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O Delfim - hora absurda IV

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modo, súbditos dessa lagoa que o texto de Cardoso Pires inventa para passar a ser<br />

apenas a sombra da sua própria invenção. Há, portanto, uma circularidade que se<br />

alarga, é ela que nos envolve, e é para ela que solicitamos a cumplicidade do leitor.<br />

Aparentemente, o romance conta uma história, e é pela história, suas peripécias e<br />

indecisões, que o leitor se agarra ao texto e adia o sono (assim como o narrador, que<br />

escreve enquanto o sono não chega). Como quase sempre nos livros de Cardoso Pires,<br />

essa história resume-se a um incidente, que pode assumir dimensões dramáticas (como<br />

em O <strong>Delfim</strong>), ou ficar, frustrantemente, pela anedota mínima (como em O Anjo<br />

Ancorado). Isto significa que José Cardoso Pires não é um construtor de universos<br />

complexos, com grandes enredos e encruzilhadas, em que as personagens se<br />

confrontam e definem à luz de opções fundamentais na trama dos seus destinos.<br />

Aqui, é exactamente o contrário. Numa linguagem mais técnica, poderíamos dizer<br />

que aquilo que costumamos considerar como as funções narrativas (momentos<br />

privilegiados em que qualquer coisa se decide, e em que a decisão tomada faz que nada<br />

volte a ser como dantes) está praticamente ausente da criação romanesca de Cardoso<br />

Pires, e o que fica são indícios, proliferação de elementos e factores que se articulam<br />

com «sinais de um mundo» que é preciso decifrar. O universo do autor, no seu jeito<br />

assumido de tapeçaria medieval, é um universo que definitivamente é e<br />

interminavelmente está a deixar de ser. Praticamente, todo o fazer nos surge<br />

secundarizado. Ou é um fazer que se adia, deslizando para o lado do jogo, como nos<br />

anjos eternamente ancorados do livro que a uma tal imagem vai buscar o seu título. Ou<br />

é um fazer que se converte ele mesmo em indício, isto é, em modalidade do ser (do ser<br />

que é na iminência de deixar de ser, do ser que e um deve ser).<br />

Tal como a lagartixa parece apenas «um estilhaço de pedra sobre outra pedra<br />

maior», o fazer dissolve-se no ser, e as funções do enredo transformam-se em indícios.<br />

Isto implica um tempo específico que caracteriza os textos de Cardoso Pires, mas a<br />

essa questão voltaremos mais tarde, para a vincular a problemas de fundo, por<br />

enquanto precipitados. Mas implica, sobretudo, uma atitude que se concretiza num<br />

determinado modo de contar e num determinado modo de ler.<br />

Mas contar o quê? Contar a história, evidentemente. Mas, sobretudo, contar o<br />

modo como a história se conta, ou melhor, o modo como a história se revela, e, ao<br />

revelar-se, se oculta, e, ao retrair-se, nos atrai, e, ao atrair-nos, nos distrai da<br />

revelação essencial. Porque a história nunca está presente, reduzida a uma verdade<br />

submissa e fixa. A história de O <strong>Delfim</strong> (como, por exemplo, a da Balada da Praia dos<br />

Cães) é feita apenas das suas versões, que alguma coisa aclaram ao empilharem-se ao<br />

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