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O Delfim - hora absurda IV

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vamos tentando desvendar. Sabemos desde o início que alguma coisa aconteceu, e que<br />

essa alguma coisa acontecida tinha desde sempre de acontecer. É a maldição do<br />

tempo, claro, transposta para a maldição do lugar (não é impunemente que se tem o<br />

nome leproso de Gafeira).<br />

Mas é também o que nos diz uma inteligentíssima nota de rodapé onde aparece<br />

esta «ideia a desenvolver»: «A descrição do passado revela um sentido profético no<br />

comportamento dos indivíduos que resulta de os estarmos a estudar numa trajectória já<br />

conhecida.» Este sentido profético desdobra-se num leque de tempos verbais que o<br />

autor desfibra com particular acutilância: todo o discurso está «num presente que<br />

nasce pretérito, e que se conjuga com alternâncias do condicional e do futuro», mas<br />

este futuro é um «futuro que se redige como tal mas que se sabe ser passado». Por<br />

outras palavras, sublinhadas pelo próprio Cardoso Pires, nunca saímos de um tempo<br />

circular, que é, afinal, o tempo imposto pela própria figura expansiva da lagoa. Há<br />

apenas uma prega, uma dobra, um nó, no fluir impassível desse tempo intemporal, e<br />

que é a cicatriz de um crime: entre Tomás Manuel, Maria das Mercês e o criado<br />

Domingos, qualquer coisa acontece que não pode ser inteiramente dita, e que remete<br />

para o corpo da lagoa como fulguração sexual a que se vêm prender segredos ou<br />

alucinações: maternidade, infecundidade, abandono do corpo da mulher,<br />

homossexualidade, incesto, adultério (toda a arte de Cardoso Pires está em fazer deste<br />

rol de insinuações uma espécie de variações sobre um segredo único que nos surge<br />

como uma informulável terra queimada no interior da narrativa). O autor acumula<br />

suposições, não apenas sobre os factos reais que constituem o crime como sobre as<br />

suas causas. Mas isso não permite reconstituir o episódio senão através dos seus<br />

efeitos ou dos seus prenúncios. Os avisos do destino são múltiplos e de uma nitidez<br />

obsessiva. Os efeitos, esses, correspondem a uma espécie de redemoinho da história,<br />

em que tudo se acelera e precipita, numa interminável demência: a noite ébria do<br />

engenheiro, a corrida de Maria das Mercês em direcção à lagoa, o pânico dos animais.<br />

Mas o que se passou, esse instante de transgressão em que o desejo irrompe, é algo que<br />

literalmente não pode ser visto, e que fica, na sua rasura, a fazer rodar o vazio das<br />

imagens.<br />

Podemos estabelecer o elenco das conjecturas. Sabemos que Maria das Mercês<br />

não se vê reconhecida no seu estatuto de parceiro do prazer: está só enquanto o<br />

marido vagabundeia por bares e prostitutas, e o seu desejo manifesta-se em<br />

movimentos clandestinos (passeio a cavalo, masturbação). Sabemos que Palma Bravo,<br />

num brincar que só pode ser tomado a sério, tem razões de família para excluir a<br />

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