O Delfim - hora absurda IV
O Delfim - hora absurda IV
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V.<br />
Ad Usum Delphini ficaria bem como divisa, a encimar o portal da casa. A meio da<br />
arcada, de preferência, e na boa cantaria.<br />
As paredes foram levantadas por Tomás Manuel, avô do Engenheiro, depois de<br />
um incêndio que passou à história como «terramoto da pólvora». Da pólvora, porque<br />
começou numa explosão do forno, onde três carvoeiros, a soldo dos Palma Bravo,<br />
fabricavam munições contra o governo liberal; terramoto, porque, com o abalo, a aldeia<br />
veio para a rua julgando que era o dia final, a Terra a estalar. Nesta aventura, parece que<br />
andou metido um advogado errante, de olhos acesos e barbas de espinhos, e que o dito<br />
advogado percorria a cavalo montes e penhascos com correio secreto do príncipe D.<br />
Miguel (uma vez que no escritório do Engenheiro havia uma proclamação miguelista).<br />
Deixá-lo, coitado. Admito que seja uma das almas penadas do repertório do cauteleiro,<br />
mas não julgo que possa fazer grandes estragos. Cansou-se muito em vida, morreu no<br />
fio, chupado pela tísica. Com que cara iria aparecer agora à sociedade? De olhos acesos<br />
e barbas de espinhos?<br />
Tomás, o Avô, deitou contas às cinzas e pôs-se a construir a casa sobre as velhas<br />
cavalariças que tinham escapado ao incêndio. Teve de fazê-la mais pequena, imagine-se<br />
o desgosto. Dois andares, escada de pedra no pátio de entrada, varanda corrida, hoje<br />
sem grades e apenas três potes gigantescos a guardá-la. «Grades para quê, se não há<br />
crianças?» perguntava o Engenheiro quando decidiu transformar a sala grande num<br />
estúdio de longas vidraças, aberto sobre o terraço. E assim a casa ficava mais ligada ao<br />
vale, mais devassada por ele. Mais triste no inverno, quando a chuva saltitava no<br />
cimento da varanda, fustigada pela ventania.<br />
O estúdio. Tudo disposto como na noite das apresentações: cobres nas paredes,<br />
uma espingarda antiga em cima da lareira. Eu, caçador em visita, Maria das Mercês no<br />
lugar que lhe é próprio (sentada no chão, entre revistas - Elle, Horoscope, Flama), o<br />
marido estendido no maple e com um braço pendurado para a bebida que repousa em<br />
cima do tapete. Música de fundo, e do gira-discos.<br />
Distraímo-nos com coisas várias, histórias de caça (foi lá que me emprestaram o<br />
precioso Tratado das Aves, Composto por Um Prático), tempo, viagens, comida.<br />
Também nomeámos indivíduos, gente dos nossos mundos privados que às vezes se<br />
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