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Na estrada<br />

Histórias da BR-116<br />

pi<br />

primeira impressão<br />

nº 35 | julho de 2011 |


AO LEITOR<br />

Ainda que a ideia seja tentadora, não falaremos<br />

em metáforas neste número da Primeira<br />

Impressão. Falaremos de um caminho<br />

mesmo, uma estrada, dessas que nos<br />

levam e trazem de volta. Vindos do Sul ou do Norte,<br />

quase todos que trabalham, estudam e convivem na<br />

Unisinos passam pela BR-116. Passagem que, por princípio,<br />

é tempo e deslocamento. É ta<strong>mb</strong>ém vivência.<br />

Mais que um espaço de trânsito, a estrada é espaço<br />

de vida. Foram essas vidas, pelas quais simplesmente<br />

passamos, que dessa vez tentamos enxergar. Afinal,<br />

de quem são as roupas penduradas naqueles varais<br />

e<strong>mb</strong>aixo da ponte? Quem vende e que produtos são<br />

aqueles nas vendas pelas quais passamos velozmente?<br />

Um jardim em plena brutalidade da rodovia? Quem<br />

toma chimarrão naquela sacada? Quais as dores de<br />

quem faz a manutenção desse caminho? Quem é chapa<br />

ou não?<br />

Aprofundamos nossa percepção e contamos essas<br />

histórias. A edição 35 da Primeira Impressão — pautada<br />

e produzida por alunos do final do curso de Jornalismo<br />

da Unisinos — tem esta marca, uma das marcas<br />

que faz do jornalismo algo tão instigante: a possibilidade<br />

de ir atrás do que ainda não foi suficientemente<br />

contado e de perceber como as experiências podem<br />

ser narradas por quem as vive, longe do espaço confortável<br />

da redação. Para ser produzida, precisou que<br />

todos nós, intuições ligadas, olhássemos um pouco<br />

mais atentamente para o que se passa fora do carro,<br />

do trem, da van, do ônibus. E, lá fora, descobrimos<br />

um mundo cheio de histórias e de vida.<br />

Eduardo VEras<br />

FláVIo dutra<br />

thaís Furtado<br />

Professores-orientadores<br />

ANDRÉ ÁVILA<br />

CLARA ALLYEGRA


ÍNDICE<br />

4 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


8<br />

Viagem no tempo: como se fez a BR<br />

14<br />

Rota: o Rio Grande de ponta a ponta<br />

20<br />

Samu: socorro sobre quatro rodas<br />

24<br />

Autoridade: quem vigia a estrada<br />

28<br />

Confusão: imagens que poluem<br />

32<br />

Política visual: grafite e pichação<br />

36<br />

Religiosidade: “Só Jesus salva!”<br />

40<br />

Manutenção: homens trabalhando<br />

46<br />

Andança: um quilômetro a pé<br />

50<br />

Rota Romântica: o lado bom da rodovia<br />

54<br />

Afivele o cinto: na Praça do Avião<br />

58<br />

Entrevista: uma pista e dois mundos<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 5<br />

62<br />

Remendo: borracharias contemporâneas<br />

66<br />

Hoje é festa na BR: bailes e bailões<br />

70<br />

Bem passado, mal passado: churrascaria<br />

76<br />

Na lona: vou correndo ao encontro dela<br />

82<br />

Acelerando: diários de motocicleta<br />

86<br />

Meu chapa: quem ajuda o caminhoneiro<br />

90<br />

À margem do caminho: vida de índio<br />

94<br />

Vem comigo: em busca do sexo<br />

98<br />

Sustento: uma tenda familiar<br />

<strong>10</strong>2<br />

Caos: morando ao lado de um viaduto<br />

<strong>10</strong>6<br />

Habitação: oito debaixo da ponte<br />

1<strong>10</strong><br />

Recortes urbanos: uma cidade dividida<br />

CLARA ALLYEGRA


ATENÇÃO CLARA ALLYEGRA<br />

6 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong>


PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | 7


cartola<br />

BR-116 chega ao extRemo sul<br />

do BRasil na década de 1950,<br />

atRavessando os campos dos<br />

aRRedoRes de pelotas<br />

Uma história em li<br />

8 | Primeira imPressÃo | JUlho/2011


nha longitUdinal<br />

Primeira imPressÃo | JUlho/2011 | 9


na década<br />

de 1930, a<br />

BR-116, ainda<br />

chamada<br />

de BR-2, eRa<br />

apenas um<br />

tRaçado<br />

de chão<br />

Batido entRe<br />

áReas pouco<br />

uRBanizadas<br />

Quando era criança, Mauri<br />

Adriano Panitz tornou-se<br />

popular entre os colegas<br />

de escola e vizinhos de<br />

rua porque gostava de<br />

desenhar. De família católica, ia à<br />

igreja aos domingos, mas desviava<br />

facilmente a atenção do sermão do<br />

padre para os afrescos no teto do<br />

templo. No centro de Porto Alegre,<br />

parava para ver um desenhista rabiscar<br />

pinturas de prédios públicos na<br />

Praça da Matriz. Mas o traçado que<br />

marcou a vida de Panitz seria bem<br />

mais simples de representar. Bastaria<br />

rabiscar uma linha longitudinal<br />

cortando o mapa do Brasil de norte<br />

a sul. De chinelo de dedo, na sala de<br />

seu apartamento, o engenheiro aposentado<br />

rabisca na fotocópia de um<br />

engenheiRo civil e especialista em<br />

pavimentação RodoviáRia, mauRi panitz, 69<br />

anos, fez caRReiRa na BR-116 desde os 26<br />

tEXto de taÍs seiBt | FotoS reProdUÇÕes e Pedro BarBosa<br />

antigo croqui o ponto inicial e o final<br />

de sua jurisdição como engenheiro<br />

residente do Departamento Nacional<br />

de Estradas de Rodagem (DNER), em<br />

São Leopoldo. Aos 69 anos, Panitz<br />

fala com saudosismo de seu trabalho<br />

pela BR-116, no trecho de aproximadamente<br />

300 quilômetros entre São<br />

Marcos e Camaquã, numa época em<br />

que as rodovias estavam em franca<br />

expansão no Brasil.<br />

Desde o Plano Rodoviário Nacional<br />

(PRN) criado em 1944, que pretendia<br />

ligar o país de ponta a ponta,<br />

foram feitos vários investimentos na<br />

construção de estradas. Especialista<br />

em pavimentação rodoviária e formado<br />

em Engenharia Civil, Panitz foi<br />

contratado em 1968 para ser assistente<br />

do então engenheiro residente<br />

do DNER em São Leopoldo, Nei Nunes<br />

Fortes de Oliveira. Um ano depois, o<br />

titular deixou a vaga em aberto e Panitz<br />

assumiu o comando da residência.<br />

O DNER, atual Departamento Nacional<br />

de Infraestrutura e Transportes<br />

(DNIT), chama de “residências” as<br />

unidades do órgão distribuídas pelas<br />

rodovias federais para monitorar os<br />

trechos. Cabia àquele jovem de 26<br />

anos comandar quase 500 empregados<br />

nas mais variadas funções: topógrafos,<br />

mecânicos, sobretudo operários.<br />

“Consegui me entrosar tão bem<br />

que eu gozava da confiança dos meus<br />

superiores e tinha a empatia dos subordinados”,<br />

diz Panitz.<br />

Os operários viviam em acampamentos,<br />

chamados de capatazias, à<br />

beira da estrada. “Era gente muito<br />

<strong>10</strong> | Primeira imPressÃo | JUlho/2011


simples, mas com grande espírito de<br />

doação”, le<strong>mb</strong>ra. “Muitos vinham da<br />

colônia, estavam acostumados a trabalhar<br />

na terra.” Daí o capricho que<br />

tinham com os canteiros da rodovia.<br />

Foi feita nesta época toda a arborização<br />

do trajeto entre Nova Petrópolis<br />

e Novo Ha<strong>mb</strong>urgo, com os plátanos<br />

amarelados no outono que estampam<br />

cartões-postais das cidades que<br />

se divulgam como a Rota Romântica.<br />

“Eu achava que plantar árvores na<br />

beira da estrada era uma maravilha,<br />

porque deixava o caminho mais bonito,<br />

mas com o tempo vi que causa<br />

alguns transtornos, como quedas de<br />

troncos e obstrução da sinalização”,<br />

avalia hoje, com a visão sistêmica<br />

que o tempo lhe deu.<br />

TraTores, NÃo carroças<br />

Cada capatazia tinha, além do<br />

acampamento dos trabalhadores,<br />

pedreira, usina de asfalto, depósito<br />

de sucata e horto florestal. Quando<br />

era preciso fazer um reparo, retirar<br />

árvores caídas ou remover pedras<br />

de quedas de barreiras, o material<br />

vinha da capatazia mais próxima.<br />

Na gestão de Panitz, já se dispunha<br />

de facilidades como tratores, carregadeiras,<br />

serra elétrica e dinamite<br />

áRea centRal de canoas<br />

nos anos 1950, hoje<br />

um dos tRechos mais<br />

movimentados da BR-116<br />

Primeira imPressÃo | JUlho/2011 | 11<br />

para executar o trabalho, mas a BR-<br />

116 começou a tomar forma no Rio<br />

Grande do Sul em tempos bem mais<br />

precários. A implantação do primeiro<br />

trecho, entre a divisa com o estado<br />

de Santa Catarina e a cidade gaúcha<br />

de Caxias do Sul, na Serra, data de<br />

1938, “aproveitando a mão-de-obra<br />

abundante, com auxílio de transporte<br />

em carroças, obedecendo aos<br />

padrões e possibilidades da época”,<br />

conforme registros do DNIT. Como<br />

“possibilidades da época”, entendase<br />

o uso de foices para afastar o mato<br />

e picaretas para detonar pedras.<br />

Até 1974, a rotina de Panitz foi<br />

dividida entre a burocracia de dar<br />

pareceres, despachar processos, fazer<br />

estudos técnicos, participar de<br />

reuniões e a parte técnica de visitar<br />

trechos, acompanhar obras, orientar<br />

trabalhos de campo. Não tinha jornada<br />

definida nem horário fixo. Fim<br />

de semana, feriado, madrugada. Era<br />

preciso estar sempre pronto para<br />

cair na estrada. O escritório, quase<br />

sempre, era a própria rodovia.<br />

Uma ocorrência no inverno de<br />

1971 é representativa para Panitz.<br />

Havia muitos buracos na pavimentação<br />

da ponte sobre o Rio Gravataí,<br />

entre Porto Alegre e Canoas. A lenti-<br />

nos anos 1960, a Rodovia<br />

já estava pavimentada<br />

e com duplicação em<br />

alguns tRechos<br />

dão no trecho, que já registrava um<br />

fluxo de 50 mil veículos por dia na<br />

época, obrigava os motoristas a enfrentar<br />

longos engarrafamentos todas<br />

as manhãs. “Mobilizei a equipe,<br />

pedi o apoio da Polícia Rodoviária Federal<br />

e passamos a madrugada trabalhando,<br />

das 23h às 5h, para recuperar<br />

a pavimentação”, conta. “Era um<br />

inverno rigoroso, fazia quase zero<br />

grau, mas todos estavam lá. Tinham<br />

um grande espírito de desafio”, completa.<br />

Na manhã seguinte, os usuários<br />

já podiam usufruir das melhorias<br />

no trecho, que, 30 anos mais tarde,<br />

continua sendo um dos grandes nós<br />

do trânsito na Região Metropolitana<br />

de Porto Alegre. “É um coração enfartado”,<br />

define Panitz, citando um<br />

artigo seu publicado recentemente.<br />

Ele compara a BR-116 à artéria principal<br />

de um coração que não suporta<br />

mais o alto fluxo de veículos, superior<br />

a <strong>10</strong>0 mil por dia. “A 116 precisa<br />

de safenas, estradas paralelas interligadas<br />

a ela, para desobstruir o entupimento”,<br />

ilustra.<br />

Vencer os desafios que a rodovia<br />

lhe oferecia a cada dia era a maior<br />

realização para aquele jovem engenheiro<br />

– e hoje a grande lição<br />

que ficou da BR-116 para sua vida.


panitz: “a BR-116 é um<br />

coRação enfaRtado”<br />

vista aéRea do tRecho canoaspoRto<br />

alegRe na década 1960<br />

mostRa o desenvolvimento da<br />

Região metRopolitana da capital<br />

“Nessa rodovia adquiri toda minha<br />

experiência, pelo método mais eficiente<br />

do mundo: errando e acertando”,<br />

avalia.<br />

Em 1974, Panitz deixou a residência<br />

do DNER em São Leopoldo,<br />

mas não se afastou da BR-116. Assumiu<br />

a chefia do serviço de trânsito<br />

da Polícia Rodoviária Federal. Segundo<br />

ele, 40% das ocorrências que<br />

precisava atender se concentravam<br />

Pedro BarBosa<br />

em 1968, o tRaçado da Rodovia<br />

coRta a cidade de canoas, sepaRada<br />

de poRto alegRe pelo Rio gRavataí,<br />

como mostRa a imagem aéRea<br />

na rodovia, por ter o maior tráfego<br />

do Estado. Paralelamente, a BR-116<br />

estava chegando ao seu quilômetro<br />

final no Rio Grande do Sul. O quilômetro<br />

654,2, em Jaguarão, na fronteira<br />

do Brasil com o Uruguai, foi<br />

concluído em 27 de abril de 1974. O<br />

Brasil enfim podia festejar a construção<br />

de sua “mais importante rodovia<br />

radial”, como registram os arquivos<br />

do Ministério dos Transportes.<br />

“Ter trabalhado em uma obra importante<br />

como a da BR-116 é fantástico!”,<br />

sintetiza Panitz. A dificuldade<br />

para encontrar as palavras certas<br />

para definir a importância da rodovia<br />

em sua vida se compara ao silêncio<br />

que ele faz quando tenta achar<br />

resposta para o que não gostava no<br />

trabalho. “É difícil achar o que era<br />

ruim”, dispara após alguns instantes.<br />

“A falta de recursos sempre atrapalhava”,<br />

comenta depois de pensar<br />

mais um pouco.<br />

Na linha longitudinal da vida de<br />

Mauri Panitz, houve tempo ainda<br />

para trabalhar no setor de planeja-<br />

12 | Primeira imPressÃo | JUlho/2011


mento do DNIT, ser diretor técnico da<br />

Secretaria de Transportes do Estado,<br />

integrar conselhos de engenharia,<br />

dar aulas na universidade, ministrar<br />

palestras e cursos, participar de<br />

debates e escrever artigos e livros.<br />

Além de casar e ter filhos. O mais<br />

velho, Carlos Eduardo, formou-se<br />

em Engenharia Civil, como o pai, e<br />

depois cursou Administração de Empresas.<br />

Luis Fernando, o mais novo,<br />

estudou Direito.<br />

Se é que a máxima consagrada<br />

faz algum sentido, Panitz pode considerar<br />

que cumpriu sua missão na<br />

vida: plantou árvores às margens da<br />

BR-116, teve filhos e escreveu livros.<br />

Uma das obras extrapola o conhecimento<br />

técnico que acumulou entre<br />

um quilômetro e outro da estrada<br />

mais importante do Brasil. Em A linguagem<br />

do silêncio, Panitz traça o<br />

próprio perfil a partir de sua paixão<br />

pelo desenho. De todos, o da fotocópia<br />

de um croqui amarelado resgatado<br />

dos arquivos do DNIT é a sua mais<br />

significativa contribuição.<br />

o tRáfego no tRecho canoas-poRto<br />

alegRe eRa intenso desde os anos<br />

1970: ceRca de 50 mil veículos poR dia.<br />

na foto, imagem RegistRada em 1972<br />

Primeira imPressÃo | JUlho/2011 | 13<br />

IMPrESSÕES DE rEPÓrtEr<br />

odovias não são obras da criação divina. são frutos do<br />

“Rtrabalho braçal de homens, quem sabe ta<strong>mb</strong>ém de algumas<br />

mulheres. para podermos hoje atravessar o Brasil de norte a sul<br />

pela BR-116, totalmente pavimentada, foi preciso que técnicos<br />

projetassem a estrada e operários fornecessem sua mão-deobra.<br />

não fazíamos ideia de quando a rodovia tinha começado<br />

a ser construída, mas queríamos encontrar uma das pessoas que<br />

trabalhou na sua construção. foi preciso insistir em contatos com<br />

ministério dos transportes, instituto de pesquisa Rodoviária, banco<br />

de dados de zero hora, museu da comunicação e câmara dos<br />

deputados, todos muito prestativos. descobrimos que a BR-116<br />

começou a ser construída na década de 1930. seria muito difícil que<br />

algum operário dessa época ainda estivesse vivo ou ao menos lúcido<br />

até hoje. a última esperança era a memória de um engenheiro<br />

aposentado do departamento nacional de infraestrutura e<br />

transportes (dnit), que nos levou à fonte desta reportagem. ainda<br />

foi possível ilustrar a matéria com a colaboração da historiadora<br />

danielle heberle viegas, que disponibilizou fotografias usadas em<br />

sua dissertação de mestrado. a lição que fica é acreditar na pauta,<br />

não desistir na primeira negativa.”<br />

imagem de 1983 mostRa a<br />

Região metRopolitana de poRto<br />

alegRe amplamente uRBanizada<br />

às maRgens da BR-116


SEIScEntOS<br />

E cInqUEntA<br />

E nOvE<br />

TEXTO DE AnDRÉ ÁvILA E EDUARDO HERRMAnn | FOTOS DE AnDRÉ ÁvILA<br />

A<br />

maior rodovia pavimentada<br />

do Brasil percorre o Rio<br />

Grande do Sul em 659 quilômetros.<br />

Começa em Vacaria,<br />

divisa com Santa Catarina, e termina<br />

em Jaguarão, na fronteira com<br />

o Uruguai. Nesse percurso, a BR-116<br />

cruza áreas urbanas de outros 23 municípios.<br />

Em alguns deles, a estrada<br />

funciona da mesma maneira que uma<br />

rua bastante movimentada, cortando<br />

seu bairro central. Seja na selva de<br />

pedras ou no meio dos pampas, muita<br />

gente tem o nome da rodovia em<br />

seu endereço residencial, comercial,<br />

ou em a<strong>mb</strong>os. O asfalto da BR liga<br />

pessoas tão distantes e tão diferentes,<br />

mas que garantem vida à via que<br />

muitos, entediados pela rotina, deixam<br />

cair na indiferença.<br />

Km 0 – No recuo da estrada, logo<br />

após a primeira curva da BR-116<br />

gaúcha, alguns carros param. Famílias<br />

tiram fotos junto à cuia gigante<br />

que dá as boas vindas no canteiro<br />

e depois seguem seu rumo. Poucos<br />

param na lancheria de Izeu Otílio<br />

Coelho da Silva, alguns metros acima.<br />

A pouca luz que entra pela janela<br />

ilumina mais que a lâmpada do<br />

bar — a penu<strong>mb</strong>ra parece dar o tom.<br />

Há mais de duas décadas no local,<br />

o tranquilo e descansado senhor de<br />

60 anos conta com a companhia de<br />

gatos, cachorros, galinhas, do amigo<br />

José e do tempo.<br />

Depois de 25 anos no final daquela<br />

curva, a única história que o dono<br />

da lancheria narra com emoção sobre<br />

a região onde sempre morou é<br />

de quando a ponte que separa os<br />

dois estados caiu, em 1964. Na época,<br />

o jovem Izeu trabalhava em uma<br />

serraria de Vacaria, perto da divisa.<br />

Foi com esse ofício que perdeu quatro<br />

dedos da mão esquerda (restou o<br />

polegar), deficiência que ele afirma<br />

não atrapalhar em nada o seu dia a<br />

dia, antes de chamar o amigo pedindo<br />

ajuda para abrir um garrafão<br />

de vinho: “Ô, José! Abre aqui, faz<br />

favor”. Do vinho tinto do garrafão,<br />

à temperatura a<strong>mb</strong>iente, serve um<br />

14 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | 15


LOGO DEPOIS DE ENTRAR NO<br />

ESTADO, A BR DESCREVE UMA<br />

CURVA EM DIREÇÃO AO SUL<br />

copo até a boca para outro senhor, morador das redondezas<br />

e cliente usual. No curto e desapressado diálogo dos<br />

senhores, a pauta é o tempo. Tempo, nesse caso, meteorológico.<br />

O tempo cronológico espera na penu<strong>mb</strong>ra,<br />

parece não importar muito para nenhum dos viventes.<br />

Km 9 – Dois casais param com certa pressa para tomar<br />

um café, deixando os apetrechos apoiados no balcão.<br />

“Não queremos chegar tarde”, avisa Hilário Herken Hoff.<br />

O destino é a festa de aniversário de um amigo, na cidade<br />

de Feliz, cerca de 180 quilômetros distante. No estacionamento<br />

do restaurante Bela Vista, na beira da estrada,<br />

duas imponentes motocicletas Harley Davidson esperam<br />

os quatro e destacam-se em meio aos demais veículos.<br />

É esse o hobby dos dois casais. Sempre que arranjam<br />

um tempo, viajam com suas motos. O último grande<br />

passeio teve origem em Daytona, nos Estados Unidos. Os<br />

casais, moradores de Blumenau, voaram até lá e alugaram<br />

motocicletas idênticas às que possuem para viajar<br />

por dois mil quilômetros pelo estado da Flórida em um<br />

encontro de motociclistas.<br />

Os funcionários já limpam o balcão enquanto os casais<br />

se preparam para seguir caminho. “Vamos lá, estamos<br />

atrasados”, insiste Hilário para sua mulher, Denise, enquanto<br />

acomoda o capacete na cabeça. Na outra moto,<br />

ao mesmo tempo em que Marcelo Teixeira acerta os braços<br />

na jaqueta, sua mulher, Izabete, testa o microfone<br />

que garante a comunicação entre o piloto e a carona.<br />

A mão já protegida com luva veste a outra. Os motociclistas<br />

ligam o motor, despedem-se e pegam a estrada<br />

novamente.<br />

Km 29 – “MAÇÃ 50MT” avisa a placa, fixada em uma<br />

pedra à beira da BR. A grafia esquisita não é problema,<br />

pois a placa é desnecessária, já que a pequena casa de<br />

madeira pode ser vista de uma distância muito maior. Gelson<br />

Mikna e sua mulher, Daniela, vendem maçãs e cuias na<br />

beira da estrada. Saíram de Iraí, 400 quilômetros distante,<br />

buscando melhores condições de vida e de trabalho.<br />

Com certa lástima, o vendedor conta que o local,<br />

com pouco mais de 25 metros quadrados, serve ta<strong>mb</strong>ém<br />

de moradia ao casal — até mesmo no gelado inverno de<br />

Vacaria. É difícil de adivinhar onde fica a cama e o banheiro,<br />

pois só o que se vê é a pequena televisão ligada,<br />

presa à parede.<br />

Por R$ 4, o casal vende dois quilos de maçã fuji. Por<br />

R$ 1 a mais, o cliente leva 2,5 quilos. As frutas são compradas<br />

de um agricultor cujo pomar tem quatro hectares.<br />

Uma pequena parcela, se comparada aos milhares<br />

de hectares das grandes empresas, onde trabalham milhares<br />

de homens. Essa abundância transforma o município<br />

no segundo maior produtor de maçãs do Brasil.<br />

Com a voz mansa, Gelson conta que o movimento é<br />

modesto, mas melhora no verão, quando o destino dos<br />

carros é o litoral catarinense e os motoristas param na<br />

única casa em uma distância que é<br />

bem maior do que 50 metros.<br />

Km <strong>10</strong>1 – A caricatura do gringo<br />

italiano da serra gaúcha prevê uma<br />

pessoa faladora e hospitaleira, que<br />

vive contando sobre sua família. O<br />

estereótipo é personificado atrás<br />

do balcão, na figura de Teresinha<br />

Mascarello Menegon. O estabelecimento<br />

que mantém com seu marido,<br />

Telipor Antônio Menegon, fica ao<br />

lado de sua casa, no sinuoso trecho<br />

da rodovia em São Marcos. Como a<br />

casa está em um pequeno recuo entre<br />

a estrada e a montanha, grandes<br />

caminhões — significativa parte do<br />

trânsito da região — têm dificuldade<br />

em estacionar no local. Dessa<br />

forma, famílias que viajam de carro<br />

representam a maior parte de sua<br />

clientela. Os produtos vão de guloseimas<br />

a souvenirs, incluindo toucas<br />

e luvas para proteger os mais friorentos<br />

no rigoroso clima serrano. O<br />

destaque fica para as comidas feitas<br />

pela Agroindústria Menegon 0151<br />

marca da família —, como mandolates,<br />

geleias e sucos.<br />

Km 159 – O antigo casarão de<br />

madeira chama a atenção de quem<br />

passa pela estrada em Galópolis,<br />

bairro do interior de Caxias do Sul.<br />

Mesmo com sua beleza rústica e centenária,<br />

a habitação não é to<strong>mb</strong>ada<br />

pelo patrimônio histórico do município.<br />

A explicação está no logradouro<br />

16 16 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong><br />

| JULHO/2011


onde se encontra. Por estar fixada<br />

às margens de uma rodovia federal,<br />

pode, futuramente, ser um empecilho<br />

para possíveis obras na via.<br />

Ao mesmo tempo em que poderia<br />

implicar em uma triste derrubada do<br />

belo casarão, uma eventual duplicação<br />

da BR-116 no local resolveria um<br />

recente problema. O trecho, que<br />

antes garantia tranquilidade para<br />

Otília Marchesini Stragliotto, de<br />

85 anos, há meia década se transformou<br />

em um local movimentado,<br />

com engarrafamentos diários.<br />

Seu filho Geraldo, que passa alguns<br />

dias da semana na casa, está<br />

até construindo um cômodo na parte<br />

de trás do terreno, para sua mãe<br />

descansar melhor. Ele conta que o<br />

barulho dos caminhões começa às<br />

4h30min, e o movimento acalma<br />

apenas depois das 7h30min.<br />

No outro lado da estrada há uma<br />

pousada. Maria Eliza, outra filha de<br />

Otília, conta que frequentemente<br />

flagra hóspedes registrando em fotografias<br />

a bela imagem da habitação,<br />

que começou a ser construída há mais<br />

de cem anos pela família Stragliotto<br />

e foi finalizada em 1914. O casarão,<br />

que já foi casa de comércio e restaurante,<br />

parece que, infelizmente, não<br />

chegará nem perto de mais um século<br />

de história. E quem se interessa<br />

em comprá-lo, diz Geraldo, ao invés<br />

de adquirir parte da história de Caxias,<br />

vislu<strong>mb</strong>ra apenas uma enorme<br />

quantidade de madeira.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | JULHO/2011 | 17 | 17<br />

Km 609 – De março a sete<strong>mb</strong>ro, a vida de Astrogildo<br />

Lemos Gonçalves — curiosamente conhecido como<br />

Dudu — é pura tranquilidade. Com sua esposa e seus<br />

cachorros, apenas espera o tempo passar. No restante<br />

do ano, o zelador do Aeroporto Municipal de Arroio<br />

Grande, há seis anos na função, tem bastante trabalho.<br />

“O movimento começa às 5h30min e só para de<br />

noite”, conta. O destino das máquinas que levantam<br />

voo da pista de mais de um quilômetro são as grandes<br />

plantações da região.<br />

Km 6<strong>10</strong> – O Brasil é um dos maiores exportadores<br />

de commodities do mundo. Entre as principais mercadorias<br />

de origem primária produzidas no país, estão o<br />

arroz e soja. O sul do estado se destaca no plantio desses<br />

produtos. Para ajudar no cultivo desses infinitos hectares,<br />

entra em campo aquele que é um vilão aos olhos<br />

de muita gente: o agrotóxico. Utilizados no co<strong>mb</strong>ate a<br />

pragas que danificam as grandes plantações, os produtos<br />

são mal vistos porque poluem o solo e são prejudiciais à<br />

saúde humana. Como grandes sí<strong>mb</strong>olos dessas substâncias,<br />

estão os aviões para pulverização da lavoura, que<br />

despejam enormes quantidades de pesticidas, herbicidas<br />

e fungicidas nas plantações.<br />

Vogler Fernandes e sua família, proprietária da Aero<br />

Agrícola Quatroas, sofrem com essa ideia. “Agrotóxico<br />

não é veneno, é defensivo agrícola. A aviação agrícola<br />

é vista como mau troço, mas não é. É uma ferramenta<br />

para o produtor rural”, afirma Vogler. Fundada em 1980<br />

por Ariel Fernandes, a empresa respeita todas as exigências<br />

a<strong>mb</strong>ientais legais para funcionar, segundo Vogler.<br />

Por conta disso, enfrenta uma concorrência desleal de<br />

quem aplica agrotóxicos com tratores e não tem os mesmos<br />

cuidados com o meio a<strong>mb</strong>iente. Além desse fator, a<br />

manutenção dos aviões custa caro, tendo em vista que<br />

as peças vêm do exterior. Sendo assim, apesar dos cerca<br />

de 30 clientes fixos da empresa, o negócio não é tão bom<br />

quanto antigamente, admite Vogler.<br />

IzEU (À ESQUERDA)<br />

PERDEU OS DEDOS<br />

AINDA JOVEM, QUANDO<br />

TRABALHAVA EM UMA<br />

SERRARIA. HOJE, DONO<br />

DE LANCHERIA, TEM<br />

A COMPANHIA DOS<br />

BICHOS NO COMBATE<br />

à SOLIDÃO. GELSON<br />

(ACIMA) AGUARDA<br />

CLIENTES NA PORTA DE<br />

CASA, NO KM 29 DA<br />

BR, ENfRENTANDO A<br />

CONCORRêNCIA DOS<br />

GRANDES PRODUTORES<br />

DE MAÇÃ


è<br />

O CASARÃO DA<br />

fAMíLIA STRAGLIOTTO<br />

CHAMA A ATENÇÃO DE<br />

QUEM PASSA POR SEU<br />

QUINTAL: A BR-116<br />

Km 657 – Nas últimas décadas, a humanidade evoluiu<br />

incrivelmente em termos tecnológicos. O leque de<br />

eletrônicos e máquinas que facilitam nossa vida apenas<br />

aumenta. No meio de tudo isso, porém, parece que algumas<br />

coisas nunca mudarão. A vida no campo, por exemplo,<br />

não deixará de ter a simplicidade e pureza da natureza.<br />

O cavalo será sempre, ao lado do cão perdigueiro,<br />

o grande companheiro dos peões. Ou será possível uma<br />

máquina substituí-lo?<br />

Winston Batalla revende, há seis meses, quadriciclos<br />

motorizados da marca argentina Zanella, fabricados<br />

na China. O castelhano confirma que os veículos de<br />

maior porte estão sendo usados no campo para, entre<br />

outros afazeres, recolher o gado. Os quadriciclos, vendidos<br />

a um preço de R$ 4 mil a R$ 9 mil, são tão econômicos<br />

— no consumo de gasolina — quanto uma moto.<br />

A vantagem para seu uso no campo é a estabilidade<br />

em terrenos mais difíceis. Os de menor porte são mais<br />

procurados para trilhas.<br />

Grande parte dos clientes mora na serra gaúcha,<br />

mas já saíram vendas até para Santa Catarina. Segundo<br />

o vendedor, são pessoas que viajam a Jaguarão e, ao<br />

percorrer os últimos quilômetros da BR-116, interessam-se<br />

pelos quadriciclos, que chegam ao seu destino<br />

via frete.<br />

Km 659 – Após ser reconhecida pelo Brasil como nação<br />

independente, a República Oriental do Uruguai permaneceu<br />

com uma dívida de mais de cinco milhões de<br />

pesos-ouro com os vizinhos do leste. O pagamento aconteceu<br />

entre 1927 e 1930, não em dinheiro, mas com a<br />

construção da Ponte Internacional Barão de Mauá. A imponente<br />

construção, erguida sobre o Rio Jaguarão, liga a<br />

cidade gaúcha de Jaguarão a Rio Branco, no Uruguai.<br />

A ponte é um belo cartão de visitas, com intenso<br />

trânsito de turistas em finais de semana – especialmente<br />

quando há um feriado colado. A maioria se hospeda em<br />

Jaguarão, mas o motivo de sua passagem fica no outro<br />

lado do rio. Na zona franca de Rio Branco estão os adorados<br />

free-shops, lojas com isenção ou redução de impostos<br />

que, em razão disso, oferecem produtos mais baratos<br />

e atraem viajantes de muito longe que buscam economia<br />

na compra de, principalmente, bebidas e perfumes.<br />

O extremo sul da BR-116 no Brasil termina exatamente<br />

na Ponte Mauá, e os viajantes que vão e voltam, carregados<br />

de mercadorias, mal sabem que ali é a ponta de<br />

uma rodovia repleta de histórias. Novas estradas surgem<br />

no horizonte e novas vidas, novas histórias, novas rotinas<br />

e novos sentimentos se apresentam ao viajante que, de<br />

fronteira em fronteira, tem sempre a estrada como inseparável<br />

companheira.<br />

18 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

epois da primeira entrevista, o silêncio<br />

“Dtomou conta do carro. O entrevistado<br />

era a personificação da melancolia, da tristeza,<br />

da vida tortuosa. ‘A BR-116 vai ser assim?’, vai,<br />

ta<strong>mb</strong>ém. A nossa pauta teve de tudo. Vimos<br />

e ouvimos muitas histórias distintas, mas<br />

sempre interessantes. A única coisa em comum<br />

entre os protagonistas é a rodovia, aspecto<br />

fundamental em seus cotidianos. Pessoas, só<br />

pessoas interessavam. Cruzar o estado ao longo<br />

de 659 quilômetros nos permitiu ver que a vida<br />

ta<strong>mb</strong>ém está na curva, no acostamento, quase<br />

dentro da estrada. O movimento de todos os<br />

personagens que moram, trabalham, atravessam<br />

ou simplesmente estão ali, nos mostra que,<br />

para a história ser interessante, basta haver<br />

alguém interessado em ouvi-la. E se tivéssemos<br />

parado em todos os lugares que nos chamavam<br />

minimamente a atenção durante o trajeto, as<br />

histórias caberiam apenas em um livro. A estrada<br />

que, antes, representava para nós apenas uma via<br />

de locomoção, ganhou outro significado. Virou,<br />

na nossa percepção, uma estrada cheia de vida.”<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 19<br />

NOVAS HISTóRIAS SURGEM<br />

A PARTIR DA BELA PONTE<br />

SOBRE O RIO JAGUARÃO,<br />

DESTINO fINAL DA BR NO<br />

SUL DO BRASIL


A AfLIçÃO dA<br />

dEMORA<br />

QUASE METADE<br />

DOS CHAMADOS<br />

PARA A SAMU DE<br />

SÃO LEOPOLDO<br />

É PARA A BR-116<br />

Sete médicos, seis enfermeiros, 12 técnicos de enfermagem<br />

e 21 motoristas revezam em turnos de<br />

24 horas no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência<br />

(Samu) na unidade da cidade de São Leopoldo,<br />

Região Metropolitana de Porto Alegre. A base recebe<br />

por dia mais de 24 chamados, são mais de 600 pedidos de<br />

ajuda por mês pelo telefone 192. Três a<strong>mb</strong>ulâncias - duas<br />

de atendimento básico e uma de atendimento avançado -,<br />

um carro e uma moto, para o deslocamento rápido, fazem<br />

a cobertura do trecho da BR-116 que corta a cidade ao<br />

meio. Quarenta e cinco por cento dos chamados mensais<br />

são para atendimentos na rodovia no trecho de São Leopoldo.<br />

Muitas pessoas dizem que trabalhar com urgência<br />

é algo para quem tem sangue frio. Nas horas que passei<br />

naquela unidade, percebi que, além de sangue frio, o importante<br />

é ter amor pela vida. Não digo amor pela própria<br />

vida, mas sim pela vida do próximo.<br />

A unidade está localizada em uma casa nos fundos do<br />

Hospital Centenário, o único da cidade. Lá a equipe tem<br />

dois quartos com camas, banheiro com chuveiro, uma<br />

sala de estar, cozinha, escritório, expurgo, farmácia e<br />

almoxarifado. O lugar de troca da equipe é a sala da<br />

frente, com um sofá de dois lugares doado e banquinhos<br />

para sentar. É ali que eles ficam entre um chamado e<br />

outro. A equipe faz uma caixinha para comprar móveis ou<br />

eletrodomésticos, e o dinheiro é arrecadado dos funcionários<br />

todos os meses. Quando dá, eles próprios fazem<br />

alguma manutenção nos veículos, tudo para evitar que<br />

uma a<strong>mb</strong>ulância fique parada na oficina esperando que o<br />

Governo Estadual libere a verba para o conserto, o que<br />

pode demorar até dois meses. Júlio de Oliveira Espineli,<br />

TEXTO E FOTOS dE LIEGE fREITAS<br />

chefe médico da unidade, conta que, em outra cidade da<br />

região, fazia o mesmo tipo de trabalho. Faltavam a<strong>mb</strong>ulâncias<br />

para o atendimento devido à demora na liberação<br />

da verba de manutenção das mesmas. “A gente usava as<br />

a<strong>mb</strong>ulâncias do município, sempre acompanhados de um<br />

carro de resposta rápida. E, quando não tínhamos mais o<br />

carro, continuamos com os atendimentos mesmo assim.<br />

O importante era o serviço não parar.”<br />

Com a BR-116 cortando São Leopoldo ao meio, existem<br />

cinco jeitos de se ir de um lado para o outro: a entrada da<br />

Unisinos, pela Avenida João Correa, pelo viaduto do Centro,<br />

pela Avenida Caxias do Sul e pela entrada da RS-240.<br />

São cinco bairros de um lado e 19 de outro. A base fica<br />

no lado com maior número de bairros, mas um dos grandes<br />

problemas é a locomoção até o outro lado. Devido ao<br />

congestionamento da BR-116, o deslocamento da base até<br />

um dos cinco bairros é mais demorada que nos outros 19.<br />

Dependendo de onde é o local do chamado, a a<strong>mb</strong>ulância<br />

fica parada na estrada. “Não podemos passar por cima dos<br />

outros carros. Quando é possível, andamos pela lateral da<br />

rodovia, ou pelo meio da pista, obrigando os carros a irem<br />

para o lado, senão, é esperar pela boa vontade dos motoristas”,<br />

relata o coordenador da unidade, o enfermeiro<br />

Roberto Tiska. Quanto à quantidade de acidentes graves<br />

que tem na rodovia, a resposta é otimista: “Antes havia<br />

bem mais. Como vão ter acidentes graves se o motorista<br />

não pode mais correr? A BR está simplesmente parada”.<br />

Uma das alternativas é a utilização de duas motos de resposta<br />

imediata para a locomoção mais rápida, mas São<br />

Leopoldo só tem uma moto e aguarda a segunda.<br />

ADRENALINA E INCERTEZA<br />

Toda a vez que uma equipe entra numa das a<strong>mb</strong>ulâncias,<br />

a adrenalina sobe juntamente com a vontade de<br />

atender o paciente o mais rapidamente possível. Com<br />

as dificuldades de locomoção por causa do congestionamento,<br />

aumenta a tensão com a incerteza de que o<br />

tempo perdido no trânsito, durante o trajeto, pode ser<br />

crucial para salvar uma vida. Quando ocorre um acidente<br />

na BR-116 na divisa da cidade de São Leopoldo com Sapucaia<br />

do Sul, no sentido norte, a equipe percorre mais<br />

de cinco quilômetros no sentido sul para conseguir voltar<br />

20 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMBRO/20<strong>10</strong> | 21


para o sentido norte, através do viaduto<br />

da RS-118. Existe um principio<br />

no atendimento pré-hospitalar que<br />

é preservar a segurança da equipe<br />

durante o deslocamento das a<strong>mb</strong>ulâncias.<br />

Por mais importante que<br />

seja a vontade de atender o paciente,<br />

a equipe não pode se expor a<br />

riscos. Andar na contramão e fazer<br />

um retorno no meio da rodovia só<br />

quando for muito seguro, e mesmo<br />

assim não é aconselhado.<br />

O chefe médico da equipe, Dr.<br />

Espineli, explica que, de acordo<br />

com a gravidade da ocorrência, os<br />

profissionais que se deslocam para<br />

atender utilizam códigos. “Para<br />

cada gravidade o motorista deve<br />

empregar uma maneira diferente<br />

de conduzir a a<strong>mb</strong>ulância de forma<br />

segura. Assim como deve ser o tom<br />

emitido pela sirene. O código vermelho,<br />

por exemplo, é usado em<br />

casos de vida ou morte. O motorista<br />

emprega uma velocidade maior<br />

e o aviso sonoro é intenso, com pequenos<br />

espaços de tempo”.<br />

Engana-se quem pensa que o<br />

deslocamento para o hospital, após<br />

o atendimento, deve ser igualmente<br />

rápido. Júlio explica que existem<br />

procedimentos médicos de<br />

salvamento que exigem que a a<strong>mb</strong>ulância<br />

esteja a uma determinada<br />

velocidade e ângulo para a estabilização<br />

do enfermo. “Cabe em uma<br />

mão as vezes em que tive que pedir<br />

para o motorista pisar no acelerador<br />

e chegar o mais rápido possível<br />

ao hospital, porque a vida do ferido<br />

dependia disso. O movimento dentro<br />

da a<strong>mb</strong>ulância em alta velocidade<br />

pode dificultar a estabilização<br />

do paciente. Se há necessidade,<br />

peço para o motorista parar, esperar<br />

até eu estabilizar o paciente e<br />

depois continuar com o trajeto”,<br />

conta Espinelli.<br />

Durante o deslocamento de um<br />

chamado, ou até uma ida ao posto<br />

para abastecer, as atividades podem<br />

ser interrompidas para um atendimento,<br />

e ele nem precisa vir da central<br />

de regulamentação. Uma normativa<br />

internacional diz que nenhuma equipe<br />

de salvamento pode negar atendimento<br />

a um paciente em via pública.<br />

Todos conferem o material e reabastecem<br />

as a<strong>mb</strong>ulâncias depois<br />

de cada atendimento. “Tratamos<br />

todo paciente como se fosse nossa<br />

mãe, pai ou algum irmão. O paciente<br />

deve ser tratado como nós queríamos<br />

que um familiar nosso fosse,<br />

com todo o empenho e dedicação<br />

possível”. Segundo Roberto Tiska,<br />

todo o dia acontece alguma coisa<br />

para marcar a memória desses profissionais<br />

da saúde.<br />

O SAMU NÃO<br />

PODE NEGAR<br />

ATENDIMENTO,<br />

MESMO DURANTE<br />

UMA IDA AO POSTO<br />

DE GASOLINA<br />

22 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMBRO/20<strong>10</strong>


ANTES DE QUALQUER SAÍDA,<br />

A EQUIPE CONFERE O MAPA<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

uando escolhi fazer o curso de jornalismo,<br />

“Qminha mãe achou que eu iria passar fome<br />

no futuro, então me obrigou a fazer o curso Técnico<br />

de Enfermagem. Assim, eu teria outra opção se no<br />

jornalismo não desse certo. Por isso tive autorização<br />

para fazer esta reportagem e acompanhar alguns<br />

deslocamentos da Unidade do Samu de São Leopoldo.<br />

Por ser, ta<strong>mb</strong>ém, profissional da área de enfermagem,<br />

durante duas sextas-feiras, por três horas, fiquei lá na<br />

unidade conversando, perguntando, fotografando,<br />

absorvendo e observando tudo. Vi o cuidado e a<br />

dedicação que as equipes de socorro empregam nas<br />

suas atividades diárias. Desde limpar, abastecer e checar<br />

tudo nas a<strong>mb</strong>ulâncias após cada atendimento, até gritar<br />

e gesticular para que os outros carros saiam da frente<br />

durante um trânsito pesado na BR-116. Agradeço a<br />

todas as equipes que me deixaram acompanhar nos<br />

deslocamentos, a paciência que o enfermeiro Tiska teve<br />

comigo e ao Dr. Júlio, por sempre explicar tudo nos<br />

mínimos detalhes, mesmo quando não precisava.”<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 23<br />

MANUTENÇÕES SIMPLES, COMO TROCAR<br />

A BATERIA, SÃO FEITAS NA PRÓPRIA BASE<br />

TROTE<br />

NA AMBULÃNCIA, O SOCORRISTA<br />

CONFERE OS SINAIS VITAIS DO PACIENTE<br />

Quando alguém liga para o 192, a ligação cai na<br />

central de regulamentação do Samu, localizada em<br />

Porto Alegre. A central faz perguntas importantes para<br />

determinar se é trote e depois avalia o caso. Em seguida,<br />

entra em contato com a unidade mais próxima<br />

do chamado. O Rio Grande do Sul é líder em trotes<br />

passados para o 192, 60% dos chamados.


Os hOmens DA<br />

O POSTO DA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL<br />

NO TRECHO ENTRE DOIS IRMÃOS E PORTO<br />

ALEGRE É RESPONSÁVEL POR ATENDER 30% DAS<br />

OCORRÊNCIAS NA BR-116 NO RIO GRANDE DO SUL<br />

TEXTO De GUILheRme mÖLLeR<br />

FOTOS De GABRIeL GABARDO


LeI


MAIS DE <strong>10</strong>0 MIL<br />

VEÍCULOS PASSAM<br />

DIARIAMENTE PELO<br />

POSTO DA PRF<br />

Uma brincadeira que virou profissão. Assim Luciano<br />

Lawisch começou a carreira na Policia<br />

Rodoviária Federal. Ele era empresário no<br />

ramo de Instalações Elétricas quando apostou<br />

com o sócio para ver quem ficava em melhor colocação<br />

na prova da PRF. Se inscreveu no último dia e teve<br />

ajuda apenas de um polígrafo. Sorte, destino, não se<br />

sabe ao certo. O que Luciano tem certeza é sobre sua<br />

profissão. Sempre foi sua vocação ajudar os outros e<br />

esse é seu principal objetivo no trabalho diário.<br />

A rotina dos policiais rodoviários federais é observar<br />

o que acontece na BR-116, atentos aos problemas<br />

do trânsito na rodovia. Eles trabalham na prevenção<br />

de acidentes e buscam evitar a criminalidade. O posto<br />

da PRF em São Leopoldo presta atendimento na<br />

rodovia no trecho de Dois Irmãos até Porto Alegre,<br />

sendo responsável por atender 30% das ocorrências na<br />

BR-116 no Rio Grande do Sul.<br />

O principal posto do Estado, que fiscaliza a Região<br />

Metropolitana, calcula um fluxo de mais de <strong>10</strong>0 mil<br />

veículos diariamente. Para os policiais Luciano Lawisch<br />

e Alberto Magnani, a quantidade grande de veículos<br />

é um problema na maioria das rodovias do Brasil.<br />

“Houve um aumento significativo no número de veículos<br />

nas autoestradas nos últimos anos, sendo que<br />

a tecnologia e a potência dos automóveis evoluíram.<br />

Porém as estradas seguem iguais”, explica Lawisch.<br />

A BR-116 sofre com problemas em sua infraestrutura,<br />

sendo que a maior parte do percurso fica localizada<br />

em áreas urbanas, o que dificulta a trafegabilidade e aumenta<br />

o número de ocorrências. O fluxo de pedestres é<br />

intenso na rodovia que corta cidades da região metropolitana<br />

como Novo Ha<strong>mb</strong>urgo, São Leopoldo, Sapucaia do<br />

Sul, Esteio, Canoas e Porto Alegre. Conforme estatísticas<br />

da PRF, 90% das ocorrências na rodovia acontecem no<br />

perímetro urbano, onde o fluxo de pedestres é maior.<br />

Para os policiais, a melhor<br />

maneira de evitar transtornos é<br />

a educação do motorista. “Precisamos<br />

educar adultos e crianças,<br />

futuros usuários. Assim teremos<br />

condutores mais conscientes,<br />

e o número de acidentes tende<br />

a diminuir”, ressalta Magnani.<br />

Hoje as ocorrências mais frequentes<br />

acontecem devido à falta<br />

de atenção dos condutores. “A<br />

maioria dos problemas ocorre por<br />

falta de preparo. É o caso das colisões<br />

traseiras e infrações como<br />

alta velocidade e desrespeito às<br />

leis de trânsito. Essas situações<br />

ocupam a maior parte do tempo<br />

dos policiais”, explica Lawisch.<br />

A BR-116 é usada como rota da<br />

criminalidade, servindo de ligação<br />

entre Brasil e Paraguai. “Hoje temos<br />

um grau de alerta maior contra<br />

a criminalidade na rodovia,<br />

sendo que o trecho é rota para o<br />

Paraguai”, conta Lawisch. Apreensões<br />

de drogas e contrabandos<br />

são comuns no trecho. “Abordamos<br />

muitos usuários de drogas,<br />

principalmente porque a rodovia<br />

é passagem para diversas festas<br />

na região. O consumo de álcool<br />

é o mais comum, mas ta<strong>mb</strong>ém há<br />

usuários de maconha e cocaína”,<br />

cita Magnani.<br />

O consumo de bebidas alcoólicas<br />

é outra situação que agrava os<br />

problemas no trânsito da rodovia.<br />

Depois da entrada em vigor da lei<br />

seca, a fiscalização aumentou e<br />

o número de autuações ta<strong>mb</strong>ém.<br />

Mesmo assim, fica impossível fiscalizar<br />

todo mundo. “É difícil<br />

conter todos os condutores que<br />

trafegam sob o efeito do álcool.<br />

Como há muitas casas noturnas no<br />

trecho da BR, é impossível cuidar<br />

o deslocamento que ocorre todas<br />

as noites. Os motoristas precisam<br />

se conscientizar que bebida alcoólica<br />

e direção não co<strong>mb</strong>inam”,<br />

diz Lawisch.<br />

O trabalho da PRF não se limita<br />

apenas ao trânsito, são diversas<br />

ocorrências. “Atendemos tudo<br />

que é tipo de caso, muitas vezes<br />

somos mais que policiais. Somos<br />

um pouco psicólogos, conselheiros,<br />

amigos... É muito bom poder<br />

26 | PRImeIRA ImPRessÃO | JULhO/2011


ajudar a sociedade, ficamos felizes<br />

com nosso trabalho”, DIZ Lawisch.<br />

Ele cita casos de pessoas que procuram<br />

o posto da PRF solicitando<br />

auxílio em situações que não são<br />

de sua competência. “Teve um homem<br />

aqui no posto pedindo ajuda,<br />

pois ele estava sendo traído pela<br />

esposa. Ele nós procurou para ser<br />

escutado, queria conselhos, atenção.<br />

Nesses casos, conversamos,<br />

aconselhamos e procuramos encaminhar<br />

o caso para o órgão responsável”,<br />

conta Magnani.<br />

uma tarde, duas infrações<br />

Numa tarde de trabalho, os<br />

policiais se depararam com dois<br />

casos de infração na rodovia. O<br />

primeiro foi a abordagem de um<br />

caminhão parado em local impróprio<br />

e com problemas de documentação.<br />

“O caminhão estava<br />

estacionado num acesso da rodovia,<br />

o que não pode acontecer.<br />

Mesmo com o caminhoneiro alegando<br />

que o veículo tinha problema,<br />

ele deveria ter parado no<br />

acostamento ou em algum local<br />

que não atrapalhasse o trânsito.<br />

Além disso, o tacógrafo (equipamento<br />

que monitora o tempo de<br />

uso, velocidade e a distância percorrida<br />

pelo veículo) não estava<br />

funcionando”, explica Magnani.<br />

A segunda infração é comum de<br />

ver no trecho, o tráfego de motos<br />

e veículos pelo acostamento. Em<br />

hipótese alguma o motorista pode<br />

dirigir pelo acostamento, sendo<br />

que está infração é considerada<br />

gravíssima, com a perda de sete<br />

pontos na carteira de motorista e<br />

multa no valor de R$ 574. Em Sapucaia<br />

do Sul, Lawisch e Magnani<br />

abordaram um motociclista trafegando<br />

pelo acostamento. Este foi<br />

imediatamente parado e a multa<br />

foi aplicada. “Não estamos aqui<br />

para tirar dinheiro do motorista.<br />

Não recebemos nada ao dar multas.<br />

Queremos que os condutores<br />

entendam que o trânsito tem leis<br />

e elas precisam ser seguidas. Nossa<br />

função é fiscalizar para que as<br />

leis sejam cumpridas e os acidentes<br />

evitados”, ressalta Lawisch.<br />

Mesmo com problemas, como<br />

PRImeIRA ImPRessÃO | JULhO/2011 | 27<br />

a falta de efetivo e equipamentos em boas condições,<br />

a Policia Rodoviária Federal atende a demanda<br />

de mais de <strong>10</strong>0 mil veículos por dia. “Nem sempre<br />

temos à disposição equipamentos e efetivo para<br />

co<strong>mb</strong>ater todos os problemas da rodovia. Porém,<br />

com muito trabalho, conseguimos atender o grande<br />

número de ocorrências todos os dias. É um trabalho<br />

gratificante, mas gostaríamos de poder fazer mais<br />

pela rodovia e pela sociedade que depende dela”,<br />

concluí Lawisch.<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

MUITAS VEZES OS<br />

POLICIAIS ACABAM<br />

AUXILIANDO PESSOAS<br />

EM SITUAÇÕES QUE<br />

NÃO SÃO DE SUA<br />

COMPETÊNCIA<br />

uando a BR-116 foi o tema escolhido para a Primeira<br />

“QImpressão, minha preferência foi acompanhar o trabalho da<br />

Polícia Rodoviária Federal . Sempre achei fundamental e interessante<br />

as ações desenvolvidas pela PRF. Tinha curiosidade sobre a rotina<br />

e os problemas enfrentados diariamente pelos policiais com o<br />

trânsito caótico da rodovia. Naquela tarde de sol, aprendi que o<br />

trabalho de policial não se limita apenas às ocorrências. Na rodovia<br />

não há uma rotina, um dia sempre é diferente do outro. Assim, ser<br />

apenas policial não basta, é necessário ser humano para lidar com<br />

todos os transtornos. Entendi como é importante a educação e o<br />

cumprimento das leis para termos uma trafegabilidade mais segura.<br />

Como motorista, a matéria desenvolvida para revista, mostrou-me<br />

as reais dificuldades enfrentadas no trânsito. Foi gratificante esta<br />

tarefa, pois passar um dia acompanhando os policiais me trouxe<br />

lições de vida, como, por exemplo, respeitar as leis. As pessoas<br />

precisam saber que as regras foram criadas para serem seguidas,<br />

principalmente no trânsito.”


O crescimentO da<br />

publicidade aO ar<br />

livre às margens<br />

da br-116 desperta<br />

diversas sensações<br />

e Opiniões entre<br />

Os mOtOristas<br />

TEXTO DE ARLETE ROUSSELET<br />

E ELLEN MATTIELLO<br />

FOTOS DE DÉBORA SOYLO<br />

VIA MULTIMÍ<br />

28 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


DIA<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 29


Quarta-feira, 22h. Uma noite<br />

de outono, com o céu<br />

reluzente de estrelas cintilantes:<br />

cenário escolhido<br />

para um passeio rumo<br />

à região metropolitana, saindo de<br />

Porto Alegre em direção a Canoas.<br />

Trafegamos em uma estrada iluminada,<br />

não pelas estrelas do céu, mas<br />

pelo contraste das luzes coloridas e<br />

ofuscantes em toda a parte. Lá estão<br />

eles: frutos da mídia visual, num verdadeiro<br />

show pirotécnico, outdoors,<br />

frontlights, painéis, logos e paredões<br />

pintados, cada um dividindo e<br />

querendo roubar o cenário das estrelas<br />

que brilham no céu. Espalhados<br />

pelas laterais da via, num verdadeiro<br />

descompasso visual e desencontrados,<br />

são captados por nossas mentes<br />

ao longo do percurso. Desordenados,<br />

confundem grifes de roupas femininas<br />

com casas de massagem, carros<br />

com anúncio de sapatos, postos de<br />

co<strong>mb</strong>ustíveis com fast-foods... E<br />

tudo passa a fazer parte de um universo<br />

de informações caóticas.<br />

Passando a Estação Niterói do<br />

metrô, há um anúncio de sapatos<br />

que duas semanas antes era de uma<br />

concessionária. Em seguida, avistamos<br />

um enorme letreiro luminoso<br />

com a marca de um co<strong>mb</strong>ustível, sinalizando<br />

se tratar de um posto com<br />

loja de conveniência. Perfilado, segue<br />

um gigantesco e desproporcional<br />

painel em formato de retrato,<br />

espelhando uma atriz de novela que<br />

cede sua imagem à campanha publicitária<br />

de uma marca de cozinha<br />

da indústria moveleira. Tudo isso vai<br />

sendo registrado, silenciosamente,<br />

pelo nosso cérebro, despertando a<br />

atenção de milhares de pessoas que<br />

trafegam, diariamente, às margens<br />

dessa via multimídia.<br />

O cenário descrito acima é familiar<br />

àqueles que percorrem a<br />

BR-116 com frequência, no trecho<br />

Porto Alegre–Canoas e vice-versa.<br />

O excesso das mídias visuais, além<br />

de chamar a atenção do público,<br />

modifica a paisagem urbana e pode<br />

ser prejudicial à saúde. Sendo assim,<br />

surge o conceito de poluição<br />

visual, que se tornou muito comum,<br />

sobretudo nas rodovias das grandes<br />

cidades. De acordo com o coordena-<br />

dor do curso de Publicidade e Propaganda<br />

da Unisinos, Sérgio Roberto<br />

Trein, nos últimos anos, tem crescido<br />

muito a publicidade externa em<br />

geral: “Quanto mais surgem novas<br />

tecnologias, surgem novos espaços,<br />

e maior acaba sendo a poluição visual<br />

nas estradas e nas ruas. Como o<br />

texto, por si só, não é tão atraente,<br />

começa o uso de imagens, cada vez<br />

maiores e mais coloridas. E, evidentemente,<br />

elas acabam sujando um<br />

pouco a paisagem”.<br />

Para Cristiano Peraço, usuário da<br />

BR-116 e motorista de van há dez<br />

anos, qualquer tipo de publicidade<br />

é válida, desde que não atrapalhe<br />

os motoristas. “Já presenciei muitos<br />

acidentes provocados pela distração<br />

causada pelo acúmulo de anúncios.<br />

Nunca aconteceu algo semelhante<br />

comigo. Geralmente, esse tipo de<br />

situação ocorre com pessoas mais<br />

inexperientes no trânsito”, afirma.<br />

De acordo com o secretário municipal<br />

do Meio A<strong>mb</strong>iente de Canoas,<br />

Celso Baroni, a Polícia Rodoviária Federal<br />

estima que 40% dos acidentes<br />

acontecem justamente pelo excesso<br />

de mídias visuais.<br />

Considerando esse fator e pensando<br />

na revitalização da rodovia,<br />

o prefeito de Canoas, Jairo Jorge da<br />

Silva, desenvolveu um projeto que<br />

prevê a diminuição dos anúncios na<br />

BR-116. A minuta do projeto está<br />

sob a análise técnica do Diretor de<br />

Relações Governamentais do município,<br />

Ernani Daniel, para que uma<br />

nova lei possa ser sancionada e pro-<br />

30 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


mulgada pelo prefeito, após ser votada<br />

e aprovada pela Câmara Municipal<br />

de Vereadores.<br />

A iniciativa visa a padronização<br />

dos painéis, limitando a distância,<br />

o tamanho e a quantidade de texto.<br />

Baroni explica que as mídias<br />

indicativas, utilizadas para sinalizar<br />

que há um estabelecimento no<br />

local, ta<strong>mb</strong>ém terão de se adequar<br />

às normas estabelecidas. “Com esse<br />

regramento, temos como pretensão<br />

reduzir pelo menos 50% da mídia<br />

existente”, projeta.<br />

Atualmente, aqueles que desejam<br />

anunciar às margens da rodovia<br />

necessitam ter a autorização<br />

da Secretaria Municipal do Meio<br />

A<strong>mb</strong>iente. No entanto, a presença<br />

de anúncios clandestinos é grande,<br />

pois muitos donos de terrenos<br />

baldios vendem o espaço para diferentes<br />

empresas, sem a licença da<br />

secretaria do Meio A<strong>mb</strong>iente. Na visão<br />

do secretário, essa atitude compromete<br />

a segurança, pois se trata<br />

de algo feito de maneira irregular,<br />

além de aumentar a poluição visual.<br />

Outra questão muito presente, em<br />

se falando de publicidade ao ar livre,<br />

são os anúncios de motéis e casas<br />

de massagem. “A ideia é impor<br />

a utilização de chamamentos mais<br />

discretos nesse desse tipo de anúncio,<br />

pois, desse modo, sem elementos<br />

apelativos na estrada, podemos<br />

evitar acidentes”, frisa Baroni.<br />

João Pedro Nunes da Silveira,<br />

diretor geral da Hmídia, empresa<br />

desenvolvedora de publicidade ao<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 31<br />

ar livre e presidente da Associação<br />

Gaúcha das Empresas de Propaganda<br />

ao Ar Livre (Agepal), acredita que<br />

os anúncios irregulares prejudicam<br />

o conceito de mídia exterior. “A<br />

empresa possui um engenheiro responsável<br />

pela estrutura dos painéis,<br />

além de trabalhar com designers e<br />

agências de publicidade no desenvolvimento<br />

do conteúdo dos anúncios.<br />

Tudo é planejado para oferecer<br />

um bom serviço”, garante.<br />

Além disso, crê que o projeto de<br />

lei só trará benefícios para as empresas<br />

e seus clientes. “A fiscalização<br />

vai aumentar, e os espaços para<br />

a publicidade serão restritos, fazendo<br />

com que os anúncios fiquem mais<br />

destacados. O conceito de mídia visual<br />

vai melhorar muito”, prevê. A<br />

publicidade externa é uma das mais<br />

acessíveis, juntamente com a publicidade<br />

feita no rádio. Pequenas e<br />

médias empresas veem nela a possibilidade<br />

de fornecer maior visibilidade<br />

ao seu produto, principalmente<br />

nas estradas mais movimentadas,<br />

como a BR-116, que já carece de vagas<br />

para anúncios. O custo varia de<br />

R$ 800 a R$1.500 reais, dependendo<br />

do tipo de mídia utilizada.<br />

Usuária da BR-116, a presidente<br />

da OAB, Subseção de Canoas, Neusa<br />

Maria Rolim Bastos, acredita que o<br />

projeto irá melhorar o aspecto visual<br />

da cidade: “As propagandas chamam<br />

a atenção de uma forma indevida.<br />

Com a padronização, teremos<br />

maior possibilidade de perceber<br />

a nossa cidade”. Para o motorista<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

uando o tema br-116 foi escolhido,<br />

“Qa primeira impressão que nos veio à<br />

mente foi a da poluição visual que ladeia a<br />

rodovia. le<strong>mb</strong>ranças dos mais variados tipos<br />

de frontlights, outdoors e painéis nos fizeram<br />

refletir sobre o contexto que está inserido<br />

em uma propaganda externa. além disso, o<br />

município le<strong>mb</strong>rado como o mais “poluído”<br />

pelas mídias foi canoas. tínhamos a ideia<br />

de que essa poluição visual era bem aceita<br />

por todos que desfrutavam dos anúncios<br />

publicitários espalhados ao longo da rodovia.<br />

Jacques Cardoso, que há sete anos<br />

realiza o transporte universitário de<br />

Porto Alegre até a Unisinos, a publicidade<br />

na rodovia é indiferente.<br />

“Até percebo que o anúncio mudou,<br />

mas como sou responsável por outras<br />

vidas, procuro não prestar muita<br />

atenção nisso. Já vi um anúncio<br />

caindo dentro de um pátio, durante<br />

uma ventania”, relata.<br />

De acordo com o coordenador<br />

Trein, a sanção do projeto não<br />

prejudicará a comunicação: “Os<br />

anunciantes podem perder o espaço,<br />

mas vão achar outras formas de<br />

anunciar seus produtos”. As mídias<br />

visuais abrangem um universo composto<br />

por desejo, economia, produtos,<br />

cores, formas e polêmicas que<br />

transmitem diferentes sensações<br />

aos espectadores.<br />

Diante do universo das mídias visuais,<br />

que contracenam com o brilho<br />

das estrelas, não podemos negar que<br />

esse desordenado mundo midiático<br />

protagoniza nossa viagem. Centenas<br />

de apelos publicitários roubam o cenário<br />

da natureza, a fim de compor o<br />

desejo do ser humano, seja ele qual<br />

for. Cabe a cada um de nós refletir<br />

até onde queremos ser abduzidos<br />

pelos apelos publicitários e conviver<br />

em harmonia com essa imensidade<br />

de tecnologias desenfreadas e largadas<br />

ao léu, sem que haja prejuízo<br />

para a nossa saúde. Quiçá que as estrelas<br />

permaneçam protagonizando<br />

o cenário de nossas rodovias e possamos<br />

andar livres das amarras da<br />

poluição visual.<br />

entendíamos, ainda, que a iniciativa do<br />

projeto legalizando e limitando o número<br />

dessas mídias traria impactos negativos à<br />

população em geral. a partir do momento<br />

em que começamos a ouvir nossas fontes,<br />

constatamos que a nossa primeira impressão<br />

era contrária à realidade investigada. Foi muito<br />

gratificante realizar esta pauta. corremos<br />

contra o tempo e passamos vários dias em<br />

canoas, ouvindo diferentes fontes, que<br />

geraram as opiniões e nos ajudaram a refletir<br />

sobre o tema.”


NA PONtA<br />

dO SPRAy<br />

Três coisas não mudam<br />

na Br-116: o consTanTe<br />

fluxo, o sTress e a<br />

informação gráfica.<br />

em um emaranhado<br />

de cores e formas, o<br />

grafiTe e a pichação dão<br />

um Toque arTísTico à<br />

paisagem urBana<br />

TEXTO dE CAROLINA tREMARIN E CRIStINA ARIKAWA<br />

FOTOS dE CLARA ALLyEGRA E GUILHERME BARCELOS<br />

No trecho da BR-116 que compreende as cidades<br />

da Região Metropolitana de Porto Alegre (RS), um<br />

misto de arte e manifestação política converge<br />

com a desordem urbana. A paisagem, ladeada por<br />

edificações cinzentas, ganha um toque de cor a partir do<br />

grafite e da pichação, que adornam os prédios que a compõe.<br />

Como em uma gigantesca tela em branco, imagens<br />

e frases de diferentes temáticas permitem uma reflexão<br />

nada óbvia: seria a BR-116 um palco da arte de rua?<br />

Por definição, o grafite é caracterizado pela intenção<br />

artística e estética extremamente comunicacional.<br />

A pichação tende ao apelo político-social. Na prática,<br />

porém, essa diferenciação é dificilmente aplicada e<br />

reconhecida, como explica Fabrício Silveira, professor<br />

de Comunicação da Unisinos e autor do livro O parque<br />

dos objetos mortos — E outros ensaios da comunicação<br />

urbana: “O grafite tem uma intenção que é estética,<br />

expressiva, de e<strong>mb</strong>elezamento. De certa forma, pode<br />

ser considerado político por popularizar essa poética<br />

GUILHERME BARCELOS<br />

inTervenções<br />

gráficas renovam<br />

o visual de espaços<br />

mal aproveiTados<br />

na Br, como ponTes<br />

e viaduTos<br />

visual. A pichação vai explorar, sobretudo, a tipografia,<br />

as letras. É uma fala para iniciados, eu falo para quem<br />

me conhece, quem é da minha crew [grupo] ou rival. Eu<br />

falo para alguém do meu meio ”.<br />

Em São Leopoldo, no bairro Scharlau, a extinta fábrica<br />

de artefatos de borrachas Franca optou por enfeitar<br />

suas paredes externas justamente com o grafite.<br />

A imagem, composta por desenhos gigantescos, coloriu<br />

o edifício de cima a baixo. Orgulhosamente, a frase<br />

“Espaço reservado para os artistas do grafite” passou<br />

a estampar a empresa. A ousadia, porém, ainda é bastante<br />

incomum na rodovia.<br />

Por estar à margem de diversas cidades, a BR-116<br />

poderia ser ainda mais explorada pelo uso do grafite<br />

devido à sua intrínseca visibilidade. Segundo Fabrício,<br />

a comercialização dessa arte tem se mostrado muito<br />

mais presente do que a pura arte-manifesto. Ta<strong>mb</strong>ém<br />

é o que diz o grafiteiro Jonathan Peres, o Jotapê, do<br />

grupo Núcleo Urbanóide, de Porto Alegre. Segundo<br />

32 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


ele, a ideia e o propósito do grafite<br />

vão além das formas que enfeitam<br />

as fachadas de estabelecimentos<br />

comerciais. “Na verdade, o grafite<br />

tem uma característica muito mais<br />

street, mais marginal, que é o<br />

spray, a latinha. É pegar uma parede<br />

suja e pintar. Grafite em si não<br />

é comercial. Grafite é apropriar-se<br />

do lugar que está sendo mal utilizado<br />

e fazer o que você quiser.<br />

No momento em que alguém pede<br />

pra você fazer uma arte, te dá um<br />

briefing para isso, se perde o sentido<br />

do grafite original.”<br />

Em contraposição, a pichação<br />

pode ser associada a dois grandes<br />

problemas enfrentados na estrada:<br />

o trânsito e a poluição. “A pi-<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 33<br />

CLARA ALLyEGRA


os Traços do grafiTe<br />

e da pichação se<br />

fundem nas criações<br />

esTampadas na Br-116<br />

chação é uma resistência em relação a isso. Mas só<br />

aumenta a experiência de uma coisa tensa, carregada<br />

e suja que temos quando atravessamos aquele trecho”,<br />

explica Fabrício.<br />

Até onde isso pode se tornar um problema, considerando<br />

o aspecto funcional da BR-116? Fabrício explica<br />

que alguns estudos analisam os riscos que as manifestações<br />

poderiam causar à atenção do motorista. “Houve<br />

uma intervenção urbana em Porto Alegre em que<br />

um grupo de pessoas limpou o túnel da Conceição e<br />

escreveu a frase ‘Por uma Porto Alegre mais limpa’. O<br />

órgão encarregado da prefeitura apagou a manifestação<br />

sob a alegação de que estava chamando atenção<br />

demais e atrapalhando o trânsito. Talvez isso tenha um<br />

fundo de verdade.”<br />

É de se pensar, portanto, que o ato de livrar o motorista<br />

das distrações deveria se estender a uma das estradas<br />

gaúchas que mais registra acidentes. Em 20<strong>10</strong>, a<br />

BR-116 ficou em primeiro lugar no ranking que elegeu as<br />

cinco rodovias mais violentas do Rio Grande do Sul, com<br />

117 mortes. Porém, uma pausa no excesso de informação<br />

existente na BR causaria, na opinião de Fabrício, ainda<br />

mais estranhamento, já que a população que faz uso da<br />

estrada convive diariamente com a aparência carregada<br />

do local. “O que muitas vezes me chama atenção são os<br />

outdoors em branco. Existem espaços que não têm nada<br />

anunciado. Essa não-ocupação é que seria curiosa, quando<br />

o ‘normal’ é a sujeira. Não consigo imaginar aquilo<br />

branco, milimetricamente organizado”,<br />

afirma.<br />

Pelo lado do artista, Jotapê<br />

não diminui nem nega a distração<br />

que as manifestações podem causar,<br />

mas não acredita ser essa a<br />

razão para tantos transtornos na<br />

rodovia. Para ele, deveria haver<br />

uma mudança no modo como cada<br />

cidade lida com a ação. “Acho que<br />

falta uma parceria com as prefeituras<br />

para apoiar um pouco mais o<br />

grafite em lugares como pontes e<br />

viadutos, espaços mal utilizados.<br />

Para que, quando se pare no sinal,<br />

se possa ter uma arte para apreciar,<br />

prestigiar”, completa. Ou<br />

seja, fazer grafite, em meio ao<br />

caos que toma grandes centros urbanos,<br />

pode representar um lugar<br />

de escape para a correria frenética<br />

e – por que não? – democratizar<br />

uma arte urbana que tem no<br />

grafite uma das suas formas mais<br />

antigas de manifestações, presente<br />

desde a década de 1980 e vinda<br />

de lugares como Filadélfia e Nova<br />

Iorque para o mundo.<br />

FOtOS GUILHERME BARCELOS<br />

34 34 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMBRO/20<strong>10</strong><br />

| JULHO/2011


Assim como o material, a forma<br />

e o público para o qual se dirigem<br />

definem o que é pichação e o que é<br />

grafite. O espaço onde a intervenção<br />

é feita ta<strong>mb</strong>ém merece atenção especial.<br />

Pensar grafite para uma cidade<br />

é bem diferente de sair por uma<br />

rodovia, como é a BR-116, com uma<br />

lata de spray na mão: apesar de a<strong>mb</strong>as<br />

apresentarem um tráfego constante<br />

— seja de motoristas, seja de<br />

pedestres — o desenho em um muro<br />

dentro de um bairro qualquer permite<br />

uma apreciação muito mais atenta do<br />

trabalho. Segundo Jotapê, o grafite já<br />

é algo grande, pensado para ser visto<br />

e compreendido rapidamente.<br />

Na BR-116, essas mesmas dimensões<br />

teriam de ser retrabalhadas e<br />

outros elementos ainda seriam adicionados:<br />

a estrutura da parede, sua<br />

forma e sua textura, por exemplo. “O<br />

grafite em si é feito para ser visto de<br />

longe. Não se preocupa muito com detalhes”.<br />

O artista explica que o spray<br />

tem como característica o escorrido,<br />

uma linha mais esfumaçada, diferente<br />

do que se pinta em uma tela. “No caso<br />

de uma rodovia, o grafite precisa apresentar<br />

uma leitura mais rápida, mais<br />

simplificada, porque a pessoa deve<br />

entender se estiver passando de carro,<br />

de ônibus. É uma coisa que ninguém<br />

vai parar para perceber detalhes.”<br />

COMUNICAÇÃO ESTÉTICA<br />

Apesar de não serem poucos aqueles<br />

que veem a pichação como um ato<br />

de vandalismo, essa manifestação<br />

consiste em uma forma de comunicação<br />

estética muito reconhecida<br />

fora do Brasil. Em 2009, a Fundação<br />

Cartier, em Paris, realizou uma retrospectiva<br />

mundial do grafite. O destaque<br />

ficou por conta de Djan Ivson,<br />

paulista, convidado a realizar uma<br />

intervenção no muro do museu com<br />

os traços brasileiros da pichação — a<br />

linha preta, vertical, geralmente explorando<br />

a caligrafia.<br />

Portanto, para você que acha que<br />

perde muito tempo parado na BR-116,<br />

em vez de ficar só bufando, dê uma<br />

olhada em volta. Se o que você vê é<br />

arte ou não, pode ser assunto para outro<br />

engarrafamento. Mas o fato é que à<br />

sua frente está, literalmente, um traço<br />

da arte urbana brasileira.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMBRO/20<strong>10</strong> | JULHO/2011 | 35 | 35<br />

a pichação<br />

na Br-116, ao<br />

mesmo Tempo<br />

que conTrasTa,<br />

pode conTriBuir<br />

com a poluição<br />

urBana<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

uando a pauta Br-116 foi escolhida, ficamos muito desanimadas.<br />

“qcomo tornar a estrada, nosso elemento diário de tortura, um assunto<br />

interessante e que fugisse da obviedade? certamente não queríamos abordar<br />

a bagunça do trânsito, já que é justamente isso que nos tira do sério logo<br />

pela manhã. foi assim que surgiu a idéia de enxergarmos a Br-116 a partir<br />

da expressão gráfica impressa em muros e viadutos das suas margens. não<br />

podíamos ter feito aposta melhor: quebramos um tabu interno e aprendemos<br />

que até mesmo a pichação tem sua função informativa no cenário da estrada.<br />

amparadas pelo registro de imagens, pudemos casar as informações textuais<br />

com as fotografias, o que facilitou a análise artística dos elementos do grafite<br />

e da pichação. mas nem tudo são flores. uma de nossas intenções de fonte<br />

havia falecido no último ano, informação que não tínhamos até tentar o<br />

contato com o finado. Já que a contratação de um médium não seria a melhor<br />

solução, resolvemos procurar outra pessoa com propriedade para falar sobre<br />

o assunto. muitos e-mails e um feriado depois, pudemos orgulhosamente<br />

finalizar esses 7.000 caracteres, escritos com muito entusiasmo.”


A<br />

PALAvRA<br />

NO<br />

CAMINHO<br />

placas e pichações ao longo da rodovia<br />

incluem frases que anunciam a fÉ em<br />

crisTo e ouTros aforismos religiosos<br />

TEXTO dE BRUNA ELIdA CONFORtE E MARCO ANtONIO FILHO<br />

FOTOS dE MARCO ANtONIO FILHO<br />

36 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 37


A<br />

placa apoiada na árvore ao lado da estrada está pintada<br />

de branco, mas, olhando de perto, percebe-se<br />

o que ela trazia anteriormente: um anúncio publicitário<br />

de certa agência imobiliária. Era a forma<br />

que o dono do negócio utilizava para se comunicar com seus<br />

possíveis clientes. Agora há outra mensagem nela. Sobre a<br />

tinta branca – com aspecto de que foi pintada às pressas, sem<br />

muito cuidado –, vemos letras tortas que parecem ter sido escritas<br />

por um analfabeto, que as desenhou em um exercício<br />

de caligrafia. O texto, um tanto quanto surreal, apresenta<br />

um alerta: “Não saia de casa sem convidar Jesus”. Ao lado,<br />

em letras menores, completa: “Ele te ama”.<br />

Logo em seguida, se avista um viaduto. Inúmeros carros<br />

cruzam-no, por cima e por baixo; de um lado e de outro;<br />

zunindo como moscas, soltando fumaça, deixando o ar de<br />

fim de tarde tão cinza quanto o cimento do viaduto. Eis que<br />

em um canto de difícil acesso, na parte de baixo do viaduto,<br />

sobre o cinza, surgem as letras brancas que formam outra<br />

mensagem. Tão surreal quanto a primeira, o texto parece<br />

suplicar: “Deixa Jesus agir na tua vida”. E completa, como<br />

na placa escorada na árvore: “Ele te ama”.<br />

Jesus Cristo – aquele que, afirmam, morreu na cruz<br />

para nos salvar, ressuscitou no terceiro dia e depois subiu<br />

aos céus – é o assunto de inúmeras intervenções encontradas<br />

ao longo da BR-116. Assim como seu pai – o<br />

onipresente Deus –, o nome de Jesus aparece em várias<br />

marquises, viadutos, placas e pedras, nas quais podemos<br />

ler, em linhas tortas, mensagens que afirmam que ele<br />

voltará, que nos ama, e que, como<br />

sugere a placa escorada na árvore,<br />

nunca devemos sair de casa<br />

sem convidá-lo.<br />

São mensagens anônimas, que<br />

não buscam vender nada (como os<br />

anúncios publicitários), marcar território<br />

(como as pichações comuns)<br />

ou informar (como os sinais de trânsito).<br />

Buscam, talvez com certo desespero,<br />

levar uma mensagem que possa ajudar os desamparados,<br />

ou simplesmente tentar salvar suas almas. Por trás<br />

dessas mensagens estão personagens invisíveis, cuja motivação<br />

e a forma de agir são um mistério para as milhares de<br />

pessoas que, diariamente, cruzam com elas na BR-116.<br />

FANTASMAS<br />

As inscrições, sem identidade, ou qualquer tipo de assinatura<br />

que possibilite rastrear os responsáveis pela sua<br />

produção, tornam os autores fantasmas. Fantasmas pairados<br />

em suas próprias mensagens. Sua aparição é dada sem<br />

que estejam no local, são autores flutuantes expondo uma<br />

verdade pessoal sem a preocupação de se fazer entender.<br />

É um estado de presença/ausência, como afirma o doutor<br />

em Comunicação Fabrício Silveira. A mensagem não<br />

deve ser entendida literalmente, mas analisada em paralelo<br />

ao gesto utilizado na produção. A importância está na<br />

ação. Autor de artigos sobre o espaço da cidade, Fabrício<br />

volta sua pesquisa para o que é conhecido como “fantasmagoria<br />

urbana”, conceito que pode ser definido, em bre-<br />

ves palavras, como um lugar conceitual no limite do real<br />

e da imaginação, uma indefinição sobre a veracidade de<br />

algo encontrado no espaço urbano.<br />

Segundo Fabrício, os personagens por trás das intervenções<br />

religiosas – e as próprias inscrições – se enquadrariam<br />

nesse conceito de “fantasmagoria”, por estarem nesse estado<br />

limite entre presença e ausência: “É alguém que fala,<br />

mas quem é esse alguém? É alguém que está ali presente,<br />

mas que presença é essa?”, questiona-se Fabrício.<br />

Apesar da dificuldade em localizar e identificar essas<br />

pessoas, é possível ir atrás de seus rastros na tentativa de<br />

traçar um perfil. Esse perfil ta<strong>mb</strong>ém está ligado à ação e<br />

à forma que esses autores utilizam. “O que motiva o cara<br />

a escrever lá no muro, subir em cima de uma ponte, é fazer<br />

aquilo. Ele poderia escrever ‘Inter’ lá, mas escreveu<br />

‘Jesus voltará’. O que motiva ele, o que dá a adrenalina<br />

não é escrever ‘Inter’ ou ‘Jesus’, é escrever lá, naquele<br />

lugar.”, reflete Fabrício. Seguindo sua linha de raciocínio,<br />

Fabrício afirma que, em contrapartida, o autor que<br />

pinta suas inscrições em placas e pedras assume sim um<br />

caráter de pregação: “Isso não é pichação. Isso é anunciabilidade.<br />

Tosca, informal. Eu acredito que quem fez<br />

tinha um propósito religioso”, afirma Fabrício.<br />

Já o autor das placas “Jesus breve voltará” – fixadas em<br />

inúmeros postes ao longo da região metropolitana de Porto<br />

Alegre e ta<strong>mb</strong>ém da BR-116 – utiliza o caráter de bordão,<br />

e isso ta<strong>mb</strong>ém revela algo em relação a seu perfil. Para<br />

Fabrício, a ação praticada por esse autor é a de esvaziar<br />

o seu sentido ao torná-lo reprodutível,<br />

atribuindo à frase um caráter<br />

de slogan, assim ela deixa de ter o<br />

caráter da pregação. Esse jargão<br />

vai ser encontrado onde as pessoas<br />

menos esperam, e nesse sentido<br />

ele é fantasmagórico.<br />

Para Adriana Daccache, artista<br />

plástica e pesquisadora, que<br />

há 11 anos desenvolve ações inspiradas<br />

em José Datrino, o Profeta Gentileza (conhecido<br />

a partir de 1980 por fazer inscrições sob um viaduto<br />

do Rio de Janeiro), esses autores anônimos se utilizam<br />

das palavras para, de alguma maneira, levar as pessoas<br />

a Deus. “A diferença entre eles é a intenção da palavra.<br />

Talvez um acredite na palavra de Deus, como ‘Cristo<br />

salva’, e o outro na ação da palavra gentileza, por<br />

exemplo, no efeito de sua ação”, afirma ela.<br />

Assim como Fabrício, Adriana ta<strong>mb</strong>ém pensa que a importância<br />

está na ação. Ao ser questionada se encontra<br />

alguma relação entre as inscrições dessas pessoas e as do<br />

profeta Gentileza, ela responde enfaticamente que não.<br />

“Na verdade, a<strong>mb</strong>os usam a palavra como veículo, mas são<br />

ações diferentes. Basta saber sobre o Gentileza: ele tinha<br />

contato direto com as pessoas, ele distribuía flores e palavras<br />

de gentileza, de ajuda ao próximo, largou sua vida<br />

em função do outro”, explica. “Acredito que façamos, a<br />

princípio, o que conhecemos. Escrever, grafitar ou pintar<br />

em um muro é mais fácil que qualquer outra coisa.”<br />

Adriana já perdeu a conta de quantos mil adesivos<br />

38 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


com a frase “Gentileza gera gentileza” ela produziu ao<br />

longo de 11 anos. Para ela, estar em uma via de acesso<br />

não garante que o passante, seja pedestre ou condutor,<br />

lerá o escrito, a mensagem. “Portanto, não garante ta<strong>mb</strong>ém<br />

um seguidor”, conclui.<br />

O vENdEdOr dE SUCOS E O prOFETA<br />

Airton Valenti, está parado no canteiro central da<br />

Avenida dos Estados – ligação direta entre Porto Alegre e<br />

a BR-116 – com seus olhos de um brilho úmido fitando o<br />

movimento de carros que vêm e vão. Não é ele o homem<br />

que pinta mensagens religiosas nas placas brancas, mas<br />

diz conhecê-lo. “Somos amigos, é uma pessoa muito querida”,<br />

afirma com um sorriso largo, de poucos dentes. O<br />

amigo – do qual não sabe o nome – vende suco de laranja<br />

no local, rodeado pelas placas com mensagens religiosas<br />

que ele próprio pinta. É conhecido de quem costuma<br />

entrar ou sair de Porto Alegre pela avenida como uma<br />

espécie de profeta.<br />

Airton é um grande admirador do trabalho de seu amigo:<br />

“É comovente, dá um astral para quem está chegando<br />

a Porto Alegre. É como chegar na casa de Deus”. Se autodenominando<br />

“crente”, conta que muitas vezes a prefeitura<br />

recolhe as placas que ficam dispostas em diversos<br />

pontos ao longo da avenida, que vai do Viaduto Leonel<br />

Brizola à divisa com a cidade de Canoas. Mas isso não desmotiva<br />

o vendedor de sucos a produzir novas mensagens.<br />

“Ele procura viver em um mundo melhor, ele é bom para<br />

humanidade. Hoje em dia, com tanta violência é importante<br />

le<strong>mb</strong>rar de Deus”, finaliza Airton.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 39<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

osso maior desafio nessa pauta era o fato de nossas<br />

“nprincipais fontes serem praticamente inacessíveis.<br />

verdadeiros ‘fantasmas’, como destacamos na matéria.<br />

fomos então, primeiramente, investigar os locais, buscando<br />

rastros e evidências – se não das identidades, pelo menos<br />

da personalidade desses homens invisíveis. na saída de<br />

porto alegre, na divisa entre a avenida dos estados e a Br-<br />

116, encontramos placas e pedras pintadas de branco com<br />

inscrições religiosas pintadas em preto, em um padrão que não<br />

deixava dúvida de que se tratava do mesmo autor. por perto<br />

residia ainda o pote de tinta, mas nenhum pincel. algumas<br />

pessoas afirmaram ter visto em um cruzamento um senhor<br />

que seria o autor das placas brancas, mas não conseguimos<br />

localizá-lo nas tentativas que fizemos. dizem que se chama<br />

paulo – assim como o apóstolo que se converteu cristão após<br />

ter uma visão de cristo na cruz – e que, entre uma pregação<br />

e outra, vende sucos. porém, para nós, paulo continua sendo<br />

apenas um fantasma.


engenheiros, TÉcnicos e<br />

operários precisam manTer<br />

a rodovia em condições<br />

Trafegáveis para os 120<br />

mil veículos que por ela<br />

passam diariamenTe<br />

ENGENHARIA A S<br />

40 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMBRO/20<strong>10</strong>


EU SERvIçO esTudo,<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMBRO/20<strong>10</strong> | 41<br />

JANKIEL AZEvEdO<br />

planeJamenTo<br />

e execução<br />

garanTem a<br />

segurança<br />

daqueles que<br />

Trafegam pela via<br />

TEXTO dE táRLIS SCHNEIdER<br />

FOTOS dE CLARA ALLyEGRA<br />

E JANKIEL AZEvEdO<br />

Deixando o engarrafamento<br />

de lado, a BR-116 se mantém<br />

em excelente forma, silhuetada<br />

e com uma “textura de<br />

pele” de dar inveja às “coroas” como<br />

ela. Impressiona quando se pensa<br />

na relação entre volume de fluxo de<br />

veículos e estado de conservação. A<br />

difícil tarefa de manutenção dessa<br />

que é uma das principais vias do Rio<br />

Grande do Sul fica a cargo de dezenas<br />

de profissionais, entre engenheiros,<br />

técnicos e operários. São eles os encarregados<br />

da recuperação asfáltica<br />

contínua, com a importante missão<br />

de manter a rodovia em condições<br />

trafegáveis para os 120 mil veículos<br />

que por ela passam diariamente.<br />

Há mais de 30 anos, o Departamento<br />

Nacional de Infraestrutura de<br />

Transportes (DNIT) não mantém funcionários<br />

próprios com as atribuições<br />

de realizar obras ou reformas em<br />

vias federais. Desde a década de 70,<br />

a principal função do órgão é fiscalizar<br />

as obras realizadas por empresas<br />

licitadas. Os contratos limitam o<br />

tempo necessário para realização do<br />

projeto e ditam quais recursos materiais<br />

serão utilizados, segundo informa<br />

o engenheiro civil e analista em


a manuTenção<br />

consTanTe É<br />

fundamenTal<br />

para o<br />

andamenTo<br />

da esTrada<br />

CLARA ALLyEGRA<br />

JANKIEL AZEvEdO<br />

infraestrutura de transportes Luciano<br />

Santarém. Além dele, outros 24<br />

engenheiros são os responsáveis por<br />

analisar e fiscalizar cada operação<br />

nas estradas federais do Rio Grande<br />

do Sul. Cada projeto licitado tem<br />

a supervisão de dois engenheiros,<br />

sendo um titular e outro reserva.<br />

“Temos uma função muito importante,<br />

pois trabalhamos para<br />

melhorar as condições das estradas”,<br />

comenta o engenheiro. Ele<br />

enfatiza que a segurança dos motoristas<br />

aparece como um dos objetivos<br />

de seu trabalho. Santarém<br />

salienta que o serviço prestado<br />

pelos profissionais responsáveis<br />

pela fiscalização poderia ser melhor.<br />

“Temos boas condições materiais,<br />

carros para locomoção e<br />

uma situação predial boa, mas o<br />

ideal seria duplicar a quantidade<br />

de fiscais”, comenta.<br />

O trabalho de fiscalização de<br />

Santarém ta<strong>mb</strong>ém conta com o<br />

auxilio de técnicos como Eloir Sehnem,<br />

60 anos, 23 deles passados<br />

dentro do DNIT. “Sou da época em<br />

que calculávamos tudo a mão. Hoje<br />

a tecnologia nos ajuda muito para<br />

a realização do trabalho. Vai tudo<br />

para um chip!”, diz o técnico que<br />

carrega na genética a profissão.<br />

Seu pai foi funcionário do DNIT por<br />

décadas e exercia praticamente a<br />

mesma função de Eloir.<br />

Por ser um trabalho que envolve<br />

alto risco, o técnico rele<strong>mb</strong>ra<br />

fatos que marcaram sua trajetória<br />

no órgão, como um deslizamento de<br />

encosta que atingiu operadores de<br />

máquinas durante uma intervenção<br />

em Galópolis, ou a explosão de um<br />

caminhão de co<strong>mb</strong>ustível durante a<br />

duplicação da BR-116 entre São Leopoldo<br />

e Estância Velha. Na mesma<br />

época, um acontecimento que ainda<br />

arranca sorrisos do técnico foi o<br />

pouso de um pequeno avião em uma<br />

cancha de brita que serviria de base<br />

para a atual rodovia. “Estávamos<br />

trabalhando na via lateral, perto do<br />

antigo aeroporto de Novo Ha<strong>mb</strong>urgo,<br />

quando vi o teco-teco pousando<br />

na estrada de brita. Paramos o<br />

trabalho e fomos ver se estava tudo<br />

bem. O piloto saiu caminhando,<br />

como se nada tivesse acontecido”.<br />

42 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


Santarém e Sehnem afirmam<br />

que, mesmo com o intenso fluxo de<br />

veículos que trafegam diariamente<br />

pelo trecho da BR-116 entre Porto<br />

Alegre e Nova Petrópolis, as condições<br />

físicas da via são excelentes<br />

devido à forma como a rodovia foi<br />

construída. Eles comentam que o<br />

tipo de construção e o solo no qual a<br />

rodovia foi concebida propicia uma<br />

manutenção de qualidade, dotando-a<br />

de grande durabilidade.<br />

QUEM ExECUTA?<br />

Se a principal finalidade do DNIT<br />

é fiscalizar, então, quem executa as<br />

operações de manutenção? Atualmente,<br />

o trecho entre Porto Alegre e<br />

Nova Petrópolis é atendido pela empresa<br />

Sultepa sob regime de contrato<br />

através de licitação federal. Nos<br />

últimos dois anos, quem esteve e<br />

permanece à frente da árdua incu<strong>mb</strong>ência<br />

de manter em boas condições<br />

físicas a BR-116 é o engenheiro Marco<br />

Túlio Britto Macedo. Formado em<br />

1987, comandou no auge das obras<br />

de recuperação efetiva da via, cerca<br />

de <strong>10</strong>0 operários, divididos em equipes<br />

pré-definidas de acordo com as<br />

funções a serem desempenhadas.<br />

“Hoje contamos com um efetivo<br />

de cerca de 40 operários, responsáveis<br />

pela roçagem e operações emergenciais,<br />

como conserto de fissuras<br />

ou buracos”, relata o engenheiro.<br />

Ele diz que se sente gratificado ao finalizar<br />

os serviços de reparo sem que<br />

acidentes de trabalho graves aconteçam<br />

com algum de seus subordinados.<br />

“A segurança é fundamental em<br />

nosso trabalho”.<br />

No trecho da Região Metropolitana,<br />

em julho de 20<strong>10</strong>, as equipes<br />

de engenharia da BR-116 enfrentaram<br />

um desafio inédito na via: a<br />

substituição de um viaduto de 50<br />

metros, localizado próximo à Refinaria<br />

Alberto Pasqualini, em Esteio.<br />

Com ajuda de um guindaste de 500<br />

toneladas, o uso de explosivos e da<br />

força de trabalho de uma equipe de<br />

50 homens, foi possível retirar a antiga<br />

estrutura de concreto, dando<br />

lugar ao novo viaduto de aço. Após<br />

56 horas de operação sob o tempo<br />

chuvoso do inverno gaúcho, os<br />

quatro módulos de metal, pesando<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 43<br />

60 toneladas cada, foram içados e<br />

montados no mesmo local. Esse tipo<br />

de ação nunca havia sido realizado<br />

no Rio Grande do Sul, e pela primeira<br />

vez na história do trecho gaúcho<br />

da BR-116 houve o fechamento total<br />

da via, obrigando o tráfego de veículos<br />

a ser desviado pelas vias laterais.<br />

Mas o rápido transtorno valeu<br />

a pena. A nova estrutura de R$ 6,8<br />

milhões tem previsão de durabilidade<br />

de 80 anos, sendo dez vezes mais<br />

resistente que sua predecessora.<br />

Uma simples roçagem, ou a pintura<br />

rápida de um trecho, até a substituição<br />

de todo um pavimento...<br />

se for preciso, move-se pontes! A<br />

necessidade em qualificar a problemática<br />

BR-116 é o desafio que move<br />

esses profissionais. A luta constante<br />

contra o tempo, que urge em se fazer<br />

de tudo um pouco; intempéries<br />

que variam temperaturas e níveis de<br />

umidade que desmotivam até o mais<br />

afinco trabalhador; em amenizar<br />

congestionamentos causados por reparos<br />

e conseqüências sofridas pelos<br />

usuários já cansados com a falta de<br />

alternativa em mobilidade urbana;<br />

e na busca constante em adequar os<br />

recursos à realidade pela qual passa<br />

a BR-116. Aos serviços da rodovia<br />

mais movimentada do Rio Grande do<br />

Sul, estão todos esses profissionais:<br />

engenheiros e suas equipes, diariamente<br />

em planejamento, executando<br />

e finalizando obras.<br />

O ciclo não se encerra, apenas<br />

é repassado para a próxima equipe.<br />

Os escultores de rodovia fazem a<br />

sua parte. Os milhares de motoristas<br />

que penam ao tomar a estrada como<br />

caminho, ta<strong>mb</strong>ém têm a sua participação,<br />

quando no final das contas<br />

segregam uma porção dos seus ganhos<br />

aos impostos, confiando-os aos<br />

administradores desse pais. Quantas<br />

horas perdidas no caos do trânsito,<br />

nesta e em outras BRs, serão necessárias<br />

para que se deixe de apenas<br />

amenizar os problemas de locomoção<br />

urbana, e sim, investir massivamente<br />

em alternativas que modifiquem o<br />

perfil do transporte brasileiro? Nem<br />

engenheiros, nem matemáticos,<br />

nem ninguém é capaz de responder<br />

essa questão.<br />

A mudança é bem-vinda, e, quem<br />

sabe, as próximas histórias a serem<br />

contadas serão a de outros engenheiros<br />

civis, responsáveis por trens<br />

que não poluam, por aeromóveis<br />

silenciosos ou pela simples integração<br />

entre bicicletas e veículos. O<br />

que mais precisamos para qualificar<br />

nossa logística?<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

or questões acadêmicas e pessoais, trafego quase<br />

“pque diariamente pela Br-116. Todos sabemos<br />

dos problemas causados pelo intenso fluxo de veículos,<br />

como bem conhecemos os transtornos decorrentes das<br />

obras de recuperação. ao fazer a reportagem sobre a<br />

manutenção da rodovia, conheci o outro lado: o lado dos<br />

engenheiros. descobri as dificuldades e as preocupações<br />

pelas quais passam esses profissionais, que diariamente<br />

trabalham para melhorar (e amenizar) os obstáculos<br />

que enfrentamos ao pegar a estrada. os cuidados com<br />

a segurança dos usuários estão entre os principais<br />

pontos citados por eles. são conscientes de que suas<br />

ações atrapalham o trânsito, mas o fazem da maneira<br />

mais otimizada possível, afim de não interromper ou<br />

prejudicar o fluxo da Br-116. sentem-se satisfeitos com<br />

seu trabalho, pois sabem da importância em manter a via<br />

nas melhores condições. Tudo para transformar o trajeto<br />

numa via mais agradável e segura para todos àqueles que<br />

por ela se deslocam, seja a trabalho, estudo, passeio...”


ATENÇÃO CLARA ALLYEGRA


UM qUILôMEtRO<br />

passo a passo, passa um<br />

quilômeTro. e a cada passo,<br />

curiosidades e personagens<br />

aparecem suTilmenTe. soB os<br />

nossos olhares, o espaço enTre os<br />

km 264 e 265 da Br se Torna mais<br />

humano, ganha vida, ou melhor,<br />

as vidas e hisTórias se apresenTam<br />

TEXTO dE ANA PAULA FIGUEIREdO E tAMIRES GOMES<br />

FOTOS dE AtHOS BEUREN E ROBERtA REIS<br />

Passos curtos e olhos atentos, debaixo de uma<br />

so<strong>mb</strong>rinha, observamos o que havia ao redor. Era<br />

difícil andar por entre os obstáculos: lixo, pedras,<br />

poças de água, garrafas e até mesmo roupas jogadas<br />

pelo caminho. Depois de alguns metros de andança,<br />

uma surpresa. Uma casinha, perdida em meio à paisagem<br />

de concreto, asfalto e prédios monocromáticos,<br />

chama a atenção por manter um pátio florido de hibiscos<br />

e parreiras. Ali mora há mais de 50 anos o aposentado Vitalino<br />

Angelo Frá. O senhor de 62 anos gasta pouca saliva<br />

para contar as le<strong>mb</strong>ranças do seu tempo de piá. “Le<strong>mb</strong>ro<br />

quando era menino, eu e meu irmão jogávamos bola aqui<br />

na faixa, agora está muito perigoso. Naquela época ficávamos<br />

até tarde na rua e era bem iluminado”, compara<br />

Vitalino, que se refere à BR-116 como faixa, assim chamada<br />

popularmente.<br />

O trecho da rodovia entre os quilômetros 264 e 265,<br />

um local inóspito, com calçadas irregulares e prédios depredados,<br />

foi definido como roteiro da nossa caminhada,<br />

em uma manhã fria e chuvosa de sábado. Ao explorar<br />

46 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


dE HIStóRIAS<br />

esse percurso, acompanhadas pelos colegas fotógrafos,<br />

encontramos essa e outras histórias, que talvez nunca<br />

fossem contadas.<br />

Vitalino preserva o legado dos pais, mas informa que o<br />

pátio já esteve mais bem cuidado, hoje o tempo escasso<br />

impede que a jardinagem esteja em dia. O aposentado<br />

dedica seu tempo para plantar alguns pés de alface, cuidar<br />

dos três cachorros e dos afazeres domésticos. Mesmo<br />

assim, a residência se destaca pela grande quantidade<br />

de verde avistada de longe, e assim o contraste da natureza<br />

com o urbano é inevitável. Localizada entre<br />

um hotel e um motel, onde as pessoas costumam<br />

permanecer por poucas horas, ou no<br />

máximo por alguns dias, a casa de Vitalino<br />

resiste ao tempo e ultrapassa<br />

gerações. “O hotel existe há muitos<br />

anos, mas era bem diferente.<br />

No lugar do motel havia um ferro<br />

velho, com sucata de caminhão.<br />

Tinha poucas casas e a estrada<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 47<br />

era uma única pista larga de paralelepípedos.”<br />

A família veio da cidade de Farroupilha no início dos<br />

anos 60 para tentar uma vida melhor em Canoas, conta<br />

Vitalino. Depois de perder a esposa, ele assumiu os cuidados<br />

da residência onde cresceu e passou a dividir o<br />

espaço com o irmão mais novo, Luiz. No pátio, estão duas<br />

casas, uma onde a família morou, e onde ele ainda reside,<br />

e a outra que serviu de estabelecimento comercial.<br />

A<strong>mb</strong>as foram construídas pelo seu pai na época em que<br />

o trânsito e o barulho não eram constantes. Hoje, o som<br />

AtHOS BEUREN<br />

canoas cresceu, e a<br />

casa de viTalino<br />

conTinua lá, do mesmo<br />

JeiTo que foi consTruída,<br />

há mais de 50 anos


FOtOS AtHOS BEUREN<br />

dos veículos torna impossível imaginar a cena presente<br />

somente na memória de Vitalino.<br />

Até uma hora da manhã o tráfego é intenso, e, mesmo<br />

sendo difícil de se acostumar, ele já tira de letra e<br />

dorme bem à noite. “Entre uma e três da madrugada, o<br />

barulho diminui um pouco, mas sempre tem movimento.<br />

Caminhões e motos passam a toda hora.”<br />

Mesmo habituado aos incômodos provenientes do fluxo<br />

dos carros, Vitalino sonha com o dia em que poderá<br />

retornar para a terra natal. “Tenho vontade de voltar<br />

para Farroupilha, mas falta coragem para a mudança,<br />

pois vivo aqui há 50 anos”, confessa.<br />

Chega a hora da despedida, a caminhada segue no<br />

ritmo anterior, frio e cinza. Não há mais flores e jardins.<br />

O SUSTENTO à bEIrA dA ESTrAdA<br />

Cerca de 400 metros à frente, há o comércio do casal<br />

Magda Isabel Pizzi Rodrigues e José Carlos Rodrigues. Estabelecidos<br />

no ponto comercial há dez anos, trabalham<br />

com a venda de kits para identificação de cargas perigosas,<br />

via telefone. A renda obtida com o trabalho financiou<br />

a formação em ensino superior de seus três filhos.<br />

O casal conta o que já presenciou nessa década<br />

de ofício, descrevendo com detalhes os acidentes e<br />

atropelamentos ocorridos no local. Magda chama a<br />

atenção para outro ponto crítico, o transporte público.<br />

“Os ônibus aqui são precários. Não ando de ônibus,<br />

mas a minha secretária precisa usar o transporte<br />

e passa muito trabalho. Diminuíram a quantidade de<br />

veículos, e alguns nem param, passam reto ou ficam<br />

cheios de gente”, avalia. Magda e José apenas utilizam<br />

o ônibus quando é estritamente necessário, como<br />

no caso de algum serviço a ser realizado fora do município.<br />

“Quando vamos a Porto Alegre, procuramos<br />

cuidar para não sair em horários de pico, pois, caso<br />

contrário, já sabemos, será preciso ter paciência, ligar<br />

o radinho”, brinca Magda.<br />

As paradas lotadas são alvo para assaltantes, o que<br />

mostra a insegurança presente às margens da rodovia. O<br />

estabelecimento de Magda e José Carlos ta<strong>mb</strong>ém já foi<br />

vítima de roubos. “Arro<strong>mb</strong>aram aqui quatro vezes, mas<br />

sempre à noite, quando já tínhamos ido e<strong>mb</strong>ora”, afirma<br />

Magda.<br />

ANdANÇA SOlITárIA<br />

O que mais se encontra no trecho são concessionárias<br />

de carros, postos de gasolina, motéis, casas noturnas,<br />

mas gente pouco se vê pelos arredores. Andamos um pouco<br />

desconfiados com a falta de vida aparente nas imediações,<br />

receio típico provocado por lugares desertos. Volta<br />

e meia surge um vivente apressado, principalmente nas<br />

proximidades do supermercado Zaffari Bourbon, que emprega<br />

muitos funcionários.<br />

Allane Rodrigues Pereira trabalha no local e está acostumada<br />

com o percurso. Moradora de Esteio, ela vai ao<br />

hipermercado pelo menos seis dias por semana para trabalhar<br />

em uma loja de roupas. “Seguro não é, mas medo<br />

não tenho”, conta. A segurança vem da experiência. Com<br />

apenas 20 anos, Allane já teve outros empregos e precisava<br />

andar sozinha até o serviço. “Trabalhei em Esteio,<br />

ta<strong>mb</strong>ém na BR.”<br />

Mais alguns metros à frente, surge um ponto interessante<br />

do percurso: uma estreita e alta passarela de madeira,<br />

cujos vãos permitem enxergar os carros passando<br />

48 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


por baixo dos pés. Reza a lenda que a Passarela da Cabeça,<br />

como é conhecida, recebeu este nome por causa de<br />

uma briga, em que um dos inimigos jurou que mataria o<br />

outro e colocaria a cabeça dele exposta na passarela. O<br />

homem jurado de morte, sabendo da ameaça, adiantouse<br />

e reverteu a situação, expondo a cabeça daquele que<br />

desejava ser seu algoz.<br />

FINdA A jOrNAdA<br />

Um trecho curto, de carro, é atravessado em apenas<br />

dois minutos. Porém, as histórias interessantes que<br />

descobrimos pelo caminho fizeram com que a caminhada<br />

durasse mais de uma hora. O trajeto compreende uma<br />

das passagens da BR-116 mais movimentadas da Região<br />

Metropolitana. Mesmo com tanta gente indo e vindo, nitidamente<br />

é um lugar não planejado para o passeio, por<br />

isso a caminhada por ali é solitária.<br />

A placa que marca o quilômetro 265 indica que chegou<br />

a hora de ir e<strong>mb</strong>ora. Vamos. Todos cansados, molhados<br />

e com coisas para contar em forma de texto e<br />

fotografias. As histórias que ficaram por ser contadas<br />

são muitas. A cada esquina, com um pouco mais de tempo<br />

e atenção, seria possível extrair um caso merecedor<br />

das páginas da revista.<br />

A correria do dia a dia torna as milhares de pessoas que<br />

passam pelo local indiferentes às peculiaridades do caminho,<br />

que, como comprovado pela jornada descrita, escondem<br />

casos interessantes em meio à paisagem e<strong>mb</strong>rutecida<br />

e envelhecida pela fumaça dos carros e caminhões.<br />

Cada colega leva para casa suas impressões sobre<br />

a tarefa e uma conclusão em comum: possuímos visão<br />

seletiva.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 49<br />

viTalino se acosTumou com o<br />

Barulho do TrÂnsiTo inTenso<br />

da Br. um dia, ele preTende<br />

percorrê-la para volTar a<br />

sua Terra naTal, farroupilha<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

uantas vezes andamos por aí sem olhar para<br />

“qos lados, concentrados no destino e não no<br />

percurso. depois de caminhar com esse objetivo pela<br />

Br-116, os lugares comuns se apresentaram sob<br />

nova forma, quase sempre negativa. entre as fontes,<br />

sem desmerecer ninguém, o senhor vitalino ganhou<br />

destaque, não só pelas histórias de infância, mas por<br />

manter vivo o a<strong>mb</strong>iente em que cresceu, mesmo que<br />

tudo na volta tenha mudado. Todos os sentidos foram<br />

explorados. a visão não foi a mais privilegiada, pois<br />

o cenário incomoda, perturba no início. foi difícil<br />

acreditar que boas histórias poderiam surgir daquele<br />

espaço aparentemente desabitado. a audição não teve<br />

paz, solicitada a todo instante pelo barulho dos carros,<br />

que abafam a maioria dos sons ao redor. os cheiros se<br />

misturavam, o nariz não diferenciava mais o odor de<br />

lixo, co<strong>mb</strong>ustível e fumaça dos carros. o tato foi sentido<br />

pelos pés, que pisavam o chão irregular e as poças de<br />

água. o único que escapou foi o paladar, mas por pouco.<br />

no caminho, o aroma de carne assada vindo de uma<br />

churrascaria atiçou as papilas gustativas. o percurso foi<br />

igual, os sentidos é que ficaram mais aguçados.”<br />

ROBERtA BECKER


EncAntOS dA<br />

O ANTIGO MOINHO FAZ<br />

PARTE DAS ATRAÇÕES<br />

DO PARQUE HISTÓRICO<br />

MUNICIPAL JORGE KUHN<br />

50 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


SUbIdA dA SERRA<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 51<br />

Não são em paisagens verdes,<br />

riachos despoluídos,<br />

obras de arte e em calmaria<br />

que você pensa quando<br />

falamos da BR-116. O trânsito lento,<br />

acidentes, as horas perdidas dentro<br />

de um automóvel, a poluição sonora<br />

e visual parecem co<strong>mb</strong>inar bem<br />

mais com ela. No entanto, um trecho<br />

da estrada que passa pelo caminho<br />

turístico conhecido como Rota<br />

Romântica, no Rio Grande do Sul,<br />

tem grandes chances de isentá-la,<br />

pelo menos por alguns quilômetros,<br />

de tantas reclamações.<br />

Localizada entre as cidades de<br />

São Leopoldo e São Francisco de<br />

Paula, a Rota tem diversos pontos<br />

bem conhecidos, como a Cascata<br />

do Caracol, em Canela, e o Labirinto<br />

Verde, em Nova Petrópolis.<br />

Anualmente milhares de turistas<br />

movimentam a economia dos municípios,<br />

especialmente no inverno. O<br />

charme do roteiro não está somente<br />

nesses lugares já tão badalados,<br />

mas ta<strong>mb</strong>ém em pequenas raridades<br />

cortadas pela BR-116. Entre Dois Irmãos<br />

e Picada Café, respectivamente<br />

quinta e nona cidades do roteiro,<br />

é possível se surpreender.<br />

A primeira parada, no sentido<br />

TEXTO dE FERnAndA bRAndt E REnAtA PARISOttO<br />

FOTOS dE ROGERIO bERnARdES<br />

A ROTA ROMâNTICA, QUE ATRAVESSA<br />

13 CIDADES ENTRE SãO LEOPOLDO E<br />

SãO FRANCISCO DE PAULA, é UM DOS<br />

CAMINHOS MAIS VISITADOS PELOS<br />

TURISTAS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Capital-Interior, é ponto de encontro de motociclistas<br />

e turistas de passagem. Não somente pela roda de conversa<br />

que pode se formar, mas pela vista panorâmica de<br />

Dois Irmãos e outras cidades do Vale do Sinos. O Belvedere<br />

fica no quilômetro 218, na entrada de Morro Reuter,<br />

ex-distrito da cidade, emancipado em 1992. Com<br />

extensão de cerca de 60 metros, o Belvedere oferece<br />

um espaço para estacionamento e é rodeado por plátanos,<br />

árvores que estão por boa parte do caminho e<br />

que, no outono, trocam o verde das folhas pelo amarelo<br />

queimado e pelos tons avermelhados. São os plátanos,<br />

aliás, que em vários trechos da BR-116 formam túneis<br />

naturais que encantam.<br />

Um quilômetro após, está o ateliê da artista plástica<br />

Anelise Bredow. Visitado por turistas do mundo todo que<br />

passam pela região do Vale do Sinos e sobem a Serra<br />

através da Rota Romântica, o ateliê representa bem o<br />

que os turistas podem encontrar pelo caminho. A beleza<br />

e originalidade do trabalho da artista ganharam destaque<br />

ainda maior em 20<strong>10</strong>, quando suas peças foram parar<br />

na decoração de cenários das novelas Passione e Ti Ti<br />

Ti, da Rede Globo.<br />

A casa antiga, com traços da colonização alemã,<br />

transformada em a<strong>mb</strong>iente de trabalho, chama a atenção.<br />

No entanto, de acordo com a artista, o vermelho<br />

das paredes não é suficiente para atrair um maior número<br />

de pessoas que seguem pela rodovia. “Os turistas<br />

chegam aqui por acaso. A gastronomia ou a indicação de<br />

alguém que já conhece meu trabalho ajudam.” O fato<br />

se justifica pelo ponto comercial, que fica alguns metros<br />

antes do trevo de acesso à cidade de Morro Reuter, por<br />

isso tem pouca visibilidade, além da falta de espaço para


o estacionamento de veículos. No entanto, a artista não<br />

pensa em sair do local. “Não existem pontos comerciais<br />

na BR-116, desde Ivoti até São Francisco de Paula. Esse<br />

é um grande problema que enfrentamos. Certamente, se<br />

houvesse novas opções e maior divulgação do turismo na<br />

BR, o movimento de turistas poderia ser muito maior”,<br />

destaca a artista.<br />

A falta de imóveis para locação pode ser verificada<br />

durante todo o trajeto entre as duas cidades. A geografia<br />

do local, composta por paredões, penhascos e vegetação<br />

fechada, impede que novos estabelecimentos sejam<br />

construídos. Além disso, aponta Anelise, a estrada sem<br />

acostamentos em alguns pontos e a neblina prejudicam<br />

a visitação: “A maior parte da divulgação para subir a<br />

Serra é através da RS-122. Em dias nublados, a BR-116 se<br />

torna mais perigosa, e acabamos perdendo grande parte<br />

do movimento. No entanto, em dias de sol, os turistas<br />

podem apreciar uma paisagem muito mais bonita através<br />

dos caminhos da Rota. Para se ter uma ideia, nos finais<br />

de semana com tempo bom, são cerca de <strong>10</strong>0 a 150 pessoas<br />

que vêm visitar o ateliê. Nos dias com neblina, o<br />

número cai para 20 a 25.”<br />

Apesar dos problemas de divulgação e infraestrutura<br />

da BR-116, as obras de arte encantam visitantes brasileiros<br />

e estrangeiros. São vasos em cerâmica, quadros,<br />

pequenas le<strong>mb</strong>ranças, como chaveiros, expostos por<br />

todo o ateliê, com estilo próprio. Uma geladeira antiga<br />

vermelha, mesas de madeira, móveis brancos, estantes e<br />

até um velho baleiro transformam um simples a<strong>mb</strong>iente<br />

de casa em obra de arte. Anelise reforça: “Eu não me<br />

inspirei no estilo de ninguém, tenho minha linguagem<br />

própria”. É por isso que o ateliê se torna um dos pontos<br />

atraentes do caminho.<br />

A pArAdA obrigAtóriA dA br<br />

Seguindo viagem, a Tenda do U<strong>mb</strong>u, em Picada Café,<br />

chama a atenção pelo número de motociclistas que ali param<br />

para descansar, realizar suas refeições, conversar. Há<br />

possibilidade ta<strong>mb</strong>ém de fazer compras. Afinal, são inúmeros<br />

itens à venda, que vão desde casacos de couro e lã, artigos<br />

femininos, peças decorativas, até pequenas le<strong>mb</strong>ranças,<br />

como enfeites para o chimarrão, cuias e chaveiros.<br />

De acordo com uma das proprietárias da Tenda do U<strong>mb</strong>u,<br />

Miriam Rückert Maurer, aos finais de semana cerca de mil<br />

pessoas se reúnem no local. Os turistas são de todo país, e,<br />

no período de férias, chegam por ali até estrangeiros.<br />

A tenda teve início em 1963, antes da emancipação<br />

do município, em 1992, quando o pai de Miriam comercializava<br />

frutas à so<strong>mb</strong>ra de um u<strong>mb</strong>uzeiro, à beira da<br />

BR, atividade que ainda pode ser vista em trechos da<br />

Rota Romântica. O negócio da família foi aumentando<br />

com o tempo, e atrás da árvore foram construídas as primeiras<br />

instalações. Hoje, o local abriga loja, restaurante<br />

e área com churrasqueiras para quem prefere preparar o<br />

almoço. “O nosso objetivo é oportunizar lazer para todos<br />

nossos clientes, por isso a diversidade”, diz Miriam.<br />

Ainda na cidade de 5.182 habitantes, o Parque Histórico<br />

Municipal Jorge Kuhn integra os pontos que valem a pena vi-<br />

52 52 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong><br />

| JULHO/2011


sitar na rodovia. Com um acervo histórico<br />

que inclui construções centenárias,<br />

como moinho, armazém, residência,<br />

cozinha com sala de refeições, açougue,<br />

galpões, estrebarias, chiqueiros e matadouro.<br />

No local, encontra-se ta<strong>mb</strong>ém a<br />

Biblioteca Municipal José Lutze<strong>mb</strong>erger<br />

e o prédio de uma antiga funilaria.<br />

Arte nA beirA dA estrAdA<br />

Em meio às árvores, é possível<br />

avistar uma pequena casa de madeira<br />

e teto baixo. No alto, do lado direito,<br />

um distintivo do tricolor gaúcho,<br />

Grêmio, e do lado esquerdo, o<br />

do time rival, Internacional. Feitos<br />

em madeira maciça, pintados cuidadosamente,<br />

os escudos são amostras<br />

do que pode ser encontrado no<br />

local. Outros pequenos e enormes<br />

quadros, esculpidos artesanalmente,<br />

retratam cenas como a da Santa<br />

Ceia, cidades pacatas, pais e filhos,<br />

animais e até um pôr do sol. José<br />

Dércio Knorst e Ilaine Schnorenberger<br />

são os responsáveis por encantar<br />

turistas dos Estados Unidos, Alemanha<br />

e ta<strong>mb</strong>ém brasileiros, que pagam<br />

até R$ 3.200 por uma peça com<br />

dois metros de largura. Para quem<br />

não pode pagar esse valor, mas quer<br />

ter a exclusividade em casa, a opção<br />

é o número de residência, que sai<br />

por cerca de R$ 180.<br />

Há 15 anos no local, Ilaine atribui<br />

à BR-116 o sucesso das vendas, mas<br />

admite que a Rota Romântica ainda é<br />

pouco divulgada. Mesmo assim, o casal<br />

não pretende sair do local onde nasceu.<br />

Do negócio, vem a principal renda<br />

da família, mas não a única. Durante<br />

a semana, Ilaine trabalha em uma fábrica<br />

de calçados de Dois Irmãos para<br />

complementar o orçamento. Na pequena<br />

casa de beira de estrada, além<br />

dos quadros, são comercializadas ainda<br />

flores e mel, uma opção para turistas e<br />

ta<strong>mb</strong>ém para os vizinhos da localidade<br />

de Picada São Paulo.<br />

Paisagens, centros culturais, esculturas,<br />

produções locais. As atrações<br />

encontradas entre as cidades<br />

de Dois Irmãos e Picada Café remetem<br />

a uma vida simples de cidade do<br />

interior. A calmaria encontrada no<br />

trecho pode amenizar as impressões<br />

ruins de quem enfrenta diariamente<br />

o lado exaustivo da rodovia.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong> | JULHO/2011 | 53 | 53<br />

um pedAcinho dA<br />

AlemAnhA no brAsil<br />

A inspiração para a criação da Rota Romântica<br />

brasileira veio do norte da Alemanha. Engana-se quem<br />

pensa que é apenas a beleza dos plátanos ao longo da<br />

BR-116 que impõe o ar europeu.<br />

A região que abriga as cidades da Rota Romântica<br />

foi colonizada pelos imigrantes alemães que povoaram<br />

a região em meados do século XIX. Vindos de regiões do<br />

Norte da Alemanha, 5.350 alemães chegaram à encosta<br />

do Vale do Sinos, à Serra Gaúcha e ao Nordeste do Rio<br />

Grande do Sul entre 1824 e 1830, uma região desabitada<br />

até então.<br />

A influência germânica pode ser vista hoje nas casas<br />

em estilo bávaro e enxaimel, no dialeto deixado pelos<br />

imigrantes e nas festas populares com bandas típicas,<br />

regadas a muito chope e alegria. A culinária local<br />

ta<strong>mb</strong>ém é repleta de iguarias da típica culinária alemã,<br />

com um bom schmier colonial, o delicioso apfelstrudel<br />

(torta de maçã) ou uma cuca bem caseira.<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

uando o assunto em pauta é a BR-116, a<br />

“Qprimeira le<strong>mb</strong>rança que a grande maioria das<br />

pessoas tem é da poluição, dos engarrafamentos e do<br />

estresse causado pelos grandes congestionamentos,<br />

principalmente no trecho que liga a Grande Porto Alegre<br />

ao Vale do Sinos. E essa ta<strong>mb</strong>ém era a nossa ideia. Foi<br />

nessa hora que a colega e amiga Gabriela Silva sugeriu<br />

mostrar que nem só de fumaça vive a 116. E aceitamos<br />

o desafio. Escolhemos uma manhã de sábado para<br />

subir a Serra e, mesmo com chuva, a cada quilômetro<br />

era possível apreciar belas paisagens, conversar com<br />

moradores e descobrir pequenos detalhes que fazem<br />

da região um dos berços da colonização alemã. A saída<br />

foi da cidade de Dois Irmãos, e, conforme percorríamos<br />

a Rota Romântica, a reportagem se construía em<br />

pensamento. Seria impossível não falar dos plátanos, que,<br />

em alguns pontos, chegam a formar túneis verdes. Como<br />

não se encantar com a beleza natural e ainda pouco<br />

explorada pelos pontos comerciais? Aliás, a maioria dos<br />

entrevistados reclamou da falta deles. Mas seria tão<br />

prazeroso andar por ali se o trecho fosse igual ou muito<br />

parecido com o restante da BR-116?”


QUAndO éRAMOS<br />

cRIAnçAS<br />

54 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


QUEM PASSA PELA PRAÇA SANTOS<br />

DUMONT, JUNTO À BR-116, NA ALTURA<br />

DE CANOAS, NORMALMENTE DÁ UMA<br />

ESPIADINHA NO MONUMENTO DO<br />

AVIãO. MAS COMO ELE FOI PARAR ALI?<br />

AS CRIANÇAS TÊM ALGUMAS VERSÕES<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 55<br />

JOAnnA GIL<br />

JOAnnA GIL<br />

cEcÍLIA MEdEIROS<br />

cEcÍLIA MEdEIROS


TEXTO dE HEctOR MORAES<br />

FOTOS dE cEcÍLIA MEdEIROS,<br />

cLARA ALLYEGRA E JOAnnA GIL<br />

A<br />

Praça Santos Dumont, em<br />

Canoas, popularmente conhecida<br />

como “Praça do<br />

Avião”, desperta a atenção<br />

de qualquer um que trafegue pela BR-<br />

116. Seja durante o dia, sob um céu<br />

de brigadeiro, ou então à noite, quando<br />

é iluminada pelas luzes que destacam<br />

a aeronave, não há quem passe<br />

pela rodovia sem dar uma conferida<br />

no monumento.<br />

Visitei a Praça em um domingo à<br />

tarde e pude ver o modelo F-8 Gloster<br />

Meteor de perto. Bem maior do<br />

que parece quando visto da BR-116,<br />

ele é sustentado por um suporte de<br />

concreto e fica levemente inclinado,<br />

passando uma sensação de movimento<br />

e voo infinitos.<br />

O desgaste do tempo é perceptível,<br />

principalmente nas asas e na cauda,<br />

partes que estão um pouco descascadas.<br />

Pudera, como monumento,<br />

foi inaugurado em 1968, como uma<br />

homenagem da Força Aérea Brasileira<br />

(FAB) para a comunidade canoense,<br />

que tem o desenvolvimento municipal<br />

diretamente ligado à Aeronáutica.<br />

Trazido para o Brasil em 1953, o F-8<br />

Gloster Meteor foi o primeiro modelo<br />

à jato do país, e podia atingir a velocidade<br />

máxima de 960Km/h.<br />

Todas essas informações perdem<br />

o sentido quando perguntamos a<br />

uma criança se ela saberia responder<br />

por que aquele avião está ali. É<br />

na imaginação delas que a homenagem<br />

da FAB ganha contornos mágicos,<br />

com histórias de guerra, salvação<br />

e co<strong>mb</strong>ates ingênuos. Histórias<br />

sempre contadas rapidamente, com<br />

palavras curtas e em volume baixo.<br />

Quase um contraste com as mais de<br />

21 mil horas de voo e o ruído dos<br />

motores do hoje aposentado Gloster<br />

Meteor. São contos que atravessam<br />

a tênue linha entre o sonho e a realidade,<br />

sem se preocupar com as<br />

barreiras possível. E foi isso o que<br />

fizeram alguns ilustres visitantes da<br />

Praça do Avião, com idades entre<br />

cinco e <strong>10</strong> anos, quando perguntados:<br />

“De onde veio este avião?”<br />

A imAginAÇÃo VoA<br />

De calça laranja e moletom azul,<br />

com cabelo cortado no melhor estilo<br />

tigelinha, Lucas Azevedo, de apenas<br />

cinco anos, conta que viu o avião caindo<br />

do céu até aterrissar ali: “Eu estava<br />

aqui com meu pai e aí BUUUUM! ele<br />

veio descendo... descendo... e parou<br />

aí.” O que aconteceu depois? A resposta<br />

do pequeno foi um envergonhado<br />

sorriso que se escondeu nos braços da<br />

mãe. Mas essa não é a mesma história<br />

que o Jonatas Barcelos, de camiseta<br />

do Grêmio e oito anos, conta: “Acho<br />

que teve uma guerra, lá em cima derrubaram<br />

ele, e ele caiu aqui.” Mas e<br />

por que não explodiu? “Meu avô disse<br />

que tinha acabado a gasolina.” Avô?<br />

“É, meu avô era o piloto. Ele que me<br />

contou essa história”, disse ele.<br />

Janaína Pereira, de <strong>10</strong> anos, conta<br />

uma versão bem mais tranquila<br />

que a dos meninos: “Ahh, esse avião<br />

aí meu pai falou que o quartel não<br />

queria mais, que ele estava velho.<br />

Daí colocaram ele aí. No colégio<br />

ta<strong>mb</strong>ém contaram algo tipo isso, que<br />

foi o quartel que deu ele pra cidade.”<br />

Mas antes de saber a verdadeira<br />

história, ela conta que achava que<br />

ele não era de verdade, que era só<br />

imitação. Sara Silveira, de sete anos,<br />

tem certeza que o avião é de verdade<br />

porque a mãe dela contou que esse<br />

avião caiu. “Daí colocaram ele aqui”.<br />

Mas ela vai mais além: “Eu queria entrar<br />

lá. Pode?”, pergunta apontando<br />

para o cockpit da aeronave.<br />

Mesmo sem ligar as turbinas e alçar<br />

voo há 43 anos, o velho Gloster Meteor<br />

ainda mexe com a imaginação das<br />

pessoas. Mantém a mesma magia que<br />

faz com que tanto os que freqüentam<br />

a Praça Santos Dumont quanto os que<br />

passam pelo Km 256 da BR-116 voltem<br />

a ser criança por alguns instantes.<br />

56 56 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong><br />

| JULHO/2011


JOAnnA GIL<br />

cLARA ALLYEGRA<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

ive sorte e azar quando visitei a Praça Santos<br />

“TDumont, mais conhecida como Praça do<br />

Avião, em Canoas. Sorte porque fazia um dia bonito<br />

e ensolarado nas duas vezes em que estive lá, o que<br />

tornou minha viagem de trem uma espécie de relaxante<br />

passeio de domingo. Azar porque, apesar do clima<br />

agradável, não encontrei tantas crianças quanto<br />

imaginava que poderia encontrar. é que a idEia era<br />

conversar apenas com os pequenos para tentar entender<br />

como a imaginação deles explicaria o fato de um avião<br />

estar no meio de uma praça localizada justamente ao<br />

lado de uma estrada. Convenhamos, algo bastante<br />

inusitado. No início, apenas observava a movimentação<br />

deles, tentando entender do que estavam brincando e<br />

o que poderiam estar imaginando. Depois, localizava<br />

os pais, me aproximava e explicava o motivo de querer<br />

entrevistar o filho deles. Não ouvi nenhuma negativa<br />

por parte dos adultos, mas não posso dizer o mesmo<br />

dos meus entrevistados mirins. Mas eu os compreendia,<br />

afinal, quem nunca se sentiu envergonhado? Em<br />

outros casos, eles apresentarem aquela bonita falta de<br />

articulação e conexão textual natural da idade, o que<br />

me deixava ainda mais curioso pra saber o que será<br />

que eles me contariam, caso pudessem fazer isso. E<br />

ainda teve aqueles que seguiram brincando ainda mais<br />

entusiasmados, porque finalmente podiam fazer aquilo<br />

que mais gostam: utilizar superpoderes mágicos para<br />

impressionar estranhos como eu.”


dOIS A<br />

58 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


ROdAR<br />

NA PRINCIPAL RODOVIA DO BRASIL,<br />

ELA CANSA DA ROTINA CONFORME<br />

DESBRAVA CAMINHOS, ENQUANTO ELE<br />

PROCURA UM TETO PARA SOBREVIVER<br />

E AGRADECE PELO DIA DE HOJE<br />

TEXTO dE EdUARdO PEdROSO<br />

FOTOS dE AndRé ÁVILA E cLARA ALLYEGRA<br />

Um trecho da BR-116 que corta São Leopoldo serve de fronteira<br />

para o bairro mais rico da cidade. Neste local, a estrada muda<br />

um pouco sua configuração convencional, pois há um viaduto,<br />

usado para que o intenso fluxo não seja interrompido pelos cruzamentos,<br />

retornos e sinaleiras. No bairro, entre outros estabelecimentos<br />

menos representativos, há uma universidade, um grupo de artilharia<br />

do exército brasileiro, um clube de futebol e até um cemitério. Com<br />

tanta estrutura, o bairro Cristo Rei é quase como uma cidade dentro<br />

de outra, e fica fácil entender sua valorização. Difícil é entender<br />

como alguém consegue morar de graça nele.<br />

Números de distâncias que separam mundos normalmente são<br />

estratosféricos, mas neste caso mal ultrapassam os 1500 m,<br />

distância percorrida em pouco mais de três segundos pelos<br />

melhores competidores do atletismo. Estranho é que se ele<br />

fosse até ela, seriam ao menos 20 minutos, mas se ela fosse<br />

até ele, não seriam nem cinco. Nenhum dos dois quis<br />

dizer o nome. Ela iria sozinha, dirigindo o terceiro carro<br />

da família, que lhe fora presenteado há pouco mais de<br />

um ano. Os dois dizem ter 21 anos. Morador de rua,<br />

ele iria caminhando, acompanhado de Belo, Sextafeira<br />

e Pipo. A seguir, a<strong>mb</strong>os caminham sobre<br />

um muro entre dualidade e dueto enquanto<br />

respondem as mesmas perguntas de<br />

perspectivas opostas, mas conectadas<br />

pelo asfalto da principal<br />

rodovia do Brasil.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 59<br />

cLARA ALLYEGRA


Quem mora contigo?<br />

Ela: Minha mãe, meu pai e meu irmão. Meu irmão tem duas<br />

cadelas, uma labradora e uma border collie.<br />

Ele: Só eu. Aqui eu fico mais na minha. Gosto de ficar na minha.<br />

Meu parceiro que me trouxe pra São Leopoldo já morreu,<br />

e foi por causa de cabeça fraca, indo pelas ideias dos outros.<br />

Gosto daqui. Tem só três cachorros que ficam por aqui. Mas<br />

só o Belo é meu, os outros são do Belo, ele que cuida deles e<br />

divide comida, eu não sou assim. Sempre fui mais sozinho.<br />

O que é a BR-116 para você?<br />

Ela: Uma estrada que é para ser de fluxo rápido, mas que<br />

acaba se tornando um pesadelo devido ao movimento e aos<br />

engarrafamentos.<br />

Ele: Um cantinho. Tem muita paz das pessoas e abrigo da chuva,<br />

mas o barulho é chato mesmo.<br />

Há quanto tempo você usa a via?<br />

Ela: Desde que tirei a carteira, há três anos. Foi bem diferente,<br />

essa foi a primeira estrada de fluxo mais intenso que<br />

encarei. No início, le<strong>mb</strong>ro que achava 80 km/h muita coisa,<br />

hoje é normal.<br />

Ele: Não sei. Mas já tem mais de ano.<br />

Quanto tempo por dia fica nela?<br />

Ela: Em média uma hora e meia, mas cheguei a ficar quase<br />

três horas, quando peguei tranqueira. Agora evito ao máximo<br />

trafegar entre 7h30min e 9h e entre 17h30min e 19h. Só ando<br />

nesses horários quando preciso.<br />

Ele: Mais é na noite. De dia eu fico no centro, ou perto da<br />

rodoviária.<br />

De onde sai e para onde vai?<br />

Ela: Saio de São Leopoldo, vou até a Feevale, em Novo Ha<strong>mb</strong>urgo,<br />

ou até Porto Alegre para trabalhar. Fazendo uma média<br />

semanal, ando cerca de 50 quilômetros diariamente.<br />

Ele: Nasci em Sapucaia, já tive casa lá, mas já morei na rua<br />

lá e depois vim para São Leopoldo. Um amigo disse que aqui<br />

era melhor, mas não viemos para esse viaduto direto, fomos<br />

no palco do metrô.<br />

o “palco” citado por ele é uma área da estação são<br />

leopoldo que tem apenas dois degraus de elevação e é<br />

usada de entrada pelos funcionários do local. protegida<br />

da chuva pela pista elevada do metrô, nunca está vaga,<br />

sempre serve de lar para algum desabrigado. de fato, é um<br />

palco, menor do que a menor das peças da casa dela, onde<br />

se desenrola uma peça sobre descaso e abandono. males<br />

que ta<strong>mb</strong>ém circulam pela br-116.<br />

O que deveria ser melhorado na BR-116?<br />

Ela: O fluxo de veículos nos horários de pico, com mais organização<br />

ou mais pista. A estrada não é ruim, não tem muito buraco<br />

e anda bem nos horários normais, mas está mais largada<br />

de uns tempos para cá.<br />

Ele: Não sei. Era bom ter um fogãozinho. Na real, só não gosto<br />

de pessoas que passam aqui por baixo e ficam com medo de<br />

mim. Não sou ladrão nem nada.<br />

“Já vi carro bater em<br />

caminhão, carro bater<br />

em carro e um carro<br />

pegando fogo sozinho”<br />

Ela<br />

Qual o acontecimento mais inusitado que já viu na via?<br />

Ela: Uma vez estava engarrafado no viaduto e havia um carro<br />

voltando de ré pelo acostamento. Muita imprudência, algo que<br />

não vi em nenhum outro local.<br />

Ele: Uma briga de skatistas com uma torcida organizada. Foi<br />

uma barbaridade, ver uma gurizada da minha idade, mas com<br />

condição, se matando. E tem o perigo dos carros ainda, por<br />

pouco não atropelaram uns.<br />

O que mais te preocupa ao estar na BR-116?<br />

Ela: Os motoqueiros e pedestres que atravessam. E os engarrafamentos<br />

repentinos, com paradas bruscas.<br />

Ele: Não tenho medo de ser abordado pelos homens (policiais),<br />

sou homem ta<strong>mb</strong>ém. Tenho medo é de dormir e ser<br />

pego de surpresa. Tem que dormir de olho aberto, mas aqui<br />

é mais tranquilo que o metrô. Se passa menos pessoa, corro<br />

menos risco.<br />

Costuma ver muitos acidentes?<br />

Ela: Não muitos. Mas já vi carro bater em caminhão, carro<br />

bater em carro e um carro pegando fogo sozinho.<br />

Ele: Vi alguns, mas é mais é buzinaço e pneu cantando, só,<br />

mas isso é normal. Acho que posso dizer que eu sou um acidente<br />

da BR-116. Não era para eu estar aqui, né?<br />

não se sabe como ele chegou até a br-116, assim como não<br />

se sabe como ela decidiu fazer duas faculdades e trabalhar.<br />

essas questões, ainda que de cenários antagônicos, são<br />

muito semelhantes na origem. surgem, não são escolhidas.<br />

são moldadas mais pelas negativas do que pelos desejos<br />

e aspirações. eu poderia exigir uma explicação, mas ela<br />

surgiria mutilada, obscura ou límpida demais. Voltar os<br />

olhos para um passado distante ou conturbado é como<br />

tentar iluminar uma paisagem imersa na neblina com uma<br />

lanterna. não se vê muito mais do que fumaça.<br />

É uma via limpa ou não?<br />

Ela: A principal poluição é a fumaceira dos carros e fábricas.<br />

No geral é limpa. É mais poluída nos acostamentos, nos canteiros.<br />

Cai muita sujeira de outdoor. Há ta<strong>mb</strong>ém mau cheiro<br />

de caminhões, normalmente em péssimas condições. Esses caminhões<br />

carregam entulho que cai na estrada, então procuro<br />

ficar longe deles.<br />

Ele: Eu mesmo tento manter limpa a minha área, ninguém<br />

gosta de morar na sujeira. Mas cai muito lixo dos carros. Cai<br />

não, os caras jogam mesmo, não estão nem aí. Sei que eu<br />

moro na rua, mas é minha casa. Eu não jogo lixo na casa de<br />

ninguém.<br />

O que muda quando chove e você está na BR?<br />

Ela: Fico muito mais atenta, a visibilidade piora e eu diminuo<br />

a velocidade. Dependendo da intensidade, forma poças<br />

60 60 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong><br />

| JULHO/2011


“Sei que eu moro na rua,<br />

mas é minha casa. Eu<br />

não jogo lixo na casa de<br />

ninguém”<br />

Ele<br />

nas faixas periféricas. Aliás, tem muitas poças na parte de<br />

Esteio, até a Unisinos.<br />

Ele: O melhor daqui é isso, não chove, tenho um teto, bem<br />

grosso até. O bom é que posso caminhar aqui sem me molhar<br />

ta<strong>mb</strong>ém, mas sair já fica complicado. Me sinto meio preso<br />

quando chove, mas é bom estar seco.<br />

Durante a noite, a BR muda muito?<br />

Ela: Depois das 20h é mais tranquilo de andar, mas muitos<br />

trechos não têm iluminação, Acredito que vai mudar em vista<br />

das câmeras que serão instaladas. Fico mais tensa em relação<br />

a assaltos em sinaleiras. No trecho de Sapucaia, no pórtico,<br />

principalmente.<br />

Ele: Passa menos carro, tem menos barulho, e isso engana,<br />

mas tem que ficar ligado igual. Tudo é menos, só aumenta o<br />

frio, tem muito vento aqui.<br />

Como é a iluminação da BR?<br />

Ela: É boa, mas no trecho do Zoológico é muito escura. Na<br />

chegada de Esteio ta<strong>mb</strong>ém.<br />

Ele: Onde eu fico até que é ruim, mas gosto assim. Eu vejo<br />

eles e ninguém me vê.<br />

Já precisou de ajuda em alguma ocasião na BR?<br />

Ela: Não. Graças a Deus.<br />

Ele: A gente sempre precisa de ajuda, né? De fé ta<strong>mb</strong>ém.<br />

Fazem muita barbaridade com quem mora na rua.<br />

Eu já escapei de ser esfaqueado, gritei por socorro e<br />

algumas pessoas gritaram ta<strong>mb</strong>ém. Mas na rua tu não<br />

pode precisar da ajuda de ninguém. Aquilo foi sorte,<br />

por acaso. Ninguém vai se meter em nada com morador<br />

de rua no meio.<br />

E o policiamento na BR?<br />

Ela: Não há, só em momentos de acidente.<br />

Ele: É difícil virem aqui, mas não devo nada. Podem vir.<br />

Se sentir fome, consegue comida na BR?<br />

Ela: Sim, em posto de gasolina, tem vários postos. Ou no Bourbon<br />

de Canoas.<br />

Ele: Tem uma moradora daqui de perto que seguido me dá<br />

alguma coisa. Ela me ajuda, mas não é sempre. Às vezes peço<br />

nos restaurantes aqui perto, outras fico no McDonald’s, mas<br />

não é bom. Prefiro ganhar dinheiro e comprar comida do que<br />

ganhar comida direto.<br />

Costuma ver muitas obras na BR?<br />

Ela: Ultimamente não, mas há uns anos, estavam recapando.<br />

Agora acredito que estão focando o viaduto da Unisinos e perto<br />

da Feevale. O da Feevale está demorando demais, mas o da<br />

Unisinos até que está bem rápido.<br />

Ele: Não. Aqui nunca fizeram nada.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong> | JULHO/2011 | 61 | 61<br />

Quando o assunto é ajuda, a<strong>mb</strong>os se apoiam de alguma forma<br />

na fé. Quando o assunto é obras, quem tem algo para falar é<br />

quem vai passar pelos futuros viadutos, não quem adormece<br />

diariamente sob os blocos de concreto de um que já existe.<br />

Quando as perguntas recorrem mais ao imaginário do que à<br />

realidade, as mentes viajam em velocidades semelhantes.<br />

Quando acredita que vai deixar de usar a BR-116?<br />

Ela: Não vislu<strong>mb</strong>ro este dia. Enquanto morar no Rio Grande do<br />

Sul, tenho que usar, mas acredito que vou morar no exterior<br />

dentro de alguns anos.<br />

Ele: Não tem como dizer. Gosto daqui e não tenho outro lugar.<br />

Só se eu mudar de cidade.<br />

O que pensa sobre a outra pessoa que entrevistei?<br />

Ela: Só pode estar com grandes dificuldades, morar na faixa<br />

deve ser pior do que nas ruas da cidade.<br />

Ele: Deve ser legal ter um carro e tal, eu queria um. Acho que<br />

dá dignidade e tu ainda te diverte. Mas não ia correr tanto eu<br />

acho, não sei. Trabalhar ta<strong>mb</strong>ém, se ela gosta e é feliz. Estudar<br />

tanto que não deve ser bom.<br />

Como deve ser a rotina dessa pessoa?<br />

Ela: Deve ser bem complicada. Qualquer pessoa que mora na<br />

rua vai estar numa situação ruim, mas ele ainda vai ter o negócio<br />

da poluição. Ainda tem muita gente voltando da balada,<br />

que dirige bêbada e pode atropelar até quem toma cuidado.<br />

Ele: Comer, beber e dormir todo mundo faz. Não deve ser<br />

muito diferente da minha. Ta<strong>mb</strong>ém tenho uns parceiros, uns<br />

trocados e uns problemas, sabe? Rico e pobre é assim, não<br />

adianta. É ser humano. Mas deve ser uma vida bacana.<br />

Se pudesse fazer uma pergunta para a outra pessoa, qual<br />

seria?<br />

Ela: Como ela foi parar ali?<br />

Ele: Sei lá. Se ela já me viu aqui?<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

eu principal receio foi<br />

“Mcomo expor de maneira<br />

compreensível minha proposta<br />

ao leitor. Não é uma matéria<br />

convencional, por isso a opção de<br />

lidar com um jornalismo mais literário.<br />

Abordei cada um deles de diferentes<br />

maneiras, mas a<strong>mb</strong>os me trataram<br />

da mesma forma, foram abertos e se<br />

mostraram interessados em contar o<br />

que pensam sobre a rodovia. Creio que<br />

o anonimato dos envolvidos contribuiu<br />

para que a história fosse narrada de<br />

maneira direta e mais focada apenas<br />

no convívio com a rua em si.”<br />

AndRé ÁVILA


cOnSERtAM-SE PnEUS


ESTABELECIMENTOS<br />

AGREGAM HISTÓRIAS QUE<br />

MISTURAM ASFALTO E<br />

BORRACHA À BR-116<br />

TEXTO dE FELIPE nAbInGER E RIcARdO SAntOS<br />

FOTOS dE LISIAnE AGUIAR<br />

Ser um dos maiores inventos criados pelo homem<br />

não coloca a roda como item de colecionador<br />

e sim como um objeto constantemente em dia<br />

com as necessidades culturais e tecnológicas<br />

das diversas sociedades. Desde as origens, atribuídas<br />

às civilizações suméria e egípcia, na Idade Antiga, às<br />

eras seguintes, o deslizar sob esse tão famoso círculo<br />

propicia menos esforços, mais celeridade e a sucessão<br />

de criações que revolucionam as práticas humanas<br />

de modo intenso.<br />

Artesanato, tecelagem, carro de boi, bicicleta,<br />

relógio, máquinas à vapor e trem são alguns itens<br />

cujo desenvolvimento está ligado à roda. Mas o veículo<br />

automotor é talvez o primeiro que vem à mente,<br />

pela disponibilidade em número de unidades e o<br />

acesso a praticamente todos os bolsos. Essa liberdade<br />

para atingir distâncias movimenta uma indústria<br />

variada que abrange a siderúrgica, têxtil, química,<br />

eletrônica, publicitária, e, claro, a pneumática. Todo<br />

o aparato automobilístico gera cifras astronômicas,<br />

porém, nada seguiria adiante, literalmente, de pneus<br />

vazios! Os motores que locomovem cidadãos e riquezas<br />

não iriam longe, portanto, sem as borracharias.<br />

A BR-116, no trajeto de Porto Alegre a Novo Ha<strong>mb</strong>urgo,<br />

no Rio Grande do Sul, pode ser considerada uma síntese<br />

do exposto. Detentor do maior tráfego do Estado e<br />

o quarto em nível nacional, o trecho metropolitano apresenta<br />

o índice de aproximadamente 1,5 milhões de veículos<br />

por mês ou 120 mil por dia, segundo dados de 2008<br />

da Polícia Rodoviária Federal. Afinal, da capital gaúcha<br />

ao seu destino final constam mais quatro municípios que,<br />

junto a outras 28 cidades da região, respondem por 4<br />

milhões de pessoas. Trânsito é o que não falta.<br />

Viajar desde Porto Alegre, passando por Canoas, Sapucaia,<br />

Esteio, São Leopoldo e Novo Ha<strong>mb</strong>urgo, revela a<br />

conurbação que mais se assemelha a um só logradouro,<br />

ou uma sucessão de vários com poucos espaços de densidade<br />

populacional e comercial. Todo o aparato de suporte<br />

mercadológico encontra-se às margens da rodovia nas<br />

ruas laterais, além de algumas residências.<br />

Apesar da importância das borracharias, não significa<br />

que os melhores pontos de venda do trajeto, tanto em<br />

localização quanto em construção vistosa, sejam delas.<br />

Le<strong>mb</strong>rados basicamente quando o sinal de pisca-alerta


e o acostamento fazem companhia<br />

aos motoristas, os borracheiros ocupam<br />

espaços em forte disputa com<br />

a especulação imobiliária, fato que<br />

nem os <strong>10</strong>0 quilômetros de ida e volta<br />

conseguem amenizar. Se a quebra<br />

de braço fosse literal, a turma que<br />

cuida dos calibradores de pneus ficaria<br />

com os melhores locais, mas<br />

na economia nem sempre é a imprescindibilidade<br />

que voga. Ainda<br />

mais ante a diversidade de ramos<br />

que margeiam uma pista de rolagem<br />

com as características da BR-116.<br />

A AlmA do negócio<br />

É verdade que erros de Português<br />

são recorrentes no universo das<br />

borracharias, mas nunca fizeram tão<br />

bem como para Marcos e Luiz Collor.<br />

A placa “Borraxaria” é familiar para<br />

os condutores da BR-116 que passam<br />

por Sapucaia do Sul. E o letreiro não<br />

está em carcaças de pneus ou madeiras,<br />

mas num vistoso fundo branco<br />

de letras azuis bem escritas.<br />

Desde 1994 em funcionamento,<br />

sem atender veículos de grande<br />

porte, reclamações, até mesmo por<br />

e-mail, não calibram uma eventual<br />

alteração do “erro”. Sagazes, os<br />

proprietários da borracharia próxi-<br />

ma ao Zoológico têm até pasta com<br />

recortes da mídia espontânea que<br />

a brincadeira proporciona. Como se<br />

fossem poucas as curiosidades, eles<br />

contam com dois carros em serviço<br />

de táxi... com “x”.<br />

o grAnde e o peQueno<br />

Juarez Melo, no bairro Campina,<br />

em endereço limítrofe com o bairro<br />

Scharlau, em São Leopoldo, é a antítese<br />

da maioria dos borracheiros,<br />

que preferem trabalhar com veículos<br />

de pequeno e médio porte. “O<br />

que faz o pesado faz o leve, o que<br />

faz o grande faz o pequeno, o pessoal<br />

já não quer mais fazer força”,<br />

afirma enquanto troca os pneus de<br />

uma carreta. Sem escolher o tipo de<br />

veículo, não é à toa que Melo construiu<br />

junto com o pai a estrutura de<br />

um comércio que pelo nome deve<br />

acalmar muita gente à deriva – Borracharia<br />

do Salvador! Salvador era o<br />

seu pai, falecido recentemente.<br />

Hoje, a vistosa oficina está envolta<br />

no barulho da maré de máquinas<br />

com a pressa contemporânea<br />

de chegar, própria da rodovia. Para<br />

não perder clientes, o local conta<br />

com teleatendimento, mas, por<br />

questões de (in)segurança, subme-<br />

te a antiga Blazer e o saudoso Fusca<br />

apenas para a clientela assídua.<br />

locAl e dono sem nomes<br />

No bairro Rio Branco, em Canoas,<br />

há 20 anos no ramo das marretas e<br />

macacos hidráulicos – e há sete neste<br />

local –, um borracheiro sorve seu chimarrão<br />

em uma tarde fria. Tímido,<br />

assustado, ele é o contraponto do<br />

cachorro que, alegre, salta sobre os<br />

clientes. O profissional aceita contar<br />

sua história, porém não quer dizer<br />

seu nome completo. Júnior, como<br />

pede para ser chamado, personifica<br />

o receio e a desconfiança que parece<br />

ser regra nos profissionais do ramo.<br />

Na empresa de pequeno porte,<br />

ele trabalha com venda e reparos de<br />

câmaras de ar e pneus, quase sempre<br />

usados: “Aqui é um negocinho pequeno,<br />

só pra mim, têm muitos que<br />

são maiores. Vendem escapamentos,<br />

material para suspensão... A diferença<br />

entre a minha e essas outras é o<br />

caixa, o dinheiro. Estar na BR facilita,<br />

mas depende do ponto”.<br />

A placa que indica seu estabelecimento<br />

diz apenas “Borracharia” e<br />

traz uma seta apontando para a pequena<br />

oficina. Assim como ele, sem<br />

nome. “Graças a Deus, tenho o nome<br />

O GIRO DOS<br />

PNEUS SE<br />

CONFUNDE COM<br />

O MOVIMENTO<br />

EVOLUTIVO: OS<br />

DOIS CADA VEZ<br />

MAIS VELOZES E<br />

DESGASTANTES


limpo. Mas a gente ouve tanta coisa<br />

que fica com medo”, conclui ao voltar<br />

para seu chimarrão.<br />

cAlendários e sex AppeAl<br />

Apesar da correria, houve momento<br />

para descontrair e sanar<br />

dúvidas do imaginário popular atribuído<br />

aos borracheiros. Do riso,<br />

inevitável para Juarez e Luiz, logo<br />

veio a negativa de um estereótipo<br />

do borracheiro: não há uma provocante<br />

modelo sequer em calendários<br />

nas paredes. Juarez garante<br />

que as marcas de pneus ainda produzem<br />

os impressos com fotos de<br />

mulheres nuas, mas a coisa mudou<br />

devido à alteração de tática publicitária<br />

dos donos dos recintos. Borracharias<br />

são agora um “a<strong>mb</strong>iente<br />

familiar”. Quanto ao fetichismo em<br />

torno da categoria, garante que<br />

tanto ele quanto a rapaziada com<br />

quem trabalha não recebem propostas<br />

indecentes das clientes.<br />

No caso do Luiz, além de não<br />

constar qualquer garota sexy em<br />

versão impressa, vê-se um violão<br />

pendurado e, ao lado, uma sanfona!<br />

A metrópole exige discrição nessas<br />

paredes onde a música dá lugar à<br />

frenética sinfonia dos carros.<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

omo nenhum de nós, repórteres, tem<br />

“Ccarro, a familiaridade com borracharias era<br />

quase nula. Assim, pudemos observar com olhos<br />

totalmente desprovidos de preconceitos esse tipo de<br />

estabelecimento. O problema foi o tempo. Do mesmo<br />

modo que os pneus rodam pela BR-116, os ponteiros<br />

dos nossos relógios pareciam não se sincronizar.<br />

Problemas com trabalho, estudos e até a forte gripe<br />

de um dos componentes do grupo tiveram que ser<br />

superados. Impressionou a forma tímida e até mesmo<br />

desconfiada com que fomos recebidos em algumas<br />

visitas. O estereótipo do borracheiro bonachão, com<br />

fotos de mulheres nuas nas paredes, ruiu ante nossos<br />

olhos. A fotógrafa Lisiane, única motorizada, teve<br />

uma curiosa relação com a pauta: calibrou os pneus<br />

de seu carro com nitrogênio na “Borraxaria”. Por fim,<br />

conseguimos cases que valem ouro, pois encontrar<br />

borracharias e, principalmente, profissionais que<br />

aceitassem falar com a reportagem foi mais difícil que<br />

o esperado! A BR-116, diferente do automóvel da Lisi,<br />

anda com pneus murchos.“<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 65


PREPARADAS PARA<br />

ARRASAR NA<br />

PISTA, AS AMIGAS<br />

LUCIANA E VERA<br />

LÚCIA ESPERAM A<br />

FESTA COMEÇAR


Até A MEIA-nOItE,<br />

ELAS nÃO PAGAM<br />

Sexta-feira à noite é dia de<br />

casa cheia no clube de dança<br />

Gigante do Vale, às margens<br />

da BR-116, em São Leopoldo.<br />

Falta meia hora para a festa começar<br />

e os músicos fazem uma última<br />

passagem de som no palco secundário.<br />

A pista de madeira, marcada por<br />

sinais de bailados e rodopios, espera<br />

por novos passos.<br />

Do lado de fora, já há dezenas<br />

de pessoas na fila. Iluminadas<br />

pelos holofotes voltados para o<br />

nome da casa, as amigas Luciana<br />

Marcante, 29 anos, e Vera Lúcia<br />

Flores, 24, ta<strong>mb</strong>ém esperam sua<br />

vez. Há poucas horas, as duas estavam<br />

cada uma em sua casa, em<br />

Portão, sem grandes planos para<br />

a noite. “Liguei pra ela e disse:<br />

bota uma roupa que eu estou subindo”,<br />

conta Vera.<br />

Depois de encontrar com um<br />

conhecido no caminho, as amigas<br />

acabaram indo para o Gigante do<br />

Vale. “Sempre ficamos sozinhas,<br />

viemos para curtir uma festa mesmo,<br />

beber, dançar”, conta Vera.<br />

Entusiasmada com a música que<br />

está por vir, ela já começa a cantar<br />

e ensaiar uns passos para arrasar<br />

na pista. Timidamente, Luciana<br />

apenas comenta: “O pessoal é bem<br />

festeiro por aqui”.<br />

O público começa a chegar aos<br />

poucos, entrando quase em coreografia,<br />

à procura daquilo que todos<br />

foram ali encontrar: diversão.<br />

E pode entrar todo mundo. O jeito<br />

de vestir e o tamanho da conta<br />

bancária é o que menos importa.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 67<br />

TEXTO dE GAbRIELA dA SILVA E PAtRÍcIA cARVALHO | FOTOS dE MAURÍcIO WOLF<br />

NãO HÁ PRé-REQUISITO PARA<br />

ENTRAR NA FESTA DO CLUBE DE<br />

DANÇA GIGANTE DO VALE, EM<br />

SãO LEOPOLDO. BASTA QUERER<br />

DIVERSãO A NOITE INTEIRA<br />

Alguns começam a se ajeitar às mesas, cadeiras<br />

e camarotes ao redor do salão. O centro fica para a<br />

penu<strong>mb</strong>ra que acoberta os casais dançarinos. Mal começou<br />

a música, e uma jovem loira de cabelos até<br />

a cintura já é conduzida com habilidade por seu par,<br />

deixando o restante do público só a assistir.<br />

O corredor lateral é iluminado por lâmpadas fluorescentes<br />

que indicam o caminho para a copa. É ali<br />

que os encontros cara a cara acontecem. Um grupo de<br />

amigas chega e uma a uma vão acendendo seus cigarros.<br />

São surpreendidas por um já empolgado dançarino,<br />

querendo um par para bailar. Diante da recusa<br />

das moças, e segue o compasso com sua companheira<br />

imaginária, sem perder o ritmo.<br />

Próximo ao palco, o estudante de Direito Mateus da<br />

Silva, 21 anos, de Novo Ha<strong>mb</strong>urgo, vai entrando no clima.<br />

Junto com os amigos e com o irmão, o estudante<br />

de Engenharia Química Cássio da Silva, de 17, Mateus<br />

já se sente em casa: “Conheço todo mundo. Aqui a<br />

festa é certa”.<br />

Com o gel bem aplicado no cabelo, para garantir<br />

os topetes armados até o fim da noite, os dois irmãos<br />

parecem ter co<strong>mb</strong>inado no modelito: camiseta colorida,<br />

calça jeans e tênis novinho. Visual caprichado.


è<br />

Afinal, segundo Mateus, a paquera<br />

pode rolar e é sempre bom causar<br />

uma ótima impressão.<br />

pArA ficAr nA históriA<br />

Um senhor de cabelos brancos<br />

bem penteados, camisa engomada<br />

e jeito manso de falar, espera por<br />

novos clientes sentado em uma das<br />

mesas à beira do salão. O funcionário<br />

público aposentado Henrique<br />

Sales Fagundes tem 74 anos, 32 deles<br />

trabalhando como fotógrafo do<br />

Gigante do Vale.<br />

Presença confirmada nas sextasfeiras,<br />

sábados e domingos, ele faz<br />

o retrato em um final de semana<br />

e entrega no seguinte. Todo o ma-<br />

NALDO GARANTE QUE COLOCA<br />

EM PRIMEIRO LUGAR O<br />

ATENDIMENTO AO PÚBLICO<br />

terial produzido com sua nova câmera<br />

digital é exposto em álbuns<br />

que carrega para lá e para cá. As<br />

imagens revelam casais, amigos e<br />

ta<strong>mb</strong>ém festeiros solitários. Todos<br />

são só sorrisos.<br />

“É bom para o bolso e bom para<br />

a saúde”, comemora o morador de<br />

Porto Alegre. Por isso, pegar a estrada<br />

todos os finais de semana a<br />

caminho da festa não é problema<br />

nenhum, mesmo que o número de<br />

“modelos” tenha diminuído nos últimos<br />

anos, em função das câmeras<br />

no celular, considera Fagundes.<br />

Só quem não acha esse passatempo<br />

tão bom assim é a sua esposa,<br />

Idalva. O aposentado conta que ela<br />

não gosta muito do hobby que lhe<br />

rende uns extras. “Fazer o quê?”<br />

o dono dA festA<br />

A festa no Gigante do Vale só<br />

começa com a autorização de Reginaldo<br />

Vitorino da Rosa ou Naldo,<br />

como é chamado carinhosa e respeitosamente<br />

pelos funcionários e<br />

frequentadores da casa noturna.<br />

Aos 55 anos, ele chega poucos<br />

minutos antes do baile começar<br />

e logo é cercado por seguranças.<br />

Antes de seguir para o escritório,<br />

Naldo ainda recebe o pedido de<br />

emprego de duas moças. A<strong>mb</strong>as<br />

gostariam de uma oportunidade<br />

para trabalhar na copa. O administrador<br />

pensa por alguns minutos,<br />

avalia a situação e, no seu estilo<br />

UM TROUXE O<br />

OUTRO, E AGORA<br />

OS IRMãOS<br />

CÁSSIO E MATEUS<br />

SãO PRESENÇAS<br />

CONFIRMADAS<br />

NAS FESTAS DE<br />

SEXTA-FEIRA<br />

boa praça, aceita que as meninas<br />

façam um teste naquela mesma<br />

noite. Em seguida, as duas já estão<br />

ajudando a ajeitar garrafas nos<br />

refrigeradores e limpando o balcão<br />

à espera do público.<br />

Há 23 anos, Naldo administra o<br />

clube de dança junto com o sogro,<br />

Dezidério Luiz Brusda, e o cunhado,<br />

Luiz Carlos Brusda. A posição<br />

de gerente veio a convite do pai de<br />

sua esposa, um dos fundadores do<br />

local. Seu escritório fica instalado<br />

em uma modesta sala aos fundos<br />

do salão, praticamente escondido<br />

atrás do palco principal. É dali, em<br />

meio a papéis e em frente a uma<br />

fotografia com a vista aérea do Gigante<br />

do Vale, devidamente emoldurada,<br />

que ele toma as decisões e<br />

faz os negócios necessários para o<br />

andamento do clube.<br />

Com os três no comando, a casa<br />

está sempre lotada, de sexta-feira<br />

a domingo. “Fazemos reformas<br />

para acompanhar o que o público<br />

gosta”, afirma Naldo. Diz que<br />

o trabalho de sua equipe e o desempenho<br />

das bandas que se apresentam<br />

contribuíram para que o<br />

local tenha chegado ao ponto que<br />

chegou. “Aqui vem desde o grupo<br />

Fama até o Tchê Barbaridade. Mas<br />

os que mais lotam são San Marino,<br />

Toque de Mágica e Passarela”, comenta<br />

Naldo.<br />

Como bom empresário, ele acredita<br />

que a fórmula para fidelização<br />

68 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


dos seus clientes é andar junto com<br />

eles, acompanhar suas modificações,<br />

seus gostos, comportamentos,<br />

ir se modernizando e atendendo<br />

a todos como merecem.<br />

Enquanto Naldo fica na retaguarda,<br />

atento à movimentação,<br />

a festa segue no clube, cada vez<br />

mais cheio. O público não para de<br />

chegar ao longo da madrugada, e a<br />

banda leva todos para o centro do<br />

salão. Alguns casais fazem da pista<br />

o seu palco. Com técnica, habilidade<br />

e coreografias que parecem<br />

ter sido ensaiadas em casa. Dão<br />

um show à parte.<br />

Mas não ter par e não saber<br />

dançar não significa estar de fora.<br />

Dança-se de qualquer jeito, vale<br />

mulher com mulher, amigo com<br />

amigo e até sozinho. Só não pode<br />

ficar parado. O importante mesmo<br />

é se deixar levar pela música e<br />

curtir a festa até o fim.<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

ecidimos escrever sobre festas às margens da BR-116<br />

“De logo entramos em contato com as duas principais<br />

casas noturnas de São Leopoldo instaladas próximo à<br />

rodovia. A primeira nos disse não, mas a segunda aceitou e<br />

nos recebeu muito bem. Era sexta-feira, chegamos ao clube<br />

Gigante do Vale. Logo percebemos que o principal desafio<br />

que encararíamos ao preparar esta reportagem seria deixar os<br />

preconceitos de lado. Nem nós, repórteres, e nem o fotógrafo<br />

que nos acompanhou, conhecíamos o lugar. Tínhamos uma<br />

imagem pré-concebida do local, construída apenas em cima de<br />

comentários alheios. Algumas expectativas foram confirmadas<br />

e tantas outras derrubadas. Nos surpreendemos com pessoas<br />

completamente diferentes de nós. De certa forma, conhecemos<br />

um outro mundo, onde valores, sonhos, vidas são tão<br />

diferentes e tão iguais às nossas. A grande lição que tivemos<br />

ao escrever sobre um lugar que não conhecíamos foi a de<br />

que ser ‘filho da pauta’ é absolutamente sem graça. Se<br />

tivéssemos seguido exatamente aquilo que nos propomos<br />

logo no início do semestre, não teríamos encontrado os<br />

personagens fantásticos que encontramos e ta<strong>mb</strong>ém não<br />

teríamos nos divertido, mesmo concentradas na coleta de<br />

informações, como nos divertimos.”<br />

HÁ 32 ANOS FAGUNDES<br />

REGISTRA OS MELHORES<br />

MOMENTOS DA FESTA


AcEItA UMA PIcAnHA?


A CHURRASCARIA SAPATãO<br />

EXISTE HÁ MAIS DE 50 ANOS,<br />

MAS A ORIGEM DE SEU NOME<br />

é UM MISTéRIO<br />

TEXTO dE LUcIAnO nUnES<br />

FOTOS dE bRUnO bIttEncOURt<br />

Mal o carro estaciona e um homem já vai em<br />

direção aos clientes para recepcioná-los. Em<br />

dias de chuva, o rapaz utiliza um enorme guarda-sol<br />

para conduzir os frequentadores até um<br />

lugar coberto. Dali até a porta de entrada, são necessários<br />

apenas 20 passos. Percorrida a distância, os clientes<br />

encontram-se dentro da Churrascaria Sapatão.<br />

O restaurante existe há mais de 50 anos, sendo que há<br />

sete foi comprado por três novos sócios: Atacir Ferreira,<br />

Rosimeri Ongaratto e Amarildo Mello. Eles não sabem exatamente<br />

a origem do nome Sapatão, mas Amarildo acredita<br />

que o fato da região ser forte na indústria calçadista<br />

possa ter alguma relação. A churrascaria está localizada<br />

no quilômetro 234 da BR-116. Fica ao lado de um movimentado<br />

posto de gasolina, que possui loja de conveniência<br />

e até uma barbearia.<br />

Quando se entra na Sapatão, o espaço interno surpreende.<br />

Por fora não parece, mas o restaurante pode acomodar<br />

até 330 pessoas. Com volume baixo, uma música<br />

alegra o a<strong>mb</strong>iente em alguns momentos. Pelas caixas de<br />

som, ouve-se desde temas tradicionalistas até musicas<br />

sertanejas. Em dias de semana, durante o almoço, as três<br />

televisões espalhadas pelo local ficam passando noticiários<br />

locais e esportivos.<br />

Existe uma divisão de lugares dentro da churrascaria,<br />

o que facilita o atendimento. De preferência, clientes que<br />

escolhem se servir somente do bufê se acomodam de um<br />

lado, enquanto os que escolhem espeto corrido sentam-se<br />

em outro lugar. Segundo o garçom Luciano Ongaratto, graças<br />

a esse estratagema, seus colegas não precisam ficar<br />

caminhando muito pelo salão e ta<strong>mb</strong>ém diminui o risco de<br />

servir carnes frias.<br />

O almoço é servido diariamente a partir das 11h15min,<br />

porém o movimento começa mesmo pelo meio dia. O almoço<br />

segue até às 15h. De noite, a janta vai das 19h30min<br />

às 23h30min.<br />

Os garçons e demais funcionários preferem comer<br />

antes de servir a comida. “É melhor assim, senão a gente<br />

acaba servindo a carne de olho nos espetos e nos pratos<br />

dos clientes, com fome não dá para trabalhar”, diz<br />

Ongaratto. Todos os dias, os funcionários comem chur-


è<br />

rasco. “Hoje fiz um franguinho para<br />

mim, é bom dar uma variada, mas<br />

não me importo em comer churrasco<br />

todos os dias.”<br />

Ongaratto é um dos garçons mais<br />

antigos da Sapatão. Está há seis anos<br />

na empresa. Ele responde pela área<br />

do bufê e se alegra quando a casa está<br />

lotada. “É muito bom poder interagir<br />

com as pessoas”, diz.<br />

O pai e a mãe de Ongaratto trabalhavam<br />

em uma churrascaria quando<br />

ele era pequeno. “A profissão está no<br />

meu sangue. Meu pai era assador e<br />

minha mãe servia, enquanto isso eu e<br />

meu irmão ficávamos dormindo no escritório”,<br />

le<strong>mb</strong>ra. Depois, seu pai comprou<br />

um restaurante, e ele e o irmão<br />

começaram a servir desde cedo. “Em<br />

duas oportunidades trabalhei em São<br />

Paulo, como garçom ta<strong>mb</strong>ém. Voltei<br />

ao Rio Grande do Sul e tentei trabalhar<br />

com meu sogro em uma mercearia,<br />

mas não deu certo. Daí comecei aqui<br />

na Sapatão, onde estou até hoje.”<br />

Ongaratto trabalha o dia inteiro na<br />

churrascaria, pois precisa juntar dinheiro<br />

para arrumar seu carro. Folga<br />

apenas às segundas-feiras, dia que a<br />

churrascaria não abre. O garçom gosta<br />

muito de conversar e fazer brincadeiras<br />

com os clientes. “Ainda ontem<br />

havia um corintiano aqui. Ele começou<br />

a pegar no meu pé por causa do<br />

Grêmio. Depois eu le<strong>mb</strong>rei que eles<br />

não possuem nem mesmo um estádio<br />

próprio”, recorda, dando risada.<br />

nos bAstidores<br />

Nos bastidores, assim como durante<br />

o serviço, os garçons demonstram<br />

muito bom humor, entre eles e ta<strong>mb</strong>ém<br />

com os clientes. Internamente,<br />

piadas, gozações e apelidos fazem<br />

parte do dia a dia. Uns revelam os<br />

apelidos dos outros. Luciano Ongaratto<br />

é conhecido como NH, pois, segundo<br />

os colegas, ele, assim como o<br />

jornal NH, sempre tem informações<br />

para dividir com os amigos. Só que as<br />

dele, dizem, na maioria das vezes são<br />

irrelevantes.<br />

Ongaratto prefere se apresentar de<br />

outra maneira: “Pode colocar aí que<br />

estou solteiro, sou gremista e procuro<br />

uma namorada de 18 a 25 anos, de preferência<br />

morena, e, se não for abusar,<br />

que a mãe dela já esteja morta. Odeio<br />

a ideia de ter uma sogra”, brinca.<br />

Alexssandro da Silva Pinheiro<br />

ta<strong>mb</strong>ém é um dos garçons mais antigos,<br />

mas não possui apelido, como<br />

Adriano Fecco. Adair Vieira é o Chocolote.<br />

Isaias dos Santos tem o apelido<br />

de Paulista. Eloir Jesus da Silva<br />

é o Mixaria. A lista continua com Eliseu<br />

Sampaio dos Santos, conhecido<br />

como Tatu; Joel Oliveiro, chamado de<br />

Mostarda; e Erasmo Isaias de Senna,<br />

conhecido como Ligeirinho. Os dois<br />

assadores são Milton Graf e Arsenio<br />

Renner. O apelido de Arsenio é muito<br />

engraçado, mas impublicável.<br />

O resultado de tanta irreverência<br />

por parte dos atendentes reflete-se<br />

72 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


diretamente nos clientes. Para a frequentadora<br />

Vera Lúcia da Silva, que<br />

trabalha perto do restaurante e vai na<br />

Sapatão diariamente há mais de cinco<br />

anos, o atendimento é fantástico.<br />

“Adoro a comida e o atendimento.<br />

Infelizmente não posso mais almoçar<br />

com toda a família em dias de semana,<br />

e o clima aqui, de uma certa<br />

maneira, acaba preenchendo este<br />

vazio para mim. O cardápio variado e<br />

o tempero único ta<strong>mb</strong>ém ajudam na<br />

escolha da churrascaria”, elogia.<br />

Cabe a cada garçom, se necessário,<br />

salgar a carne e recolocá–la no<br />

fogo. O chão escorregadio, em frente<br />

da churrasqueira, já proporcionou cenas<br />

engraçadas. “Uma vez um garçom<br />

caiu na frente da churrasqueira. Eu<br />

não sabia o que fazer, se ria ou ajudava.<br />

O to<strong>mb</strong>o foi bonito de ver. Daí fui<br />

ajudar e não é que eu acabei caindo<br />

ta<strong>mb</strong>ém! Por sorte, ninguém se machucou<br />

e logo voltamos a trabalhar”,<br />

le<strong>mb</strong>ra Ongaratto.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 73<br />

O RESTAURANTE<br />

ACOMODA ATé<br />

330 PESSOAS E<br />

OFERECE, ALéM<br />

DA COMIDA, O<br />

BOM HUMOR<br />

DOS GARÇONS<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

uitas vezes, ao pararmos para comer em um lugar,<br />

“Mpensamos na agilidade do atendimento. Raramente<br />

percebemos a importância do árduo trabalho de pessoas que<br />

se esforçam muito para oferecer, além de uma boa comida,<br />

um atendimento diferenciado. No dia em que observei a<br />

Churrascaria Sapatão, o empenho por parte dos garçons em<br />

servir bem os clientes era notório. Enquanto havia clientes<br />

dentro do salão, eles se esforçavam muito para satisfazê-los<br />

da melhor maneira. O entrosamento entre todos os setores<br />

do restaurante é fundamental. Presenciei o serviço deles<br />

por quase seis horas. Mesmo sendo um lugar sério, o clima<br />

muito descontraído entre os funcionários acaba ajudando<br />

no atendimento. Eu me senti muito a vontade no lugar,<br />

todos me trataram muito bem. Por estar com um fotógrafo<br />

durante um determinado tempo, era engraçado ver os garçons<br />

fazendo pose com espetos de carnes nas mãos. A experiência<br />

certamente foi muito válida, pois valeu para mostrar os<br />

bastidores de um grande restaurante.”


ATENÇÃO ANDRÉ áVILA


è<br />

dE dEntRO dA cAb<br />

76 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong>


InE<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong> | 77<br />

PARA QUEM ATRAVESSA O PAÍS<br />

ACOMPANHADO APENAS POR LEMBRANÇAS,<br />

A VIDA NA ESTRADA é MUITO MAIS QUE<br />

PASSAGEM – é CONSTRUÇãO


“Esse é o meu cantinho.<br />

É a minha casa.”<br />

É<br />

recomendável tirar os sapatos<br />

para entrar. O carpete<br />

vermelho mantém a mesma<br />

aparência de quando passou<br />

a revestir o espaço de 2,<strong>10</strong>m por<br />

1,70m. Os bancos, de estofado preto<br />

confortável, transformam-se em<br />

cama tão logo seja preciso descansar<br />

durante mais uma travessia pela<br />

BR-116. À direita, dependurado no<br />

para-brisa, um apanhado de amuletos:<br />

fitas do Senhor do Bonfim, pés<br />

TEXTO dE dAnIELA FAntI E LÍLIAn StEIn | FOTOS dE RAMIRO FURQUIM<br />

de coelho, um escapulário. Crenças<br />

de quem vê a vida passar pelo asfalto.<br />

Ao centro, a foto de uma mulher<br />

de 28 anos, abraçada a uma menina<br />

de pouco mais de quatro, reacende o<br />

desejo e a espera pelo retorno. Tudo<br />

é diferente para quem sente a vida<br />

passar de dentro da cabine.<br />

O sol quente de um típico domingo<br />

de outono ilumina a carroceria<br />

do caminhão da empresa de transportes<br />

de Garibaldi. Perto das 13h,<br />

mala feita, chega a hora de partir. O<br />

“cebolão”, como é chamada a carreta<br />

específica para o transporte de<br />

cimento, está vazio, mas a ida até<br />

o Paraná vai garantir, já no dia se-<br />

guinte, a volta com o veículo completamente<br />

carregado – mais de 31<br />

toneladas da matéria-prima estarão<br />

sob responsabilidade do motorista. A<br />

previsão é pegar a BR-116 em Caxias<br />

do Sul, seguindo pelo caminho que<br />

leva a Vacaria, na divisa com Santa<br />

Catarina. A chegada a Curitiba ainda<br />

no domingo à noite assegura a volta<br />

para casa na segunda-feira. Ao longe,<br />

o horizonte escuro, prenúncio de<br />

forte temporal, não parece assustar:<br />

“Já passei por coisa muito pior.”<br />

É diferente a vida de quem vê<br />

a BR-116 de dentro da cabine. Luiz<br />

Aurélio Chesini dirigiu um caminhão<br />

pela primeira vez aos 16 anos.<br />

78 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


A curiosidade era aguçada pelo avô,<br />

que havia anos e<strong>mb</strong>arcava em longas<br />

viagens pelas estradas brasileiras. O<br />

neto, aos 18, logo depois de conquistar<br />

a licença para dirigir, começou a<br />

prestar serviços de entrega.<br />

A cabine que o leva a tantos lugares<br />

pelo Brasil é a mesma que guarda<br />

uma imensidão de histórias. As le<strong>mb</strong>ranças<br />

são capazes de transformar<br />

o se<strong>mb</strong>lante do motorista com a mesma<br />

rapidez com que o cenário vai<br />

mudando. Enquanto atravessa serra,<br />

campo e planície, tal qual um baú de<br />

histórias, ele rele<strong>mb</strong>ra as diversas fases<br />

pelas quais passou durante os 20<br />

anos dedicados à estrada.<br />

estrAdA sem limites<br />

Antes mesmo de qualquer pergunta,<br />

despeja algumas de suas piores<br />

le<strong>mb</strong>ranças: “Já estive em meio a tiroteio,<br />

soube de amigos que caíram<br />

em golpe de mães que usavam as filhas,<br />

prostitutas menores de idade,<br />

como isca para denunciar e prender<br />

caminhoneiros. Fiquei dias ilhado pela<br />

chuva, sem ter o que comer, precisei<br />

cumprir prazos que me obrigavam a<br />

colocar minha vida em risco.”<br />

Com a mulher e a filha recém-nascida,<br />

de apenas 20 dias, Luiz presenciou<br />

um assalto a um supermercado<br />

em uma favela de São Paulo. O carregamento<br />

de leite sob sua responsabilidade<br />

chegava ao destino no momento<br />

em que o estabelecimento era saqueado.<br />

“Nesses casos, a sensação de<br />

impotência é gigante. Simplesmente<br />

não havia o que fazer”, recorda. “Em<br />

muitas situações nós simplesmente<br />

não temos opção.” A frase serve como<br />

explicação para o restante do balaio<br />

de más recordações: Luiz presenciou<br />

a prisão de um conhecido que, em um<br />

posto de gasolina, foi abordado por<br />

uma mulher que oferecia a filha me-<br />

POR INFLUÊNCIA<br />

DO AVÔ, CHESINI<br />

TORNOU-SE<br />

CAMINHONEIRO<br />

AOS 18 ANOS<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 79


80 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | dEZEMbRO/20<strong>10</strong>


nor de idade para uma das práticas<br />

mais comuns na vida de muitos dos<br />

que passam meses em longas viagens.<br />

O sexo fácil e barato, dentro<br />

da cabine, ta<strong>mb</strong>ém é atalho para detrás<br />

das grades, tal qual aconteceu<br />

com o amigo do caminhoneiro. “Ele<br />

caiu na conversa. Foi pego com a menina<br />

dentro do caminhão. Está preso<br />

até hoje.” Chesini não sabe o que as<br />

mães ganham com essa prática.<br />

Ter recorrido ao rebite ta<strong>mb</strong>ém<br />

foi resultado da falta de opção.<br />

“Precisava fazer uma entrega no<br />

prazo”, justifica. As anfetaminas<br />

são uma constante na vida de quem<br />

trabalha com prazos bastante limitados.<br />

Estimulantes, se ingeridas<br />

com café garantem que o motorista<br />

dirija por horas a fio ignorando<br />

necessidades biológicas, como sono<br />

e fome. “Cheguei a dirigir 13 horas<br />

sem parar para ir ao banheiro e tomar<br />

água.” O uso do rebite não é<br />

a única prática ilegal à qual grande<br />

parte dos caminhoneiros se sujeita.<br />

Nos postos de gasolina em que costumam<br />

passar a noite, aproveitamse<br />

da pouca fiscalização para fazer<br />

uso explícito de drogas mais potentes.<br />

Luiz já perdeu a conta de quantas<br />

vezes traficantes bateram à sua<br />

porta para oferecer-lhe papelotes<br />

de cocaína: “Nem é preciso sair do<br />

veículo para cair na perdição”.<br />

Outra prática constante dos caminhoneiros<br />

nas noites solitárias na<br />

estrada é a parada em boates e casas<br />

noturnas, onde o consumo de drogas<br />

e bebidas alcoólicas é ainda maior.<br />

Depois das festas, seguem viagem<br />

alcoolizados, sob efeito de entorpecentes<br />

e, sem tempo para descansar,<br />

extrapolam na velocidade para não<br />

perder prazos e, consequentemente,<br />

o emprego. Luiz afirma estar longe<br />

dessa realidade, mas confidencia,<br />

em meio a um sorriso tímido, que<br />

nos anos em que permaneceu solteiro<br />

não conseguiu resistir à tentação.<br />

“Aí eu fiz de tudo”, confessa.<br />

Quem vê a vida passar de dentro<br />

da cabine é obrigado a aceitar as imposições<br />

do asfalto. Para Luiz, a primeira<br />

delas foi o fim do casamento.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 81<br />

A namorada da época de escola, que<br />

havia se tornado esposa tão logo a<br />

gravidez foi descoberta, não aceitava<br />

a constante ausência do marido.<br />

Entre amor e profissão, Luiz optou<br />

pela segunda alternativa. “A gente<br />

sofre muito, mas sempre vale a<br />

pena”, diz.<br />

Rele<strong>mb</strong>rar os piores momentos de<br />

suas passagens pela estrada faz com<br />

que o caminhoneiro fale por diversas<br />

vezes em sofrimento. O tom melancólico,<br />

no entanto, transforma-se<br />

em risada ao avistar um caminhão<br />

vindo em sentido contrário. Enquanto<br />

o companheiro buzina e anda em<br />

ziguezague fazendo uma espécie<br />

de cumprimento, Luiz recorre a um<br />

aparelho de rádio que possibilita a<br />

comunicação entre motoristas a distâncias.<br />

“E aí, Risadinha? Vais para<br />

onde? Que tu faças ótima viagem,<br />

tudo de bom para ti!”. Ao encerrar<br />

a ligação, explica: “Sabe quando eu<br />

digo que vale a pena? É disso que estou<br />

falando.”<br />

Os laços criados no asfalto mostram-se<br />

realmente fortes. Os caminhoneiros<br />

adotam apelidos entre si e<br />

frequentemente seguem viagem juntos.<br />

As histórias de estrada, além de<br />

amizade, são marcadas ta<strong>mb</strong>ém por<br />

outros fins e recomeços. “Foi por<br />

causa de uma mulher que conheci na<br />

beira do asfalto que decidi largar de<br />

novo a vida de solteiro. Me apaixonei<br />

pela neta do dono de uma lancheria.<br />

Um dia ela me convidou para ir a um<br />

baile, e acabamos ficando juntos”,<br />

rele<strong>mb</strong>ra. “Hoje, temos uma filha.<br />

Sempre levo as duas comigo, em uma<br />

foto, na cabine do caminhão. Foram<br />

dois amores que a estrada me deu.”<br />

Luiz Aurélio Chesini si<strong>mb</strong>oliza<br />

apenas um dos milhares de caminhos<br />

traçados na BR-116. Sua trajetória é<br />

uma das tantas marcadas – e construídas<br />

– no asfalto da maior estrada pavimentada<br />

do Brasil. Para quem vive<br />

percorrendo curvas, retas, momentos<br />

e pessoas, cada quilômetro reacende<br />

uma le<strong>mb</strong>rança e cada chegada é<br />

sinônimo de um novo porto seguro.<br />

Coisas de quem sente a vida de dentro<br />

da cabine.<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

ueríamos uma pauta que nos colocasse<br />

“Qdiante de uma situação até então<br />

desconhecida. A escolha do tema “BR-116”<br />

impulsionou o desejo: decidimos partir em<br />

uma viagem de caminhão que nos permitisse<br />

conhecer um pouco mais da rotina de quem<br />

passa grande parte do tempo sobre o asfalto.<br />

No dia 17 de abril, perto das 13h, nos<br />

encontramos com o personagem principal<br />

da tarde. Luiz Aurélio Chesini estava na<br />

sede da empresa de transportes para a qual<br />

trabalha, em Garibaldi. E<strong>mb</strong>arcamos rumo a<br />

uma viagem de pouco mais de três horas, no<br />

trecho entre Garibaldi e Vacaria – cerca de<br />

200 km de BR-116. A dúvida quanto à possível<br />

timidez de Chesini – acostumado à solidão da<br />

cabine – caiu por terra tão logo pegamos a<br />

estrada. Parecíamos grandes amigos. Enquanto<br />

atravessávamos serra e campo, uma porção de<br />

histórias nos mostrava que, muito mais que<br />

perigos da estrada ou rotinas de caminhoneiro,<br />

nossa pauta nos havia colocado em frente<br />

a alguém que construiu a vida a partir de<br />

uma cabine de caminhão. Chesini mostrou<br />

para nós aquilo que, mesmo tão evidente,<br />

fica escondido por detrás do senso comum:<br />

a BR-116 vai muito além do calor do asfalto,<br />

do cinza clichê, do barulho dos carros. Ela é,<br />

antes de tudo, caminho de vida. é caminho de<br />

construção.


EASY RIdERS GAÚ<br />

DONOS DE UM ESTILO highway, OS GUARDIÕES DE HADES<br />

COMPARTILHAM UMA ÚNICA E ADRENALINADA PAIXãO: O ASFALTO<br />

TEXTO dE SIMOnE nÚÑEZ REIS<br />

FOTOS dE GUILHERME bARcELOS


cHOS<br />

“(...) a motocicleta entra nas curvas sem esforço,<br />

inclinando-se de modo que nosso peso exerça força sobre<br />

a máquina, seja qual for o ângulo da inclinação (...).<br />

Curvas e mais curvas e mais curvas fechadas, fazendo<br />

com que o mundo inteiro gire, dê piruetas,<br />

se eleve e caia em seguida (...)”<br />

Le<strong>mb</strong>ro desse trecho do romance Zen<br />

e a arte de manutenção de motocicletas,<br />

escrito por Robert M. Pirsig,<br />

que narra, em estilo poético-literário,<br />

a ótica de um escritor-motociclista que<br />

percorreu a América do Norte levando seu<br />

filho na carona.<br />

Assim como Pirsig, que dividiu com o<br />

filho sua paixão pela velocidade sob duas<br />

rodas, no município de Esteio, o casal de<br />

motociclistas Pedro Oliveira dos Santos e<br />

Cléier Salete Cezarino Severo ta<strong>mb</strong>ém dividia<br />

a mesma paixão e sonhava em criar<br />

um motoclube.<br />

Foi numa noite quente de março de 2004<br />

que o sonho do casal recebeu apoio dos filhos e de<br />

mais cinco amigos motociclistas. Surgia então o Motoclube<br />

Guardiões de Hades. Inspirados em roads movies<br />

norte-americanos, como Easy Rider (1969), eles escolheram<br />

o nome do grupo, o estilo de roupa e o brasão.<br />

Por fim, um estatuto deu início ao motoclube.<br />

O encontro para criar o clube durou cerca de nove<br />

horas na Taverna de Hades — pub localizado em Esteio.<br />

Os integrantes só saíram de lá para procurar um desenhista<br />

profissional que criaria o logotipo para o uniforme<br />

do grupo. Mais tarde, os fundadores do Guardiões<br />

de Hades decidiram abrir sua própria sede nos fundos<br />

da residência de Pedro e Cléier, no bairro Santo Inácio,<br />

em Esteio. Em pouco tempo tornou-se um ponto muito<br />

visitado por aficionados por motociclismo.<br />

Quando entrei na sede dos Hades, parecia que eu<br />

estava ouvindo a trilha sonora Born to be wild, de Steppenwolf,<br />

principalmente quando visualizei um imenso<br />

painel da marca de motocicletas Harley Davison pendurado<br />

na parede.<br />

JAQuet & mythology<br />

Escolhido para batizar o motoclube, o nome Hades<br />

homenageia o deus mitológico grego de segunda geração<br />

– em grego clássico, Άδης; em grego contemporâneo,<br />

Hádēs – que é uma espécie de guardião do mundo<br />

inferior dos mortos. Um croqui rascunhado transformou-se<br />

no brasão bordado nas jaquetas dos Hades, que<br />

elegeram três sí<strong>mb</strong>olos para compô-lo: um cérbero (cão<br />

trícefalo), posicionado sobre o segundo sí<strong>mb</strong>olo, um<br />

motor de dois cilindros em forma de “V”, envolvido por<br />

uma chama de fogo, que é o terceiro sí<strong>mb</strong>olo e representa<br />

a paixão pelas pistas.<br />

Atualmente o motoclube tem 18 integrantes, incluindo<br />

pilotos e caronas, com 11 motocicletas e é fi-


liado à Associação dos Motociclistas<br />

do Rio Grande do Sul (Amors),<br />

instituição que promove eventos<br />

voltados à conscientização e educação<br />

no trânsito. Esse é o caso<br />

da campanha “Zoeira, estou fora”,<br />

evento realizado em várias capitais<br />

brasileiras com o objetivo de reunir<br />

motociclistas para integração saudável<br />

e em clima de segurança das<br />

irmandades motociclísticas.<br />

O motoclube organiza ações solidárias<br />

como a realizada em 2009 no<br />

Hospital da Criança Santo Antônio<br />

em Porto Alegre, voltada a crianças<br />

portadoras de câncer. Na ocasião,<br />

os Hades passearam de moto<br />

levando pacientes com bom quadro<br />

clínico como caronas pelo pátio do<br />

hospital, depois de visitarem os leitos<br />

de quadros mais agudos.<br />

Numa segunda oportunidade, organizaram<br />

um galeto em prol do Asilo<br />

Esperança, de Sapucaia do Sul, onde<br />

arrecadaram a quantia de R$ 2 mil.<br />

Noutra ocasião, em parceria com<br />

o motoclube Tchucos, de Sapucaia<br />

do Sul, apoiaram uma ação natalina<br />

na Vila Palmira, arrecadando brinquedos<br />

e alimentos para crianças e<br />

adolescentes carentes.<br />

br-116 AforA<br />

Militar da reserva, Pedro destaca<br />

a importância do planejamento<br />

prévio antes de criar um roteiro de<br />

viagem. Frequentemente os Hades<br />

circulam pela BR-116, considerada<br />

um portal de belezas naturais a<br />

partir do município de Novo Ha<strong>mb</strong>urgo.<br />

Nos últimos cinco anos, os<br />

integrantes viajaram ao Rio de<br />

Janeiro, Santa Catarina, Uruguai<br />

e Argentina pilotando suas motocicletas,<br />

entrando em contato com<br />

vários motoclubes nacionais e internacionais<br />

e conhecendo inúmeros<br />

eventos motociclísticos.<br />

Um dos locais de encontro é<br />

a Tenda do U<strong>mb</strong>u, considerada o<br />

principal ponto mototurístico do<br />

Estado. A tenda fica localizada no<br />

quilômetro 203 da BR-116, no município<br />

de Picada Café. “É um point<br />

destinado aos motociclistas em fi-<br />

nais de semana que existe há 46<br />

anos. Ali pessoas de vários municípios,<br />

se reúnem para lanchar e<br />

trocar informações sobre o mesmo<br />

assunto: motos”, comenta Pedro.<br />

Segundo os Hades, mototurismo<br />

é uma das modalidades exercidas<br />

no motociclismo. Ela exige um<br />

certo grau de conhecimento sobre<br />

uso de navegadores GPS, roteiros,<br />

mapas, planejamento financeiro,<br />

pesquisa em sites especializados<br />

sobre mototurismo, manutenção<br />

do veículo, primeiros socorros na<br />

estrada e aplicativos móveis como<br />

os Google Maps e Google Street<br />

View, acessados através de smarthphones.<br />

Sobre o vestuário dos motociclistas,<br />

Pedro explica que são confeccionados<br />

em materiais como couro ou<br />

cordura — tecido com textura similar<br />

à lona — que, sob forma de calças e<br />

jaquetas, recebem reforços nas articulações<br />

e aplicações de fluorescências<br />

para visualização noturna.<br />

Pedro destaca que os motociclistas<br />

devem ficar atentos ao<br />

adquirir um capacete com a certificação<br />

do Instituto Nacional de<br />

Metrologia, Normalização e Qualidade<br />

Industrial (Inmetro), que prevê<br />

durabilidade de até três anos.<br />

Quando estão vianjando, os Hades<br />

consomem alimentos energéticos<br />

como chocolates, barrinhas<br />

de cereais, água, chimarrão, que<br />

os deixam mais dispostos e atentos<br />

na estrada. Quanto aos cuidados<br />

com o corpo, não dispensam o uso<br />

de filtro, adesivos analgésicos para<br />

dores musculares e repelentes contra<br />

picadas de insetos que entram<br />

por baixo do capacete.<br />

O Hades Egon Marques recorda<br />

de um episódio em que um Hades<br />

foi atingido por um voo rasante de<br />

coruja em plena BR-116. “Foi tão<br />

forte o impacto do pássaro no capacete<br />

que poderia ter gerado um<br />

acidente”, recorda. Outro episódio<br />

aconteceu com o próprio Egon. “Um<br />

guaxinim se atravessou na frente<br />

da minha moto e eu tive de parar<br />

até o bicho atravessar a pista.”<br />

motoQueiros e motociclistAs<br />

Pedro, ta<strong>mb</strong>ém conhecido com<br />

Amigão Hades, explica que a expressão<br />

“motoqueiro” é usada para mencionar<br />

maus pilotos que andam em altíssima<br />

velocidade, não usam capacete e conduzem<br />

o veículo sem habilitação ou<br />

com licença vencida.<br />

A participação em rachas e arruaças,<br />

prática de manobras arriscadas<br />

como aceleraço, zerinho, wheeling<br />

amador — provas de habilidade em que<br />

o piloto ergue a roda traseira —, tiros<br />

de escapamentos, cavalo-de-pau ou andar<br />

deitado sobre a moto (aviãozinho),<br />

são o que há de pior quando se trata do<br />

comportamento dos condutores.<br />

Por outro lado, a expressão motociclista<br />

designa o piloto que respeita o<br />

código de trânsito, a vida humana, a<br />

vida dos animais e o meio a<strong>mb</strong>iente.<br />

Uma das competições mais importantes<br />

é o Iron Button. A tradução<br />

literal da expressão é “bunda de ferro”.<br />

A competição surgiu nos Estados<br />

Unidos e virou febre no Brasil, com<br />

motociclistas que percorrem 1.000<br />

84 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


milhas em 24 horas. Os Guardiões de<br />

Hades participaram da prova em 20<strong>10</strong>,<br />

sem atingir pontuação suficiente segundo<br />

as normas da Iron Butt Association<br />

(IBA). Tentaram percorrer seis<br />

estados pela BR-116, mas um acidente<br />

nas imediações da Rodovia Ayrton<br />

Senna impediu que continuassem.<br />

cut interView<br />

Ao desligar o gravador, recebo um<br />

convite para ir até o quilômetro 230 da<br />

BR-116 e lanchar na Tenda do U<strong>mb</strong>u. O<br />

local me surpreendeu, e naquele instante<br />

novamente recordei Pirsig:<br />

“(...) Esta estrada continua descendo,<br />

coleante, através do desfiladeiro.<br />

O sol matinal matiza a paisagem ao<br />

nosso redor. A motocicleta zune, através<br />

do ar frio e dos pinheiros da montanha<br />

(...). Diminuímos a velocidade,<br />

fazemos a conversão e seguimos uma<br />

estrada de terra (...). Estacionamos a<br />

moto sob uma das árvores, desligamos<br />

o motor, fechamos a gasolina (...).”<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 85<br />

MOTOCICLETAS<br />

OSTENTAM COM<br />

ORGULHO ADESIVO DOS<br />

GUARDIÕES DE HADES<br />

pegue cAronA<br />

O motoclube gerencia duas comunidades<br />

na rede social Orkut, a<strong>mb</strong>as lotadas de<br />

recados quando o assunto é modelos de<br />

motocicletas. Respondendo os internautas,<br />

os integrantes dos Guardiões de Hades<br />

dizem preferir as de estilo Custom,<br />

ta<strong>mb</strong>ém conhecidas como Estradeiras<br />

Esportivas, ou Big Traillers, das marcas<br />

Kasinski, Suzuki, Yamaha e Honda, que<br />

chegam a atingir potências de 250 a 1.000<br />

cilindradas. Interessados em contatar o<br />

motoclube podem fazê-lo através do e-mail<br />

guardioesdehades@pop.com.br ou pelos<br />

telefones (51) 8144- 8462 ou (51) 3459-4175.<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

arecia tudo tranquilo durante os primeiros<br />

“Pencontros da turma, quando sugerimos temas até<br />

elegermos a BR-116. Comecei a apurar uma deteminada<br />

pauta, não deu certo e acabei mudando. Encontrei uma<br />

colega motociclista integrante de um motoclube de<br />

Esteio. Ainda estava estressada e em dúvida sobre<br />

a pauta. Após devorar uma barrona de chocolate e<br />

trocar ideias com os professores, recebi a indicação da<br />

leitura de um romance de Robert M. Pirsig, um autor<br />

norte-americano, para que eu fosse entrando no clima<br />

da nova matéria. Isso foi decisivo. Acompanhada<br />

de uma colega da disciplina de fotografia, cheguei<br />

até o motoclube, onde fui hiperbem recebida. Na<br />

sede do Motoclube Guardiões de Hades, tudo deu<br />

certo. Após desligar o gravador, tive a certeza que<br />

poderia emitir um Ômmmm, aliviada. Minha primeira<br />

impressão aconteceu em meio a um tsunami<br />

chamado TPM, misturada com um pouco de azar. Foi<br />

uma Primeira Impressão literalmente kármica... Só<br />

me resta desejar Amém, Shalom, Saravá!”


À ESPERA dO<br />

tRAbALHO<br />

PROFISSIONAL EM VIAS DE EXTINÇãO, O CHAPA<br />

é CONTRATADO ÀS MARGENS DA RODOVIA PARA<br />

AUXILIAR O CAMINHONEIRO NA ENTREGA DA CARGA<br />

TEXTO dE dAnIELA VILLAR E PAOLA MAdEIRA<br />

FOTOS dE cEcÍLIA MEdEIROS


Manhã fria com transito agitado, crianças tentando<br />

atravessar a BR-116 para chegarem até<br />

a escola, homens parados conversando entusiasmados<br />

ao lado do de um posto de gasolina.<br />

Esse é o cenário encontrado em diversos trechos dessa<br />

movimentada rodovia. Januário Oliveira, 54 anos, é um<br />

dos trabalhadores que se aventuram todos os dias em um<br />

dos trechos mais tumultuados da cidade de São Leopoldo.<br />

Casado e pai de oito filhos, conta que acordar às 5h da<br />

manhã não é mais novidade, já faz 20 anos que ele trabalha<br />

como chapa.<br />

Chapa é sinônimo de camarada, amigo, mano e, como<br />

neste caso, ajudante. São profissionais que auxiliam os<br />

caminhoneiros a se locomoverem em uma cidade des-<br />

conhecida. E principalmente a carregar e descarregar a<br />

carga que o caminhão leva. Esses trabalhadores são facilmente<br />

identificáveis por quem interessa: os caminhoneiros.<br />

Placas escritas à mão com a palavra “chapa” são<br />

a porta de entrada para o motorista de caminhão pisar<br />

no freio. E como se estivesse em um supermercado, o<br />

caminhoneiro escolhe a sua mercadoria. Não se engane<br />

pensando que os mais jovens são a prioridade. Nessa profissão<br />

é preferível optar por homens que pareçam mais<br />

experientes do que moços fortes que podem se revelar<br />

ociosos durante o trabalho.<br />

Há quem diga que pode ser perigoso convidar um homem<br />

para entrar em seu caminhão, alguém que o motorista<br />

não conhece e que é forte. No entanto, isto não é


problema nem para os chapas, nem para os caminhoneiros.<br />

Juarez Maciel, 72 anos, conta que passou 40 anos<br />

como caminhoneiro e que nunca teve problemas com os<br />

chapas: “Eles estão ali para ajudar”, enfatiza. “É mais<br />

fácil o chapa entrar numa de pegar uma carga roubada<br />

para descarregar”, conta Januário, explicando os perigos<br />

que existem na profissão. Apenas um dos oito filhos de<br />

Januário optou por seguir a mesma profissão do pai. Marciário,<br />

de 18 anos, que já trabalha há três como chapa.<br />

Pai e filho têm clientes fixos. Hoje é mais fácil o caminhoneiro<br />

encontrar um bom chapa, pegar o numero de<br />

celular e, sempre que precisar do serviço naquele ponto<br />

do mapa, ligar antes e agendar.<br />

Januário é facilmente encontrado ao lado do Posto<br />

Ipiranga na divisa entre São Leopoldo e Novo Ha<strong>mb</strong>urgo.<br />

E assim como ele, é possível ta<strong>mb</strong>ém encontrar, diariamente,<br />

pelo menos <strong>10</strong> chapas fixos neste local. Ele repara<br />

a hora “São 6h45min faltam 15 minutos para o horário<br />

co<strong>mb</strong>inado”. O encontro será com Machado, o cliente<br />

que virou amigo e, que sempre que tem carga na cidade<br />

liga e agenda com Januário o serviço. Dessa vez o chapa<br />

vai descarregar bobinas de ferro em Estância Velha, o valor<br />

pelo serviço é R$ 130. “Hoje ganho uns trocos a mais<br />

porque é pesado o negócio”, conta Januário. A diária de<br />

um chapa varia. João Francisco Lima, 59 anos, conta que<br />

na BR-116 uma saída custa R$80,00. Nesse valor, está incluído<br />

auxílio o motorista a chegar a seu destino e descarregar<br />

o caminhão. Se o que o caminhoneiro precisa é<br />

apenas um auxilio para chegar ao local, o custo cai para<br />

R$ 30. “Mas aí não vale a pena, a gente tem que voltar<br />

de ônibus”, explica João.<br />

Januário e Francisco aguardam um tanto quanto desanimados<br />

pelo futuro de sua profissão, afinal o trabalho<br />

como chapa está cada vez mais escasso. Percebe-se<br />

que esse serviço está perdendo o seu lugar para uma<br />

nova configuração nos modelos de prestação de movimentação<br />

de carga. Titulo que rendeu o nome para<br />

a profissão: movimentadores de carga. Hoje já existe<br />

uma regulamentação e o serviço é oferecido dentro de<br />

associações e cooperativas. Algumas, entretanto, um<br />

tanto duvidosas, é preciso ficar atento às promessas<br />

de 13º, indenizações e aposentadoria. Afinal, mesmo<br />

legalizado, este profissional estará atuando como autônomo,<br />

com a diferença de fazer parte de uma cooperativa<br />

ou associação.<br />

Ao se tornar sócio ou cooperativado, quem passa a<br />

agenciar a contratação é a cooperativa que cobrará um<br />

valor em cima do serviço prestado pelo movimentador de<br />

carga. Em uma cooperativa na cidade de São Leopoldo a<br />

diária do movimentador é de R$ 33, esse é o valor pago<br />

ao profissional, a vantagem encontra-se no fato de que,<br />

se a cooperativa fizer bem o seu trabalho, o movimentador<br />

estará contribuindo para o INSS e poderá garantir<br />

a sua aposentadoria. No entanto, a realidade afasta os<br />

chapas da legalidade. Não há como prover uma família<br />

com R$ 33 diários sabendo que é só andar algumas quadras,<br />

para aguardar os caminhoneiros que estão dispostos<br />

a pagar até R$ 130 por trabalho.<br />

As associações e cooperativas possibilitaram a inserção<br />

de mulheres neste mercado de trabalho. Outrora<br />

era inimaginável uma mulher querendo trabalhar como<br />

chapa. No entanto, hoje, a empresa que precisa do movimentador<br />

de carga solicita diretamente à associação<br />

ou cooperativa que encaminhe a pessoa com o perfil desejado.<br />

As mulheres têm se mostrado tão capazes quanto<br />

os homens na hora de pegar no pesado e algumas empresas<br />

já preferem o trabalho das meninas ao dos rapazes.<br />

Contudo, será muito difícil ver uma mulher na beira da<br />

BR-116 procurando trabalho como chapa.<br />

As inoVAÇões tecnológicAs<br />

Um dos principais inimigos dos chapas é a tecnologia.<br />

Com a popularização do GPS (sistema de posicionamento<br />

global), os caminhoneiros passaram a utilizar o aparelho,<br />

reduzindo a necessidade de alguém que lhe mostre<br />

como chegar a determinado local. Outro fator que induz<br />

os chapas a crer que a profissão está em risco é o fato<br />

das empresas adotarem como forma de trabalho as empilhadeiras<br />

e os paletes. O palete é uma tábua de ma-<br />

88 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


deira, estrategicamente posicionada em baixo da carga.<br />

Assim a empilhadeira é encaixada nos paletes e não é<br />

preciso nenhum tipo de força humana para descarregar<br />

a mercadoria. “Eu acho que a profissão vai durar mais<br />

uns três, quatro anos” afirma João Francisco. Januário<br />

discorda. “Acho que só vai reduzir o trabalho.”<br />

O chapa é mais um representante do vasto mercado<br />

de trabalho informal que ainda existe no Brasil, um<br />

prestador de serviços, um freelancer. Não tem carteira<br />

assinada, não paga INSS, não tem direito a aposentadoria,<br />

e em caso de acidente, terá que ficar em casa,<br />

sem trabalhar e sem receber. È o risco que esses pais de<br />

família têm corrido dia após dia. Enfrentar o mercado<br />

clandestino de trabalho, não precisar declarar ganhos,<br />

não pagar aposentadoria. Tudo para ter um poucos reais<br />

a mais mensais. Os chapas vão continuar trabalhando<br />

em um a<strong>mb</strong>iente fragilizado e perigoso, além de disputar<br />

espaço com as novas tecnologias. Entrar para o mercado<br />

legal de trabalho representaria um custo muito alto no<br />

orçamento desses profissionais que já possuem ganhos<br />

tão baixos.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 89<br />

ANÚNCIOS PINTADOS<br />

A MãO OFERECEM<br />

MãO-DE-OBRA<br />

PARA DESCARREGAR<br />

CAMINHÕES<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

escolha da pauta foi influenciada por nossa infância.<br />

“A Somos duas estudantes de jornalismo que contaram<br />

com caminhoneiros dentro da família. Ver uma pessoa querida<br />

ir e vir durante toda a vida nos remetia a correr o mundo<br />

sem rumo. Um pouco de Jack Kerouac com uma forte pitada<br />

de responsabilidade. A ideia seria ver como se comportam<br />

aquelas pessoas que ajudam os caminhoneiros. Queríamos<br />

saber como se sustentavam os chapas e suas famílias. E se<br />

vale à pena madrugar e passar horas a fio na beira de uma<br />

estrada, esperando que alguém precise de ajuda. No dia em<br />

que fomos encontrar os “nossos chapas”, passamos frio e<br />

sentimos o gosto amargo do café ruim de beira de estrada.<br />

Não conseguimos acompanha-los em um dos seus trabalhos,<br />

nem conseguimos sentir o peso de puxar uma pilha de caixas<br />

de dentro de um caminhão. Como jornalistas, conseguimos<br />

captar a dura vida que eles levam e transparecer isso em um<br />

texto. No entanto, para nós, o mais importante foi enxergar a<br />

simplicidade na qual eles vivem e, vivenciar um pouco daquilo<br />

que sempre ouvíamos falar em nossa infância.“


è<br />

TEkOá PORÃ<br />

TEXTO DE SÍLVIA DALMAS E VANESSA RAMOS | FOTOS DE EDER ZUCOLOTTO<br />

90 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


AtuAlmente, 35 fAmíliAs vivem nA AldeiA<br />

locAlizAdA nA cidAde de BArrA do riBeiro.<br />

suA principAl fonte de rendA vem do<br />

ArtesAnAto comerciAlizAdo nA Br<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 91<br />

Balaios e cestas pendurados<br />

nas tendas próximas à BR-<br />

116 nos sinalizam o caminho<br />

para o destino de nossa reportagem.<br />

A três quilômetros da rodovia,<br />

no quilômetro 335, encontramos<br />

uma escola, um pequeno posto<br />

de saúde e diversas moradias simples.<br />

Ao longo da estrada de chão<br />

batido, as crianças guaranis acenam<br />

alegres para os visitantes que entram<br />

em seu território, mesmo sem<br />

saber quem realmente são.<br />

Com apenas 27 anos, Arnildo<br />

Vera Moreira é o cacique da aldeia<br />

Tekoá Porá de Barra do Ribeiro. Em<br />

um primeiro contato, mostrou-se<br />

receoso em conceder a entrevista<br />

e, após uma rápida explicação sobre<br />

nosso trabalho, partimos dali, para<br />

que ele pudesse conversar com os<br />

índios mais velhos, os conselheiros<br />

da aldeia, e avaliar se era seguro<br />

ou não repassar informações. Após<br />

duas horas e meia, regressamos ao<br />

local: “Olhando nos olhos das pessoas,<br />

a gente já sabe se é do bem<br />

ou não”, diz o cacique, afirmando<br />

que iria colaborar com a equipe de<br />

reportagem.<br />

Depois de algumas apresentações<br />

para nos conhecermos melhor, Arnildo<br />

nos ofereceu um tronco de árvore<br />

na so<strong>mb</strong>ra para nos acomodarmos<br />

e ouvirmos a história da aldeia, enquanto<br />

os conselheiros apenas o observavam.<br />

Ali compreendemos que<br />

esse lado mais fechado é uma forma<br />

de proteção, já que cabe a ele<br />

a responsabilidade de zelar pelas 35<br />

famílias que vivem na região, totalizando<br />

cerca de 200 pessoas.<br />

O cOmeçO<br />

Conviver durante 24 horas por<br />

dia com um trânsito intenso, barulhento<br />

e perigoso, sem água e saneamento<br />

básico, era a maior dificuldade<br />

das famílias indígenas que<br />

moravam próximas à BR. Depois de<br />

perder suas terras em questões judiciais<br />

e sem ter lugar para construir<br />

suas moradias, os guaranis não tiveram<br />

outra opção a não ser ficar no<br />

“espaço que sobrou”.<br />

Como se a vida já não estivesse<br />

bastante complicada dessa maneira,


o jovem<br />

cAcique<br />

Arnildo contA<br />

A históriA dA<br />

AldeiA Ao lAdo<br />

do experiente<br />

conselheiro<br />

Artur<br />

por volta do ano 2000, as famílias<br />

começaram a sofrer muita pressão<br />

para que se retirassem do local e<br />

fossem para o Amazonas. “O que o<br />

governo não entende é que a gente<br />

já era dessa região. Lugar de índio<br />

é em todo lugar, não só no Amazonas”,<br />

defende o cacique. Esses fatos<br />

foram os principais motivos que os<br />

levaram a se mudar dali.<br />

Foi a partir desse momento que<br />

os irmãos guaranis Artur, 48 anos,<br />

e Ricardo Souza, 43, começaram a<br />

batalhar por um espaço digno e de<br />

qualidade para poderem ter uma<br />

vida de paz e sossego, pensando na<br />

necessidade de todos.<br />

“O sonho”, como eles chamam,<br />

estava perto dali, em uma fazenda<br />

de 12 hectares, localizada em<br />

Barra do Ribeiro. Depois de várias<br />

negociações intermediadas pelo<br />

governo federal, o fazendeiro que<br />

ocupava as terras concordou em<br />

cedê-las para sete famílias, para<br />

que pudessem começar a construir<br />

um futuro melhor.<br />

Assim, em meados de 2001, a<br />

pequena comunidade começava a<br />

se formar. A aldeia faz jus ao nome<br />

com o qual foi batizada: Tekoá Porã,<br />

que na língua tupi significa “terra<br />

bonita”, é considerada um exemplo<br />

para as outras tribos.<br />

Segundo o cacique, o que contribui<br />

para isso é o fato de que eles<br />

mesmos escolheram o local, em vez<br />

de serem obrigados a se alojar em<br />

qualquer pedaço de terra. A boa<br />

convivência que eles mantém com<br />

os brancos e outras aldeias próximas<br />

dali ta<strong>mb</strong>ém ajuda para esse<br />

destaque. “Às vezes colocam índio<br />

em solo que não dá para produzir,<br />

aí não adianta, aqui a terra<br />

é boa porque foi nossa gente que<br />

escolheu, é um exemplo de aldeia<br />

e tem espaço para criar os filhos,<br />

pois construímos conforme a nossa<br />

ideia”, diz Arnildo.<br />

Estrada de chão batido e um amplo<br />

espaço para as crianças brincarem<br />

com cachorros, gatos e galinhas<br />

soltos pelo local. Esses são os sinais<br />

da tranquilidade que a tribo conquistou<br />

ao longo desses 11 anos.<br />

A casa que o fazendeiro ocupava<br />

tornou-se a escola da comunidade e<br />

marcou o início da nova vida que os<br />

indígenas passaram a ter. É lá que,<br />

aos cinco anos, as crianças aprendem<br />

a falar o português, para poder<br />

entender os dois mundos nos quais<br />

convivem. Dois professores índios<br />

ensinam as matérias de religião,<br />

educação física, artes e língua guarani,<br />

as demais são repassadas por<br />

um professor branco.<br />

Apesar de não exibirem a mesma<br />

vestimenta que os índios nativos, a<br />

calça jeans e os sapatos não escondem<br />

o orgulho e a vontade de preservar<br />

a cultura de seus antepassados.<br />

Por isso, os guaranis evitam ao<br />

máximo fazer uso de artefatos modernos<br />

como celular e, até mesmo,<br />

energia elétrica.<br />

O principal sustento dos índios<br />

vem do artesanato e das plantações<br />

e, nesse ponto, a BR-116 ainda é fundamental<br />

na vida das famílias. Eles<br />

produzem seus objetos na aldeia e<br />

se deslocam até a beira da estrada,<br />

todos os dias, para vendê-los:<br />

“A caminhada até lá, se eu vou com<br />

calma, olhando a paisagem, demora<br />

mais ou menos uma hora”, calcula<br />

o líder. A rodovia, que antes era um<br />

local perigoso para morar, agora é<br />

fundamental para a renda da tribo,<br />

pois é graças a ela que conseguem<br />

vender seus produtos. “A estrada<br />

nunca traz coisas ruins, só depende<br />

de saber usá-la. Se não tivéssemos<br />

ela, teríamos que mendigar até o<br />

centro das cidades, como muitos índios<br />

fazem”, diz Arnildo.<br />

Há pouco tempo, a tribo construiu<br />

uma casa de artesanato na<br />

beira da BR, onde as famílias passarão<br />

a vender seus produtos em<br />

vez de comercializá-los nas tendas.<br />

Porém, eles aguardam a duplicação<br />

da rodovia para começar as atividades<br />

por lá.<br />

O preconceito que ainda existe<br />

contra os indígenas parte de quem<br />

não conhece a sua realidade e sua<br />

cultura: “Às vezes as pessoas pensam<br />

que índio que vende artesanato<br />

é vagabundo, mas nosso trabalho é<br />

esse, não é nosso papel trabalhar<br />

em fábrica, é conhecimento do índio<br />

trabalhar na agricultura e com<br />

artesanato, porque a gente não faz<br />

isso pensando em comprar carro, só<br />

faz pensando no alimento para os filhos”,<br />

argumenta Arnildo.<br />

Como eles nos explicam, aprender<br />

o português é necessidade, pois<br />

é a forma que encontram para poder<br />

lutar por seus direitos: “É muito importante<br />

conhecer a escrita, antes<br />

índio não sabia se defender no papel<br />

e foi assim que acabou ficando sem<br />

terra para viver e morando onde<br />

ninguém incomodaria. Antes se lutava<br />

contra escravidão, e agora a luta<br />

é por terra”.<br />

Apesar de terem vencido grandes<br />

batalhas, a tribo ainda enfrenta<br />

muitos problemas, como falta<br />

92 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


de atendimento e incentivo do governo.<br />

“Não é só dar as terras, tem<br />

muita coisa que poderiam fazer pela<br />

gente, e precisamos dessa ajuda.<br />

Se fosse como antigamente, a gente<br />

não precisaria de branco, mas,<br />

como é proibido caçar, temos que<br />

entrar nas leis deles, porque nosso<br />

jeito de viver muda conforme elas”,<br />

diz o cacique.<br />

Além da Funai e da Funasa, a<br />

maior atenção que os índios recebem<br />

vem das ONGs, que fornecem<br />

auxílios com as plantações e incentivos<br />

a diversos projetos. Mas a<br />

maior ajuda parte de dentro da comunidade,<br />

que compartilha os alimentos<br />

entre os moradores e realiza<br />

reuniões mensais para solucionar<br />

os problemas. “As pessoas só vem<br />

conversar com a gente quando precisam<br />

fazer trabalho, até mesmo os<br />

antropólogos muitas vezes nos veem<br />

como objeto de pesquisa, mas nós<br />

somos gente como eles ta<strong>mb</strong>ém.”<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 93<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

trabalho em uma redação de jornal é sempre uma<br />

“o luta diária contra o tempo. tudo é para ontem e<br />

as informações para completar as matérias não chegam.<br />

Acostumados com essa rotina, nos programamos<br />

para ir até a aldeia indígena ainda pela manhã, para<br />

conseguirmos explorar o máximo de informações<br />

possíveis. chegamos até a localidade e conversamos<br />

com o cacique, perguntando se poderia nos contar a<br />

história da aldeia e pedindo permissão para tirar fotos e<br />

entrevistar famílias. tudo já planejado nas nossas cabeças<br />

e dentro do nosso tempo. com poucas palavras, porém<br />

diretas, o cacique nos fez entender como realmente<br />

deveria fluir uma reportagem: ‘sei que com branco a<br />

conversa é nas pressas, mas aqui a gente procura se<br />

conhecer e falar um pouco sobre nossa vida antes de<br />

passar informação’. um diálogo com calma, conhecendo<br />

um pouco sobre a vida de cada um, foi fundamental<br />

para descobrirmos a essência da nossa reportagem,<br />

o que acabou mudando o foco dela ta<strong>mb</strong>ém. A nós,<br />

que trabalhamos e estudamos comunicação, o cacique<br />

nos ensinou uma das maiores lições para nossa vida<br />

jornalística: aproveitar cada instante da conversa sem se<br />

importar com o relógio.”<br />

o recreio é tAmBém<br />

A horA dAs criAnçAs<br />

se AlimentArem


è<br />

Um a<strong>mb</strong>iente com diferentes opções,<br />

proporcionando prazer aos seUs<br />

clientes, é a marca da saUna coqUetel<br />

94 94 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong><br />

| JULHO/2011


PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | JULHO/2011 | 95<br />

| 95<br />

SExO nA<br />

EStRADA<br />

como ViVem as meninas<br />

qUe trabalHam às<br />

margens da br-116<br />

TEXTO DE CLARISSA FIGUEIRÓ E SUÉLEn DAL’AGnOL<br />

FOTOS DE tHAYnÁ CAnDIDO


Noite de segunda-feira, 20h30min, pegamos o<br />

carro com uma amiga disposta a dirigir e a participar<br />

de uma romaria noturna. Percorremos a<br />

BR-116, em meio a becos, viadutos, passarelas,<br />

sinaleiras, paradas de ônibus e postos de gasolinas para<br />

encontrar prostitutas trabalhando.<br />

Primeiro viaduto, escuridão, duas garotas e um susto,<br />

uma delas jogou-se contra o carro. Estávamos andando<br />

lentamente e prosseguimos, a menina estava exaltada e<br />

fora de si, mas não foi dessa vez. Próxima parada, posto<br />

de gasolina. Indicaram-nos uma moça loira que faz ponto<br />

na Estação Rodoviária de Canoas, situada às margens da<br />

BR-116, esquina com a Rua Sete Povos.<br />

Pegamos o carro e, quando passamos pela rodoviária,<br />

a loira surgiu. Imediatamente, descemos e pedimos para<br />

conversar alguns minutos com ela. Até então ela achava<br />

que seria um programa, mas, no momento em que<br />

falamos se ela aceitaria participar de uma reportagem,<br />

instantaneamente recebemos como resposta um não.<br />

Ao voltar para o carro, fomos chamadas pela mulher<br />

e surpreendidas. Sem notarmos, tínhamos lhe chamado<br />

de “senhora”, e ela nos corrigiu: “Só vou falar uma coisa<br />

para vocês, gurias, se continuarem chamando as meninas<br />

de ‘senhoras’, não vão conseguir nada”. Pedimos desculpas<br />

e conseguimos contornar a situação, e, para nosso<br />

espanto, ela começou a conversar conosco.<br />

Maria* é loira, cabelos longos, olhos azuis, lábios pequenos,<br />

com alguns dentes faltando, seios fartos e extremamente<br />

carismática. Dizendo ter mais de 40 anos e<br />

menos de 50, não quis nos revelar a idade exata. Vestese<br />

como uma menina, calça e casaco de suplex e chinelos<br />

de dedo. Ela faz ponto no mesmo local há 12 anos, diz<br />

que não é apenas pelo dinheiro e, sim, ta<strong>mb</strong>ém por gostar<br />

de fazer sexo. Não a encontramos mais cedo porque<br />

ela trabalha das 22h às 3h da manhã, todos os dias. O<br />

valor cobrado por programa é R$ 40. “Sem negar nada ao<br />

cliente”, completa Maria.<br />

O público que lhe procura varia, desde pessoas novas<br />

e solteiras a homens velhos e casados. Não escolhe os<br />

clientes, todos são bem atendidos, sua única restrição é<br />

não atender casais. “As pessoas que me buscam querem<br />

algo diferente, porque feijão com arroz todos os dias enjoa.’’<br />

Na hora do programa, ela não se preocupa com<br />

o horário e sim com o carinho e atenção aos clientes,<br />

porque, segundo ela, qualquer atividade que é desempenhada<br />

com pressa nunca sai bem feita.<br />

Maria foi casada e engravidou de seu marido, porém<br />

preferiu criar o filho apenas com a ajuda de seus pais.<br />

Hoje o menino tem 16 anos e já sabe sobre a profissão<br />

da mãe. Ela sempre morou em Novo Ha<strong>mb</strong>urgo na casa<br />

dos pais, mas, devido a alguns conflitos com o pai, saiu<br />

de casa durante três anos, deixando o filho com os avós.<br />

Acabou voltando, pois seus pais possuem muitos problemas<br />

de saúde e é ela quem os ajuda financeiramente.<br />

Já trabalhou em eventos e como telefonista e vendedora.<br />

Acabou optando pela atual profissão porque estava<br />

desempregada e com o filho pequeno para criar. Não<br />

pensa em largar a prostituição, mesmo já tendo sido as-<br />

saltada e espancada. Devido a esse assalto e à agressão,<br />

ela precisou realizar uma cirurgia, ficou três meses em<br />

recuperação e passou a ter a impressão de que estava<br />

sendo perseguida, mas voltou a trabalhar.<br />

Estar na BR-116 pode parecer favorável devido ao<br />

grande fluxo de pessoas e carros. Maria diz que o ponto é<br />

bom, todos os dias tem clientes, mas que a BR não influencia<br />

no movimento. Conhecida pelos vizinhos e pessoas que<br />

passam, ela acredita que não incomoda ninguém.<br />

Da rua para as suítes<br />

Maria optou por trabalhar às margens da estrada, mas,<br />

outra alternativa são as casas noturnas. No decorrer da<br />

rodovia, as pessoas passam por diversas boates, uma delas<br />

é a Sauna Coquetel, que, por estar localizada na BR-116,<br />

em Canoas, recebe muitos clientes de outras cidades e<br />

pessoas que passam e acabam parando para conhecer.<br />

A casa noturna funciona há 38 anos no mesmo local.<br />

Sua infraestrutura é composta por três suítes, sete quartos<br />

simples, piscina, sauna a vapor, banheiros, bar e danceteria.<br />

Atualmente, conta com 70 garotas, com idades<br />

acima de 18 anos. A entrada custa R$ <strong>10</strong>, e o cliente<br />

ganha uma cerveja. De acordo com Rafael Nunes Feijó,<br />

filho do dono e responsável pelo local, o público varia de<br />

milionários com carros importados a pessoas que economizam<br />

o mês inteiro para ir ali.<br />

As garotas podem trabalhar fora da casa, nesse caso<br />

a boate não ganha nada pelo programa. As formas pelas<br />

quais a Sauna recebe Coquetel são pelo quarto utilizado<br />

96 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


(R$ 30 a cada 30 minutos), pela sauna (R$ 20 por garota<br />

dentro do lugar), pela piscina (R$ 15 por garota), pela<br />

entrada e pela bebida. Entretanto, dentro da piscina não<br />

ocorre programa e, se na sauna houver, o cliente deve<br />

pagar o valor correspondente para a garota.<br />

Conversamos na boate com Letícia*. Com 27 anos,<br />

há seis ela trabalha na noite. Loira, cabelos curtos,<br />

alta, pernas grossas, piercing no u<strong>mb</strong>igo e no nariz,<br />

fumante, não bebe cerveja e está na noite pelo dinheiro.<br />

Odeia bêbados. Sua preferência é por homens mais<br />

velhos. Natural de Porto Alegre, hoje reside no centro<br />

de Canoas com a irmã.<br />

Seus pais não sabem, porém desconfiam de sua profissão.<br />

A irmã que mora com ela já foi prostituta, e Letícia<br />

convenceu-a sair da vida noturna, mas, oito meses<br />

depois, ela própria foi quem ingressou. Estudava e<br />

trabalhava, largou tudo a partir do momento em que<br />

descobriu que poderia ganhar mais dinheiro em pouco<br />

tempo. A Sauna Coquetel não foi a única boate em que<br />

fez programas, já esteve na Carmen’s Club e no La Barca<br />

na cidade de Porto Alegre, além de casas noturnas de<br />

cidades do interior do Rio Grande Sul.<br />

Letícia é homossexual, e sua namorada ta<strong>mb</strong>ém é garota<br />

de programa. No entanto, conta ela que a partir do<br />

momento em que entra para a boate esquece da vida privada.<br />

Um programa de 30 minutos com ela custa R$ <strong>10</strong>0,<br />

mais R$ 30 pelo quarto ou R$ 50 pela suíte. Esse valor não<br />

dá direito a tudo. Caso o cliente queira outro serviço, além<br />

do sexo, o preço vai aumentando. O valor arrecadado em<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 97<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

o escolhermos a pauta, sabíamos que<br />

“a seria um assunto delicado para se tratar.<br />

a procura por casas noturnas localizadas na<br />

br-116 começou através da internet, pois não<br />

conhecíamos a região. buscamos indicações e<br />

pesquisamos em mapas e blogs, os contatos,<br />

porém não obtivemos nenhum sucesso. então,<br />

o desespero prevaleceu. “o que vamos fazer?<br />

desistir da pauta? não!” partimos para a rodovia<br />

aflitas, por não sabermos o que estava nos<br />

esperando, afinal eram lugares desconhecidos<br />

e pessoas estranhas, tudo poderia acontecer.<br />

conhecemos dois lados diferentes, a vida de uma<br />

pessoa que faz programas nas ruas e a de garotas<br />

que tem o local de trabalho pré estabelecido.<br />

entretanto, a<strong>mb</strong>as estão na profissão por apenas<br />

um motivo: o dinheiro. contudo, entrevistá-las<br />

nos mostrou que as garotas são mulheres como<br />

nós, que trabalham, precisam de dinheiro, tem<br />

seus sonhos e acreditam em um futuro melhor.<br />

conhecemos uma realidade diferente da que<br />

imaginávamos, além de nos fazer refletir sobre a<br />

nossa própria vida.”<br />

uma noite de programa varia de R$ 400 a R$ 1.200.<br />

E<strong>mb</strong>ora a quantidade de dinheiro seja alta, até o momento<br />

ela não adquiriu nenhum bem material. Existem<br />

colegas de trabalho que possuem apartamentos e carros.<br />

“Para uma menina obter algo com a grana é preciso ter<br />

a cabeça boa”, diz. Letícia já usou drogas todos os dias<br />

da semana, mas hoje ela consegue se controlar. Diz que<br />

a única maneira de aguentar os clientes chatos é estando<br />

“louca” e não apenas bêbada.<br />

Brigas entre as garotas não há, mas muitas já foram<br />

agredidas. A boate não interfere caso algo aconteça, cada<br />

uma tem de ter o domínio da situação. Letícia, quando<br />

esteve afastada da Sauna Coquetel, foi morar e trabalhar<br />

em Bento Gonçalves e, por não querer transar com o<br />

filho de um cliente, este acabou rasgando sua roupa na<br />

frente de todos, virando-lhe bebida e, por fim, lhe dando<br />

um tapa no rosto. “Homem que bate pode esquecer, mas<br />

mulher que apanha nunca esquece”, diz ela.<br />

Letícia conclui que, com a vida na noite, adquiriu conhecimento,<br />

experiência e dinheiro. Ta<strong>mb</strong>ém acredita<br />

que é impossível gostar de vender o corpo, ela e as outras<br />

estão trabalhando dessa forma porque há um motivo.<br />

Maria e Letícia, duas mulheres que vivem do dinheiro<br />

que a prostituição possibilita. Fazem das ruas ou da boate<br />

seu local de trabalho. São felizes? Quem sabe... Entretanto,<br />

apesar das diferenças, vivem a mesma realidade,<br />

o mundo da prostituição na BR-116.<br />

* Nomes fictícios para preservar a identidade das fontes.


UMA TENDA DE


HISTÓRIAS<br />

ComérCio<br />

de produtos<br />

Coloniais, na<br />

beira da rodovia,<br />

é alternativa de<br />

sustento para a<br />

Família Weber<br />

TEXTO DE RAFAELA KLEY<br />

E STÉFANIE TELLES<br />

FOTOS DE BRUNO BITTENCOURT<br />

Em um pequeno espaço na lateral do<br />

quilômetro 215 da BR-116, em Morro<br />

Reuter, uma simples casa de madeira<br />

foi construída há três anos. Nesse<br />

lugar, encontram-se histórias de um casal<br />

de descendência alemã que, junto com seus<br />

três filhos, busca na beira da estrada o sustento<br />

diário através do comércio de produtos<br />

coloniais.<br />

Mãe, esposa e responsável por administrar<br />

a tenda, Milita Weber, sempre quis ter sua<br />

própria lanchonete, mas viu seu objetivo se<br />

distanciar ao ficar desempregada. Para recomeçar<br />

a busca pelos seus sonhos, contou com<br />

a ajuda do cunhado, Fernando Weber, que incentivou<br />

e financiou a abertura do comércio.<br />

Era preciso, entretanto, encontrar um local<br />

próximo da casa da família para a construção<br />

do estabelecimento. “Fomos conversar com<br />

a dona do terreno para alugar o espaço, mas<br />

ela nos disse que não seria preciso pagar. Ela<br />

é uma senhora de mais idade, está sempre na<br />

janela nos observando e diz ficar feliz quando<br />

vê os carros parando aqui”, revela Milita, que<br />

trabalha desde os oito anos.<br />

Com a ideia formulada e o terreno acertado,<br />

restava apenas iniciar a construção da<br />

tenda. “Meu cunhado fez tudo, comprou o<br />

material, pagou e a construiu junto com meu<br />

marido e alguns parentes. Foi ele quem comprou<br />

as primeiras mercadorias e ainda me<br />

deu R$ 130 para começar”, conta.<br />

Pães, compotas e geleias, produzidos a<br />

dez mãos pela família Weber, de segunda a


segunda, dão o colorido de boas-vindas aos<br />

clientes. “Pão, eu faço todos os dias de manhã<br />

cedo e os outros produtos geralmente<br />

produzimos à noite, dia sim, dia não”, explica.<br />

Com 31 anos, Milita nunca fez aulas<br />

de culinária, tampouco aprendeu truques<br />

com suas avós. A vendedora aprendeu tudo<br />

o que sabe sozinha. “Fui inventando, me virando. Com<br />

o tempo, aprendi alguns truques, testando dicas das<br />

clientes”, conta.<br />

Além do que é produzido pela família, o local oferece<br />

frutas e verduras, vinhos, cachaças, queijos, linguiças, mel,<br />

bolos e biscoitos, expostos de maneira organizada e atrativa.<br />

A maioria dos produtos é da própria região, comprados<br />

na Feira do Colono do município. Durante algum tempo, Milita<br />

produziu suas próprias frutas e verduras, mas hoje consegue<br />

encontrar tempo apenas para cultivar caqui e chuchu<br />

em seu quintal. “A gente já plantou muita coisa, mas não<br />

conseguimos dar conta. Por um tempo ta<strong>mb</strong>ém fiz rapaduras<br />

e amendoins para vender. Tenho muitas ideias, mas não<br />

tenho tempo para colocá-las em prática”, comenta.<br />

Dia após dia, a família luta e conta com a sorte para<br />

conquistar o seu sustento financeiro. “É um jogo diário.<br />

Estou investindo muito nos doces e geleias. Quando percebo<br />

que vou perder alguma fruta, faço doce. O problema é<br />

que preciso comprar os vidros, as tampas e o açúcar, que<br />

está com o preço lá em cima”. O melhor dia de vendas<br />

tem sido os domingos, mas muitas vezes a tenda fica sem<br />

capital de giro. “Teve dias que eu vim com R$ 20 trabalhar.<br />

Se alguém me desse uma nota de R$ 50 não teria como dar<br />

o troco”, desabafa.<br />

O fluxo de carros, caminhões e motos na BR-116 foi aos<br />

poucos se tornando dependência e distração para Milita,<br />

ao FiCar<br />

desempreGada,<br />

milita teve a<br />

oportunidade de<br />

abrir o seu prÓprio<br />

neGÓCio. no dia a<br />

dia, ela Conta Com a<br />

aJuda da Família<br />

que abre a tenda às 11h nos dias de semana,<br />

chegando mais cedo aos sábados e domingos, e<br />

fechando sempre ao anoitecer, quando recolhe<br />

todos os produtos para levá-los de volta para<br />

casa. “Nosso maior problema é não ter água e<br />

luz, o que nos impede de armazenar os produtos,<br />

trabalhar até mais tarde, cozinhar ou fazer<br />

sucos naturais aqui”, explica.<br />

Além dos desafios financeiros, a família ainda precisa<br />

estar atenta com os clientes que visitam a tenda pela<br />

primeira vez. Milita conta que já foi vítima do golpe da<br />

nota falsa e do cheque sem fundo e, por isso, mantém<br />

na fachada de estrutura rústica uma placa sinalizando:<br />

“Não aceitamos cheques”. “Quando o cliente chega pegando<br />

várias coisas sem pedir o preço, a gente começa<br />

a desconfiar”, conta. A família ta<strong>mb</strong>ém já teve produtos<br />

roubados. “Uma vez parou um ônibus de turismo, e uma<br />

turma de senhoras entrou da tenda. Não consegui acompanhar<br />

o movimento e me roubaram. Você vai confiar<br />

em quem? Não tive lucro algum naquele dia”, recorda. A<br />

vendedora ta<strong>mb</strong>ém precisa lidar diariamente com gritos<br />

e buzinaços. “Tem que ter jogo de cintura. Entra num<br />

ouvido e sai no outro, mas como não fico sozinha, nunca<br />

aconteceu nada”, revela.<br />

Mesmo com o barulho do trânsito que muitas vezes<br />

impossibilita uma simples conversa na tenda, Milita ouve<br />

músicas pelo celular e lê a Bíblia para passar o tempo.<br />

“Sou católica, mas por causa do trabalho não consigo participar<br />

das missas. Rezo todo dia aqui, não falho nunca”,<br />

explica. Além disso, Milita brinca com seus três filhos nos<br />

momentos de tranquilidade nas vendas. Carlos Alexandre,<br />

Carla Suelen e Lucas Mateus, de 14, 12 e 11 anos, respectivamente,<br />

frutos de 15 anos de casamento com o pintor<br />

<strong>10</strong>0 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


Carlos Roberto Weber, auxiliam seus pais no comércio no<br />

contra turno da escola. “As crianças ajudam a organizar<br />

uma ou outra coisa, mas estão aqui mais para me fazer<br />

companhia e não ficarem sozinhas em casa”, conta.<br />

Diferente dos filhos, que contam com todo o apoio e<br />

incentivo dos pais para estudar, a comerciante não teve<br />

a mesma sorte. “A gente era muito pobre, muito mesmo,<br />

e no interior não tinha escola perto. Estudei só até a segunda<br />

série”, rele<strong>mb</strong>ra emocionada. Milita conta que seus<br />

pais não tinham emprego fixo, a mãe era dona de casa e<br />

o pai fazia bicos como segurança. A falta de estabilidade<br />

financeira induziu a família a mudar de cidade inúmeras<br />

vezes, impossibilitando que ela e alguns dos dez irmãos<br />

prosseguissem com os estudos.<br />

Natural de Três Passos, Milita tinha oito anos quando<br />

seus pais se separaram. Com o término do casamento,<br />

sua mãe fugiu para Boa Saúde, levando Milita e outra<br />

filha. “Um dia fomos visitar o pai e ele não deixou mais<br />

a gente voltar. Passávamos fome e, como ele tinha mais<br />

condições, nos convenceu a ficar com ele.” Hoje, o pai<br />

de Milita mora em Portão, e a mãe, no interior de Canoas.<br />

Desde que abriu a tenda, Milita não possui mais<br />

tempo para visitá-los, pouco tempo resta ta<strong>mb</strong>ém para<br />

os oito irmãos ainda vivos. “Teve apenas um Natal que eu<br />

fechei a tenda para passar o dia 24 com meu pai e o dia<br />

25 com minha mãe”, conta.<br />

O quilômetro 215 da BR-116 é para muitos apenas parte<br />

de um percurso diário, mas para a família de Milita representa<br />

a doação de boa parte de seu tempo na esperança<br />

de dias melhores. As histórias tornam este lugar um “Encanto<br />

da Serra”, fazendo jus ao nome que Milita escolheu<br />

para denominar a tenda quando seu sonho de reformá-la<br />

tornar-se realidade.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | <strong>10</strong>1<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

sábado destinado a percorrer a rota romântica<br />

“o em busca de fontes nos presenteou com um forte<br />

temporal, mas nada que desanimasse. no malabarismo<br />

de lidar com a chuva, o vento e o frio, encontramos<br />

uma pequena casinha de madeira que abrigava toda<br />

uma família. ao parar o carro, guarda-chuvas foram<br />

prontamente abertos para nos receber. Foi o que bastou<br />

para sabermos que tínhamos encontrado o que tanto<br />

procurávamos. alguns dias depois, em uma visita<br />

marcada, subimos a serra e fomos de encontro com a<br />

família Weber. Com bloco de notas, cadeiras de praia,<br />

gravadores e muitas expectativas, fomos recebidas<br />

carinhosamente com um bom chimarrão. Horas voaram<br />

como se fossem segundos. este espaço é pequeno<br />

para descrever tudo que esta pauta nos fez sentir e<br />

vivenciar. Cabe-nos, sobretudo, agradecer à família por<br />

toda a receptividade, pelo carinho e pelas confidências.<br />

impressões que ficarão marcadas, para sempre, em<br />

nossas histórias.”


O BARULHO ATRAVESSA AS<br />

PAREDES DO PRÉDIO 4449, EM<br />

FRENTE AO VIADUTO, EM CANOAS<br />

A EStRAdA é O<br />

<strong>10</strong>2 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


qUINtAL dE CASA<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | <strong>10</strong>3<br />

TEXTO dE ALESSANdRO OLIVEIRA E CAROLINA KAZUE | FOTOS dE KENIA FERRAZ


O<br />

ruído dos veículos ecoa<br />

no corredor de azulejos<br />

desbotados e impregnados<br />

de sujeira. As<br />

marcas de fuligem nas paredes<br />

evidenciam os anos seguidos de<br />

incessante fluxo de veículos. Ao<br />

subir as escadas antigas do prédio<br />

sem nome de nº 4449, localizado<br />

na cidade de Canoas em frente ao<br />

viaduto da Avenida Getúlio Vargas,<br />

o síndico e morador Paulo César<br />

Nix, 42 anos, fala sobre como<br />

é viver ali, na encruzilhada de um<br />

viaduto com a BR-116. Durante o<br />

trajeto até o segundo andar, onde<br />

mora com a família, mal era possível<br />

ouvir sua voz. Quando ele<br />

abre a porta do seu apartamento,<br />

o silêncio é interrompido apenas<br />

pelo som da televisão que prende<br />

a atenção de sua esposa e de dois<br />

de seus quatro filhos.<br />

Há 15 anos, a família Nix saiu<br />

do sossego do Interior, na cidade<br />

de Santa Rosa, em busca de<br />

DA SACADA DE SEU APARTAMENTO, PAULO CÉSAR<br />

NIX TEM UMA VISÃO COMPLETA DO VIADUTO<br />

oportunidades de trabalho na região<br />

metropolitana de Porto Alegre,<br />

e já faz 12 anos que reside<br />

no prédio. Na casa de Paulo não<br />

há sons da rua, buzinas, motores<br />

de carro, nem a conversa dos pedestres.<br />

Na aconchegante sala de<br />

estar, que fica ao lado da sacada,<br />

em frente ao viaduto, se escuta<br />

apenas o barulho da TV. Porém,<br />

quando se abre a porta da sacada,<br />

a sensação é de estar no meio<br />

do congestionamento.<br />

Segundo Nix, a solução encontrada<br />

para obter uma vida mais silenciosa<br />

foi mudar do apartamento<br />

nº17, no quarto andar, atualmente<br />

ocupado por seu sobrinho, para o<br />

de nº 11, localizado no segundo<br />

andar, que recebe a proteção sonora<br />

do viaduto. “Como o viaduto<br />

fica bem na frente da minha casa,<br />

o som dos carros é bloqueado”,<br />

explica. Para ele, o único empecilho<br />

é ter que manter as janelas<br />

e portas que ficam na frente da<br />

BR-116 fechados o dia inteiro. Se<br />

o barulho dos carros não entra no<br />

lar da família Nix, a poluição não<br />

dá trégua. O ar carregado de fumaça<br />

não pode ser evitado com<br />

janelas e portas fechadas. Paulo<br />

conta que a fuligem nunca deixa<br />

as roupas recém-lavadas continuarem<br />

limpas por muito tempo e<br />

é preciso constantemente limpar<br />

os móveis e o chão. Outra possibilidade<br />

é abrir as janelas para os<br />

fundos e arejar a casa da fuligem,<br />

que impregna os móveis, as roupas<br />

e, principalmente, os pulmões.<br />

volume máximo<br />

No próximo andar, outra moradora,<br />

Janaína Velado, 28 anos,<br />

fecha a porta do seu apartamento.<br />

Quando ela para, acende um<br />

cigarro e atenciosamente começa<br />

a contar um pouco sobre sua vida<br />

no prédio nº 4449. Ela mora com<br />

o marido Fabio Santos e as filhas<br />

Maria e Gabriela, de dois e quatro<br />

<strong>10</strong>4 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011


anos, respectivamente. Contrastando com a família<br />

Nix, que vive há mais de uma década no prédio, eles<br />

se mudaram há um mês para o local e ainda não tiveram<br />

tempo de se acostumar.<br />

A casa parece recém-ocupada e ainda se percebem<br />

os restos da confusão que uma mudança traz. O apartamento<br />

do casal não fica em frente à rodovia, mas<br />

nos fundos do prédio, bastante próximo a um posto de<br />

gasolina, o que literalmente tira o sono da família. “É<br />

um horror, muito barulho. É impossível dormir bem”,<br />

conta Janaína. Segundo ela, os motoristas passam horas<br />

bebendo, com os rádios em volume máximo, além<br />

de haver muita briga e gritaria.<br />

O casal, que vive junto há cinco anos, ta<strong>mb</strong>ém veio<br />

do interior em busca de trabalho. Deixaram Pelotas em<br />

2006 e foram morar na Vila Maria, em São Leopoldo, de<br />

onde saíram devido ao alto valor do aluguel para morar<br />

no centro da cidade de Canoas. Desde então, a família<br />

vive no seu atual endereço, alugado da cunhada de Fabio,<br />

com a intenção de ficar temporariamente.<br />

Durante o dia, o volume da televisão é extremamente<br />

alto para abafar o barulho vindo da rua, mas<br />

a família nem percebe mais. Fabio fez uma cirurgia<br />

recentemente e por isso fica mais tempo em casa do<br />

que Janaína. Ele conta que tem a impressão de que no<br />

último mês sua audição piorou, o que é improvável, já<br />

que, apesar do incômodo, o som não parece chegar a<br />

níveis insalubres. Ele já deve ter se acostumado com<br />

mais decibéis do que a maioria das pessoas para conseguir<br />

amenizar o barulho do trânsito. Indiferentes ao<br />

incômodo dos pais, as filhas dormem sossegadas entre<br />

plimplins, vruuuns e beepbeeps.<br />

Apesar de não ter a fachada do seu apartamento<br />

de frente para a rodovia, a família sente ta<strong>mb</strong>ém os<br />

grandes transtornos causados pela poluição do ar e a<br />

fumaça dos carros. Segundo Janaína, toda vez que sai<br />

de casa com as filhas, as roupas precisam ser lavadas<br />

devido ao cheiro ruim que fica impregnado. Por outro<br />

lado, dentro da casa, eles não sentem nada fora do<br />

normal. “Aqui não vem muita fumaça. Acho que fica<br />

mais na parte da frente do prédio”, conta Janaína.<br />

Morar na beira de uma estrada movimentada tem ou-<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | <strong>10</strong>5<br />

tras peculiaridades. A segurança e a mobilidade são pontos<br />

delicados no cotidiano das famílias, especialmente<br />

para os pequenos. Paulo Nix conta que as crianças precisam<br />

sair sempre acompanhadas, mas a principal preocupação<br />

é o trânsito, e não a criminalidade. A falta de áreas<br />

de lazer, o tráfego intenso e a estrutura precária para<br />

pedestre põem em alerta o instinto protetor dos pais.<br />

O mesmo acontece com Janaína e Fabio. Eles contam<br />

que a dificuldade para se locomover é imensa,<br />

especialmente com os filhos. “É horrível atravessar a<br />

estrada com as crianças, porque não tem faixa de segurança<br />

nem sinaleira. Precisa fazer uma volta imensa<br />

para atravessar com segurança”, diz Janaína. A sensação<br />

é justamente essa: como se o mundo fosse dividido<br />

em dois pela BR-116 e atravessar a fronteira, uma<br />

aventura heroica.<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

aímos de Porto Alegre decididos em relação<br />

“Sao prédio no qual entrevistaríamos famílias<br />

que moram em frente a BR-116. Chegando ao local,<br />

percebemos uma das dificuldades que essas pessoas<br />

enfrentam. Não conseguimos fazer com que nenhum<br />

dos moradores nos ouvisse, porque além de não haver<br />

interfone, era inútil bater na barulhenta porta de metal<br />

entre os corredores do prédio e a calçada, pois cada<br />

tentativa era abafada pelos carros que passavam ao<br />

lado da estreita calçada. Decidimos tentar outro lugar,<br />

mas mesmo com muitos prédios, encontrar alguém<br />

disposto a atender desconhecidos foi uma tarefa árdua.<br />

Após algumas tentativas frustradas, encontramos um<br />

casal entrando no prédio que tínhamos escolhidos<br />

inicialmente, em frente ao viaduto, e de imediato saímos<br />

correndo para então começar a entrevista. Os avistamos<br />

há menos de <strong>10</strong> metros de distância, mas não importava<br />

o quanto gritássemos, o coro dos motores superou<br />

nossas vozes. Corremos e batemos na porta com força.<br />

Alguns instantes depois, o casal deu meia volta e fomos<br />

convidados a entrar. “


è<br />

uM lAR EM quAl<br />

<strong>10</strong>6 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong>


quER lugAR<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | <strong>10</strong>7<br />

TEXTO DE DÉBORA SIlVA<br />

E SINDY lONgO<br />

FOTOS DE JulIO BONORINO<br />

E ANA luÍZA TRINDADE<br />

família encontra<br />

em um local público<br />

a solução para a<br />

falta de abriGo


Você passa por várias pontes<br />

no seu dia a dia e por<br />

várias pessoas que fazem<br />

desses locais o seu lar. Mas<br />

você já se perguntou como essas<br />

pessoas foram parar lá? O artigo<br />

XXV da Declaração Universal dos<br />

Direitos Humanos diz que “Toda<br />

pessoa tem direito a um padrão de<br />

vida capaz de assegurar a si e a sua<br />

família saúde e bem-estar, inclusive<br />

alimentação, vestuário, habitação,<br />

cuidados médicos e os serviços<br />

sociais indispensáveis, e direito à<br />

segurança em caso de desemprego,<br />

doença, invalidez, viuvez, velhice<br />

ou outros casos de perda dos meios<br />

de subsistência fora de seu controle”.<br />

Porém, na prática, o que ocorre<br />

é totalmente o oposto.<br />

José Leonir Pires, casado há 14<br />

anos, <strong>10</strong> filhos, é um desses personagens<br />

anônimos que passam por<br />

nossos olhos despercebidos. Há nove<br />

anos, ele e sua família moravam em<br />

Canoas, de aluguel, no bairro Mathias<br />

Velho. “Não conseguimos mais<br />

pagar o aluguel, daí o dono nos botou<br />

para fora”, afirma. Desde então,<br />

mora debaixo da ponte que liga Esteio<br />

a Canoas, entre a BR-116 e a<br />

Avenida Guilherme Schell.<br />

O acesso à morada é por meio<br />

de uma escada esculpida na terra<br />

e por uma espécie de pórtico, feito<br />

de plantas verdes. O local simples<br />

revela-se muito limpo e organizado.<br />

A família usa um tanque elétrico para<br />

lavar suas roupas, com energia procedente<br />

de fiações próximas. Depois<br />

de lavadas, as roupas são estendidas<br />

em um varal improvisado com arame<br />

e madeira. Cada um ajuda no que<br />

pode para melhorar o convívio e a<br />

vida complicada.<br />

família que mora<br />

e<strong>mb</strong>aixo da ponte<br />

conta um pouco<br />

sobre sua realidade<br />

Leonir luta diariamente para<br />

que suas filhas tenham a oportunidade<br />

de estudar e alcancem<br />

um futuro melhor. Para isso, além<br />

do trabalho de reciclagem, José<br />

bate de casa em casa oferecendo<br />

pequenos serviços como corte<br />

de grama, pintura e capina. Seu<br />

turno de trabalho, das 22h às 5h,<br />

é longo e cansativo, pois percorre<br />

a cidade de Esteio em busca de<br />

materiais para reciclagem. O que<br />

consegue recolhe, leva para três<br />

postos de coleta, conforme o tipo<br />

de material. Para complementar o<br />

sustento da família, eles mantêm<br />

uma horta, onde plantam limão,<br />

moranga, abacate e tomate, entre<br />

outros. “O solo aqui é muito fértil<br />

e fácil de cultivar sementes”,<br />

afirma Leonir. De “bicos” aqui e<br />

ali, o morador do viaduto batalha<br />

para ganhar seu pão.<br />

Emocionado e com lágrimas<br />

nos olhos, ele conta que teve de<br />

largar a escola na terceira série,<br />

pois perdeu o pai quando tinha<br />

apenas nove anos, tendo que começar<br />

a trabalhar para ajudar a<br />

mãe a criar os irmãos. Hoje, incentiva<br />

suas filhas a não desistir<br />

de estudar, apesar de estarem<br />

atrasadas em relação às crianças<br />

da sua idade. “Boa educação é<br />

conversa. Nunca bati em nenhum<br />

filho, nem nunca precisei levantar<br />

a mão para nenhum deles”, diz<br />

Leonir. Sua esposa, Sandra Mara<br />

Bampé Rodrigues, ta<strong>mb</strong>ém acredita<br />

que bater não seja a garantia<br />

de uma criação exemplar. Ela, que<br />

disse ter apanhado muito quando<br />

criança, observa que isso não preveniu<br />

que errasse e nem fez com<br />

que crescesse na vida.<br />

as crianças de<br />

JosÉ, meio tímidas,<br />

mostram seu lar<br />

Junto de Leonir, e<strong>mb</strong>aixo dessa<br />

mesma ponte, moram quatro<br />

de seus <strong>10</strong> filhos e sua esposa. Os<br />

outros seis já são casados e moram<br />

na cidade de Venâncio Aires.<br />

Recentemente abrigou mais dois<br />

jovens, que tenta ajudar, mantendo-os<br />

fora da violência das ruas.<br />

Ele, que se autodenomina “chefe<br />

do clã”, diz que lá ninguém tenta<br />

invadir, nem vender drogas ou<br />

roubar. A todo o momento, deixa<br />

bem claro que moram e<strong>mb</strong>aixo da<br />

ponte, mas que são uma família.<br />

Como bichos de estimação, têm<br />

um cachorro e dois gatos, seus xo-<br />

<strong>10</strong>8 <strong>10</strong>8 | PRIMEIRA | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong><br />

| JulHO/2011


dós, que segundo ele, mantêm os<br />

ratos longe do lar.<br />

O clima de carinho, amor e respeito<br />

entre eles é evidente. Encontramos<br />

apenas duas de suas filhas, que estudam<br />

em uma escola pública próxima<br />

da ponte. Thainara, <strong>10</strong> anos, está na<br />

primeira série, e Maiquelli, 13, está<br />

na segunda série. Maiquelli confessa:<br />

“Quero mudar de vida. Casar, ir e<strong>mb</strong>ora<br />

daqui e arrumar um lugar para<br />

os meus pais ta<strong>mb</strong>ém”.<br />

Leonir diz não ter religião, porém<br />

afirma várias vezes durante a<br />

conversa que acredita muito em<br />

Deus. Ele faz questão de garantir<br />

que não rouba, nem pede nada para<br />

ninguém, tem saúde para trabalhar.<br />

“Essa mão aqui é de trabalhador”,<br />

orgulha-se, e segue acreditando em<br />

um futuro melhor.<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | JulHO/2011 | <strong>10</strong>9 | <strong>10</strong>9<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

interessante como é fácil julgar as pessoas dizendo que<br />

“É elas vivem no seu próprio ‘mundinho’, porém, de repente,<br />

fazemos uma matéria para uma disciplina e nos descobrimos<br />

ta<strong>mb</strong>ém vivendo no nosso ‘mundinho’ sem perceber. a<br />

expectativa de fazer essa matéria era enorme, pois não sabíamos<br />

se a família, que morava numa das pontes da br-116, iria nos<br />

receber ou não. ao chegar lá e encontrar o ‘cacique’ da família,<br />

percebemos que não seria fácil, pois em um primeiro momento<br />

recusou-se a nos dar a entrevista e, inclusive, fez uma pergunta<br />

que nos levou a pensar: ‘todo mundo vem aqui, mostra na tV a<br />

minha vida e a da minha família, mas e o que muda para mim?<br />

nada! eu continuo aqui! por que eu deveria dar entrevista para<br />

vocês?’. o que nos fez repensar o nosso papel de jornalistas<br />

na sociedade. qual seria a função de apenas reportar os<br />

acontecimentos, se vemos todos os dias coisas cada vez piores?<br />

e o pior; nos acostumamos a vê-las, de forma que nem nos<br />

surpreendemos mais. a única reação que temos é nos horrorizar<br />

por alguns minutos, tecer alguns comentários e, quando o<br />

telejornal acaba, voltamos ao nosso ‘seguro mundinho’.”


O hOMEM DE uM<br />

1<strong>10</strong> | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong>


MIlhÃO DE quIlôMEtROS Para<br />

PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/20<strong>10</strong> | 111<br />

adelino ascari, a vida<br />

não existe sem a Br-116 e<br />

vice-versa. atravessá-la<br />

é como cumPrir uma rotina,<br />

sem a qual não há<br />

histórias Para contar<br />

TEXTO DE ANDRESSA PAZZINI E luAN IGlESIAS<br />

FOTOS DE CARINA MERSONI


São cerca de 20 mil habitantes. Duas emissoras de<br />

rádio. Um jornal quinzenal e 35 quilômetros de<br />

BR-116 que cruzam toda a sua extensão. Assim<br />

é São Marcos, localizado na Serra Gaúcha, a 160<br />

quilômetros de Porto Alegre. A cidade, com 48 anos de<br />

emancipação, foi colonizada no final do século XIX por<br />

italianos e poloneses. Não se sabe ao certo como algumas<br />

peculiaridades tomaram forma. São diferenças físicas e<br />

geográficas dispostas aos curiosos motoristas e transeuntes<br />

de passagem. O lugar transparece simpatia, como a<br />

maioria das pequenas cidades do interior.<br />

Dividida pela BR-116, São Marcos apresenta duas realidades.<br />

De um lado, para quem segue em direção ao interior, após<br />

o quilômetro que carrega o nome da BR, reina a calmaria de<br />

um local onde as residências são maioria. De outro, uma agitação<br />

típica de cidade: praça central, mercados, farmácias,<br />

bares, lojas, lanchonetes, hospital e igreja. Entre as duas realidades,<br />

está a vida de muitas pessoas, que diariamente atravessam<br />

a BR-116 para cumprir seus deveres ou, simplesmente,<br />

acessar a outra metade da cidade.<br />

Recostado no banco da praça central, com uma expressão<br />

cansada e olhar baixo, Adelino João Ascari, ou apenas Ascari,<br />

como é conhecido na pequena São Marcos, passa ali boa parte<br />

do dia. Pela manhã, perto das 8h, sai de sua casa, no bairro<br />

Francisco Doncatto e, a passos lentos, atravessa a rodovia. A<br />

falta de paciência de alguns motoristas obrigam-no a caminhar<br />

mais depressa. “Se eu atravesso na faixa (de segurança)<br />

alguns param, mas 50% não param”, calcula Adelino. Apesar<br />

das dificuldades, ele conta que, em cerca de 40 anos que faz o<br />

trajeto, nunca foi vítima de um acidente.<br />

Caminhando mais algumas quadras, apoiado em sua velha<br />

bengala, o simpático senhor acomoda-se no banco da praça.<br />

Ao seu encontro, vêm apostadores do Jogo do Bicho, atividade<br />

desempenhada por ele há 24 anos. Além de uma forma de<br />

garantir um sustento extra, é ta<strong>mb</strong>ém um motivo para que<br />

Adelino não se entregue ao ócio nem à acomodação. Aos 84<br />

anos, gosta de estar entre as pessoas, estar na rua, conversar<br />

e fazer amigos. “Estou vivo porque estou passando o tempo.<br />

Tenho muitos amigos”, relata. Essa parece ser a força que leva<br />

Adelino a atravessar a tão famosa rodovia. Todos os dias.<br />

Mais do que permitir o acesso de Adelino ao outro lado da<br />

cidade, a BR-116 faz parte de sua vida desde os tempos em<br />

que garantia o sustento como borracheiro. Sua colocação às<br />

margens da BR foi fundamental para que conquistasse uma<br />

vasta clientela, que por muitas vezes esperava o conserto de<br />

carros e caminhões de um dia para o outro. As filas de veículos<br />

danificados faziam jus à qualidade dos serviços prestados por<br />

ele que, no final da década de 80, ganhou o título de melhor<br />

borracheiro da cidade, reconhecido pela prefeitura de São<br />

Marcos: “Naquela época os materiais dos carros eram piores<br />

do que agora, então tínhamos muito serviço”. Contando com<br />

o auxílio de um único ajudante, Adelino rele<strong>mb</strong>ra o esforço<br />

que fazia para manter a borracharia: “Tinha dias em que eu<br />

amanhecia trabalhando e anoitecia trabalhando”.<br />

Tanto trabalho como borracheiro rendeu a Adelino um<br />

dedo torto. “Esse dedo, antes não era torto assim, isso é de<br />

segurar a marreta, de tanta pancada”. Ao que parece, Adelino<br />

abandonou a borracharia quando sentiu que seu corpo não


a cidade de são<br />

marcos, com 20<br />

mil haBitantes, é<br />

cortada Pela Br-116<br />

dava mais conta do ofício que escolheu com a ajuda de um<br />

cunhado. Em 1999, após 18 anos como borracheiro, trocou a<br />

rotina de consertos por uma prancheta, anotações e cálculos.<br />

Se ele chegara a São Marcos vindo de Flores da Cunha<br />

na intenção de prosperar sua condição social, conseguiu. As<br />

mesmas mãos que consertaram pneus de carros, ônibus e caminhões<br />

ta<strong>mb</strong>ém cultivaram plantações no antigo distrito de<br />

Criúva, hoje pertencente ao município de Caxias do Sul, onde<br />

ta<strong>mb</strong>ém morou. Pelo visto, as marcas do tempo não deixam de<br />

cultivar, igualmente, sorrisos. É inevitável. A cidade muda, a<br />

profissão muda, e os motivos que lhe convencem a atravessar<br />

a BR diariamente mudam. Por ironia ou não, a cultura que se<br />

formou em torno de Adelino é fiel. Muitos dos clientes da borracharia<br />

se tornaram adeptos do jogo da sorte.<br />

Afetuoso e com sabedoria de um avó, o ex-agricultor, exborracheiro<br />

e agora bicheiro não conhece muito além dos limites<br />

que a própria vida lhe impôs. Seja onde e como for, a<br />

BR conta a sua história e viceversa: “Para mim, a BR significa<br />

muita coisa, foi onde comecei a ganhar meu dinheirinho com<br />

os carros que passavam aí”.<br />

Por fim, esta reportagem só poderia terminar com a seguinte<br />

cena, praticada por Adelino há décadas: com a bengala<br />

amarrada ao cinto, apoia o braço. Alguns motoristas buzinam<br />

amigavelmente. Outros apenas o fitam. Adelino completa a<br />

passagem sobre a BR para não sair de São Marcos. E, como um<br />

bom bicheiro, aposta nos números para definir alguma circunstância:<br />

“Nunca ninguém atravessou tantas vezes essa BR como<br />

eu. Dá para botar bastante coisa. Dá para botar um milhão de<br />

quilômetros. São 42 anos atravessando a BR, já pensou?”<br />

Não Adelino. Nunca pensamos. E só por isso, nunca poderemos<br />

duvidar.<br />

IMPRESSÕES DE REPÓRTER<br />

r-116. uma pauta que, a princípio, nos preocupou. não<br />

“Bsabíamos o que esperar dela, nem como chegaríamos<br />

até nossas fontes. recebemos uma lista de alguns possíveis<br />

entrevistados, mas, justamente pelo “frio na barriga” que nos traz<br />

o inesperado, optamos por encontrá-lo aleatoriamente, assim<br />

que chegássemos à cidade de são marcos. e assim foi. sábado<br />

de sol, 7h30min da manhã. e<strong>mb</strong>arcamos no ônibus na rodoviária<br />

de são leopoldo e partimos rumo a Garibaldi, onde encontramos<br />

nossa fotógrafa, carina. de lá, seguimos de carro até são marcos,<br />

em uma viagem que rendeu boas risadas e algumas pérolas,<br />

como a inversão dos nomes de duas cidades: “dois marcos” e<br />

“são irmãos”. chegando ao destino, logo nos deparamos com<br />

uma praça central, que parece ser unanimidade em pequenas<br />

cidades do interior. andamos um pouco e procuramos por um<br />

restaurante. o relógio já marcava 12h. saindo de um bom almoço,<br />

avistamos um senhor solitário, recostado no banco da praça. nos<br />

aproximamos, trocamos algumas palavras e não tivemos dúvidas:<br />

aquele seria o nosso entrevistado. Jeito simples, cativante e uma<br />

vida construída a partir da Br-116. era o que precisávamos para<br />

cruzar a sua história com a história de são marcos e mostrar como<br />

a divisão da cidade pela rodovia interferiu e continua a interferir<br />

em suas rotinas.”


EXPEDIENTE<br />

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)<br />

Endereço: Avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS.<br />

Cep: 93022-000. Telefone: (51) 3591.1122.<br />

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ADMINISTRAÇÃO<br />

REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino<br />

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COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs<br />

pi<br />

primeira impressão<br />

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Eduardo Veras (efveras@unisinos.br) - Redação<br />

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ESTAGIÁRIA DOCENTE: Aline Dalmolin<br />

al u n o s-rePórteres<br />

Disciplina de Redação Experimental em Revista<br />

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Suélen Dal’agnol, Taís Seibt, Tamires Gomes, Tárlis Schneider e Vanessa Ramos<br />

MONITORIA: Natacha Kötz<br />

al u n o s-fo t ó g r a f o s<br />

Disciplina de Projeto Experimental em Fotografia<br />

Alunos Ana Luiza Trindade, Athos Beuren, Bruno Silvestrin, Carina Mersoni, Cecília Medeiros, Débora Soilo, Eder Zucolotto,<br />

Gabriel Gabardo, Guilherme Barcelos, Jankiel Azevedo, Joanna Gil, Julio Bonorino, Kenia Ferraz, Lisiane Aguiar, Magda<br />

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FOTO DE CAPA: André Ávila<br />

MONITOR: Willian Soares<br />

PRODUÇÃO GRÁFICA<br />

Agência Experimental de Comunicação (Agexcom)<br />

COORDENADORA-GERAL: professora Thaís Furtado<br />

RESPONSÁVEL PELA ÁREA DE JORNALISMO: professor Eduardo Veras<br />

SUPERVISÃO DE ARTE: jornalista Marcelo Garcia<br />

PROJETO GRÁFICO: estagiários Gabriela Schuch e Marcelo Grisa<br />

DIAGRAMAÇÃO: Marcelo Grisa<br />

PUblICIDADE<br />

Dois anúncios publicados nesta edição foram vencedores da categoria Redação Publicitária II do<br />

11º Propaganderia, mostra competitiva de trabalhos desenvolvidos por alunos do Curso de Publicidade e Propaganda.<br />

CRIAÇÃO: alunos Douglas Eurico de Melo e Douglas Vogel Zimmer (contra-capa) e Cristini Fontanari<br />

e Gabriela dos Reis Zorzi (página 115), sob orientação da professora Daniela Horta.<br />

ARTE-FINALIZAÇÃO DAS PEÇAS PUBLICITÁRIAS E CRIAÇÃO DO ANÚNCIO DA PÁGINA 2: estagiário da Agexcom<br />

Renan Steyer, sob orientação da professora Letícia Rosa e supervisão do publicitário Robert Thieme

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