O Delfim - hora absurda IV
O Delfim - hora absurda IV
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«O que me admira é o orgulho daqueles peixes.» Agora é comigo que o<br />
Engenheiro fala, não com ela. «Saberem que entraram na agonia e puxarem pelo resto<br />
das forças para cumprir a última vontade. Outro whisky?»<br />
«Aceito - só uma gota. Whisky e peixes não ligam lá muito bem.»<br />
«Ligam, pois. Estes são peixes especiais.» Tomás Manuel serve-me a bebida no<br />
gesto clássico dos barmen: voltando rapidamente a garrafa, ainda rolhada, para espalhar<br />
o álcool depositado no fundo. «São peixes que cumprem por si próprios as suas últimas<br />
vontades.»<br />
Fica de garrafa na mão. Pensa numa campa austera a despontar das águas, rodeada<br />
de bardos prateados; vê aridez, majestade, e, na massa negra do fundo da lagoa,<br />
cadáveres de peixes que preferiram sepultar-se vivos a serem devorados pelos irmãos.<br />
«Àquilo chamo eu raça, nervo. E sabedoria. Tanto que só os grandes é que têm a<br />
coragem de se enterrar. Pelo menos é o que contam os pescadores.»<br />
E a mulher, sem deixar de seguir a televisão:<br />
«Ah, pois. Vá pelo que lhe dizem os pescadores que vai bem servido.»<br />
«Mas é que vou mesmo. E fica sabendo que nunca me arrependi. Na caça cão e<br />
batedor, na lagoa rede e pescador. Boa ou má, ainda não conheço melhor receita do que<br />
esta.»<br />
Será um ditado?, comento de mim para mim. Será um dos muitos pensamentos,<br />
regras ou caprichos, herdados de Tomás, o Fundador, de Tomás Terceiro, Quarto ou<br />
Oitavo, de Tomás o Avô, e por aí fora? Ao certo, certo, desconfio de que nem a jovem<br />
esposa o saberá. Nem tão-pouco ele, Tomás Undécimo, admirador dos peixes que se<br />
exilam para se pouparem às humilhações da morte.<br />
«Palavra, esta história fascina-me.» O Engenheiro fala baixo, pausadamente. «Um<br />
criado meu viu há dias dois cadáveres desses arrancados do fundo da Verga Grande.<br />
Estavam impecáveis.»<br />
«Cadáveres de santos», murmuro, e cá por dentro sorrio: Oh, a fácil poesia. Mas<br />
nada de pressas. Desejar fazer do corpo um padrão para além da morte será porventura<br />
menos fácil? Imagino uma dinastia de patriarcas guardados como tesouros nas<br />
profundidades e as lápides a saírem das águas: Tomás Manuel (1600?), Tomás Manuel<br />
(1700?), Tomás Manuel (1800?), Tomás Manuel e mais Tomás Manuel... eles também,<br />
desgraçados peixes sem mácula. E insisto: «Cadáveres de peixes santos.»<br />
«Positivamente. O criado diz que os apanharam inteirinhos.»<br />
Maria das Mercês encolhe os ombros:<br />
«O Domingos, veja só.»<br />
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