O Delfim - hora absurda IV
O Delfim - hora absurda IV
O Delfim - hora absurda IV
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
aquela que mais seduz o escritor. Tudo isto se passa fundamentalmente do lado do<br />
narrador, que é aquele que suporta na sua enunciação o pólo da objectividade dos<br />
factos. Mas a divisão é constante: o próprio narrador a si mesmo se divide ao falar-nos<br />
da sua vertente ingénua e da sua vertente crítica; temos depois o narrador que nos vem<br />
falar do primeiro narrador como se fosse o autor que ainda não é; temos depois o<br />
autor que, no texto de comentário da Memória descritiva, nos fala destes dois<br />
narradores do romance e de si mesmo como responsável por eles; e temos, neste<br />
cortejo de enunciações, os textos que nós escrevemos ou pensamos na sequência do<br />
encargo de sermos os leitores inteligentes que o autor solicitou. Implanta-se assim uma<br />
hierarquia de pontos de vista que tem duas características fundamentais: é<br />
interminável, e vacila sob o seu próprio peso. Cada novo ponto de vista julga decifrar o<br />
ponto de vista anterior, mas acaba por se propor como cifra exposta à decifração<br />
seguinte.<br />
O próprio Cardoso Pires explica: se reuníssemos todos os círculos formados<br />
pelas versões do velho da lotaria, do batedor, da dona da pensão, do regedor, do<br />
narrador, do superego crítico, do autor, dos críticos, dos leitores, poderíamos ter a<br />
ilusão de chegar a uma área comum. Mas isso seria um limite ideal - aquele que não<br />
existe, porque a ele se contrapõem o real da história e o real do texto. Escreve<br />
certeiramente José Cardoso Pires: «Se tal sucedesse teríamos a recuperação total da<br />
verdade, a harmonia dos factos incontroversos; e para tanto seria indispensável que<br />
todos os núcleos tivessem a mesma dimensão - a mesma carga de informação, quero eu<br />
dizer, e a mesma importância dramática. Por outras palavras, que se identificassem<br />
numa verdade absoluta que só o truísmo ou o axioma são capazes de comportar. E o<br />
caso é que neste pobre microcosmos de sentimentos, por mais esquemas que se<br />
concebam e por mais documentações que se invoquem, tudo se resume a um nó<br />
essencial envolvido em ecos e nebulosas.» Por outras palavras, o clarão do crime não<br />
dissolve as névoas e brumas; a razão da história não desfaz a força do mito; e a escrita<br />
desmitificadora permanece mitificante e céptica.<br />
Por isso mesmo, o tempo dominante desta escrita é um tempo circular.<br />
Desmitificar é apenas a outra volta do acto de mitificar, e o carrossel não pára. Nos<br />
Manuscritos de 44, Karl Marx diz algo que nos dá que pensar: «Die Au-fhebung der<br />
Selbstentfremdung macht denselben Weg, wie die Selbs-tentfremdung.» Traduzindo:<br />
«A supressão da alienação de si segue o mesmo caminho que a alienação de si.» Segue<br />
o mesmo caminho, mas em sentido inverso, claro. No entanto, o que importa é que este<br />
verso e reverso formam um círculo, e esse círculo é uma matriz que domina todo o<br />
16