O Delfim - hora absurda IV
O Delfim - hora absurda IV
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compreender? (Pausa, durante a qual afagava tristemente o vestido nos joelhos.)<br />
Cometeu erros, não digo menos. Fez muita e muita estroinice, e sem necessidade. Mas<br />
se gastou uma fortuna com guardas e com a lagoa, a intenção não era má. Nisto de<br />
honrar os defuntos entendo que todos os exageros são desculpáveis.»<br />
Estar mais perto dos mortos... repetir-lhes a palavra, iludir o tempo adverso. «Em<br />
resumo, a solidão» - era o que tinha dito, sem se dar conta, a minha hospedeira. E olha<br />
quem fala. Ela, uma criatura mais que todas solitária, sentada à beira duma cama; tão<br />
deslocada no tempo, a infeliz, tão suspensa sobre ele, que me aparece, não num quarto<br />
de pensão, mas numa vasta e deserta pista feita de tábuas intermináveis que cheiram a<br />
sabão amarelo. A sua figura matronal perde-se na aridez do tablado, e é minúscula,<br />
infantil. Santo Deus (ou Santíssimo Sacramento), o que são as coisas. Uma formiga-<br />
mestra a comentar a solidão dos outros e a afagar os joelhos abandonados; a despedir-<br />
se, com esse gesto, do seu corpo roliço, secretamente viçoso e afogado em gorduras. Ou<br />
então (como escreveria um romancista citadino e de pena em dia), uma mulher que<br />
embala a infância, perseguindo-a na imagem de uma criada-criança, ou que aperta um<br />
segredo dentro dela, sabe-se lá, calcando-o com os dedos e com a melancolia da<br />
resignação. Sabe-se lá, pois, sabe-se lá. É com certeza esse o mundo de uma hospedeira<br />
de aldeia: quartos para povoar, primaveras de sabão amarelo. Frases perdidas, sempre as<br />
mesmas, a desdobrarem-se pelo tempo fora. «Defuntos, defuntos...» Como se a aldeia<br />
da Gafeira, tantos anos adormecida, não tivesse sofrido em menos de vinte e quatro<br />
<strong>hora</strong>s uma desgraça transformadora.<br />
«Jesus», recomeça ela, «que cisma a daquele homem em querer figurar nos<br />
livros.» E também este desabafo é intemporal. Podia ter sido de hoje (e se calhar foi) e<br />
podia vir de longe, de um vulto perdido no infinito a falar-me de cima de uma cama de<br />
boneca na extremidade dum sobrado deserto: «Só Deus, senhor escritor, só Deus sabe a<br />
vida regalada que ele levava, se quisesse. A fábrica punha-lhe um chalet à disposição na<br />
vila, mas isso sim, a lagoa cegava-o. E tudo por causa daquela ideia de figurar nos<br />
livros.»<br />
E eu, do vão desta janela:<br />
«É possível. De resto, tinha todo o direito a isso.»<br />
E ela:<br />
«O quê, ao lado dos outros Palma Bravos? Senhor, eram pessoas de respeito.»<br />
Eu:<br />
«Bem sei, está aqui no livro.»<br />
Ela:<br />
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