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O Delfim - hora absurda IV

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«tem um coração de passarinho», e por isso mesmo chegará mais depressa à morte,<br />

como se percebe pela dos patos-reais que, distraídos pelo namoro, se deixam colher<br />

por um tiro desconhecido.<br />

Que significa isto? Que o universo de O <strong>Delfim</strong> se caracteriza pelo pendor<br />

naturalista de criar mundos que são como que anteriores à diferenciação nítida entre<br />

os homens e os animais. Estes mundos têm, como é óbvio, uma enorme vitalidade<br />

pulsional, mas são incapazes de se desembaraçarem de uma espécie de violência<br />

primitiva que não permite que a energia se liberte do círculo fatal da destruição. Por<br />

isso mesmo, deste pulsar naturalista, ofegante de torpezas e repressões, apenas se<br />

transita para uma espécie de surrealidade alucinada, como na cena da conjura dos<br />

lenços vermelhos.<br />

O único desenlace possível para uma tal ferocidade original é o da predação, e<br />

não é certamente por acaso que a caça nos surge como o horizonte permanente das<br />

narrativas de Cardoso Pires. Uns caçam por necessidade (o velho de O Anjo Ancorado<br />

caça um perdigoto para o vender), outros pelo prazer do confronto (João, no mesmo<br />

texto, pratica a caça submarina). Mas, para todos, a caça funciona como denominador<br />

simbólico. Incluindo o escritor, para quem escrever é ir no encalço de uma presa, ou o<br />

leitor, que vai sempre em busca do sentido inacessível.<br />

O importante é sublinhar (e este é um segundo ponto de transformação da<br />

herança neo-realista) que a caça oscila entre uma dimensão devoradora e uma<br />

dimensão lúdica. Se a primeira ainda tem cabimento para quem veja os cenários do<br />

capitalismo em que os homens são os lobos dos próprios homens, a segunda já se<br />

enquadra mal na tradição produtivista em que o prazer do jogo (ou o valor do<br />

erotismo) nos afastam dos programas utilitários de produção ou reprodução. É este um<br />

ponto essencial, porque todo o universo literário de Cardoso Pires é dominado pela<br />

ideia de jogo. Escrever é entrar no jogo, fingindo um saber que é apenas um modo<br />

elegante e obstinado de lidar com o que se não sabe: o confronto com a morte ou o<br />

acaso, ou qualquer outra figura da crueldade do destino.<br />

O que aqui se verifica é uma mutação decisiva nas concepções da racionalidade.<br />

Não se trata já da razão pura dos filósofos, ou da razão mecânica da história, ou<br />

mesmo da razão dialéctica que percorre os corredores do tempo com as grandes<br />

passadas da síntese. Trata-se de outra coisa, que se move com passinhos mais miúdos,<br />

uma ou outra pirueta e algum sentido da dança. Ou, por outras palavras, estamos num<br />

mundo onde predomina a racionalidade prática.<br />

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