamente sem graça. Se<br />
tivéssemos seguido exatamente aquilo que nos propomos<br />
logo no início do semestre, não teríamos encontrado os<br />
personagens fantásticos que encontramos e ta<strong>mb</strong>ém não<br />
teríamos nos divertido, mesmo concentradas na coleta de<br />
informações, como nos divertimos.”<br />
HÁ 32 ANOS FAGUNDES<br />
REGISTRA OS MELHORES<br />
MOMENTOS DA FESTA
AcEItA UMA PIcAnHA?
A CHURRASCARIA SAPATãO<br />
EXISTE HÁ MAIS DE 50 ANOS,<br />
MAS A ORIGEM DE SEU NOME<br />
é UM MISTéRIO<br />
TEXTO dE LUcIAnO nUnES<br />
FOTOS dE bRUnO bIttEncOURt<br />
Mal o carro estaciona e um homem já vai em<br />
direção aos clientes para recepcioná-los. Em<br />
dias de chuva, o rapaz utiliza um enorme guarda-sol<br />
para conduzir os frequentadores até um<br />
lugar coberto. Dali até a porta de entrada, são necessários<br />
apenas 20 passos. Percorrida a distância, os clientes<br />
encontram-se dentro da Churrascaria Sapatão.<br />
O restaurante existe há mais de 50 anos, sendo que há<br />
sete foi comprado por três novos sócios: Atacir Ferreira,<br />
Rosimeri Ongaratto e Amarildo Mello. Eles não sabem exatamente<br />
a origem do nome Sapatão, mas Amarildo acredita<br />
que o fato da região ser forte na indústria calçadista<br />
possa ter alguma relação. A churrascaria está localizada<br />
no quilômetro 234 da BR-116. Fica ao lado de um movimentado<br />
posto de gasolina, que possui loja de conveniência<br />
e até uma barbearia.<br />
Quando se entra na Sapatão, o espaço interno surpreende.<br />
Por fora não parece, mas o restaurante pode acomodar<br />
até 330 pessoas. Com volume baixo, uma música<br />
alegra o a<strong>mb</strong>iente em alguns momentos. Pelas caixas de<br />
som, ouve-se desde temas tradicionalistas até musicas<br />
sertanejas. Em dias de semana, durante o almoço, as três<br />
televisões espalhadas pelo local ficam passando noticiários<br />
locais e esportivos.<br />
Existe uma divisão de lugares dentro da churrascaria,<br />
o que facilita o atendimento. De preferência, clientes que<br />
escolhem se servir somente do bufê se acomodam de um<br />
lado, enquanto os que escolhem espeto corrido sentam-se<br />
em outro lugar. Segundo o garçom Luciano Ongaratto, graças<br />
a esse estratagema, seus colegas não precisam ficar<br />
caminhando muito pelo salão e ta<strong>mb</strong>ém diminui o risco de<br />
servir carnes frias.<br />
O almoço é servido diariamente a partir das 11h15min,<br />
porém o movimento começa mesmo pelo meio dia. O almoço<br />
segue até às 15h. De noite, a janta vai das 19h30min<br />
às 23h30min.<br />
Os garçons e demais funcionários preferem comer<br />
antes de servir a comida. “É melhor assim, senão a gente<br />
acaba servindo a carne de olho nos espetos e nos pratos<br />
dos clientes, com fome não dá para trabalhar”, diz<br />
Ongaratto. Todos os dias, os funcionários comem chur-
è<br />
rasco. “Hoje fiz um franguinho para<br />
mim, é bom dar uma variada, mas<br />
não me importo em comer churrasco<br />
todos os dias.”<br />
Ongaratto é um dos garçons mais<br />
antigos da Sapatão. Está há seis anos<br />
na empresa. Ele responde pela área<br />
do bufê e se alegra quando a casa está<br />
lotada. “É muito bom poder interagir<br />
com as pessoas”, diz.<br />
O pai e a mãe de Ongaratto trabalhavam<br />
em uma churrascaria quando<br />
ele era pequeno. “A profissão está no<br />
meu sangue. Meu pai era assador e<br />
minha mãe servia, enquanto isso eu e<br />
meu irmão ficávamos dormindo no escritório”,<br />
le<strong>mb</strong>ra. Depois, seu pai comprou<br />
um restaurante, e ele e o irmão<br />
começaram a servir desde cedo. “Em<br />
duas oportunidades trabalhei em São<br />
Paulo, como garçom ta<strong>mb</strong>ém. Voltei<br />
ao Rio Grande do Sul e tentei trabalhar<br />
com meu sogro em uma mercearia,<br />
mas não deu certo. Daí comecei aqui<br />
na Sapatão, onde estou até hoje.”<br />
Ongaratto trabalha o dia inteiro na<br />
churrascaria, pois precisa juntar dinheiro<br />
para arrumar seu carro. Folga<br />
apenas às segundas-feiras, dia que a<br />
churrascaria não abre. O garçom gosta<br />
muito de conversar e fazer brincadeiras<br />
com os clientes. “Ainda ontem<br />
havia um corintiano aqui. Ele começou<br />
a pegar no meu pé por causa do<br />
Grêmio. Depois eu le<strong>mb</strong>rei que eles<br />
não possuem nem mesmo um estádio<br />
próprio”, recorda, dando risada.<br />
nos bAstidores<br />
Nos bastidores, assim como durante<br />
o serviço, os garçons demonstram<br />
muito bom humor, entre eles e ta<strong>mb</strong>ém<br />
com os clientes. Internamente,<br />
piadas, gozações e apelidos fazem<br />
parte do dia a dia. Uns revelam os<br />
apelidos dos outros. Luciano Ongaratto<br />
é conhecido como NH, pois, segundo<br />
os colegas, ele, assim como o<br />
jornal NH, sempre tem informações<br />
para dividir com os amigos. Só que as<br />
dele, dizem, na maioria das vezes são<br />
irrelevantes.<br />
Ongaratto prefere se apresentar de<br />
outra maneira: “Pode colocar aí que<br />
estou solteiro, sou gremista e procuro<br />
uma namorada de 18 a 25 anos, de preferência<br />
morena, e, se não for abusar,<br />
que a mãe dela já esteja morta. Odeio<br />
a ideia de ter uma sogra”, brinca.<br />
Alexssandro da Silva Pinheiro<br />
ta<strong>mb</strong>ém é um dos garçons mais antigos,<br />
mas não possui apelido, como<br />
Adriano Fecco. Adair Vieira é o Chocolote.<br />
Isaias dos Santos tem o apelido<br />
de Paulista. Eloir Jesus da Silva<br />
é o Mixaria. A lista continua com Eliseu<br />
Sampaio dos Santos, conhecido<br />
como Tatu; Joel Oliveiro, chamado de<br />
Mostarda; e Erasmo Isaias de Senna,<br />
conhecido como Ligeirinho. Os dois<br />
assadores são Milton Graf e Arsenio<br />
Renner. O apelido de Arsenio é muito<br />
engraçado, mas impublicável.<br />
O resultado de tanta irreverência<br />
por parte dos atendentes reflete-se<br />
72 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
diretamente nos clientes. Para a frequentadora<br />
Vera Lúcia da Silva, que<br />
trabalha perto do restaurante e vai na<br />
Sapatão diariamente há mais de cinco<br />
anos, o atendimento é fantástico.<br />
“Adoro a comida e o atendimento.<br />
Infelizmente não posso mais almoçar<br />
com toda a família em dias de semana,<br />
e o clima aqui, de uma certa<br />
maneira, acaba preenchendo este<br />
vazio para mim. O cardápio variado e<br />
o tempero único ta<strong>mb</strong>ém ajudam na<br />
escolha da churrascaria”, elogia.<br />
Cabe a cada garçom, se necessário,<br />
salgar a carne e recolocá–la no<br />
fogo. O chão escorregadio, em frente<br />
da churrasqueira, já proporcionou cenas<br />
engraçadas. “Uma vez um garçom<br />
caiu na frente da churrasqueira. Eu<br />
não sabia o que fazer, se ria ou ajudava.<br />
O to<strong>mb</strong>o foi bonito de ver. Daí fui<br />
ajudar e não é que eu acabei caindo<br />
ta<strong>mb</strong>ém! Por sorte, ninguém se machucou<br />
e logo voltamos a trabalhar”,<br />
le<strong>mb</strong>ra Ongaratto.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 73<br />
O RESTAURANTE<br />
ACOMODA ATé<br />
330 PESSOAS E<br />
OFERECE, ALéM<br />
DA COMIDA, O<br />
BOM HUMOR<br />
DOS GARÇONS<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
uitas vezes, ao pararmos para comer em um lugar,<br />
“Mpensamos na agilidade do atendimento. Raramente<br />
percebemos a importância do árduo trabalho de pessoas que<br />
se esforçam muito para oferecer, além de uma boa comida,<br />
um atendimento diferenciado. No dia em que observei a<br />
Churrascaria Sapatão, o empenho por parte dos garçons em<br />
servir bem os clientes era notório. Enquanto havia clientes<br />
dentro do salão, eles se esforçavam muito para satisfazê-los<br />
da melhor maneira. O entrosamento entre todos os setores<br />
do restaurante é fundamental. Presenciei o serviço deles<br />
por quase seis horas. Mesmo sendo um lugar sério, o clima<br />
muito descontraído entre os funcionários acaba ajudando<br />
no atendimento. Eu me senti muito a vontade no lugar,<br />
todos me trataram muito bem. Por estar com um fotógrafo<br />
durante um determinado tempo, era engraçado ver os garçons<br />
fazendo pose com espetos de carnes nas mãos. A experiência<br />
certamente foi muito válida, pois valeu para mostrar os<br />
bastidores de um grande restaurante.”
ATENÇÃO ANDRÉ áVILA
è<br />
dE dEntRO dA cAb<br />
76 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong>
InE<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong> | 77<br />
PARA QUEM ATRAVESSA O PAÍS<br />
ACOMPANHADO APENAS POR LEMBRANÇAS,<br />
A VIDA NA ESTRADA é MUITO MAIS QUE<br />
PASSAGEM – é CONSTRUÇãO
“Esse é o meu cantinho.<br />
É a minha casa.”<br />
É<br />
recomendável tirar os sapatos<br />
para entrar. O carpete<br />
vermelho mantém a mesma<br />
aparência de quando passou<br />
a revestir o espaço de 2,<strong>10</strong>m por<br />
1,70m. Os bancos, de estofado preto<br />
confortável, transformam-se em<br />
cama tão logo seja preciso descansar<br />
durante mais uma travessia pela<br />
BR-116. À direita, dependurado no<br />
para-brisa, um apanhado de amuletos:<br />
fitas do Senhor do Bonfim, pés<br />
TEXTO dE dAnIELA FAntI E LÍLIAn StEIn | FOTOS dE RAMIRO FURQUIM<br />
de coelho, um escapulário. Crenças<br />
de quem vê a vida passar pelo asfalto.<br />
Ao centro, a foto de uma mulher<br />
de 28 anos, abraçada a uma menina<br />
de pouco mais de quatro, reacende o<br />
desejo e a espera pelo retorno. Tudo<br />
é diferente para quem sente a vida<br />
passar de dentro da cabine.<br />
O sol quente de um típico domingo<br />
de outono ilumina a carroceria<br />
do caminhão da empresa de transportes<br />
de Garibaldi. Perto das 13h,<br />
mala feita, chega a hora de partir. O<br />
“cebolão”, como é chamada a carreta<br />
específica para o transporte de<br />
cimento, está vazio, mas a ida até<br />
o Paraná vai garantir, já no dia se-<br />
guinte, a volta com o veículo completamente<br />
carregado – mais de 31<br />
toneladas da matéria-prima estarão<br />
sob responsabilidade do motorista. A<br />
previsão é pegar a BR-116 em Caxias<br />
do Sul, seguindo pelo caminho que<br />
leva a Vacaria, na divisa com Santa<br />
Catarina. A chegada a Curitiba ainda<br />
no domingo à noite assegura a volta<br />
para casa na segunda-feira. Ao longe,<br />
o horizonte escuro, prenúncio de<br />
forte temporal, não parece assustar:<br />
“Já passei por coisa muito pior.”<br />
É diferente a vida de quem vê<br />
a BR-116 de dentro da cabine. Luiz<br />
Aurélio Chesini dirigiu um caminhão<br />
pela primeira vez aos 16 anos.<br />
78 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
A curiosidade era aguçada pelo avô,<br />
que havia anos e<strong>mb</strong>arcava em longas<br />
viagens pelas estradas brasileiras. O<br />
neto, aos 18, logo depois de conquistar<br />
a licença para dirigir, começou a<br />
prestar serviços de entrega.<br />
A cabine que o leva a tantos lugares<br />
pelo Brasil é a mesma que guarda<br />
uma imensidão de histórias. As le<strong>mb</strong>ranças<br />
são capazes de transformar<br />
o se<strong>mb</strong>lante do motorista com a mesma<br />
rapidez com que o cenário vai<br />
mudando. Enquanto atravessa serra,<br />
campo e planície, tal qual um baú de<br />
histórias, ele rele<strong>mb</strong>ra as diversas fases<br />
pelas quais passou durante os 20<br />
anos dedicados à estrada.<br />
estrAdA sem limites<br />
Antes mesmo de qualquer pergunta,<br />
despeja algumas de suas piores<br />
le<strong>mb</strong>ranças: “Já estive em meio a tiroteio,<br />
soube de amigos que caíram<br />
em golpe de mães que usavam as filhas,<br />
prostitutas menores de idade,<br />
como isca para denunciar e prender<br />
caminhoneiros. Fiquei dias ilhado pela<br />
chuva, sem ter o que comer, precisei<br />
cumprir prazos que me obrigavam a<br />
colocar minha vida em risco.”<br />
Com a mulher e a filha recém-nascida,<br />
de apenas 20 dias, Luiz presenciou<br />
um assalto a um supermercado<br />
em uma favela de São Paulo. O carregamento<br />
de leite sob sua responsabilidade<br />
chegava ao destino no momento<br />
em que o estabelecimento era saqueado.<br />
“Nesses casos, a sensação de<br />
impotência é gigante. Simplesmente<br />
não havia o que fazer”, recorda. “Em<br />
muitas situações nós simplesmente<br />
não temos opção.” A frase serve como<br />
explicação para o restante do balaio<br />
de más recordações: Luiz presenciou<br />
a prisão de um conhecido que, em um<br />
posto de gasolina, foi abordado por<br />
uma mulher que oferecia a filha me-<br />
POR INFLUÊNCIA<br />
DO AVÔ, CHESINI<br />
TORNOU-SE<br />
CAMINHONEIRO<br />
AOS 18 ANOS<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 79
80 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong>
nor de idade para uma das práticas<br />
mais comuns na vida de muitos dos<br />
que passam meses em longas viagens.<br />
O sexo fácil e barato, dentro<br />
da cabine, ta<strong>mb</strong>ém é atalho para detrás<br />
das grades, tal qual aconteceu<br />
com o amigo do caminhoneiro. “Ele<br />
caiu na conversa. Foi pego com a menina<br />
dentro do caminhão. Está preso<br />
até hoje.” Chesini não sabe o que as<br />
mães ganham com essa prática.<br />
Ter recorrido ao rebite ta<strong>mb</strong>ém<br />
foi resultado da falta de opção.<br />
“Precisava fazer uma entrega no<br />
prazo”, justifica. As anfetaminas<br />
são uma constante na vida de quem<br />
trabalha com prazos bastante limitados.<br />
Estimulantes, se ingeridas<br />
com café garantem que o motorista<br />
dirija por horas a fio ignorando<br />
necessidades biológicas, como sono<br />
e fome. “Cheguei a dirigir 13 horas<br />
sem parar para ir ao banheiro e tomar<br />
água.” O uso do rebite não é<br />
a única prática ilegal à qual grande<br />
parte dos caminhoneiros se sujeita.<br />
Nos postos de gasolina em que costumam<br />
passar a noite, aproveitamse<br />
da pouca fiscalização para fazer<br />
uso explícito de drogas mais potentes.<br />
Luiz já perdeu a conta de quantas<br />
vezes traficantes bateram à sua<br />
porta para oferecer-lhe papelotes<br />
de cocaína: “Nem é preciso sair do<br />
veículo para cair na perdição”.<br />
Outra prática constante dos caminhoneiros<br />
nas noites solitárias na<br />
estrada é a parada em boates e casas<br />
noturnas, onde o consumo de drogas<br />
e bebidas alcoólicas é ainda maior.<br />
Depois das festas, seguem viagem<br />
alcoolizados, sob efeito de entorpecentes<br />
e, sem tempo para descansar,<br />
extrapolam na velocidade para não<br />
perder prazos e, consequentemente,<br />
o emprego. Luiz afirma estar longe<br />
dessa realidade, mas confidencia,<br />
em meio a um sorriso tímido, que<br />
nos anos em que permaneceu solteiro<br />
não conseguiu resistir à tentação.<br />
“Aí eu fiz de tudo”, confessa.<br />
Quem vê a vida passar de dentro<br />
da cabine é obrigado a aceitar as imposições<br />
do asfalto. Para Luiz, a primeira<br />
delas foi o fim do casamento.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 81<br />
A namorada da época de escola, que<br />
havia se tornado esposa tão logo a<br />
gravidez foi descoberta, não aceitava<br />
a constante ausência do marido.<br />
Entre amor e profissão, Luiz optou<br />
pela segunda alternativa. “A gente<br />
sofre muito, mas sempre vale a<br />
pena”, diz.<br />
Rele<strong>mb</strong>rar os piores momentos de<br />
suas passagens pela estrada faz com<br />
que o caminhoneiro fale por diversas<br />
vezes em sofrimento. O tom melancólico,<br />
no entanto, transforma-se<br />
em risada ao avistar um caminhão<br />
vindo em sentido contrário. Enquanto<br />
o companheiro buzina e anda em<br />
ziguezague fazendo uma espécie<br />
de cumprimento, Luiz recorre a um<br />
aparelho de rádio que possibilita a<br />
comunicação entre motoristas a distâncias.<br />
“E aí, Risadinha? Vais para<br />
onde? Que tu faças ótima viagem,<br />
tudo de bom para ti!”. Ao encerrar<br />
a ligação, explica: “Sabe quando eu<br />
digo que vale a pena? É disso que estou<br />
falando.”<br />
Os laços criados no asfalto mostram-se<br />
realmente fortes. Os caminhoneiros<br />
adotam apelidos entre si e<br />
frequentemente seguem viagem juntos.<br />
As histórias de estrada, além de<br />
amizade, são marcadas ta<strong>mb</strong>ém por<br />
outros fins e recomeços. “Foi por<br />
causa de uma mulher que conheci na<br />
beira do asfalto que decidi largar de<br />
novo a vida de solteiro. Me apaixonei<br />
pela neta do dono de uma lancheria.<br />
Um dia ela me convidou para ir a um<br />
baile, e acabamos ficando juntos”,<br />
rele<strong>mb</strong>ra. “Hoje, temos uma filha.<br />
Sempre levo as duas comigo, em uma<br />
foto, na cabine do caminhão. Foram<br />
dois amores que a estrada me deu.”<br />
Luiz Aurélio Chesini si<strong>mb</strong>oliza<br />
apenas um dos milhares de caminhos<br />
traçados na BR-116. Sua trajetória é<br />
uma das tantas marcadas – e construídas<br />
– no asfalto da maior estrada pavimentada<br />
do Brasil. Para quem vive<br />
percorrendo curvas, retas, momentos<br />
e pessoas, cada quilômetro reacende<br />
uma le<strong>mb</strong>rança e cada chegada é<br />
sinônimo de um novo porto seguro.<br />
Coisas de quem sente a vida de dentro<br />
da cabine.<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
ueríamos uma pauta que nos colocasse<br />
“Qdiante de uma situação até então<br />
desconhecida. A escolha do tema “BR-116”<br />
impulsionou o desejo: decidimos partir em<br />
uma viagem de caminhão que nos permitisse<br />
conhecer um pouco mais da rotina de quem<br />
passa grande parte do tempo sobre o asfalto.<br />
No dia 17 de abril, perto das 13h, nos<br />
encontramos com o personagem principal<br />
da tarde. Luiz Aurélio Chesini estava na<br />
sede da empresa de transportes para a qual<br />
trabalha, em Garibaldi. E<strong>mb</strong>arcamos rumo a<br />
uma viagem de pouco mais de três horas, no<br />
trecho entre Garibaldi e Vacaria – cerca de<br />
200 km de BR-116. A dúvida quanto à possível<br />
timidez de Chesini – acostumado à solidão da<br />
cabine – caiu por terra tão logo pegamos a<br />
estrada. Parecíamos grandes amigos. Enquanto<br />
atravessávamos serra e campo, uma porção de<br />
histórias nos mostrava que, muito mais que<br />
perigos da estrada ou rotinas de caminhoneiro,<br />
nossa pauta nos havia colocado em frente<br />
a alguém que construiu a vida a partir de<br />
uma cabine de caminhão. Chesini mostrou<br />
para nós aquilo que, mesmo tão evidente,<br />
fica escondido por detrás do senso comum:<br />
a BR-116 vai muito além do calor do asfalto,<br />
do cinza clichê, do barulho dos carros. Ela é,<br />
antes de tudo, caminho de vida. é caminho de<br />
construção.
EASY RIdERS GAÚ<br />
DONOS DE UM ESTILO highway, OS GUARDIÕES DE HADES<br />
COMPARTILHAM UMA ÚNICA E ADRENALINADA PAIXãO: O ASFALTO<br />
TEXTO dE SIMOnE nÚÑEZ REIS<br />
FOTOS dE GUILHERME bARcELOS
cHOS<br />
“(...) a motocicleta entra nas curvas sem esforço,<br />
inclinando-se de modo que nosso peso exerça força sobre<br />
a máquina, seja qual for o ângulo da inclinação (...).<br />
Curvas e mais curvas e mais curvas fechadas, fazendo<br />
com que o mundo inteiro gire, dê piruetas,<br />
se eleve e caia em seguida (...)”<br />
Le<strong>mb</strong>ro desse trecho do romance Zen<br />
e a arte de manutenção de motocicletas,<br />
escrito por Robert M. Pirsig,<br />
que narra, em estilo poético-literário,<br />
a ótica de um escritor-motociclista que<br />
percorreu a América do Norte levando seu<br />
filho na carona.<br />
Assim como Pirsig, que dividiu com o<br />
filho sua paixão pela velocidade sob duas<br />
rodas, no município de Esteio, o casal de<br />
motociclistas Pedro Oliveira dos Santos e<br />
Cléier Salete Cezarino Severo ta<strong>mb</strong>ém dividia<br />
a mesma paixão e sonhava em criar<br />
um motoclube.<br />
Foi numa noite quente de março de 2004<br />
que o sonho do casal recebeu apoio dos filhos e de<br />
mais cinco amigos motociclistas. Surgia então o Motoclube<br />
Guardiões de Hades. Inspirados em roads movies<br />
norte-americanos, como Easy Rider (1969), eles escolheram<br />
o nome do grupo, o estilo de roupa e o brasão.<br />
Por fim, um estatuto deu início ao motoclube.<br />
O encontro para criar o clube durou cerca de nove<br />
horas na Taverna de Hades — pub localizado em Esteio.<br />
Os integrantes só saíram de lá para procurar um desenhista<br />
profissional que criaria o logotipo para o uniforme<br />
do grupo. Mais tarde, os fundadores do Guardiões<br />
de Hades decidiram abrir sua própria sede nos fundos<br />
da residência de Pedro e Cléier, no bairro Santo Inácio,<br />
em Esteio. Em pouco tempo tornou-se um ponto muito<br />
visitado por aficionados por motociclismo.<br />
Quando entrei na sede dos Hades, parecia que eu<br />
estava ouvindo a trilha sonora Born to be wild, de Steppenwolf,<br />
principalmente quando visualizei um imenso<br />
painel da marca de motocicletas Harley Davison pendurado<br />
na parede.<br />
JAQuet & mythology<br />
Escolhido para batizar o motoclube, o nome Hades<br />
homenageia o deus mitológico grego de segunda geração<br />
– em grego clássico, Άδης; em grego contemporâneo,<br />
Hádēs – que é uma espécie de guardião do mundo<br />
inferior dos mortos. Um croqui rascunhado transformou-se<br />
no brasão bordado nas jaquetas dos Hades, que<br />
elegeram três sí<strong>mb</strong>olos para compô-lo: um cérbero (cão<br />
trícefalo), posicionado sobre o segundo sí<strong>mb</strong>olo, um<br />
motor de dois cilindros em forma de “V”, envolvido por<br />
uma chama de fogo, que é o terceiro sí<strong>mb</strong>olo e representa<br />
a paixão pelas pistas.<br />
Atualmente o motoclube tem 18 integrantes, incluindo<br />
pilotos e caronas, com 11 motocicletas e é fi-
liado à Associação dos Motociclistas<br />
do Rio Grande do Sul (Amors),<br />
instituição que promove eventos<br />
voltados à conscientização e educação<br />
no trânsito. Esse é o caso<br />
da campanha “Zoeira, estou fora”,<br />
evento realizado em várias capitais<br />
brasileiras com o objetivo de reunir<br />
motociclistas para integração saudável<br />
e em clima de segurança das<br />
irmandades motociclísticas.<br />
O motoclube organiza ações solidárias<br />
como a realizada em 2009 no<br />
Hospital da Criança Santo Antônio<br />
em Porto Alegre, voltada a crianças<br />
portadoras de câncer. Na ocasião,<br />
os Hades passearam de moto<br />
levando pacientes com bom quadro<br />
clínico como caronas pelo pátio do<br />
hospital, depois de visitarem os leitos<br />
de quadros mais agudos.<br />
Numa segunda oportunidade, organizaram<br />
um galeto em prol do Asilo<br />
Esperança, de Sapucaia do Sul, onde<br />
arrecadaram a quantia de R$ 2 mil.<br />
Noutra ocasião, em parceria com<br />
o motoclube Tchucos, de Sapucaia<br />
do Sul, apoiaram uma ação natalina<br />
na Vila Palmira, arrecadando brinquedos<br />
e alimentos para crianças e<br />
adolescentes carentes.<br />
br-116 AforA<br />
Militar da reserva, Pedro destaca<br />
a importância do planejamento<br />
prévio antes de criar um roteiro de<br />
viagem. Frequentemente os Hades<br />
circulam pela BR-116, considerada<br />
um portal de belezas naturais a<br />
partir do município de Novo Ha<strong>mb</strong>urgo.<br />
Nos últimos cinco anos, os<br />
integrantes viajaram ao Rio de<br />
Janeiro, Santa Catarina, Uruguai<br />
e Argentina pilotando suas motocicletas,<br />
entrando em contato com<br />
vários motoclubes nacionais e internacionais<br />
e conhecendo inúmeros<br />
eventos motociclísticos.<br />
Um dos locais de encontro é<br />
a Tenda do U<strong>mb</strong>u, considerada o<br />
principal ponto mototurístico do<br />
Estado. A tenda fica localizada no<br />
quilômetro 203 da BR-116, no município<br />
de Picada Café. “É um point<br />
destinado aos motociclistas em fi-<br />
nais de semana que existe há 46<br />
anos. Ali pessoas de vários municípios,<br />
se reúnem para lanchar e<br />
trocar informações sobre o mesmo<br />
assunto: motos”, comenta Pedro.<br />
Segundo os Hades, mototurismo<br />
é uma das modalidades exercidas<br />
no motociclismo. Ela exige um<br />
certo grau de conhecimento sobre<br />
uso de navegadores GPS, roteiros,<br />
mapas, planejamento financeiro,<br />
pesquisa em sites especializados<br />
sobre mototurismo, manutenção<br />
do veículo, primeiros socorros na<br />
estrada e aplicativos móveis como<br />
os Google Maps e Google Street<br />
View, acessados através de smarthphones.<br />
Sobre o vestuário dos motociclistas,<br />
Pedro explica que são confeccionados<br />
em materiais como couro ou<br />
cordura — tecido com textura similar<br />
à lona — que, sob forma de calças e<br />
jaquetas, recebem reforços nas articulações<br />
e aplicações de fluorescências<br />
para visualização noturna.<br />
Pedro destaca que os motociclistas<br />
devem ficar atentos ao<br />
adquirir um capacete com a certificação<br />
do Instituto Nacional de<br />
Metrologia, Normalização e Qualidade<br />
Industrial (Inmetro), que prevê<br />
durabilidade de até três anos.<br />
Quando estão vianjando, os Hades<br />
consomem alimentos energéticos<br />
como chocolates, barrinhas<br />
de cereais, água, chimarrão, que<br />
os deixam mais dispostos e atentos<br />
na estrada. Quanto aos cuidados<br />
com o corpo, não dispensam o uso<br />
de filtro, adesivos analgésicos para<br />
dores musculares e repelentes contra<br />
picadas de insetos que entram<br />
por baixo do capacete.<br />
O Hades Egon Marques recorda<br />
de um episódio em que um Hades<br />
foi atingido por um voo rasante de<br />
coruja em plena BR-116. “Foi tão<br />
forte o impacto do pássaro no capacete<br />
que poderia ter gerado um<br />
acidente”, recorda. Outro episódio<br />
aconteceu com o próprio Egon. “Um<br />
guaxinim se atravessou na frente<br />
da minha moto e eu tive de parar<br />
até o bicho atravessar a pista.”<br />
motoQueiros e motociclistAs<br />
Pedro, ta<strong>mb</strong>ém conhecido com<br />
Amigão Hades, explica que a expressão<br />
“motoqueiro” é usada para mencionar<br />
maus pilotos que andam em altíssima<br />
velocidade, não usam capacete e conduzem<br />
o veículo sem habilitação ou<br />
com licença vencida.<br />
A participação em rachas e arruaças,<br />
prática de manobras arriscadas<br />
como aceleraço, zerinho, wheeling<br />
amador — provas de habilidade em que<br />
o piloto ergue a roda traseira —, tiros<br />
de escapamentos, cavalo-de-pau ou andar<br />
deitado sobre a moto (aviãozinho),<br />
são o que há de pior quando se trata do<br />
comportamento dos condutores.<br />
Por outro lado, a expressão motociclista<br />
designa o piloto que respeita o<br />
código de trânsito, a vida humana, a<br />
vida dos animais e o meio a<strong>mb</strong>iente.<br />
Uma das competições mais importantes<br />
é o Iron Button. A tradução<br />
literal da expressão é “bunda de ferro”.<br />
A competição surgiu nos Estados<br />
Unidos e virou febre no Brasil, com<br />
motociclistas que percorrem 1.000<br />
84 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
milhas em 24 horas. Os Guardiões de<br />
Hades participaram da prova em 20<strong>10</strong>,<br />
sem atingir pontuação suficiente segundo<br />
as normas da Iron Butt Association<br />
(IBA). Tentaram percorrer seis<br />
estados pela BR-116, mas um acidente<br />
nas imediações da Rodovia Ayrton<br />
Senna impediu que continuassem.<br />
cut interView<br />
Ao desligar o gravador, recebo um<br />
convite para ir até o quilômetro 230 da<br />
BR-116 e lanchar na Tenda do U<strong>mb</strong>u. O<br />
local me surpreendeu, e naquele instante<br />
novamente recordei Pirsig:<br />
“(...) Esta estrada continua descendo,<br />
coleante, através do desfiladeiro.<br />
O sol matinal matiza a paisagem ao<br />
nosso redor. A motocicleta zune, através<br />
do ar frio e dos pinheiros da montanha<br />
(...). Diminuímos a velocidade,<br />
fazemos a conversão e seguimos uma<br />
estrada de terra (...). Estacionamos a<br />
moto sob uma das árvores, desligamos<br />
o motor, fechamos a gasolina (...).”<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 85<br />
MOTOCICLETAS<br />
OSTENTAM COM<br />
ORGULHO ADESIVO DOS<br />
GUARDIÕES DE HADES<br />
pegue cAronA<br />
O motoclube gerencia duas comunidades<br />
na rede social Orkut, a<strong>mb</strong>as lotadas de<br />
recados quando o assunto é modelos de<br />
motocicletas. Respondendo os internautas,<br />
os integrantes dos Guardiões de Hades<br />
dizem preferir as de estilo Custom,<br />
ta<strong>mb</strong>ém conhecidas como Estradeiras<br />
Esportivas, ou Big Traillers, das marcas<br />
Kasinski, Suzuki, Yamaha e Honda, que<br />
chegam a atingir potências de 250 a 1.000<br />
cilindradas. Interessados em contatar o<br />
motoclube podem fazê-lo através do e-mail<br />
guardioesdehades@pop.com.br ou pelos<br />
telefones (51) 8144- 8462 ou (51) 3459-4175.<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
arecia tudo tranquilo durante os primeiros<br />
“Pencontros da turma, quando sugerimos temas até<br />
elegermos a BR-116. Comecei a apurar uma deteminada<br />
pauta, não deu certo e acabei mudando. Encontrei uma<br />
colega motociclista integrante de um motoclube de<br />
Esteio. Ainda estava estressada e em dúvida sobre<br />
a pauta. Após devorar uma barrona de chocolate e<br />
trocar ideias com os professores, recebi a indicação da<br />
leitura de um romance de Robert M. Pirsig, um autor<br />
norte-americano, para que eu fosse entrando no clima<br />
da nova matéria. Isso foi decisivo. Acompanhada<br />
de uma colega da disciplina de fotografia, cheguei<br />
até o motoclube, onde fui hiperbem recebida. Na<br />
sede do Motoclube Guardiões de Hades, tudo deu<br />
certo. Após desligar o gravador, tive a certeza que<br />
poderia emitir um Ômmmm, aliviada. Minha primeira<br />
impressão aconteceu em meio a um tsunami<br />
chamado TPM, misturada com um pouco de azar. Foi<br />
uma Primeira Impressão literalmente kármica... Só<br />
me resta desejar Amém, Shalom, Saravá!”
À ESPERA dO<br />
tRAbALHO<br />
PROFISSIONAL EM VIAS DE EXTINÇãO, O CHAPA<br />
é CONTRATADO ÀS MARGENS DA RODOVIA PARA<br />
AUXILIAR O CAMINHONEIRO NA ENTREGA DA CARGA<br />
TEXTO dE dAnIELA VILLAR E PAOLA MAdEIRA<br />
FOTOS dE cEcÍLIA MEdEIROS
Manhã fria com transito agitado, crianças tentando<br />
atravessar a BR-116 para chegarem até<br />
a escola, homens parados conversando entusiasmados<br />
ao lado do de um posto de gasolina.<br />
Esse é o cenário encontrado em diversos trechos dessa<br />
movimentada rodovia. Januário Oliveira, 54 anos, é um<br />
dos trabalhadores que se aventuram todos os dias em um<br />
dos trechos mais tumultuados da cidade de São Leopoldo.<br />
Casado e pai de oito filhos, conta que acordar às 5h da<br />
manhã não é mais novidade, já faz 20 anos que ele trabalha<br />
como chapa.<br />
Chapa é sinônimo de camarada, amigo, mano e, como<br />
neste caso, ajudante. São profissionais que auxiliam os<br />
caminhoneiros a se locomoverem em uma cidade des-<br />
conhecida. E principalmente a carregar e descarregar a<br />
carga que o caminhão leva. Esses trabalhadores são facilmente<br />
identificáveis por quem interessa: os caminhoneiros.<br />
Placas escritas à mão com a palavra “chapa” são<br />
a porta de entrada para o motorista de caminhão pisar<br />
no freio. E como se estivesse em um supermercado, o<br />
caminhoneiro escolhe a sua mercadoria. Não se engane<br />
pensando que os mais jovens são a prioridade. Nessa profissão<br />
é preferível optar por homens que pareçam mais<br />
experientes do que moços fortes que podem se revelar<br />
ociosos durante o trabalho.<br />
Há quem diga que pode ser perigoso convidar um homem<br />
para entrar em seu caminhão, alguém que o motorista<br />
não conhece e que é forte. No entanto, isto não é
problema nem para os chapas, nem para os caminhoneiros.<br />
Juarez Maciel, 72 anos, conta que passou 40 anos<br />
como caminhoneiro e que nunca teve problemas com os<br />
chapas: “Eles estão ali para ajudar”, enfatiza. “É mais<br />
fácil o chapa entrar numa de pegar uma carga roubada<br />
para descarregar”, conta Januário, explicando os perigos<br />
que existem na profissão. Apenas um dos oito filhos de<br />
Januário optou por seguir a mesma profissão do pai. Marciário,<br />
de 18 anos, que já trabalha há três como chapa.<br />
Pai e filho têm clientes fixos. Hoje é mais fácil o caminhoneiro<br />
encontrar um bom chapa, pegar o numero de<br />
celular e, sempre que precisar do serviço naquele ponto<br />
do mapa, ligar antes e agendar.<br />
Januário é facilmente encontrado ao lado do Posto<br />
Ipiranga na divisa entre São Leopoldo e Novo Ha<strong>mb</strong>urgo.<br />
E assim como ele, é possível ta<strong>mb</strong>ém encontrar, diariamente,<br />
pelo menos <strong>10</strong> chapas fixos neste local. Ele repara<br />
a hora “São 6h45min faltam 15 minutos para o horário<br />
co<strong>mb</strong>inado”. O encontro será com Machado, o cliente<br />
que virou amigo e, que sempre que tem carga na cidade<br />
liga e agenda com Januário o serviço. Dessa vez o chapa<br />
vai descarregar bobinas de ferro em Estância Velha, o valor<br />
pelo serviço é R$ 130. “Hoje ganho uns trocos a mais<br />
porque é pesado o negócio”, conta Januário. A diária de<br />
um chapa varia. João Francisco Lima, 59 anos, conta que<br />
na BR-116 uma saída custa R$80,00. Nesse valor, está incluído<br />
auxílio o motorista a chegar a seu destino e descarregar<br />
o caminhão. Se o que o caminhoneiro precisa é<br />
apenas um auxilio para chegar ao local, o custo cai para<br />
R$ 30. “Mas aí não vale a pena, a gente tem que voltar<br />
de ônibus”, explica João.<br />
Januário e Francisco aguardam um tanto quanto desanimados<br />
pelo futuro de sua profissão, afinal o trabalho<br />
como chapa está cada vez mais escasso. Percebe-se<br />
que esse serviço está perdendo o seu lugar para uma<br />
nova configuração nos modelos de prestação de movimentação<br />
de carga. Titulo que rendeu o nome para<br />
a profissão: movimentadores de carga. Hoje já existe<br />
uma regulamentação e o serviço é oferecido dentro de<br />
associações e cooperativas. Algumas, entretanto, um<br />
tanto duvidosas, é preciso ficar atento às promessas<br />
de 13º, indenizações e aposentadoria. Afinal, mesmo<br />
legalizado, este profissional estará atuando como autônomo,<br />
com a diferença de fazer parte de uma cooperativa<br />
ou associação.<br />
Ao se tornar sócio ou cooperativado, quem passa a<br />
agenciar a contratação é a cooperativa que cobrará um<br />
valor em cima do serviço prestado pelo movimentador de<br />
carga. Em uma cooperativa na cidade de São Leopoldo a<br />
diária do movimentador é de R$ 33, esse é o valor pago<br />
ao profissional, a vantagem encontra-se no fato de que,<br />
se a cooperativa fizer bem o seu trabalho, o movimentador<br />
estará contribuindo para o INSS e poderá garantir<br />
a sua aposentadoria. No entanto, a realidade afasta os<br />
chapas da legalidade. Não há como prover uma família<br />
com R$ 33 diários sabendo que é só andar algumas quadras,<br />
para aguardar os caminhoneiros que estão dispostos<br />
a pagar até R$ 130 por trabalho.<br />
As associações e cooperativas possibilitaram a inserção<br />
de mulheres neste mercado de trabalho. Outrora<br />
era inimaginável uma mulher querendo trabalhar como<br />
chapa. No entanto, hoje, a empresa que precisa do movimentador<br />
de carga solicita diretamente à associação<br />
ou cooperativa que encaminhe a pessoa com o perfil desejado.<br />
As mulheres têm se mostrado tão capazes quanto<br />
os homens na hora de pegar no pesado e algumas empresas<br />
já preferem o trabalho das meninas ao dos rapazes.<br />
Contudo, será muito difícil ver uma mulher na beira da<br />
BR-116 procurando trabalho como chapa.<br />
As inoVAÇões tecnológicAs<br />
Um dos principais inimigos dos chapas é a tecnologia.<br />
Com a popularização do GPS (sistema de posicionamento<br />
global), os caminhoneiros passaram a utilizar o aparelho,<br />
reduzindo a necessidade de alguém que lhe mostre<br />
como chegar a determinado local. Outro fator que induz<br />
os chapas a crer que a profissão está em risco é o fato<br />
das empresas adotarem como forma de trabalho as empilhadeiras<br />
e os paletes. O palete é uma tábua de ma-<br />
88 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
deira, estrategicamente posicionada em baixo da carga.<br />
Assim a empilhadeira é encaixada nos paletes e não é<br />
preciso nenhum tipo de força humana para descarregar<br />
a mercadoria. “Eu acho que a profissão vai durar mais<br />
uns três, quatro anos” afirma João Francisco. Januário<br />
discorda. “Acho que só vai reduzir o trabalho.”<br />
O chapa é mais um representante do vasto mercado<br />
de trabalho informal que ainda existe no Brasil, um<br />
prestador de serviços, um freelancer. Não tem carteira<br />
assinada, não paga INSS, não tem direito a aposentadoria,<br />
e em caso de acidente, terá que ficar em casa,<br />
sem trabalhar e sem receber. È o risco que esses pais de<br />
família têm corrido dia após dia. Enfrentar o mercado<br />
clandestino de trabalho, não precisar declarar ganhos,<br />
não pagar aposentadoria. Tudo para ter um poucos reais<br />
a mais mensais. Os chapas vão continuar trabalhando<br />
em um a<strong>mb</strong>iente fragilizado e perigoso, além de disputar<br />
espaço com as novas tecnologias. Entrar para o mercado<br />
legal de trabalho representaria um custo muito alto no<br />
orçamento desses profissionais que já possuem ganhos<br />
tão baixos.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 89<br />
ANÚNCIOS PINTADOS<br />
A MãO OFERECEM<br />
MãO-DE-OBRA<br />
PARA DESCARREGAR<br />
CAMINHÕES<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
escolha da pauta foi influenciada por nossa infância.<br />
“A Somos duas estudantes de jornalismo que contaram<br />
com caminhoneiros dentro da família. Ver uma pessoa querida<br />
ir e vir durante toda a vida nos remetia a correr o mundo<br />
sem rumo. Um pouco de Jack Kerouac com uma forte pitada<br />
de responsabilidade. A ideia seria ver como se comportam<br />
aquelas pessoas que ajudam os caminhoneiros. Queríamos<br />
saber como se sustentavam os chapas e suas famílias. E se<br />
vale à pena madrugar e passar horas a fio na beira de uma<br />
estrada, esperando que alguém precise de ajuda. No dia em<br />
que fomos encontrar os “nossos chapas”, passamos frio e<br />
sentimos o gosto amargo do café ruim de beira de estrada.<br />
Não conseguimos acompanha-los em um dos seus trabalhos,<br />
nem conseguimos sentir o peso de puxar uma pilha de caixas<br />
de dentro de um caminhão. Como jornalistas, conseguimos<br />
captar a dura vida que eles levam e transparecer isso em um<br />
texto. No entanto, para nós, o mais importante foi enxergar a<br />
simplicidade na qual eles vivem e, vivenciar um pouco daquilo<br />
que sempre ouvíamos falar em nossa infância.“
è<br />
TEkOá PORÃ<br />
TEXTO DE SÍLVIA DALMAS E VANESSA RAMOS | FOTOS DE EDER ZUCOLOTTO<br />
90 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
AtuAlmente, 35 fAmíliAs vivem nA AldeiA<br />
locAlizAdA nA cidAde de BArrA do riBeiro.<br />
suA principAl fonte de rendA vem do<br />
ArtesAnAto comerciAlizAdo nA Br<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 91<br />
Balaios e cestas pendurados<br />
nas tendas próximas à BR-<br />
116 nos sinalizam o caminho<br />
para o destino de nossa reportagem.<br />
A três quilômetros da rodovia,<br />
no quilômetro 335, encontramos<br />
uma escola, um pequeno posto<br />
de saúde e diversas moradias simples.<br />
Ao longo da estrada de chão<br />
batido, as crianças guaranis acenam<br />
alegres para os visitantes que entram<br />
em seu território, mesmo sem<br />
saber quem realmente são.<br />
Com apenas 27 anos, Arnildo<br />
Vera Moreira é o cacique da aldeia<br />
Tekoá Porá de Barra do Ribeiro. Em<br />
um primeiro contato, mostrou-se<br />
receoso em conceder a entrevista<br />
e, após uma rápida explicação sobre<br />
nosso trabalho, partimos dali, para<br />
que ele pudesse conversar com os<br />
índios mais velhos, os conselheiros<br />
da aldeia, e avaliar se era seguro<br />
ou não repassar informações. Após<br />
duas horas e meia, regressamos ao<br />
local: “Olhando nos olhos das pessoas,<br />
a gente já sabe se é do bem<br />
ou não”, diz o cacique, afirmando<br />
que iria colaborar com a equipe de<br />
reportagem.<br />
Depois de algumas apresentações<br />
para nos conhecermos melhor, Arnildo<br />
nos ofereceu um tronco de árvore<br />
na so<strong>mb</strong>ra para nos acomodarmos<br />
e ouvirmos a história da aldeia, enquanto<br />
os conselheiros apenas o observavam.<br />
Ali compreendemos que<br />
esse lado mais fechado é uma forma<br />
de proteção, já que cabe a ele<br />
a responsabilidade de zelar pelas 35<br />
famílias que vivem na região, totalizando<br />
cerca de 200 pessoas.<br />
O cOmeçO<br />
Conviver durante 24 horas por<br />
dia com um trânsito intenso, barulhento<br />
e perigoso, sem água e saneamento<br />
básico, era a maior dificuldade<br />
das famílias indígenas que<br />
moravam próximas à BR. Depois de<br />
perder suas terras em questões judiciais<br />
e sem ter lugar para construir<br />
suas moradias, os guaranis não tiveram<br />
outra opção a não ser ficar no<br />
“espaço que sobrou”.<br />
Como se a vida já não estivesse<br />
bastante complicada dessa maneira,
o jovem<br />
cAcique<br />
Arnildo contA<br />
A históriA dA<br />
AldeiA Ao lAdo<br />
do experiente<br />
conselheiro<br />
Artur<br />
por volta do ano 2000, as famílias<br />
começaram a sofrer muita pressão<br />
para que se retirassem do local e<br />
fossem para o Amazonas. “O que o<br />
governo não entende é que a gente<br />
já era dessa região. Lugar de índio<br />
é em todo lugar, não só no Amazonas”,<br />
defende o cacique. Esses fatos<br />
foram os principais motivos que os<br />
levaram a se mudar dali.<br />
Foi a partir desse momento que<br />
os irmãos guaranis Artur, 48 anos,<br />
e Ricardo Souza, 43, começaram a<br />
batalhar por um espaço digno e de<br />
qualidade para poderem ter uma<br />
vida de paz e sossego, pensando na<br />
necessidade de todos.<br />
“O sonho”, como eles chamam,<br />
estava perto dali, em uma fazenda<br />
de 12 hectares, localizada em<br />
Barra do Ribeiro. Depois de várias<br />
negociações intermediadas pelo<br />
governo federal, o fazendeiro que<br />
ocupava as terras concordou em<br />
cedê-las para sete famílias, para<br />
que pudessem começar a construir<br />
um futuro melhor.<br />
Assim, em meados de 2001, a<br />
pequena comunidade começava a<br />
se formar. A aldeia faz jus ao nome<br />
com o qual foi batizada: Tekoá Porã,<br />
que na língua tupi significa “terra<br />
bonita”, é considerada um exemplo<br />
para as outras tribos.<br />
Segundo o cacique, o que contribui<br />
para isso é o fato de que eles<br />
mesmos escolheram o local, em vez<br />
de serem obrigados a se alojar em<br />
qualquer pedaço de terra. A boa<br />
convivência que eles mantém com<br />
os brancos e outras aldeias próximas<br />
dali ta<strong>mb</strong>ém ajuda para esse<br />
destaque. “Às vezes colocam índio<br />
em solo que não dá para produzir,<br />
aí não adianta, aqui a terra<br />
é boa porque foi nossa gente que<br />
escolheu, é um exemplo de aldeia<br />
e tem espaço para criar os filhos,<br />
pois construímos conforme a nossa<br />
ideia”, diz Arnildo.<br />
Estrada de chão batido e um amplo<br />
espaço para as crianças brincarem<br />
com cachorros, gatos e galinhas<br />
soltos pelo local. Esses são os sinais<br />
da tranquilidade que a tribo conquistou<br />
ao longo desses 11 anos.<br />
A casa que o fazendeiro ocupava<br />
tornou-se a escola da comunidade e<br />
marcou o início da nova vida que os<br />
indígenas passaram a ter. É lá que,<br />
aos cinco anos, as crianças aprendem<br />
a falar o português, para poder<br />
entender os dois mundos nos quais<br />
convivem. Dois professores índios<br />
ensinam as matérias de religião,<br />
educação física, artes e língua guarani,<br />
as demais são repassadas por<br />
um professor branco.<br />
Apesar de não exibirem a mesma<br />
vestimenta que os índios nativos, a<br />
calça jeans e os sapatos não escondem<br />
o orgulho e a vontade de preservar<br />
a cultura de seus antepassados.<br />
Por isso, os guaranis evitam ao<br />
máximo fazer uso de artefatos modernos<br />
como celular e, até mesmo,<br />
energia elétrica.<br />
O principal sustento dos índios<br />
vem do artesanato e das plantações<br />
e, nesse ponto, a BR-116 ainda é fundamental<br />
na vida das famílias. Eles<br />
produzem seus objetos na aldeia e<br />
se deslocam até a beira da estrada,<br />
todos os dias, para vendê-los:<br />
“A caminhada até lá, se eu vou com<br />
calma, olhando a paisagem, demora<br />
mais ou menos uma hora”, calcula<br />
o líder. A rodovia, que antes era um<br />
local perigoso para morar, agora é<br />
fundamental para a renda da tribo,<br />
pois é graças a ela que conseguem<br />
vender seus produtos. “A estrada<br />
nunca traz coisas ruins, só depende<br />
de saber usá-la. Se não tivéssemos<br />
ela, teríamos que mendigar até o<br />
centro das cidades, como muitos índios<br />
fazem”, diz Arnildo.<br />
Há pouco tempo, a tribo construiu<br />
uma casa de artesanato na<br />
beira da BR, onde as famílias passarão<br />
a vender seus produtos em<br />
vez de comercializá-los nas tendas.<br />
Porém, eles aguardam a duplicação<br />
da rodovia para começar as atividades<br />
por lá.<br />
O preconceito que ainda existe<br />
contra os indígenas parte de quem<br />
não conhece a sua realidade e sua<br />
cultura: “Às vezes as pessoas pensam<br />
que índio que vende artesanato<br />
é vagabundo, mas nosso trabalho é<br />
esse, não é nosso papel trabalhar<br />
em fábrica, é conhecimento do índio<br />
trabalhar na agricultura e com<br />
artesanato, porque a gente não faz<br />
isso pensando em comprar carro, só<br />
faz pensando no alimento para os filhos”,<br />
argumenta Arnildo.<br />
Como eles nos explicam, aprender<br />
o português é necessidade, pois<br />
é a forma que encontram para poder<br />
lutar por seus direitos: “É muito importante<br />
conhecer a escrita, antes<br />
índio não sabia se defender no papel<br />
e foi assim que acabou ficando sem<br />
terra para viver e morando onde<br />
ninguém incomodaria. Antes se lutava<br />
contra escravidão, e agora a luta<br />
é por terra”.<br />
Apesar de terem vencido grandes<br />
batalhas, a tribo ainda enfrenta<br />
muitos problemas, como falta<br />
92 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
de atendimento e incentivo do governo.<br />
“Não é só dar as terras, tem<br />
muita coisa que poderiam fazer pela<br />
gente, e precisamos dessa ajuda.<br />
Se fosse como antigamente, a gente<br />
não precisaria de branco, mas,<br />
como é proibido caçar, temos que<br />
entrar nas leis deles, porque nosso<br />
jeito de viver muda conforme elas”,<br />
diz o cacique.<br />
Além da Funai e da Funasa, a<br />
maior atenção que os índios recebem<br />
vem das ONGs, que fornecem<br />
auxílios com as plantações e incentivos<br />
a diversos projetos. Mas a<br />
maior ajuda parte de dentro da comunidade,<br />
que compartilha os alimentos<br />
entre os moradores e realiza<br />
reuniões mensais para solucionar<br />
os problemas. “As pessoas só vem<br />
conversar com a gente quando precisam<br />
fazer trabalho, até mesmo os<br />
antropólogos muitas vezes nos veem<br />
como objeto de pesquisa, mas nós<br />
somos gente como eles ta<strong>mb</strong>ém.”<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 93<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
trabalho em uma redação de jornal é sempre uma<br />
“o luta diária contra o tempo. tudo é para ontem e<br />
as informações para completar as matérias não chegam.<br />
Acostumados com essa rotina, nos programamos<br />
para ir até a aldeia indígena ainda pela manhã, para<br />
conseguirmos explorar o máximo de informações<br />
possíveis. chegamos até a localidade e conversamos<br />
com o cacique, perguntando se poderia nos contar a<br />
história da aldeia e pedindo permissão para tirar fotos e<br />
entrevistar famílias. tudo já planejado nas nossas cabeças<br />
e dentro do nosso tempo. com poucas palavras, porém<br />
diretas, o cacique nos fez entender como realmente<br />
deveria fluir uma reportagem: ‘sei que com branco a<br />
conversa é nas pressas, mas aqui a gente procura se<br />
conhecer e falar um pouco sobre nossa vida antes de<br />
passar informação’. um diálogo com calma, conhecendo<br />
um pouco sobre a vida de cada um, foi fundamental<br />
para descobrirmos a essência da nossa reportagem,<br />
o que acabou mudando o foco dela ta<strong>mb</strong>ém. A nós,<br />
que trabalhamos e estudamos comunicação, o cacique<br />
nos ensinou uma das maiores lições para nossa vida<br />
jornalística: aproveitar cada instante da conversa sem se<br />
importar com o relógio.”<br />
o recreio é tAmBém<br />
A horA dAs criAnçAs<br />
se AlimentArem
è<br />
Um a<strong>mb</strong>iente com diferentes opções,<br />
proporcionando prazer aos seUs<br />
clientes, é a marca da saUna coqUetel<br />
94 94 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong><br />
| JULHO/2011
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | JULHO/2011 | 95<br />
| 95<br />
SExO nA<br />
EStRADA<br />
como ViVem as meninas<br />
qUe trabalHam às<br />
margens da br-116<br />
TEXTO DE CLARISSA FIGUEIRÓ E SUÉLEn DAL’AGnOL<br />
FOTOS DE tHAYnÁ CAnDIDO
Noite de segunda-feira, 20h30min, pegamos o<br />
carro com uma amiga disposta a dirigir e a participar<br />
de uma romaria noturna. Percorremos a<br />
BR-116, em meio a becos, viadutos, passarelas,<br />
sinaleiras, paradas de ônibus e postos de gasolinas para<br />
encontrar prostitutas trabalhando.<br />
Primeiro viaduto, escuridão, duas garotas e um susto,<br />
uma delas jogou-se contra o carro. Estávamos andando<br />
lentamente e prosseguimos, a menina estava exaltada e<br />
fora de si, mas não foi dessa vez. Próxima parada, posto<br />
de gasolina. Indicaram-nos uma moça loira que faz ponto<br />
na Estação Rodoviária de Canoas, situada às margens da<br />
BR-116, esquina com a Rua Sete Povos.<br />
Pegamos o carro e, quando passamos pela rodoviária,<br />
a loira surgiu. Imediatamente, descemos e pedimos para<br />
conversar alguns minutos com ela. Até então ela achava<br />
que seria um programa, mas, no momento em que<br />
falamos se ela aceitaria participar de uma reportagem,<br />
instantaneamente recebemos como resposta um não.<br />
Ao voltar para o carro, fomos chamadas pela mulher<br />
e surpreendidas. Sem notarmos, tínhamos lhe chamado<br />
de “senhora”, e ela nos corrigiu: “Só vou falar uma coisa<br />
para vocês, gurias, se continuarem chamando as meninas<br />
de ‘senhoras’, não vão conseguir nada”. Pedimos desculpas<br />
e conseguimos contornar a situação, e, para nosso<br />
espanto, ela começou a conversar conosco.<br />
Maria* é loira, cabelos longos, olhos azuis, lábios pequenos,<br />
com alguns dentes faltando, seios fartos e extremamente<br />
carismática. Dizendo ter mais de 40 anos e<br />
menos de 50, não quis nos revelar a idade exata. Vestese<br />
como uma menina, calça e casaco de suplex e chinelos<br />
de dedo. Ela faz ponto no mesmo local há 12 anos, diz<br />
que não é apenas pelo dinheiro e, sim, ta<strong>mb</strong>ém por gostar<br />
de fazer sexo. Não a encontramos mais cedo porque<br />
ela trabalha das 22h às 3h da manhã, todos os dias. O<br />
valor cobrado por programa é R$ 40. “Sem negar nada ao<br />
cliente”, completa Maria.<br />
O público que lhe procura varia, desde pessoas novas<br />
e solteiras a homens velhos e casados. Não escolhe os<br />
clientes, todos são bem atendidos, sua única restrição é<br />
não atender casais. “As pessoas que me buscam querem<br />
algo diferente, porque feijão com arroz todos os dias enjoa.’’<br />
Na hora do programa, ela não se preocupa com<br />
o horário e sim com o carinho e atenção aos clientes,<br />
porque, segundo ela, qualquer atividade que é desempenhada<br />
com pressa nunca sai bem feita.<br />
Maria foi casada e engravidou de seu marido, porém<br />
preferiu criar o filho apenas com a ajuda de seus pais.<br />
Hoje o menino tem 16 anos e já sabe sobre a profissão<br />
da mãe. Ela sempre morou em Novo Ha<strong>mb</strong>urgo na casa<br />
dos pais, mas, devido a alguns conflitos com o pai, saiu<br />
de casa durante três anos, deixando o filho com os avós.<br />
Acabou voltando, pois seus pais possuem muitos problemas<br />
de saúde e é ela quem os ajuda financeiramente.<br />
Já trabalhou em eventos e como telefonista e vendedora.<br />
Acabou optando pela atual profissão porque estava<br />
desempregada e com o filho pequeno para criar. Não<br />
pensa em largar a prostituição, mesmo já tendo sido as-<br />
saltada e espancada. Devido a esse assalto e à agressão,<br />
ela precisou realizar uma cirurgia, ficou três meses em<br />
recuperação e passou a ter a impressão de que estava<br />
sendo perseguida, mas voltou a trabalhar.<br />
Estar na BR-116 pode parecer favorável devido ao<br />
grande fluxo de pessoas e carros. Maria diz que o ponto é<br />
bom, todos os dias tem clientes, mas que a BR não influencia<br />
no movimento. Conhecida pelos vizinhos e pessoas que<br />
passam, ela acredita que não incomoda ninguém.<br />
Da rua para as suítes<br />
Maria optou por trabalhar às margens da estrada, mas,<br />
outra alternativa são as casas noturnas. No decorrer da<br />
rodovia, as pessoas passam por diversas boates, uma delas<br />
é a Sauna Coquetel, que, por estar localizada na BR-116,<br />
em Canoas, recebe muitos clientes de outras cidades e<br />
pessoas que passam e acabam parando para conhecer.<br />
A casa noturna funciona há 38 anos no mesmo local.<br />
Sua infraestrutura é composta por três suítes, sete quartos<br />
simples, piscina, sauna a vapor, banheiros, bar e danceteria.<br />
Atualmente, conta com 70 garotas, com idades<br />
acima de 18 anos. A entrada custa R$ <strong>10</strong>, e o cliente<br />
ganha uma cerveja. De acordo com Rafael Nunes Feijó,<br />
filho do dono e responsável pelo local, o público varia de<br />
milionários com carros importados a pessoas que economizam<br />
o mês inteiro para ir ali.<br />
As garotas podem trabalhar fora da casa, nesse caso<br />
a boate não ganha nada pelo programa. As formas pelas<br />
quais a Sauna recebe Coquetel são pelo quarto utilizado<br />
96 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
(R$ 30 a cada 30 minutos), pela sauna (R$ 20 por garota<br />
dentro do lugar), pela piscina (R$ 15 por garota), pela<br />
entrada e pela bebida. Entretanto, dentro da piscina não<br />
ocorre programa e, se na sauna houver, o cliente deve<br />
pagar o valor correspondente para a garota.<br />
Conversamos na boate com Letícia*. Com 27 anos,<br />
há seis ela trabalha na noite. Loira, cabelos curtos,<br />
alta, pernas grossas, piercing no u<strong>mb</strong>igo e no nariz,<br />
fumante, não bebe cerveja e está na noite pelo dinheiro.<br />
Odeia bêbados. Sua preferência é por homens mais<br />
velhos. Natural de Porto Alegre, hoje reside no centro<br />
de Canoas com a irmã.<br />
Seus pais não sabem, porém desconfiam de sua profissão.<br />
A irmã que mora com ela já foi prostituta, e Letícia<br />
convenceu-a sair da vida noturna, mas, oito meses<br />
depois, ela própria foi quem ingressou. Estudava e<br />
trabalhava, largou tudo a partir do momento em que<br />
descobriu que poderia ganhar mais dinheiro em pouco<br />
tempo. A Sauna Coquetel não foi a única boate em que<br />
fez programas, já esteve na Carmen’s Club e no La Barca<br />
na cidade de Porto Alegre, além de casas noturnas de<br />
cidades do interior do Rio Grande Sul.<br />
Letícia é homossexual, e sua namorada ta<strong>mb</strong>ém é garota<br />
de programa. No entanto, conta ela que a partir do<br />
momento em que entra para a boate esquece da vida privada.<br />
Um programa de 30 minutos com ela custa R$ <strong>10</strong>0,<br />
mais R$ 30 pelo quarto ou R$ 50 pela suíte. Esse valor não<br />
dá direito a tudo. Caso o cliente queira outro serviço, além<br />
do sexo, o preço vai aumentando. O valor arrecadado em<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 97<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
o escolhermos a pauta, sabíamos que<br />
“a seria um assunto delicado para se tratar.<br />
a procura por casas noturnas localizadas na<br />
br-116 começou através da internet, pois não<br />
conhecíamos a região. buscamos indicações e<br />
pesquisamos em mapas e blogs, os contatos,<br />
porém não obtivemos nenhum sucesso. então,<br />
o desespero prevaleceu. “o que vamos fazer?<br />
desistir da pauta? não!” partimos para a rodovia<br />
aflitas, por não sabermos o que estava nos<br />
esperando, afinal eram lugares desconhecidos<br />
e pessoas estranhas, tudo poderia acontecer.<br />
conhecemos dois lados diferentes, a vida de uma<br />
pessoa que faz programas nas ruas e a de garotas<br />
que tem o local de trabalho pré estabelecido.<br />
entretanto, a<strong>mb</strong>as estão na profissão por apenas<br />
um motivo: o dinheiro. contudo, entrevistá-las<br />
nos mostrou que as garotas são mulheres como<br />
nós, que trabalham, precisam de dinheiro, tem<br />
seus sonhos e acreditam em um futuro melhor.<br />
conhecemos uma realidade diferente da que<br />
imaginávamos, além de nos fazer refletir sobre a<br />
nossa própria vida.”<br />
uma noite de programa varia de R$ 400 a R$ 1.200.<br />
E<strong>mb</strong>ora a quantidade de dinheiro seja alta, até o momento<br />
ela não adquiriu nenhum bem material. Existem<br />
colegas de trabalho que possuem apartamentos e carros.<br />
“Para uma menina obter algo com a grana é preciso ter<br />
a cabeça boa”, diz. Letícia já usou drogas todos os dias<br />
da semana, mas hoje ela consegue se controlar. Diz que<br />
a única maneira de aguentar os clientes chatos é estando<br />
“louca” e não apenas bêbada.<br />
Brigas entre as garotas não há, mas muitas já foram<br />
agredidas. A boate não interfere caso algo aconteça, cada<br />
uma tem de ter o domínio da situação. Letícia, quando<br />
esteve afastada da Sauna Coquetel, foi morar e trabalhar<br />
em Bento Gonçalves e, por não querer transar com o<br />
filho de um cliente, este acabou rasgando sua roupa na<br />
frente de todos, virando-lhe bebida e, por fim, lhe dando<br />
um tapa no rosto. “Homem que bate pode esquecer, mas<br />
mulher que apanha nunca esquece”, diz ela.<br />
Letícia conclui que, com a vida na noite, adquiriu conhecimento,<br />
experiência e dinheiro. Ta<strong>mb</strong>ém acredita<br />
que é impossível gostar de vender o corpo, ela e as outras<br />
estão trabalhando dessa forma porque há um motivo.<br />
Maria e Letícia, duas mulheres que vivem do dinheiro<br />
que a prostituição possibilita. Fazem das ruas ou da boate<br />
seu local de trabalho. São felizes? Quem sabe... Entretanto,<br />
apesar das diferenças, vivem a mesma realidade,<br />
o mundo da prostituição na BR-116.<br />
* Nomes fictícios para preservar a identidade das fontes.
UMA TENDA DE
HISTÓRIAS<br />
ComérCio<br />
de produtos<br />
Coloniais, na<br />
beira da rodovia,<br />
é alternativa de<br />
sustento para a<br />
Família Weber<br />
TEXTO DE RAFAELA KLEY<br />
E STÉFANIE TELLES<br />
FOTOS DE BRUNO BITTENCOURT<br />
Em um pequeno espaço na lateral do<br />
quilômetro 215 da BR-116, em Morro<br />
Reuter, uma simples casa de madeira<br />
foi construída há três anos. Nesse<br />
lugar, encontram-se histórias de um casal<br />
de descendência alemã que, junto com seus<br />
três filhos, busca na beira da estrada o sustento<br />
diário através do comércio de produtos<br />
coloniais.<br />
Mãe, esposa e responsável por administrar<br />
a tenda, Milita Weber, sempre quis ter sua<br />
própria lanchonete, mas viu seu objetivo se<br />
distanciar ao ficar desempregada. Para recomeçar<br />
a busca pelos seus sonhos, contou com<br />
a ajuda do cunhado, Fernando Weber, que incentivou<br />
e financiou a abertura do comércio.<br />
Era preciso, entretanto, encontrar um local<br />
próximo da casa da família para a construção<br />
do estabelecimento. “Fomos conversar com<br />
a dona do terreno para alugar o espaço, mas<br />
ela nos disse que não seria preciso pagar. Ela<br />
é uma senhora de mais idade, está sempre na<br />
janela nos observando e diz ficar feliz quando<br />
vê os carros parando aqui”, revela Milita, que<br />
trabalha desde os oito anos.<br />
Com a ideia formulada e o terreno acertado,<br />
restava apenas iniciar a construção da<br />
tenda. “Meu cunhado fez tudo, comprou o<br />
material, pagou e a construiu junto com meu<br />
marido e alguns parentes. Foi ele quem comprou<br />
as primeiras mercadorias e ainda me<br />
deu R$ 130 para começar”, conta.<br />
Pães, compotas e geleias, produzidos a<br />
dez mãos pela família Weber, de segunda a
segunda, dão o colorido de boas-vindas aos<br />
clientes. “Pão, eu faço todos os dias de manhã<br />
cedo e os outros produtos geralmente<br />
produzimos à noite, dia sim, dia não”, explica.<br />
Com 31 anos, Milita nunca fez aulas<br />
de culinária, tampouco aprendeu truques<br />
com suas avós. A vendedora aprendeu tudo<br />
o que sabe sozinha. “Fui inventando, me virando. Com<br />
o tempo, aprendi alguns truques, testando dicas das<br />
clientes”, conta.<br />
Além do que é produzido pela família, o local oferece<br />
frutas e verduras, vinhos, cachaças, queijos, linguiças, mel,<br />
bolos e biscoitos, expostos de maneira organizada e atrativa.<br />
A maioria dos produtos é da própria região, comprados<br />
na Feira do Colono do município. Durante algum tempo, Milita<br />
produziu suas próprias frutas e verduras, mas hoje consegue<br />
encontrar tempo apenas para cultivar caqui e chuchu<br />
em seu quintal. “A gente já plantou muita coisa, mas não<br />
conseguimos dar conta. Por um tempo ta<strong>mb</strong>ém fiz rapaduras<br />
e amendoins para vender. Tenho muitas ideias, mas não<br />
tenho tempo para colocá-las em prática”, comenta.<br />
Dia após dia, a família luta e conta com a sorte para<br />
conquistar o seu sustento financeiro. “É um jogo diário.<br />
Estou investindo muito nos doces e geleias. Quando percebo<br />
que vou perder alguma fruta, faço doce. O problema é<br />
que preciso comprar os vidros, as tampas e o açúcar, que<br />
está com o preço lá em cima”. O melhor dia de vendas<br />
tem sido os domingos, mas muitas vezes a tenda fica sem<br />
capital de giro. “Teve dias que eu vim com R$ 20 trabalhar.<br />
Se alguém me desse uma nota de R$ 50 não teria como dar<br />
o troco”, desabafa.<br />
O fluxo de carros, caminhões e motos na BR-116 foi aos<br />
poucos se tornando dependência e distração para Milita,<br />
ao FiCar<br />
desempreGada,<br />
milita teve a<br />
oportunidade de<br />
abrir o seu prÓprio<br />
neGÓCio. no dia a<br />
dia, ela Conta Com a<br />
aJuda da Família<br />
que abre a tenda às 11h nos dias de semana,<br />
chegando mais cedo aos sábados e domingos, e<br />
fechando sempre ao anoitecer, quando recolhe<br />
todos os produtos para levá-los de volta para<br />
casa. “Nosso maior problema é não ter água e<br />
luz, o que nos impede de armazenar os produtos,<br />
trabalhar até mais tarde, cozinhar ou fazer<br />
sucos naturais aqui”, explica.<br />
Além dos desafios financeiros, a família ainda precisa<br />
estar atenta com os clientes que visitam a tenda pela<br />
primeira vez. Milita conta que já foi vítima do golpe da<br />
nota falsa e do cheque sem fundo e, por isso, mantém<br />
na fachada de estrutura rústica uma placa sinalizando:<br />
“Não aceitamos cheques”. “Quando o cliente chega pegando<br />
várias coisas sem pedir o preço, a gente começa<br />
a desconfiar”, conta. A família ta<strong>mb</strong>ém já teve produtos<br />
roubados. “Uma vez parou um ônibus de turismo, e uma<br />
turma de senhoras entrou da tenda. Não consegui acompanhar<br />
o movimento e me roubaram. Você vai confiar<br />
em quem? Não tive lucro algum naquele dia”, recorda. A<br />
vendedora ta<strong>mb</strong>ém precisa lidar diariamente com gritos<br />
e buzinaços. “Tem que ter jogo de cintura. Entra num<br />
ouvido e sai no outro, mas como não fico sozinha, nunca<br />
aconteceu nada”, revela.<br />
Mesmo com o barulho do trânsito que muitas vezes<br />
impossibilita uma simples conversa na tenda, Milita ouve<br />
músicas pelo celular e lê a Bíblia para passar o tempo.<br />
“Sou católica, mas por causa do trabalho não consigo participar<br />
das missas. Rezo todo dia aqui, não falho nunca”,<br />
explica. Além disso, Milita brinca com seus três filhos nos<br />
momentos de tranquilidade nas vendas. Carlos Alexandre,<br />
Carla Suelen e Lucas Mateus, de 14, 12 e 11 anos, respectivamente,<br />
frutos de 15 anos de casamento com o pintor<br />
<strong>10</strong>0 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
Carlos Roberto Weber, auxiliam seus pais no comércio no<br />
contra turno da escola. “As crianças ajudam a organizar<br />
uma ou outra coisa, mas estão aqui mais para me fazer<br />
companhia e não ficarem sozinhas em casa”, conta.<br />
Diferente dos filhos, que contam com todo o apoio e<br />
incentivo dos pais para estudar, a comerciante não teve<br />
a mesma sorte. “A gente era muito pobre, muito mesmo,<br />
e no interior não tinha escola perto. Estudei só até a segunda<br />
série”, rele<strong>mb</strong>ra emocionada. Milita conta que seus<br />
pais não tinham emprego fixo, a mãe era dona de casa e<br />
o pai fazia bicos como segurança. A falta de estabilidade<br />
financeira induziu a família a mudar de cidade inúmeras<br />
vezes, impossibilitando que ela e alguns dos dez irmãos<br />
prosseguissem com os estudos.<br />
Natural de Três Passos, Milita tinha oito anos quando<br />
seus pais se separaram. Com o término do casamento,<br />
sua mãe fugiu para Boa Saúde, levando Milita e outra<br />
filha. “Um dia fomos visitar o pai e ele não deixou mais<br />
a gente voltar. Passávamos fome e, como ele tinha mais<br />
condições, nos convenceu a ficar com ele.” Hoje, o pai<br />
de Milita mora em Portão, e a mãe, no interior de Canoas.<br />
Desde que abriu a tenda, Milita não possui mais<br />
tempo para visitá-los, pouco tempo resta ta<strong>mb</strong>ém para<br />
os oito irmãos ainda vivos. “Teve apenas um Natal que eu<br />
fechei a tenda para passar o dia 24 com meu pai e o dia<br />
25 com minha mãe”, conta.<br />
O quilômetro 215 da BR-116 é para muitos apenas parte<br />
de um percurso diário, mas para a família de Milita representa<br />
a doação de boa parte de seu tempo na esperança<br />
de dias melhores. As histórias tornam este lugar um “Encanto<br />
da Serra”, fazendo jus ao nome que Milita escolheu<br />
para denominar a tenda quando seu sonho de reformá-la<br />
tornar-se realidade.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | <strong>10</strong>1<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
sábado destinado a percorrer a rota romântica<br />
“o em busca de fontes nos presenteou com um forte<br />
temporal, mas nada que desanimasse. no malabarismo<br />
de lidar com a chuva, o vento e o frio, encontramos<br />
uma pequena casinha de madeira que abrigava toda<br />
uma família. ao parar o carro, guarda-chuvas foram<br />
prontamente abertos para nos receber. Foi o que bastou<br />
para sabermos que tínhamos encontrado o que tanto<br />
procurávamos. alguns dias depois, em uma visita<br />
marcada, subimos a serra e fomos de encontro com a<br />
família Weber. Com bloco de notas, cadeiras de praia,<br />
gravadores e muitas expectativas, fomos recebidas<br />
carinhosamente com um bom chimarrão. Horas voaram<br />
como se fossem segundos. este espaço é pequeno<br />
para descrever tudo que esta pauta nos fez sentir e<br />
vivenciar. Cabe-nos, sobretudo, agradecer à família por<br />
toda a receptividade, pelo carinho e pelas confidências.<br />
impressões que ficarão marcadas, para sempre, em<br />
nossas histórias.”
O BARULHO ATRAVESSA AS<br />
PAREDES DO PRÉDIO 4449, EM<br />
FRENTE AO VIADUTO, EM CANOAS<br />
A EStRAdA é O<br />
<strong>10</strong>2 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
qUINtAL dE CASA<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | <strong>10</strong>3<br />
TEXTO dE ALESSANdRO OLIVEIRA E CAROLINA KAZUE | FOTOS dE KENIA FERRAZ
O<br />
ruído dos veículos ecoa<br />
no corredor de azulejos<br />
desbotados e impregnados<br />
de sujeira. As<br />
marcas de fuligem nas paredes<br />
evidenciam os anos seguidos de<br />
incessante fluxo de veículos. Ao<br />
subir as escadas antigas do prédio<br />
sem nome de nº 4449, localizado<br />
na cidade de Canoas em frente ao<br />
viaduto da Avenida Getúlio Vargas,<br />
o síndico e morador Paulo César<br />
Nix, 42 anos, fala sobre como<br />
é viver ali, na encruzilhada de um<br />
viaduto com a BR-116. Durante o<br />
trajeto até o segundo andar, onde<br />
mora com a família, mal era possível<br />
ouvir sua voz. Quando ele<br />
abre a porta do seu apartamento,<br />
o silêncio é interrompido apenas<br />
pelo som da televisão que prende<br />
a atenção de sua esposa e de dois<br />
de seus quatro filhos.<br />
Há 15 anos, a família Nix saiu<br />
do sossego do Interior, na cidade<br />
de Santa Rosa, em busca de<br />
DA SACADA DE SEU APARTAMENTO, PAULO CÉSAR<br />
NIX TEM UMA VISÃO COMPLETA DO VIADUTO<br />
oportunidades de trabalho na região<br />
metropolitana de Porto Alegre,<br />
e já faz 12 anos que reside<br />
no prédio. Na casa de Paulo não<br />
há sons da rua, buzinas, motores<br />
de carro, nem a conversa dos pedestres.<br />
Na aconchegante sala de<br />
estar, que fica ao lado da sacada,<br />
em frente ao viaduto, se escuta<br />
apenas o barulho da TV. Porém,<br />
quando se abre a porta da sacada,<br />
a sensação é de estar no meio<br />
do congestionamento.<br />
Segundo Nix, a solução encontrada<br />
para obter uma vida mais silenciosa<br />
foi mudar do apartamento<br />
nº17, no quarto andar, atualmente<br />
ocupado por seu sobrinho, para o<br />
de nº 11, localizado no segundo<br />
andar, que recebe a proteção sonora<br />
do viaduto. “Como o viaduto<br />
fica bem na frente da minha casa,<br />
o som dos carros é bloqueado”,<br />
explica. Para ele, o único empecilho<br />
é ter que manter as janelas<br />
e portas que ficam na frente da<br />
BR-116 fechados o dia inteiro. Se<br />
o barulho dos carros não entra no<br />
lar da família Nix, a poluição não<br />
dá trégua. O ar carregado de fumaça<br />
não pode ser evitado com<br />
janelas e portas fechadas. Paulo<br />
conta que a fuligem nunca deixa<br />
as roupas recém-lavadas continuarem<br />
limpas por muito tempo e<br />
é preciso constantemente limpar<br />
os móveis e o chão. Outra possibilidade<br />
é abrir as janelas para os<br />
fundos e arejar a casa da fuligem,<br />
que impregna os móveis, as roupas<br />
e, principalmente, os pulmões.<br />
volume máximo<br />
No próximo andar, outra moradora,<br />
Janaína Velado, 28 anos,<br />
fecha a porta do seu apartamento.<br />
Quando ela para, acende um<br />
cigarro e atenciosamente começa<br />
a contar um pouco sobre sua vida<br />
no prédio nº 4449. Ela mora com<br />
o marido Fabio Santos e as filhas<br />
Maria e Gabriela, de dois e quatro<br />
<strong>10</strong>4 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
anos, respectivamente. Contrastando com a família<br />
Nix, que vive há mais de uma década no prédio, eles<br />
se mudaram há um mês para o local e ainda não tiveram<br />
tempo de se acostumar.<br />
A casa parece recém-ocupada e ainda se percebem<br />
os restos da confusão que uma mudança traz. O apartamento<br />
do casal não fica em frente à rodovia, mas<br />
nos fundos do prédio, bastante próximo a um posto de<br />
gasolina, o que literalmente tira o sono da família. “É<br />
um horror, muito barulho. É impossível dormir bem”,<br />
conta Janaína. Segundo ela, os motoristas passam horas<br />
bebendo, com os rádios em volume máximo, além<br />
de haver muita briga e gritaria.<br />
O casal, que vive junto há cinco anos, ta<strong>mb</strong>ém veio<br />
do interior em busca de trabalho. Deixaram Pelotas em<br />
2006 e foram morar na Vila Maria, em São Leopoldo, de<br />
onde saíram devido ao alto valor do aluguel para morar<br />
no centro da cidade de Canoas. Desde então, a família<br />
vive no seu atual endereço, alugado da cunhada de Fabio,<br />
com a intenção de ficar temporariamente.<br />
Durante o dia, o volume da televisão é extremamente<br />
alto para abafar o barulho vindo da rua, mas<br />
a família nem percebe mais. Fabio fez uma cirurgia<br />
recentemente e por isso fica mais tempo em casa do<br />
que Janaína. Ele conta que tem a impressão de que no<br />
último mês sua audição piorou, o que é improvável, já<br />
que, apesar do incômodo, o som não parece chegar a<br />
níveis insalubres. Ele já deve ter se acostumado com<br />
mais decibéis do que a maioria das pessoas para conseguir<br />
amenizar o barulho do trânsito. Indiferentes ao<br />
incômodo dos pais, as filhas dormem sossegadas entre<br />
plimplins, vruuuns e beepbeeps.<br />
Apesar de não ter a fachada do seu apartamento<br />
de frente para a rodovia, a família sente ta<strong>mb</strong>ém os<br />
grandes transtornos causados pela poluição do ar e a<br />
fumaça dos carros. Segundo Janaína, toda vez que sai<br />
de casa com as filhas, as roupas precisam ser lavadas<br />
devido ao cheiro ruim que fica impregnado. Por outro<br />
lado, dentro da casa, eles não sentem nada fora do<br />
normal. “Aqui não vem muita fumaça. Acho que fica<br />
mais na parte da frente do prédio”, conta Janaína.<br />
Morar na beira de uma estrada movimentada tem ou-<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | <strong>10</strong>5<br />
tras peculiaridades. A segurança e a mobilidade são pontos<br />
delicados no cotidiano das famílias, especialmente<br />
para os pequenos. Paulo Nix conta que as crianças precisam<br />
sair sempre acompanhadas, mas a principal preocupação<br />
é o trânsito, e não a criminalidade. A falta de áreas<br />
de lazer, o tráfego intenso e a estrutura precária para<br />
pedestre põem em alerta o instinto protetor dos pais.<br />
O mesmo acontece com Janaína e Fabio. Eles contam<br />
que a dificuldade para se locomover é imensa,<br />
especialmente com os filhos. “É horrível atravessar a<br />
estrada com as crianças, porque não tem faixa de segurança<br />
nem sinaleira. Precisa fazer uma volta imensa<br />
para atravessar com segurança”, diz Janaína. A sensação<br />
é justamente essa: como se o mundo fosse dividido<br />
em dois pela BR-116 e atravessar a fronteira, uma<br />
aventura heroica.<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
aímos de Porto Alegre decididos em relação<br />
“Sao prédio no qual entrevistaríamos famílias<br />
que moram em frente a BR-116. Chegando ao local,<br />
percebemos uma das dificuldades que essas pessoas<br />
enfrentam. Não conseguimos fazer com que nenhum<br />
dos moradores nos ouvisse, porque além de não haver<br />
interfone, era inútil bater na barulhenta porta de metal<br />
entre os corredores do prédio e a calçada, pois cada<br />
tentativa era abafada pelos carros que passavam ao<br />
lado da estreita calçada. Decidimos tentar outro lugar,<br />
mas mesmo com muitos prédios, encontrar alguém<br />
disposto a atender desconhecidos foi uma tarefa árdua.<br />
Após algumas tentativas frustradas, encontramos um<br />
casal entrando no prédio que tínhamos escolhidos<br />
inicialmente, em frente ao viaduto, e de imediato saímos<br />
correndo para então começar a entrevista. Os avistamos<br />
há menos de <strong>10</strong> metros de distância, mas não importava<br />
o quanto gritássemos, o coro dos motores superou<br />
nossas vozes. Corremos e batemos na porta com força.<br />
Alguns instantes depois, o casal deu meia volta e fomos<br />
convidados a entrar. “
è<br />
uM lAR EM quAl<br />
<strong>10</strong>6 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong>
quER lugAR<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | <strong>10</strong>7<br />
TEXTO DE DÉBORA SIlVA<br />
E SINDY lONgO<br />
FOTOS DE JulIO BONORINO<br />
E ANA luÍZA TRINDADE<br />
família encontra<br />
em um local público<br />
a solução para a<br />
falta de abriGo
Você passa por várias pontes<br />
no seu dia a dia e por<br />
várias pessoas que fazem<br />
desses locais o seu lar. Mas<br />
você já se perguntou como essas<br />
pessoas foram parar lá? O artigo<br />
XXV da Declaração Universal dos<br />
Direitos Humanos diz que “Toda<br />
pessoa tem direito a um padrão de<br />
vida capaz de assegurar a si e a sua<br />
família saúde e bem-estar, inclusive<br />
alimentação, vestuário, habitação,<br />
cuidados médicos e os serviços<br />
sociais indispensáveis, e direito à<br />
segurança em caso de desemprego,<br />
doença, invalidez, viuvez, velhice<br />
ou outros casos de perda dos meios<br />
de subsistência fora de seu controle”.<br />
Porém, na prática, o que ocorre<br />
é totalmente o oposto.<br />
José Leonir Pires, casado há 14<br />
anos, <strong>10</strong> filhos, é um desses personagens<br />
anônimos que passam por<br />
nossos olhos despercebidos. Há nove<br />
anos, ele e sua família moravam em<br />
Canoas, de aluguel, no bairro Mathias<br />
Velho. “Não conseguimos mais<br />
pagar o aluguel, daí o dono nos botou<br />
para fora”, afirma. Desde então,<br />
mora debaixo da ponte que liga Esteio<br />
a Canoas, entre a BR-116 e a<br />
Avenida Guilherme Schell.<br />
O acesso à morada é por meio<br />
de uma escada esculpida na terra<br />
e por uma espécie de pórtico, feito<br />
de plantas verdes. O local simples<br />
revela-se muito limpo e organizado.<br />
A família usa um tanque elétrico para<br />
lavar suas roupas, com energia procedente<br />
de fiações próximas. Depois<br />
de lavadas, as roupas são estendidas<br />
em um varal improvisado com arame<br />
e madeira. Cada um ajuda no que<br />
pode para melhorar o convívio e a<br />
vida complicada.<br />
família que mora<br />
e<strong>mb</strong>aixo da ponte<br />
conta um pouco<br />
sobre sua realidade<br />
Leonir luta diariamente para<br />
que suas filhas tenham a oportunidade<br />
de estudar e alcancem<br />
um futuro melhor. Para isso, além<br />
do trabalho de reciclagem, José<br />
bate de casa em casa oferecendo<br />
pequenos serviços como corte<br />
de grama, pintura e capina. Seu<br />
turno de trabalho, das 22h às 5h,<br />
é longo e cansativo, pois percorre<br />
a cidade de Esteio em busca de<br />
materiais para reciclagem. O que<br />
consegue recolhe, leva para três<br />
postos de coleta, conforme o tipo<br />
de material. Para complementar o<br />
sustento da família, eles mantêm<br />
uma horta, onde plantam limão,<br />
moranga, abacate e tomate, entre<br />
outros. “O solo aqui é muito fértil<br />
e fácil de cultivar sementes”,<br />
afirma Leonir. De “bicos” aqui e<br />
ali, o morador do viaduto batalha<br />
para ganhar seu pão.<br />
Emocionado e com lágrimas<br />
nos olhos, ele conta que teve de<br />
largar a escola na terceira série,<br />
pois perdeu o pai quando tinha<br />
apenas nove anos, tendo que começar<br />
a trabalhar para ajudar a<br />
mãe a criar os irmãos. Hoje, incentiva<br />
suas filhas a não desistir<br />
de estudar, apesar de estarem<br />
atrasadas em relação às crianças<br />
da sua idade. “Boa educação é<br />
conversa. Nunca bati em nenhum<br />
filho, nem nunca precisei levantar<br />
a mão para nenhum deles”, diz<br />
Leonir. Sua esposa, Sandra Mara<br />
Bampé Rodrigues, ta<strong>mb</strong>ém acredita<br />
que bater não seja a garantia<br />
de uma criação exemplar. Ela, que<br />
disse ter apanhado muito quando<br />
criança, observa que isso não preveniu<br />
que errasse e nem fez com<br />
que crescesse na vida.<br />
as crianças de<br />
JosÉ, meio tímidas,<br />
mostram seu lar<br />
Junto de Leonir, e<strong>mb</strong>aixo dessa<br />
mesma ponte, moram quatro<br />
de seus <strong>10</strong> filhos e sua esposa. Os<br />
outros seis já são casados e moram<br />
na cidade de Venâncio Aires.<br />
Recentemente abrigou mais dois<br />
jovens, que tenta ajudar, mantendo-os<br />
fora da violência das ruas.<br />
Ele, que se autodenomina “chefe<br />
do clã”, diz que lá ninguém tenta<br />
invadir, nem vender drogas ou<br />
roubar. A todo o momento, deixa<br />
bem claro que moram e<strong>mb</strong>aixo da<br />
ponte, mas que são uma família.<br />
Como bichos de estimação, têm<br />
um cachorro e dois gatos, seus xo-<br />
<strong>10</strong>8 <strong>10</strong>8 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong><br />
| JulHO/2011
dós, que segundo ele, mantêm os<br />
ratos longe do lar.<br />
O clima de carinho, amor e respeito<br />
entre eles é evidente. Encontramos<br />
apenas duas de suas filhas, que estudam<br />
em uma escola pública próxima<br />
da ponte. Thainara, <strong>10</strong> anos, está na<br />
primeira série, e Maiquelli, 13, está<br />
na segunda série. Maiquelli confessa:<br />
“Quero mudar de vida. Casar, ir e<strong>mb</strong>ora<br />
daqui e arrumar um lugar para<br />
os meus pais ta<strong>mb</strong>ém”.<br />
Leonir diz não ter religião, porém<br />
afirma várias vezes durante a<br />
conversa que acredita muito em<br />
Deus. Ele faz questão de garantir<br />
que não rouba, nem pede nada para<br />
ninguém, tem saúde para trabalhar.<br />
“Essa mão aqui é de trabalhador”,<br />
orgulha-se, e segue acreditando em<br />
um futuro melhor.<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | JulHO/2011 | <strong>10</strong>9 | <strong>10</strong>9<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
interessante como é fácil julgar as pessoas dizendo que<br />
“É elas vivem no seu próprio ‘mundinho’, porém, de repente,<br />
fazemos uma matéria para uma disciplina e nos descobrimos<br />
ta<strong>mb</strong>ém vivendo no nosso ‘mundinho’ sem perceber. a<br />
expectativa de fazer essa matéria era enorme, pois não sabíamos<br />
se a família, que morava numa das pontes da br-116, iria nos<br />
receber ou não. ao chegar lá e encontrar o ‘cacique’ da família,<br />
percebemos que não seria fácil, pois em um primeiro momento<br />
recusou-se a nos dar a entrevista e, inclusive, fez uma pergunta<br />
que nos levou a pensar: ‘todo mundo vem aqui, mostra na tV a<br />
minha vida e a da minha família, mas e o que muda para mim?<br />
nada! eu continuo aqui! por que eu deveria dar entrevista para<br />
vocês?’. o que nos fez repensar o nosso papel de jornalistas<br />
na sociedade. qual seria a função de apenas reportar os<br />
acontecimentos, se vemos todos os dias coisas cada vez piores?<br />
e o pior; nos acostumamos a vê-las, de forma que nem nos<br />
surpreendemos mais. a única reação que temos é nos horrorizar<br />
por alguns minutos, tecer alguns comentários e, quando o<br />
telejornal acaba, voltamos ao nosso ‘seguro mundinho’.”
O hOMEM DE uM<br />
1<strong>10</strong> | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong>
MIlhÃO DE quIlôMEtROS Para<br />
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | 111<br />
adelino ascari, a vida<br />
não existe sem a Br-116 e<br />
vice-versa. atravessá-la<br />
é como cumPrir uma rotina,<br />
sem a qual não há<br />
histórias Para contar<br />
TEXTO DE ANDRESSA PAZZINI E luAN IGlESIAS<br />
FOTOS DE CARINA MERSONI
São cerca de 20 mil habitantes. Duas emissoras de<br />
rádio. Um jornal quinzenal e 35 quilômetros de<br />
BR-116 que cruzam toda a sua extensão. Assim<br />
é São Marcos, localizado na Serra Gaúcha, a 160<br />
quilômetros de Porto Alegre. A cidade, com 48 anos de<br />
emancipação, foi colonizada no final do século XIX por<br />
italianos e poloneses. Não se sabe ao certo como algumas<br />
peculiaridades tomaram forma. São diferenças físicas e<br />
geográficas dispostas aos curiosos motoristas e transeuntes<br />
de passagem. O lugar transparece simpatia, como a<br />
maioria das pequenas cidades do interior.<br />
Dividida pela BR-116, São Marcos apresenta duas realidades.<br />
De um lado, para quem segue em direção ao interior, após<br />
o quilômetro que carrega o nome da BR, reina a calmaria de<br />
um local onde as residências são maioria. De outro, uma agitação<br />
típica de cidade: praça central, mercados, farmácias,<br />
bares, lojas, lanchonetes, hospital e igreja. Entre as duas realidades,<br />
está a vida de muitas pessoas, que diariamente atravessam<br />
a BR-116 para cumprir seus deveres ou, simplesmente,<br />
acessar a outra metade da cidade.<br />
Recostado no banco da praça central, com uma expressão<br />
cansada e olhar baixo, Adelino João Ascari, ou apenas Ascari,<br />
como é conhecido na pequena São Marcos, passa ali boa parte<br />
do dia. Pela manhã, perto das 8h, sai de sua casa, no bairro<br />
Francisco Doncatto e, a passos lentos, atravessa a rodovia. A<br />
falta de paciência de alguns motoristas obrigam-no a caminhar<br />
mais depressa. “Se eu atravesso na faixa (de segurança)<br />
alguns param, mas 50% não param”, calcula Adelino. Apesar<br />
das dificuldades, ele conta que, em cerca de 40 anos que faz o<br />
trajeto, nunca foi vítima de um acidente.<br />
Caminhando mais algumas quadras, apoiado em sua velha<br />
bengala, o simpático senhor acomoda-se no banco da praça.<br />
Ao seu encontro, vêm apostadores do Jogo do Bicho, atividade<br />
desempenhada por ele há 24 anos. Além de uma forma de<br />
garantir um sustento extra, é ta<strong>mb</strong>ém um motivo para que<br />
Adelino não se entregue ao ócio nem à acomodação. Aos 84<br />
anos, gosta de estar entre as pessoas, estar na rua, conversar<br />
e fazer amigos. “Estou vivo porque estou passando o tempo.<br />
Tenho muitos amigos”, relata. Essa parece ser a força que leva<br />
Adelino a atravessar a tão famosa rodovia. Todos os dias.<br />
Mais do que permitir o acesso de Adelino ao outro lado da<br />
cidade, a BR-116 faz parte de sua vida desde os tempos em<br />
que garantia o sustento como borracheiro. Sua colocação às<br />
margens da BR foi fundamental para que conquistasse uma<br />
vasta clientela, que por muitas vezes esperava o conserto de<br />
carros e caminhões de um dia para o outro. As filas de veículos<br />
danificados faziam jus à qualidade dos serviços prestados por<br />
ele que, no final da década de 80, ganhou o título de melhor<br />
borracheiro da cidade, reconhecido pela prefeitura de São<br />
Marcos: “Naquela época os materiais dos carros eram piores<br />
do que agora, então tínhamos muito serviço”. Contando com<br />
o auxílio de um único ajudante, Adelino rele<strong>mb</strong>ra o esforço<br />
que fazia para manter a borracharia: “Tinha dias em que eu<br />
amanhecia trabalhando e anoitecia trabalhando”.<br />
Tanto trabalho como borracheiro rendeu a Adelino um<br />
dedo torto. “Esse dedo, antes não era torto assim, isso é de<br />
segurar a marreta, de tanta pancada”. Ao que parece, Adelino<br />
abandonou a borracharia quando sentiu que seu corpo não
a cidade de são<br />
marcos, com 20<br />
mil haBitantes, é<br />
cortada Pela Br-116<br />
dava mais conta do ofício que escolheu com a ajuda de um<br />
cunhado. Em 1999, após 18 anos como borracheiro, trocou a<br />
rotina de consertos por uma prancheta, anotações e cálculos.<br />
Se ele chegara a São Marcos vindo de Flores da Cunha<br />
na intenção de prosperar sua condição social, conseguiu. As<br />
mesmas mãos que consertaram pneus de carros, ônibus e caminhões<br />
ta<strong>mb</strong>ém cultivaram plantações no antigo distrito de<br />
Criúva, hoje pertencente ao município de Caxias do Sul, onde<br />
ta<strong>mb</strong>ém morou. Pelo visto, as marcas do tempo não deixam de<br />
cultivar, igualmente, sorrisos. É inevitável. A cidade muda, a<br />
profissão muda, e os motivos que lhe convencem a atravessar<br />
a BR diariamente mudam. Por ironia ou não, a cultura que se<br />
formou em torno de Adelino é fiel. Muitos dos clientes da borracharia<br />
se tornaram adeptos do jogo da sorte.<br />
Afetuoso e com sabedoria de um avó, o ex-agricultor, exborracheiro<br />
e agora bicheiro não conhece muito além dos limites<br />
que a própria vida lhe impôs. Seja onde e como for, a<br />
BR conta a sua história e viceversa: “Para mim, a BR significa<br />
muita coisa, foi onde comecei a ganhar meu dinheirinho com<br />
os carros que passavam aí”.<br />
Por fim, esta reportagem só poderia terminar com a seguinte<br />
cena, praticada por Adelino há décadas: com a bengala<br />
amarrada ao cinto, apoia o braço. Alguns motoristas buzinam<br />
amigavelmente. Outros apenas o fitam. Adelino completa a<br />
passagem sobre a BR para não sair de São Marcos. E, como um<br />
bom bicheiro, aposta nos números para definir alguma circunstância:<br />
“Nunca ninguém atravessou tantas vezes essa BR como<br />
eu. Dá para botar bastante coisa. Dá para botar um milhão de<br />
quilômetros. São 42 anos atravessando a BR, já pensou?”<br />
Não Adelino. Nunca pensamos. E só por isso, nunca poderemos<br />
duvidar.<br />
IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />
r-116. uma pauta que, a princípio, nos preocupou. não<br />
“Bsabíamos o que esperar dela, nem como chegaríamos<br />
até nossas fontes. recebemos uma lista de alguns possíveis<br />
entrevistados, mas, justamente pelo “frio na barriga” que nos traz<br />
o inesperado, optamos por encontrá-lo aleatoriamente, assim<br />
que chegássemos à cidade de são marcos. e assim foi. sábado<br />
de sol, 7h30min da manhã. e<strong>mb</strong>arcamos no ônibus na rodoviária<br />
de são leopoldo e partimos rumo a Garibaldi, onde encontramos<br />
nossa fotógrafa, carina. de lá, seguimos de carro até são marcos,<br />
em uma viagem que rendeu boas risadas e algumas pérolas,<br />
como a inversão dos nomes de duas cidades: “dois marcos” e<br />
“são irmãos”. chegando ao destino, logo nos deparamos com<br />
uma praça central, que parece ser unanimidade em pequenas<br />
cidades do interior. andamos um pouco e procuramos por um<br />
restaurante. o relógio já marcava 12h. saindo de um bom almoço,<br />
avistamos um senhor solitário, recostado no banco da praça. nos<br />
aproximamos, trocamos algumas palavras e não tivemos dúvidas:<br />
aquele seria o nosso entrevistado. Jeito simples, cativante e uma<br />
vida construída a partir da Br-116. era o que precisávamos para<br />
cruzar a sua história com a história de são marcos e mostrar como<br />
a divisão da cidade pela rodovia interferiu e continua a interferir<br />
em suas rotinas.”
EXPEDIENTE<br />
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)<br />
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