17.04.2013 Views

a multiplicidade de linguagens poéticas no interior da

a multiplicidade de linguagens poéticas no interior da

a multiplicidade de linguagens poéticas no interior da

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

INSTITUTO DE ENSINO SUPERIOR DE NOVA VENÉCIA<br />

LICENCIATURA PLENA EM LÍNGUA PORTUGUESA/INGLESA E ESPANHOLA E<br />

SUAS RESPECTIVAS LITERATURAS<br />

ALESSANDRA CHAVES DE OLIVEIRA SILVA<br />

MILSOLANGE DO NASCIMENTO MACHADO<br />

VALÉRIA MARQUES PEREIRA<br />

A MULTIPLICIDADE DE LINGUAGENS POÉTICAS NO INTERIOR DA OBRA DOS<br />

HETERÔNIMOS DE FERNANDO PESSOA<br />

NOVA VENÉCIA<br />

2006


ALESSANDRA CHAVES DE OLIVEIRA SILVA<br />

MILSOLANGE MACHADO DO NASCIMENTO<br />

VALÉRIA MARQUES PEREIRA<br />

A MULTIPLICIDADE DE LINGUAGENS POÉTICAS NO INTERIOR DA OBRA DOS<br />

HETERÔNIMOS DE FERNANDO PESSOA<br />

Mo<strong>no</strong>grafia apresenta<strong>da</strong> ao Instituto <strong>de</strong> Ensi<strong>no</strong><br />

Superior <strong>de</strong> Nova Venécia, para aprovação <strong>no</strong><br />

curso <strong>de</strong> graduação em Letras com Licenciatura<br />

Plena em Língua Portuguesa / Inglesa e Espanhola<br />

e suas respectivas Literaturas. Orientadora:<br />

Lour<strong>de</strong>s Apareci<strong>da</strong> <strong>de</strong> Souza Cesana<br />

NOVA VENÉCIA<br />

2006<br />

9


FICHA CATALOGRÁFICA<br />

10


ALESSANDRA CHAVES DE OLIVEIRA SILVA<br />

MILSOLANGE MACHADO DO NASCIMENTO<br />

VALÉRIA MARQUES PEREIRA<br />

DIÁLOGO ENTRE LINGUAGENS POÉTICAS NO INTERIOR DA OBRA DOS<br />

HETERÔNIMOS DE PESSOA<br />

Mo<strong>no</strong>grafia apresenta<strong>da</strong> ao Instituto <strong>de</strong> Ensi<strong>no</strong> Superior <strong>de</strong> Nova Venécia, para<br />

aprovação <strong>no</strong> curso <strong>de</strong> graduação em Letras com Licenciatura Plena em Língua<br />

Portuguesa / Inglesa e Espanhola e suas respectivas Literaturas.<br />

COMISSÃO EXAMINADORA<br />

11<br />

Aprova<strong>da</strong> em <strong>de</strong> <strong>de</strong> 2006.<br />

__________________________________________<br />

Professora Lour<strong>de</strong>s Apareci<strong>da</strong> <strong>de</strong> Souza Cesana<br />

Instituto <strong>de</strong> Ensi<strong>no</strong> Superior <strong>de</strong> Nova Venécia<br />

Orientadora<br />

__________________________________________<br />

Professora Viviane Dias <strong>de</strong> Carvalho Pontes<br />

Instituto <strong>de</strong> Ensi<strong>no</strong> Superior <strong>de</strong> Nova Venécia<br />

___________________________________________<br />

Professor Álvaro José Maria Filho<br />

Instituto <strong>de</strong> Ensi<strong>no</strong> Superior <strong>de</strong> Nova Venécia


12<br />

Dedicamos o presente trabalho a <strong>no</strong>ssos<br />

pais, irmãos, esposos, filhos, a to<strong>da</strong> a<br />

<strong>no</strong>ssa família e aos <strong>no</strong>ssos amigos com<br />

todo amor e carinho.


13<br />

Agra<strong>de</strong>cemos primeiramente a Deus por<br />

ter <strong>no</strong>s <strong>da</strong>do condições <strong>de</strong> estarmos<br />

concluindo essa graduação, a <strong>no</strong>ssa<br />

família pelo apoio e compreensão aos<br />

<strong>no</strong>ssos professores e a <strong>no</strong>ssa orientadora<br />

Lour<strong>de</strong>s Apareci<strong>da</strong> <strong>de</strong> S. Cesana em<br />

especial.


14<br />

“Sentir é compreen<strong>de</strong>r. Pensar é errar.<br />

Compreen<strong>de</strong>r o que outra pessoa pensa é<br />

discor<strong>da</strong>r <strong>de</strong>la. Compreen<strong>de</strong>r o que outra<br />

pessoa sente é ser ela. Ser outra pessoa<br />

é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> utili<strong>da</strong><strong>de</strong> metafísica. Deus é<br />

to<strong>da</strong> a gente.” (Fernando Pessoa)


RESUMO<br />

Consi<strong>de</strong>rado o poeta mais complexo <strong>da</strong> literatura portuguesa, Fernando Pessoa<br />

realiza sua obra através <strong>de</strong> várias personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>poéticas</strong>. Ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> seus<br />

heterônimos tem uma visão particular do mundo, refletindo-se em três estilos<br />

absolutamente distintos. Alberto Caeiro é o poeta naturalista, <strong>da</strong>s sensações puras e<br />

do ceticismo. Ricardo Reis, pagão e estóico, acredita que o único caminho a se<br />

tomar na vi<strong>da</strong> é o <strong>de</strong> afrontar a morte com o silêncio. Álvaro <strong>de</strong> Campos, associado<br />

ao poeta <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong> Walt Whitman, cultiva a audácia e a energia, mas<br />

contraditoriamente faz a apologia do anti-heroísmo. Essa pesquisa tem como<br />

objetivo i<strong>de</strong>ntificar, <strong>de</strong>screver e analisar, através <strong>de</strong> pesquisa bibliográfica, a<br />

<strong>multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>linguagens</strong> dos heterônimos <strong>de</strong> Fernando Pessoa e ortônimo,<br />

observando pelas peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong> diferentes posturas<br />

artísticas.<br />

PALAVRAS-CHAVE: heterônimos; ortônimo; psicografia; <strong>multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong></strong>; literatura.<br />

15


SUMÁRIO<br />

1 INTRODUÇÃO.......................................................................................9<br />

1.1 JUSTIFICATIVA DO TEMA...........................................................................9<br />

1.2 DELIMITAÇÃO DO TEMA...........................................................................10<br />

1.3 FORMULAÇÃO DO PROBLEMA...............................................................10<br />

1.4 OBJETIVOS................................................................................................10<br />

1.4.1 OBJETIVO GERAL...........................................................................................10<br />

1.4.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS................................................................................10<br />

1.5 HIPÓTESES................................................................................................11<br />

1.6 META...........................................................................................................11<br />

1.7 METODOLOGIA..........................................................................................11<br />

1.8 APRESENTAÇÃO DO CONTEÚDO DAS PARTES DO TRABALHO........11<br />

2 REFERENCIAL TEÓRICO...................................................................13<br />

2.1 AS PERSONALIDADES PESSOANAS EM MEIO AO MODERNISMO<br />

PORTUGUÊS.............................................................................................................13<br />

2.2 FERNANDO PESSOA - O ORTÔNIMO.........................................................14<br />

2.3 ALBERTO CAEIRO.........................................................................................18<br />

2.4 RICARDO REIS...............................................................................................21<br />

2.5 ÁLVARO DE CAMPOS...................................................................................25<br />

2 . 6 D I Á L O G O E N T R E A S M Ú L T I P L A S F A C E S D E F E R N A N D O<br />

PESSOA..................................................................................................................34<br />

3 CONCLUSÃO...............................................................................................36<br />

4 REFERÊNCIAS............................................................................................37<br />

16


1 INTRODUÇÃO<br />

No presente trabalho, propomo-<strong>no</strong>s comentar a estética do poeta português<br />

Fernando Pessoa. Abor<strong>da</strong>remos acerca <strong>da</strong>s diferentes <strong>linguagens</strong> <strong>poéticas</strong> que<br />

po<strong>de</strong>mos encontrar em sua obra, <strong>da</strong>ndo ênfase a seus heterônimos mais famosos<br />

que são: Alberto Caeiro, Álvaro <strong>de</strong> Campos e Ricardo Reis.<br />

Fernando Pessoa assi<strong>no</strong>u sua obra com vários <strong>no</strong>mes. Não se trata, porém <strong>de</strong><br />

simples uso <strong>de</strong> pseudônimo, processo antigo usado para cobrir ou não o a<strong>no</strong>nimato.<br />

Os <strong>no</strong>mes, máscaras ou heterônimos com que Fernando Pessoa assina sua obra,<br />

constituem em ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les, uma atitu<strong>de</strong>-experiência assumi<strong>da</strong> pelo próprio<br />

Pessoa, como se fossem diversos poetas, todos eles com seu estilo próprio, com<br />

sua visão <strong>de</strong> mundo particular.<br />

Assim, nesse <strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong> si mesmo, Pessoa cria heterônimos: Alberto<br />

Caeiro, o camponês sábio; Ricardo Reis, o neoclássico, racionalista e semipagão;<br />

Álvaro <strong>de</strong> Campos, o futurista, neurótico e angustiado. Pessoa também assinava<br />

alguns textos com seu próprio <strong>no</strong>me, ortônimo. Sua poesia é marca<strong>da</strong> pelo<br />

ceticismo, pela sensação do tédio, pela idéia <strong>de</strong> que o poeta é um <strong>de</strong>sajustado,<br />

marcado para a solidão e o <strong>de</strong>samparo.<br />

A obra literária <strong>de</strong> Fernando Pessoa é uma <strong>da</strong>s mais intrigantes <strong>da</strong> literatura <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940, quando o poeta foi <strong>de</strong>scoberto pela crítica. Des<strong>de</strong> então,<br />

tem surgido diversas discussões sobre o fenôme<strong>no</strong> <strong>da</strong> heteronímia.<br />

1.1 JUSTIFICATIVA DO TEMA<br />

Esta pesquisa motivou-<strong>no</strong>s, pelo fato <strong>de</strong> encontrarmos na obra Pessoana uma<br />

<strong>multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>linguagens</strong> <strong>poéticas</strong>, consi<strong>de</strong>rando que para a compreensão <strong>da</strong><br />

poesia <strong>de</strong> Fernando Pessoa é necessária uma análise <strong>da</strong>s várias <strong>linguagens</strong> que<br />

aparecem em suas obras, ortônimo e heterônimos.<br />

É interessante sabermos diferenciar ortônimo dos heterônimos, pois, muitos lêem<br />

poemas <strong>de</strong> Ricardo Reis, Alberto Caeiro, ou Álvaro <strong>de</strong> Campos, pensando que se<br />

trata <strong>de</strong> poemas <strong>de</strong> Pessoa, e po<strong>de</strong>mos verificar que há diferenças na maneira <strong>de</strong><br />

escrever, como também na maneira como ortônimo e heterônimos vêem a vi<strong>da</strong>.<br />

17


Diante disso, constata-se que essa pesquisa é relevante, uma vez que os poemas<br />

<strong>de</strong> Fernando Pessoa compõem um dos maiores enigmas <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Literatura, já<br />

que se trata <strong>de</strong> um poeta que inventa outros, dá-lhes biografia, estilo próprio e até<br />

um mapa astral. Todos são gran<strong>de</strong>s poetas e apresentam diferentes posturas<br />

artísticas.<br />

1.2 DELIMITAÇÃO DO TEMA:<br />

No estudo <strong>de</strong> Fernando Pessoa e seus heterônimos são relevantes muitos aspectos,<br />

pois na obra contém um complexo teor literário. Esta pesquisa propõe uma análise<br />

<strong>da</strong>s <strong>linguagens</strong> <strong>poéticas</strong> dos heterônimos <strong>de</strong> Pessoa <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que ca<strong>da</strong><br />

um foi criado e também analisando a linguagem <strong>de</strong> Fernando Pessoa ele mesmo.<br />

1.3 FORMULAÇÃO DO PROBLEMA<br />

Os estudiosos <strong>de</strong> hoje buscam enten<strong>de</strong>r os heterônimos <strong>de</strong> Fernando Pessoa, seja<br />

por fatos marcantes <strong>da</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um, ou pelas idéias conti<strong>da</strong>s em suas<br />

obras, on<strong>de</strong> Pessoa mostra as personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s cria<strong>da</strong>s por ele em ca<strong>da</strong><br />

circunstância. Há em Pessoa um diferencial, pois ele conseguiu se expressar <strong>de</strong><br />

formas diferentes, ca<strong>da</strong> poema seu tem algo peculiar. Portanto surge a questão: Há<br />

diversi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>linguagens</strong> na obra <strong>de</strong> Fernando Pessoa ortônimo e heterônimos?<br />

1.4 OBJETIVOS<br />

1.4.1 Objetivo geral<br />

• Caracterizar as diferentes <strong>linguagens</strong> dos heterônimos <strong>de</strong> Fernando Pessoa e<br />

ortônimo, nas diferentes circunstâncias <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um.<br />

1.4.2 Objetivos específicos<br />

• I<strong>de</strong>ntificar a peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> linguagem <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> heterônimo e também <strong>de</strong><br />

Fernando Pessoa, ortônimo;<br />

• Compreen<strong>de</strong>r a maneira <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um escrever.<br />

18


1.5 HIPÓTESES<br />

A busca <strong>da</strong> expressão do mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> é uma <strong>da</strong>s aspirações que marcam<br />

profun<strong>da</strong>mente a geração <strong>de</strong> Pessoa. Com sua imaginação, criativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, histeria e a<br />

maneira <strong>de</strong> extravasar, ele criou os heterônimos, com características e <strong>linguagens</strong><br />

bem distintas. Mais do que meros pseudônimos, esses heterônimos são invenções<br />

<strong>de</strong> personagens completos, que têm uma biografia própria, <strong>linguagens</strong> e estilos<br />

literários diferenciados.<br />

Os textos <strong>de</strong> Fernando Pessoa e seus heterônimos <strong>no</strong>s remetem à idéia clara <strong>da</strong><br />

<strong>multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>linguagens</strong> <strong>poéticas</strong>, porque percebe-se na obra <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um, um<br />

diferencial, características <strong>de</strong> acordo com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um, pois,<br />

apesar <strong>de</strong> serem frutos <strong>da</strong> imaginação <strong>de</strong> Pessoa, através <strong>de</strong> suas obras sentimos<br />

que há vi<strong>da</strong>.<br />

1.6 META<br />

Preten<strong>de</strong>-se com esse projeto <strong>de</strong> pesquisa fazer uma análise acerca <strong>da</strong>s <strong>linguagens</strong><br />

encontra<strong>da</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> obra Pessoana. Linguagens que se diferem, pois, são várias<br />

personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma só, ou seja, os heterônimos e ortônimo.<br />

1.7 METODOLOGIA<br />

Esta pesquisa é do tipo exploratória e explicativa, sendo, pois, feita uma pesquisa<br />

bibliográfica com o intuito <strong>de</strong> coletar informações que servirão <strong>de</strong> subsídio teórico<br />

que buscará <strong>de</strong>finir na obra pessoana a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> heterônimo, mostrando as<br />

características e a linguagem poética <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um, como também as <strong>de</strong> Fernando<br />

Pessoa, o ortônimo.<br />

1.8 APRESENTAÇÃO DO CONTEÚDO DAS PARTES DO TRABALHO<br />

No primeiro capítulo apresenta-se a introdução <strong>de</strong>sse trabalho. Nela <strong>de</strong>staca-se os<br />

pontos relevantes <strong>de</strong>ssa pesquisa, através <strong>da</strong> <strong>de</strong>limitação e justificação do tema,<br />

apresentação dos objetivos, metas e hipóteses <strong>de</strong> estudo.<br />

19


O segundo capítulo inicia o referencial teórico, que, inicialmente abor<strong>da</strong> aspectos do<br />

mo<strong>de</strong>rnismo português, bem como Fernando Pessoa e seus heterônimos inseridos<br />

nesse movimento mo<strong>de</strong>rnista.<br />

Fernando Pessoa, ortônimo é o próximo assunto pesquisado. Nele são abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

as características do poeta, informações <strong>da</strong> sua biografia, comportamento em meio<br />

à socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, e análises <strong>de</strong> algumas poesias.<br />

Em segui<strong>da</strong> há um estudo acerca dos heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e<br />

Álvaro <strong>de</strong> Campos com informações biográficas <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um, bem como<br />

características e análises <strong>de</strong> poesias mostrando as posturas <strong>poéticas</strong> dos<br />

heterônimos. Logo a seguir são apresentados todos eles: ortônimo e heterônimos,<br />

numa abor<strong>da</strong>gem dialógica, on<strong>de</strong> <strong>no</strong>ta-se algumas diferenças existentes entre eles.<br />

Na conclusão, finalmente faz-se uma reflexão dos capítulos anteriores, procurando<br />

mostrar o quão importantes e intrigantes são os heterônimos e Fernando Pessoa,<br />

ortônimo.<br />

20


2 REFERENCIAL TEÓRICO<br />

2.1 AS PERSONALIDADES PESSOANAS EM MEIO AO MODERNISMO<br />

PORTUGUÊS<br />

O Mo<strong>de</strong>rnismo português tem como marco inicial a publicação <strong>de</strong> Orpheu – Revista<br />

Trimestral <strong>de</strong> Literatura. Essa contava com a participação <strong>de</strong> Fernando Pessoa,<br />

Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro, Alma<strong>da</strong> Negreiros e do brasileiro Ronald <strong>de</strong> Carvalho. Com<br />

essa publicação se dá a primeira geração mo<strong>de</strong>rnista, é a geração contemporânea<br />

dos principais manifestos <strong>da</strong> vanguar<strong>da</strong> européia.<br />

A segun<strong>da</strong> geração teve como órgão divulgador <strong>de</strong> suas propostas a revista<br />

Presença, que circulou <strong>de</strong> 1927 a 1940. Chama<strong>da</strong> também <strong>de</strong> presencismo, essa<br />

geração combatia o aca<strong>de</strong>micismo e difundia a estética mo<strong>de</strong>rnista esforçando-se<br />

para que a obra <strong>de</strong> Fernando Pessoa se tornasse conheci<strong>da</strong>. O presencismo<br />

esfacelou-se em meio à segun<strong>da</strong> guerra mundial <strong>no</strong> a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1940, <strong>da</strong>ndo fim também<br />

ao Mo<strong>de</strong>rnismo.<br />

O a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1915 <strong>no</strong>s remete a alguns fatos <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mental importância para o<br />

entendimento do Mo<strong>de</strong>rnismo português: a Europa vive a Primeira Guerra Mundial;<br />

os meios artísticos estão inun<strong>da</strong>dos por manifestos <strong>de</strong> vanguar<strong>da</strong>. Portugal assiste<br />

às turbulências iniciais do período republica<strong>no</strong>, mergulhado num clima <strong>de</strong> profundo<br />

nacionalismo.<br />

Tendo esse quadro como pa<strong>no</strong> <strong>de</strong> fundo é que se vê o início <strong>da</strong> produção literária <strong>de</strong><br />

um dos casos mais polêmicos <strong>de</strong> todos os tempos: Fernando Pessoa e seus<br />

heterônimos.<br />

Fernando Pessoa, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1910 colabora em algumas revistas <strong>de</strong> caráter<br />

nacionalista e ao mesmo tempo entra em contato com as correntes vanguardistas<br />

européias. Apaixonado por ocultismo, filosofia, por estudos <strong>de</strong> psiquiatria e<br />

psicanálise, autodi<strong>da</strong>ta <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> erudição, Pessoa não só criou seus heterônimos<br />

como estabeleceu para ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les, uma biografia própria. É através <strong>de</strong>ssas<br />

biografias que po<strong>de</strong>mos verificar quão diferentes eles se apresentam.<br />

21


2.2 FERNANDO PESSOA - O ORTÔNIMO<br />

“Desejo ser um criador <strong>de</strong> mitos, que é o mistério mais alto que po<strong>de</strong> obrar alguém<br />

<strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>” (PESSOA, 2005, p.51).<br />

“Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que<br />

torcem para reflexões falsas uma única anterior reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que não está em nenhuma<br />

e está em to<strong>da</strong>s”. (PESSOA, 2005, p.51).<br />

Consi<strong>de</strong>rado um dos maiores poetas <strong>da</strong> língua portuguesa, Fernando António<br />

Nogueira Pessoa, ou simplesmente "Fernando Pessoa", como preferia assinar,<br />

nasceu em 13 <strong>de</strong> junho 1888 em Lisboa, Portugal. Aos cinco a<strong>no</strong>s tor<strong>no</strong>u-se órfão<br />

<strong>de</strong> pai. Foi levado pela mãe e pelo padrasto para a África do Sul, on<strong>de</strong> fez seus<br />

estudos secundários com <strong>no</strong>tável brilho. Aos 17 a<strong>no</strong>s, regressou a Lisboa e cursou<br />

Letras e Filosofia, mas sua profissão foi a <strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>nte comercial em línguas<br />

estrangeiras.<br />

Faleceu em 1935, nessa mesma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Quando <strong>de</strong> sua morte, quase a totali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sua obra ain<strong>da</strong> permanecia inédita, apenas alguns <strong>de</strong> seus escritos tinham sido<br />

publicados em revistas, jornais etc. O poeta, escrevia também em outros idiomas<br />

(como inglês e francês). Extremamente inteligente e talentoso, Pessoa i<strong>no</strong>vou a<br />

poesia, extrapolando as características estéticas do período Mo<strong>de</strong>rnista, <strong>no</strong> qual<br />

estava inserido.<br />

Ca<strong>da</strong> vez mais leitores têm <strong>de</strong>scoberto o valor do escritor e do pensador Fernando<br />

Pessoa, homem que teve a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>, entre outras coisas, <strong>de</strong> "teatralizar”<br />

poeticamente, por meio <strong>de</strong> estilos <strong>de</strong> escrita diferenciados, múltiplas facetas<br />

<strong>interior</strong>es do ser huma<strong>no</strong>, indo muito além <strong>de</strong> pseudônimos, para criar heterônimos,<br />

como representantes contun<strong>de</strong>ntes dos "eus" que habitam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> todos nós. Daí<br />

uma <strong>da</strong>s razões <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seus textos, bastante a<strong>de</strong>quados às reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

íntimas <strong>da</strong> alma, problematiza<strong>da</strong>s <strong>no</strong>s contextos do mundo <strong>de</strong> hoje.<br />

Em 1915, li<strong>de</strong>rou um grupo <strong>de</strong> jovens <strong>no</strong> lançamento <strong>da</strong> revista Orpheu, que marca<br />

o início <strong>da</strong> literatura mo<strong>de</strong>rna em Portugal. Após o <strong>de</strong>saparecimento <strong>da</strong> revista,<br />

Pessoa entregou-se a uma vi<strong>da</strong> solitária <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> à poesia e ao álcool. Seus<br />

22


poemas são divulgados pela prestigiosa revista Presença, mas o único livro<br />

publicado em sua vi<strong>da</strong> foi Mensagem.<br />

Uma agu<strong>da</strong> crise <strong>de</strong> cirrose hepática o mataria aos 47 a<strong>no</strong>s. Apesar <strong>da</strong> relativa<br />

obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong> em que veio a falecer, era certamente uma <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s vozes <strong>da</strong><br />

poesia oci<strong>de</strong>ntal do século XX.<br />

Também escreveu Quinto Império, on<strong>de</strong> transparece seu sonho sebastianista e<br />

monarquista. Escreveu ain<strong>da</strong>: Cancioneiro, on<strong>de</strong> se apresenta lírico e <strong>de</strong>sencantado;<br />

Poemas Dramáticos; e 35 Sonnets, on<strong>de</strong> se revela ocultista, abúlico, amante do<br />

mistério.<br />

Através <strong>de</strong> sua poética, revela-se dialético, quando trabalha um simbolismo lúcido e<br />

consciente, aperfeiçoa mais o simbolismo através <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> excessiva, <strong>da</strong><br />

síntese eleva<strong>da</strong> ao máximo e através do exagero <strong>da</strong> atitu<strong>de</strong> estática e <strong>da</strong> mescla <strong>de</strong><br />

sensações; lúcido, e angustiado por ser lúcido; e Platônico: Cultivador do vago, do<br />

complexo e do sutil.<br />

Mais que os heterônimos, o ortônimo tem uma atitu<strong>de</strong> perspicaz <strong>de</strong> ver as coisas.<br />

Também ten<strong>de</strong> para o gosto pelo que é maneirista pelo uso do paradoxo, <strong>da</strong>í<br />

apresentar-se tradicional e mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> ao mesmo tempo. O ortônimo <strong>no</strong>s mostra como<br />

sentir a paisagem, pois, para ele, todo objetivo é uma sensação <strong>no</strong>ssa, to<strong>da</strong> arte é<br />

conversão <strong>da</strong> sensação em objeto, to<strong>da</strong> arte é conversão <strong>da</strong> sensação em<br />

sensação. O próprio Pessoa apresenta cinco condições ou quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s para enten<strong>de</strong>r<br />

os símbolos do ortônimo: a simpatia, a intuição, a inteligência, a compreensão e a<br />

graça. Depois conclui que:<br />

Todo estado <strong>de</strong> alma é uma paisagem.<br />

Uma tristeza é um lago morto <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós.<br />

Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior<br />

e do <strong>no</strong>sso espírito, e sendo <strong>no</strong>sso espírito uma paisagem,<br />

temos ao mesmo tempo consciência <strong>de</strong> duas paisagens. (PESSOA, 1997,<br />

p.165)<br />

Como vemos um espírito tão rico e até paradoxal como o <strong>de</strong> Pessoa, apaixonado<br />

por ocultismo, filosofia, estudos <strong>de</strong> psiquiatria, e psicanálise, autodi<strong>da</strong>ta <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

erudição, não podia se resumir numa só personali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Daí o surgimento <strong>de</strong> muitos<br />

heterônimos, principalmente o <strong>de</strong> Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro <strong>de</strong> Campos.<br />

“Eu vejo diante <strong>de</strong> mim, <strong>no</strong> espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos <strong>de</strong><br />

23


Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro <strong>de</strong> Campos. Construí-lhes as i<strong>da</strong><strong>de</strong>s e as vi<strong>da</strong>s.”<br />

(PESSOA, 1986, p. 97).<br />

Segundo Seabra (1988, p.243), “O drama havia, pois que buscá-lo <strong>no</strong>s próprios<br />

poemas, na própria linguagem poética. O que implicava que o sujeito ple<strong>no</strong>, mas<br />

plural, na plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s <strong>linguagens</strong> heteronímicas.”.<br />

Pessoa tem um genial po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> síntese que singulariza sua linguagem poética, que<br />

ao mesmo tempo é carrega<strong>da</strong> <strong>de</strong> dualismo. Esse <strong>de</strong>safio que sua poesia representa,<br />

está na geniali<strong>da</strong><strong>de</strong> com que retira o leitor <strong>da</strong> visão estável do mundo (como é, em<br />

geral, a visão do cotidia<strong>no</strong> rotineiro), para levá-lo a perceber, com inquietação, uma<br />

existência - outra, ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>, e que se pressente <strong>de</strong>cisiva. Li<strong>da</strong> em<br />

conjunto e em confronto, sua produção poética contraria a niti<strong>de</strong>z <strong>de</strong> enunciado que<br />

lhe é peculiar, pois seus poemas se abrem, diferenciando entre si.<br />

Sabe-se que Fernando Pessoa é um importante <strong>no</strong>me do Mo<strong>de</strong>rnismo Luso, e que é<br />

um dos maiores poetas portugueses. Na essência, sua principal característica é a<br />

heteronímia, que é a criação <strong>de</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>poéticas</strong> com posturas filosóficas<br />

diversas. No entanto po<strong>de</strong>mos <strong>no</strong>tar <strong>no</strong> ortônimo outras características, como o<br />

saudosismo, que percebe-se <strong>no</strong> poema abaixo:<br />

Pobre velha música!<br />

Não sei por que agrado,<br />

Enche-se <strong>de</strong> lágrimas<br />

Meu olhar parado.<br />

Recordo outro ouvir-te.<br />

Não sei se te ouvi<br />

Nessa minha infância<br />

Que me lembra em ti.<br />

Com que anciã tão raiva<br />

Quero aquele outrora!<br />

E eu era feliz? Não sei:<br />

Fui-o outrora agora. (PESSOA, 1993, p.95)<br />

As lembranças que uma música traz. Eis o tema <strong>de</strong>sse poema, que foi composto em<br />

forma tradicional. Mas <strong>no</strong>ta-se algo, além disso, Pessoa chama atenção à idéia <strong>de</strong><br />

que as sensações po<strong>de</strong>m ser altera<strong>da</strong>s (estrofe 2) abrindo possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s para que a<br />

24


imagem que se tem do passado, na forma <strong>de</strong> lembranças, tenha sua existência<br />

questiona<strong>da</strong>.<br />

A musicali<strong>da</strong><strong>de</strong> é fun<strong>da</strong>mental para a leitura e interpretação do texto; para tanto, o<br />

poeta utiliza uma métrica tradicional e popular, <strong>de</strong> largo uso <strong>de</strong>s<strong>de</strong> fins <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Média: a redondilha me<strong>no</strong>r (verso <strong>de</strong> cinco sílabas <strong>poéticas</strong>). A música evoca a<br />

infância, elemento temático central do poema, sempre recor<strong>da</strong><strong>da</strong> em tons<br />

melancólicos.<br />

Há um paradoxo <strong>no</strong> último verso, como se a idéia <strong>de</strong> que a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> estava <strong>no</strong><br />

passado “outrora”, é na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma ficção gera<strong>da</strong> pelas emoções do presente<br />

“agora”, o que quer dizer que é <strong>no</strong> agora que ele pensa ter sido feliz <strong>no</strong> outrora.<br />

Esse saudosismo <strong>de</strong> Fernando Pessoa, ortônimo, é manifestado <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> pessoal,<br />

como um retor<strong>no</strong> à infância; <strong>no</strong> entanto, <strong>no</strong> ci<strong>da</strong>dão português, surge como um clima<br />

<strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong> uma lembrança <strong>da</strong> grandiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> antiga do Império Português.<br />

Exemplo disso é o poema O Infante:<br />

Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.<br />

Deus quis que a terra fosse to<strong>da</strong> uma,<br />

Que o mar unisse, já não separasse.<br />

Sagrou-te, e foste <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>ndo a espuma,<br />

E a orla branca foi <strong>de</strong> ilha em continente,<br />

Clareou, correndo, até ao fim do mundo,<br />

E viu-se a terra inteira <strong>de</strong> repente<br />

Surgir, redon<strong>da</strong> do azul profundo.<br />

Quem te sagrou, criou-te português.<br />

Do mar e nós em ti <strong>no</strong>s <strong>de</strong>u sinal<br />

Cumpriu-se o Mar, e o império se <strong>de</strong>sfez.<br />

Senhor, falta cumprir-se Portugal! (PESSOA, 1993, p.89)<br />

Esse texto expõe a idéia que era vonta<strong>de</strong> divina que o Império Português se<br />

estabelecesse, unificando terras e mares. Pessoa coloca a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus e o<br />

sonho huma<strong>no</strong> como forças responsáveis pela concretização <strong>da</strong> obra, <strong>no</strong> caso as<br />

Navegações.<br />

O final do poema “Senhor, falta cumprir-se Portugal”, reflete bem o espírito<br />

dominante em Mensagem: a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> realização <strong>de</strong> Portugal como a super-<br />

25


nação, já anuncia<strong>da</strong> por Fernando Pessoa na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1910, conforme o<br />

pensamento nacionalista então dominante.<br />

“Os sentidos são divi<strong>no</strong>s porque são a <strong>no</strong>ssa relação com o universo, e a <strong>no</strong>ssa<br />

relação com o universo Deus” (PESSOA, 2005, p.84).<br />

2.3 ALBERTO CAEIRO<br />

Alberto Caeiro <strong>da</strong> Silva nasceu em Lisboa, em abril <strong>de</strong> 1889, e na mesma ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

faleceu tuberculoso em 1915. Chamado <strong>de</strong> o poeta-pastor é o homem reconciliado<br />

com a natureza, que rejeita to<strong>da</strong>s as estéticas, todos os valores, to<strong>da</strong>s as<br />

abstrações. Seus versos livres são um convite a <strong>de</strong>sapren<strong>de</strong>r as idéias para<br />

apren<strong>de</strong>r as coisas.<br />

Autodi<strong>da</strong>ta, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> simplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, sua sabedoria consiste em ver o mundo <strong>de</strong><br />

forma sadia e plena. Passou quase a vi<strong>da</strong> inteira numa quinta <strong>de</strong> Ribatejo. Lá<br />

escreveu O Guar<strong>da</strong>dor <strong>de</strong> Rebanhos e uma parte <strong>de</strong> O Pastor Amoroso, que não foi<br />

completado.<br />

No mesmo local, escreveu ain<strong>da</strong> alguns poemas <strong>de</strong> Poemas Inconjuntos, vindo este<br />

a se completar já em Lisboa, quando lá o autor voltou, já <strong>no</strong> final <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Aliás, <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Caeiro não há o que narrar; sua vi<strong>da</strong> e seus poemas se confun<strong>de</strong>m.<br />

Este heterônimo pessoa<strong>no</strong>, diante <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se infelicitar com o sol, os<br />

prados e as flores que contempla com sua gran<strong>de</strong>za, procura minimizá-los,<br />

comparando-os com ele próprio. Nessa redução do mundo, fica mais latente o<br />

"na<strong>da</strong>". Daí ser ele o heterônimo que na<strong>da</strong> quer.<br />

Mesmo assim, enquanto tenta provar que não intelectualiza na<strong>da</strong>, é o que mais<br />

intelectualiza entre as personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s pessoanas, parece usar o raciocínio sem<br />

querer <strong>de</strong>monstrar isso. Daí ser o mais infeliz, por restringir o mundo, além <strong>de</strong> fugir<br />

do progresso e a ele renunciar. Caeiro faz uma poesia <strong>da</strong> natureza, uma poesia dos<br />

sentidos, <strong>da</strong>s sensações puras e simples.<br />

(...) Sou um guar<strong>da</strong>dor <strong>de</strong> rebanhos.<br />

O rebanho é os meus pensamentos<br />

26


E os meus pensamentos são todos sensações.<br />

Penso com os olhos e com os ouvidos<br />

E com as mãos e os pés<br />

E com o nariz e a boca. (...) (CAEIRO, 1997, p.27)<br />

Esse fragmento <strong>da</strong> poesia <strong>de</strong> Caeiro i<strong>de</strong>ntifica o ato <strong>de</strong> pensar com a relação <strong>de</strong><br />

sensação do corpo com o mundo, <strong>de</strong>stacando a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> proporciona<strong>da</strong> pelos<br />

sentidos em comunhão direta com a natureza.<br />

Caeiro é o mestre dos <strong>de</strong>mais. Foge para a natureza e procura viver tão<br />

simplesmente como as flores, as fontes, as aves. Possui uma linguagem fluente, que<br />

se prosa. É um homem <strong>de</strong> visão ingênua, instintiva e se entrega à infinita varie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sensações.<br />

Para ele, o real é a própria exteriori<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mantém posição antimetafísica, alegando<br />

que não se <strong>de</strong>ve acrescentar às coisas na<strong>da</strong> <strong>de</strong> subjetivo. É contra interpretações<br />

alegando que a inteligência reduz tudo a simples conceitos vazios.<br />

To<strong>da</strong> a sua produção poética abor<strong>da</strong> a questão <strong>da</strong> percepção do mundo e tendência<br />

do ser huma<strong>no</strong> em transformar aquilo que vê em símbolos, sendo incapaz, por este<br />

motivo, <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o seu ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro significado.<br />

Caeiro tem uma filosofia que prevê objeções e explica <strong>de</strong>feitos. O poeta pagão,<br />

porque tem a or<strong>de</strong>m e a disciplina que o paganismo tinha e que o cristianismo fez<br />

per<strong>de</strong>r: poesia é ver, é sentir.<br />

No meu prato que mistura <strong>da</strong> natureza!<br />

As minhas irmãs as plantas,<br />

As companheiras <strong>da</strong>s fontes, as santas<br />

A quem ninguém reza<br />

E contam-as e vêm à <strong>no</strong>ssa mesa<br />

E <strong>no</strong>s hotéis os hóspe<strong>de</strong>s ruidosos,<br />

Que chegam com correias tenso mantas<br />

Pe<strong>de</strong>m “sala<strong>da</strong>” <strong>de</strong>scuidosos<br />

Sem pensar que exigem a Terra-Mãe.<br />

A sua frescura e os seus filhos primeiros,<br />

As primeiras ver<strong>de</strong>s palavras que ela tem,<br />

As primeiras coisas vivas e irisantes<br />

Que Noé viu<br />

Quando as águas <strong>de</strong>sceram e o cimo dos montes<br />

Ver<strong>de</strong> e alagado surgiu.<br />

E <strong>no</strong> ar por on<strong>de</strong> a pomba apareceu<br />

O arco-íris se esbateu...CAEIRO, 1997, p. 33 )<br />

27


To<strong>da</strong> a produção poética acima abor<strong>da</strong> a questão <strong>da</strong> percepção do mundo, on<strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>stacam vários componentes existentes <strong>no</strong> planeta terra, o ser huma<strong>no</strong> transforma<br />

aquilo que vê em símbolos. Observa-se <strong>no</strong> poema acima uma linguagem fluente,<br />

quase em prosa. O poeta foge para a natureza, procurando a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />

plantas, fontes dos montes e aves.<br />

Caeiro é mais do que pagão: é o próprio paganismo. É assim que nunca se<br />

<strong>de</strong>sdobra, e mantém u<strong>no</strong>. Além <strong>de</strong> mestre foi também chamado <strong>de</strong> cirurgião pelos<br />

seus discípulos porque os quer operar a todos do apêndice <strong>da</strong> alma para serem,<br />

como os <strong>de</strong>uses, apenas corpo, tendo a divin<strong>da</strong><strong>de</strong> na própria carne divina. Por isso<br />

a receita é tão simples: não pensar, pois, pensar é estar doente dos olhos; ver,<br />

apenas ver.<br />

(...) Um dia que Deus estava a dormir<br />

E o Espírito Santo an<strong>da</strong>va a voar,<br />

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.<br />

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.<br />

Com o segundo criou-se eternamente huma<strong>no</strong> e meni<strong>no</strong>.<br />

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz<br />

E <strong>de</strong>ixou-o pregado na cruz que há <strong>no</strong> céu<br />

E serve <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo às outras.<br />

Depois fugiu para o sol<br />

E <strong>de</strong>sceu pelo primeiro raio que apanhou. (...) (CAEIRO, 2003, p.150)<br />

Para o espírito pagão, o mundo sensível é muito importante, pois é nele que se<br />

manifestam as formas divinas (os <strong>de</strong>uses) que os homens po<strong>de</strong>m vivenciar em sua<br />

vi<strong>da</strong> efêmera. Esse paganismo <strong>de</strong> Caeiro encontra-se na busca <strong>de</strong> uma integração<br />

sensorial com a natureza, sentindo-se parte <strong>de</strong>la.<br />

(...) O meu olhar é nítido como um girassol.<br />

Tenho o costume <strong>de</strong> an<strong>da</strong>r pelas estra<strong>da</strong>s<br />

Olhando para a direita e para a esquer<strong>da</strong>,<br />

E <strong>de</strong> vez em quando olhando para trás...<br />

E o que vejo a ca<strong>da</strong> momento<br />

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,<br />

E eu sei <strong>da</strong>r por isso muito bem...<br />

Sei ter o pasmo essencial<br />

Que tem uma criança se, ao nascer,<br />

Reparasse que nascera <strong>de</strong>veras...<br />

Sinto-me nascido a ca<strong>da</strong> momento<br />

Para a eterna <strong>no</strong>vi<strong>da</strong><strong>de</strong> do mundo...<br />

Creio <strong>no</strong> mundo como num malmequer,<br />

Porque o vejo. Mas não penso nele<br />

Porque o pensar é não compreen<strong>de</strong>r...<br />

O mundo não se fez para pensarmos nele<br />

(Pensar é estar doente dos olhos)<br />

Mas para olharmos para ele e estarmos <strong>de</strong> acordo...<br />

28


Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...<br />

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,<br />

Mas porque a amo, e amo-a por isso,<br />

Porque quem ama nunca sabe o que ama<br />

Nem sabe por que ama, nem o que é amar...<br />

Amar é a eterna i<strong>no</strong>cência,<br />

E a única i<strong>no</strong>cência não pensar... (...) (CAEIRO, 1993, p.35)<br />

O olhar é o principal meio <strong>de</strong> o poeta captar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que o ro<strong>de</strong>ia. Esse mesmo<br />

olhar também capta a eterna <strong>no</strong>vi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s coisas. Para Caeiro, a ca<strong>da</strong> instante que<br />

passa a Natureza e o mundo se re<strong>no</strong>vam, <strong>de</strong> forma que nunca olhamos duas vezes<br />

para o mesmo ser ou objeto.<br />

Com as colocações que Caeiro faz como “... pensar é não compreen<strong>de</strong>r... / o mundo<br />

não se fez para pensarmos nele/ (pensar é estar doente dos olhos)” ele nega ter<br />

qualquer interpretação racional do mundo, o poeta sintetiza sua proposta <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>:<br />

“eu não tenho filosofia: tenho sentidos...”<br />

As consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> Alberto Caeiro acerca <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Natureza e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

fizeram com que o poeta ganhasse alguns discípulos. São eles: Ricardo Reis, Álvaro<br />

<strong>de</strong> Campos e o próprio Fernando Pessoa.<br />

2.4 RICARDO REIS<br />

Ricardo Reis nasceu em Lisboa, <strong>no</strong> dia 28 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1914. O segundo<br />

heterônimo a surgir discípulo <strong>de</strong> Alberto Caeiro, <strong>de</strong> quem adquiriu a lição <strong>de</strong><br />

paganismo espontâneo. Esse poeta representa o lado humanístico <strong>de</strong> Pessoa e<br />

recupera aspectos clássicos. Em Ricardo Reis:<br />

Há a renúncia <strong>de</strong> quem atingiu<br />

os píncaros <strong>da</strong> humana luci<strong>de</strong>z<br />

e abstrai seus conceitos <strong>de</strong> impermanência e símbolos<br />

<strong>da</strong> contemplação voluntária <strong>de</strong> uma natureza<br />

quem o homem iguala<br />

a essenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> i<strong>de</strong>al que lhe basta. (REIS, 1997, p.67)<br />

A luci<strong>de</strong>z é uma <strong>da</strong>s suas características, ele é racional, comedido e correto.<br />

Segundo o próprio Pessoa, Reis nasceu <strong>da</strong> seguinte maneira:<br />

29


“O Dr. Ricardo Reis nasceu <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> minha alma <strong>no</strong> dia 28 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1914,<br />

pelas 11 horas <strong>da</strong> <strong>no</strong>ite. Eu estivera ouvindo <strong>no</strong> dia anterior uma discussão extensa<br />

sobre os excessos especialmente <strong>de</strong> realização, <strong>da</strong> arte mo<strong>de</strong>rna”. (...)<br />

Para Reis, a emoção não é a base <strong>da</strong> poesia, é o meio. A palavra é um instrumento<br />

emotivo-intelectual e na literatura não existe na<strong>da</strong> que contenha em si a<br />

emotivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Reis é <strong>de</strong>fensor <strong>da</strong> monarquia, latinista e semi-helenista; é um homem culto, possui<br />

uma linguagem <strong>de</strong>nsa, e sintaxe latinizante. Seus temas são lugares-comuns<br />

clássicos: brevi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozar o presente, fatali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> morte,<br />

tem atitu<strong>de</strong>s hedonistas, ou seja, volta<strong>da</strong> para o prazer, e atitu<strong>de</strong> epicurista que é a<br />

tendência para a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> pela harmonização <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s humanas.<br />

Esse heterônimo pessoa<strong>no</strong>, numa arte poética particularmente sua, procurou<br />

sempre o mais alto, o impossível até, para encrustar uma poesia refina<strong>da</strong>, concisa,<br />

elíptica, cunha<strong>da</strong> em linguagem esmera<strong>da</strong> e com vocabulário algo alatinado. A<br />

temática <strong>de</strong> Ricardo Reis, o poeta neoclássico, é a passagem do tempo, a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fruir o momento presente. Sua obra caracteriza-se por versos<br />

curtos, que lembram a lírica grega, com vocabulário muitas vezes erudito, sintaxe<br />

clássica, referências mitológicas.<br />

Clássico por excelência, i<strong>de</strong>alista e platônico <strong>no</strong> amor, constata o efêmero <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e<br />

anseia, <strong>no</strong> íntimo, por uma fe<strong>no</strong>me<strong>no</strong>lógica eterni<strong>da</strong><strong>de</strong> terrena. Sua atitu<strong>de</strong> diante <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> é serena, intelectualiza<strong>da</strong>, conti<strong>da</strong>, contemplativa.<br />

(...) Breve o dia, breve o a<strong>no</strong>, breve tudo,<br />

não tar<strong>da</strong> na<strong>da</strong> sermos.<br />

Isto, pensado, a mente absorve<br />

Todos mais pensamentos.<br />

O mesmo breve ser <strong>da</strong> mágoa pesa-me,<br />

Que, in<strong>da</strong> que mágoa, é vi<strong>da</strong>. (REIS, 1997, p.70)<br />

Ricardo Reis representa o homem clássico, preso aos valores <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Este,<br />

através do paganismo, anterior à idéia cristã do pecado, oferece o único sentido<br />

para a vi<strong>da</strong>. Por isso, Ricardo Reis se manifesta poeticamente através <strong>de</strong> o<strong>de</strong>s,<br />

forma originária <strong>da</strong> velha Grécia que correspon<strong>de</strong> a uma espécie <strong>de</strong> canto,<br />

30


geralmente um poema <strong>de</strong> estrofes simétricas, com intuito <strong>de</strong> exaltação ou discussão<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> especialmente pelo poeta lati<strong>no</strong> Horácio.<br />

O exemplo <strong>de</strong>sta relação entre a aceitação <strong>da</strong> morte e a celebração dos prazeres <strong>da</strong><br />

existência encontra-se na mais célebre o<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ricardo Reis (sem título):<br />

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.<br />

Sossega<strong>da</strong>mente fitemos o seu curso e apren<strong>da</strong>mos<br />

Que a vi<strong>da</strong> passa, e não estamos <strong>de</strong> mãos enlaça<strong>da</strong>s.<br />

(Enlacemos as mãos.).<br />

Depois pensemos, crianças adultas, que a vi<strong>da</strong><br />

Passa e não fica, na<strong>da</strong> <strong>de</strong>ixa e nunca regressa,<br />

Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,<br />

Mais longe que os <strong>de</strong>uses.<br />

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-<strong>no</strong>s.<br />

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.<br />

Mais vale saber passar silenciosamente<br />

E sem <strong>de</strong>sassossegos gran<strong>de</strong>s.<br />

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,<br />

Nem invejas que dão movimento <strong>de</strong>mais aos olhos, (...)<br />

Pagãos i<strong>no</strong>centes <strong>da</strong> <strong>de</strong>cadência.<br />

Ao me<strong>no</strong>s, se for sombra antes, lembrar-te-ás <strong>de</strong> mim <strong>de</strong>pois<br />

Sem que a minha lembrança te ar<strong>da</strong> ou te fira ou te mova,<br />

Porque nunca enlaçamos as mãos, nem <strong>no</strong>s beijamos<br />

Nem fomos mais do que crianças.<br />

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,<br />

Eu na<strong>da</strong> terei que sofrer ao lembrar-me <strong>de</strong> ti.<br />

Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,<br />

Pagã triste e com flores <strong>no</strong> regaço. (REIS, 1997, p.55)<br />

Nesse poema, observa-se a leveza <strong>da</strong>s imagens afetivas que o poeta elaborou,<br />

construindo uma proposta suavemente melancólica <strong>de</strong> relação amorosa. É claro<br />

também o conceito Epicurista: <strong>de</strong>vem-se evitar os “amores, os ódios, as paixões que<br />

levantam a voz”, em busca <strong>de</strong> uma tranqüili<strong>da</strong><strong>de</strong> amorosa. De qualquer modo: “Quer<br />

gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio” e “Mais vale saber passar<br />

silenciosamente/ E sem <strong>de</strong>sassossegos gran<strong>de</strong>s”. O fluir <strong>de</strong> um rio é uma imagem<br />

freqüente na poesia clássica, indicando <strong>no</strong>rmalmente o correr do tempo.<br />

Viver <strong>de</strong> forma sábia o presente (“colhamos flores... /...e que o seu perfume suavize<br />

o momento”) e evitar a paixão excessiva é uma forma que o poeta encontra <strong>de</strong> fugir<br />

<strong>da</strong> dor provoca<strong>da</strong> por uma sau<strong>da</strong><strong>de</strong> violenta: “E se antes do que eu levares o óbolo<br />

ao barqueiro sombrio, / Eu na<strong>da</strong> terei que sofrer ao lembrar-me <strong>de</strong> ti/ Ser-me-as<br />

suave à memória lembrando-te assim – à beira do rio”.<br />

31


Outro elemento importante do poema é a presença feminina a quem o poeta dirige<br />

suas palavras. Essa mesma tendência a en<strong>de</strong>reçar o poema a uma mulher que se<br />

confun<strong>de</strong> com a própria motivação poética do artista também po<strong>de</strong> ser observa<strong>da</strong> na<br />

poesia do século XVIII.<br />

Uns, com os olhos postos <strong>no</strong> passado,<br />

Vêem o que não vêem; outros, fitos<br />

Os mesmos olhos <strong>no</strong> futuro, vêem<br />

O que não po<strong>de</strong> ver-se.<br />

Por que tão longe ir pôr o que está perto –<br />

A segurança <strong>no</strong>ssa? Este é o dia,<br />

Esta é à hora, este é o momento, isto<br />

É quem somos, e é tudo.<br />

Perene flui a interminável hora<br />

Que <strong>no</strong>s confessa nulos. No mesmo hausto<br />

O dia, porque és ele. (REIS, 1993, p.58)<br />

Nesse poema Reis critica tanto aqueles que se pren<strong>de</strong>m ao passado, vivendo o que<br />

já passou “Vêem o que não vêem...”, quanto àqueles que fixam seus olhos <strong>no</strong> futuro,<br />

“vendo o que não se po<strong>de</strong> ver”. O poeta diz que somos o presente, e o tempo flui<br />

constante e <strong>no</strong>s mostra <strong>no</strong>ssa própria insignificância. A vi<strong>da</strong> e a morte fazem parte<br />

<strong>de</strong> um mesmo sopro.<br />

Essa consciência <strong>da</strong> brevi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> inevitável morte, leva Reis a valorizar o<br />

presente “esta é a hora, este o momento, isto é quem somos, e é tudo”. Segundo<br />

Reis, os <strong>de</strong>uses são superiores porque não tentam <strong>de</strong>scortinar o que existe para<br />

além <strong>da</strong> aparência <strong>da</strong>s coisas, não tentam ver em ca<strong>da</strong> coisa sinal dum além, isto é,<br />

um símbolo.“Para os <strong>de</strong>uses as coisas são mais coisas”, diz Ricardo Reis. E<br />

acrescenta:<br />

Não mais longe eles vêem, mas mais claro<br />

Na certa Natureza<br />

E a contorna<strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

(...)<br />

Apren<strong>de</strong>, pois, tu <strong>da</strong>s cristãs angústias,<br />

Ó traidor <strong>da</strong> multíplice presença<br />

Dos <strong>de</strong>uses, a não teres<br />

Véus <strong>no</strong>s olhos nem na alma. (REIS, 2003, p.19)<br />

Ricardo Reis aparece como coadjuvante do mestre Caeiro, o que exprime com<br />

simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil, numa linguagem oral, esses preceitos a que Reis <strong>da</strong>rá a forma<br />

disciplina<strong>da</strong>, tensa, duma o<strong>de</strong> clássica.<br />

32


2.5 ÁLVARO DE CAMPOS<br />

“O que o mestre Caeiro me ensi<strong>no</strong>u foi a ter clareza; equilíbrio, organismo <strong>no</strong> <strong>de</strong>lírio<br />

e <strong>no</strong> <strong>de</strong>svairamento, e também me ensi<strong>no</strong>u a não procurar ter filosofia nenhuma,<br />

mas com alma.” (CAMPOS, 1993, p.64).<br />

Álvaro <strong>de</strong> Campos nasceu em 15 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1889. Ele é a terceira face <strong>de</strong><br />

Pessoa, e está inserido <strong>no</strong> que é mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>, às máquinas, e as conquistas<br />

tec<strong>no</strong>lógicas. Em sua personali<strong>da</strong><strong>de</strong> são predominantes as emoções impulsivas, a<br />

rapi<strong>de</strong>z e o nervosismo, e também sentimentos pessoais profundos, cheio <strong>de</strong> ironias<br />

e questionamentos que remetem a profun<strong>da</strong>s crises existenciais, principalmente<br />

diante do ser e o não ser.<br />

Engenheiro, inquieto, representa a parte mais au<strong>da</strong>ciosa a que Pessoa se permitiu,<br />

através <strong>da</strong>s experiências mais barulhentas do futurismo português, inclusive com<br />

algumas investi<strong>da</strong>s <strong>no</strong> campo <strong>da</strong> ação político-social.<br />

Um poeta que se propõe a abrir seus sentido todos ao mundo e à vi<strong>da</strong>, buscando<br />

uma linguagem poética capaz <strong>de</strong> exprimir sua alucinante vonta<strong>de</strong> sensacionista.<br />

Este poeta sensacionista, turbulento, impulsivo, acreditava que a arte era, como to<strong>da</strong><br />

a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, um indício <strong>de</strong> força, ou energia, <strong>da</strong> própria força que se manifesta na<br />

vi<strong>da</strong>.<br />

Daí seus poemas fortes, vigorosos, energeticamente construídos em versos livres,<br />

soltos como a flutuação emocional do autor. O artista subordina tudo à sua<br />

sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, fazendo converter tudo em substância <strong>de</strong> sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, que force os<br />

outros, queiram eles ou não, a sentir o que ele sentiu; que os domina pela força do<br />

inexplicável.<br />

A trajetória poética <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos está compreendi<strong>da</strong> em três fases. A<br />

primeira, <strong>da</strong> morbi<strong>de</strong>z, é a fase do "Opiário", oferecido a Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro e<br />

escrito enquanto navegava pelo Canal do Suez, em março <strong>de</strong> 1914. A segun<strong>da</strong> fase,<br />

mais mecanicista é on<strong>de</strong> o Futurismo italia<strong>no</strong> mais transparece num aclimatamento<br />

em terras <strong>de</strong> Portugal. Nessa fase, Campos seria:<br />

33


Um Whitman com um poeta grego <strong>de</strong>ntro.<br />

Pois Pessoa o coloca numa dupla seqüência:<br />

a <strong>de</strong> uma arte orienta<strong>da</strong> pelo i<strong>de</strong>al grego<br />

e a dos cantores <strong>de</strong> hi<strong>no</strong>s a civilização mo<strong>de</strong>rna<br />

e sensações por ela provoca<strong>da</strong>s. (CAMPOS, 1997, p.112)<br />

É nessa fase on<strong>de</strong> a sensação é mais intelectualiza<strong>da</strong>. A terceira fase, do so<strong>no</strong> e do<br />

cansaço, aquela que, apesar <strong>de</strong> trazer alguma coloração surrealista e dionisíaca, é<br />

mais mo<strong>de</strong>rna e equilibra<strong>da</strong>. O que se constata, é que Álvaro <strong>de</strong> Campos, a <strong>de</strong>speito<br />

<strong>de</strong> intelectualizar as sensações é a personali<strong>da</strong><strong>de</strong> pessoana que mais se aproximou<br />

<strong>de</strong> uma poesia realista, e, também, quem mais foi marcado pelos caracteres <strong>da</strong><br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Na produção poética <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos, os versos livres, <strong>de</strong> ritmos explosivos e<br />

linguagem coloquial, testemunham à crise <strong>de</strong> todos os valores <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> urbana e<br />

industrial, variando entre a excitação e o cansaço, a euforia e a <strong>de</strong>pressão, o êxtase<br />

e a <strong>de</strong>silusão. Uma outra dimensão <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos (o lado contrário <strong>da</strong><br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>) é a <strong>de</strong> um poeta <strong>de</strong>sesperado, questionador <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as convicções.<br />

A angústia o consome: “Esta angústia que trago há séculos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim” e na<br />

dimensão terrível <strong>da</strong> <strong>no</strong>ite, o poeta se dilacera “Na <strong>no</strong>ite <strong>de</strong> insônia, substância<br />

natural <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as minhas <strong>no</strong>ites”. Desse universo <strong>de</strong>stroçado, “Não sou na<strong>da</strong>,<br />

Nunca serei na<strong>da</strong>; Não posso querer ser na<strong>da</strong>.” resta apenas o orgulho <strong>da</strong><br />

sinceri<strong>da</strong><strong>de</strong> com que expõe sua moral, conforme po<strong>de</strong>mos verificar <strong>no</strong> famoso<br />

Poema em linha reta:<br />

Nunca conheci quem tivesse levado porra<strong>da</strong>.<br />

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.<br />

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,<br />

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,<br />

In<strong>de</strong>sculpavelmente sujo,<br />

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,<br />

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,<br />

Que tenho enrolado os pés publicamente <strong>no</strong>s tapetes <strong>da</strong>s etiquetas,<br />

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,<br />

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,<br />

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ain<strong>da</strong>;<br />

Eu, que tenho sido cômico às cria<strong>da</strong>s <strong>de</strong> hotel,<br />

Eu, que tenho sentido o piscar <strong>de</strong> olhos dos moços <strong>de</strong> fretes,<br />

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedindo emprestado sem pagar,<br />

Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado<br />

Para fora <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do soco;<br />

34


Eu, que tenho sofrido a angústia <strong>da</strong>s pequenas coisas ridículas,<br />

Eu verifico que não tenho par nisto tudo, neste mundo.<br />

To<strong>da</strong> a gente que eu conheço e que fala comigo<br />

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,<br />

Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes — na vi<strong>da</strong>...<br />

Quem me <strong>de</strong>ra ouvir <strong>de</strong> alguém a voz humana<br />

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;<br />

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!<br />

Não, são todos o I<strong>de</strong>al, se os oiço e me falam.<br />

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?<br />

Ó príncipes, meus irmãos.<br />

Arre, estou farto <strong>de</strong> semi<strong>de</strong>uses!<br />

On<strong>de</strong> é que há gente <strong>no</strong> mundo? (CAMPOS, 1997, p.134)<br />

Esse poema possui uma linguagem carrega<strong>da</strong> <strong>de</strong> agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e mágoa. Já <strong>no</strong><br />

primeiro verso é estabeleci<strong>da</strong> a oposição básica que sustenta o texto. De um lado a<br />

figura do poeta, sempre ro<strong>de</strong>a<strong>da</strong> <strong>de</strong> um caráter negativo, <strong>de</strong> outro, os “perfeitos”, os<br />

“príncipes”.<br />

A partir do primeiro verso, o poeta enumera uma seqüência <strong>de</strong> fatos que comprovam<br />

a própria “vileza”. Esses fatos cotidia<strong>no</strong>s <strong>de</strong>sprezíveis remetem a uma profun<strong>da</strong><br />

sensação <strong>de</strong> isolamento, <strong>de</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptar-se ao mundo.<br />

Álvaro <strong>de</strong> Campos expressa, <strong>de</strong> maneira radical, sua solidão, sua diferença em<br />

relação ao homem comum. O poeta sente-se um marginal, na medi<strong>da</strong> em que todos<br />

os seus conhecidos “têm sido campeões em tudo”. Ele promove uma total <strong>de</strong>molição<br />

<strong>de</strong> si, apontando seus mais graves <strong>de</strong>feitos.<br />

Mas essa avaliação negativa do próprio eu tem um sentido irônico, pois, enquanto<br />

se diminui, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> está se engran<strong>de</strong>cendo diante dos outros. Essa carga <strong>de</strong><br />

ironia sugere certa injustiça que o poeta <strong>de</strong>ixa subentendido. Percebe-se isso <strong>no</strong>s<br />

dois últimos versos: “Arre, estou farto <strong>de</strong> semi<strong>de</strong>uses! On<strong>de</strong> é que há gente <strong>no</strong><br />

mundo”.<br />

Campos é ansioso pelo progresso <strong>de</strong> sua terra, <strong>de</strong>ntre os heterônimos é o único que<br />

apresenta evolução. Esse se propõe a abrir seus sentidos todos ao mundo e à vi<strong>da</strong>,<br />

buscando uma linguagem poética capaz <strong>de</strong> exprimir sua alucinante vonta<strong>de</strong><br />

sensacionalista.<br />

35


Sentir tudo <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as maneiras,<br />

Viver tudo <strong>de</strong> todos os lados,<br />

ser a mesma coisa <strong>de</strong> todos os modos possíveis ao mesmo tempo.<br />

Realizar em si to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> todos os momentos<br />

num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. (CAMPOS, 1993,<br />

p.63)<br />

Com essas características turbulentas, impulsivas, acreditava que a arte era como<br />

to<strong>da</strong> a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, um indício <strong>de</strong> força ou energia <strong>da</strong> própria força que se manifesta na<br />

vi<strong>da</strong>. As conseqüências disso estão nas suas poesias sensacionalistas, on<strong>de</strong> ele<br />

expressa <strong>de</strong>pressão, e <strong>de</strong>pendência do ópio. Po<strong>de</strong>-se retirar como exemplo o<br />

poema Tabacaria:<br />

Não sou na<strong>da</strong>.<br />

Nunca serei na<strong>da</strong>.<br />

Não posso querer ser na<strong>da</strong>.<br />

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.<br />

Janelas do meu quarto,<br />

Do meu quarto <strong>de</strong> um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é<br />

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),<br />

Dais para o mistério <strong>de</strong> uma rua cruza<strong>da</strong> constantemente por gente,<br />

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,<br />

Real, impossivelmente real, certa, <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>mente certa,<br />

Com o mistério <strong>da</strong>s coisas por baixo <strong>da</strong>s pedras e dos seres,<br />

Com a morte a pôr humi<strong>da</strong><strong>de</strong> nas pare<strong>de</strong>s e cabelos brancos <strong>no</strong>s homens,<br />

Com o Desti<strong>no</strong> a conduzir a carroça <strong>de</strong> tudo pela estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> na<strong>da</strong>.<br />

Estou hoje vencido, como se soubesse a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,<br />

E não tivesse mais irman<strong>da</strong><strong>de</strong> com as coisas<br />

Senão uma <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>, tornando-se esta casa e este lado <strong>da</strong> rua<br />

A fileira <strong>de</strong> carruagens <strong>de</strong> um comboio, e uma parti<strong>da</strong> apita<strong>da</strong><br />

De <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> minha cabeça,<br />

E uma sacudi<strong>de</strong>la dos meus nervos e um ranger <strong>de</strong> ossos na i<strong>da</strong>.<br />

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.<br />

Estou hoje dividido entre a leal<strong>da</strong><strong>de</strong> que <strong>de</strong>vo<br />

À Tabacaria do outro lado <strong>da</strong> rua, como coisa real por fora,<br />

E à sensação <strong>de</strong> que tudo é sonho, como coisa real por <strong>de</strong>ntro.<br />

Falhei em tudo.<br />

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse na<strong>da</strong>.<br />

A aprendizagem que me <strong>de</strong>ram,<br />

Desci <strong>de</strong>la pela janela <strong>da</strong>s traseiras <strong>da</strong> casa,<br />

Fui até ao campo com gran<strong>de</strong>s propósitos.<br />

Mas lá encontrei só ervas e árvores,<br />

E quando havia gente era igual à outra.<br />

Saio <strong>da</strong> janela, sento-me numa ca<strong>de</strong>ira. Em que hei - <strong>de</strong> pensar?<br />

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?<br />

Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!<br />

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não po<strong>de</strong> haver tantos!<br />

Gênio? Neste momento<br />

Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,<br />

36


E a história não marcará, quem sabe?, nem um,<br />

Nem haverá senão estrume <strong>de</strong> tantas conquistas futuras.<br />

Não, não creio em mim.<br />

Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!<br />

Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou me<strong>no</strong>s certo?<br />

Não, nem em mim...<br />

Em quantas mansar<strong>da</strong>s e não-mansar<strong>da</strong>s do mundo<br />

Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?<br />

Quantas aspirações altas e <strong>no</strong>bres e lúci<strong>da</strong>s -<br />

Sim, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente altas e <strong>no</strong>bres e lúci<strong>da</strong>s -,<br />

E quem sabe se realizáveis,<br />

Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos <strong>de</strong> gente?<br />

O mundo é para quem nasce para o conquistar<br />

E não para quem sonha que po<strong>de</strong> conquistá-lo, ain<strong>da</strong> que tenha razão.<br />

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.<br />

Tenho apertado ao peito hipotético mais humani<strong>da</strong><strong>de</strong>s do que Cristo,<br />

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.<br />

Mas sou, e talvez serei sempre, o <strong>da</strong> mansar<strong>da</strong>,<br />

Ain<strong>da</strong> que não more nela;<br />

Serei sempre o que não nasceu para isso;<br />

Serei sempre só o que tinha quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s;<br />

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé <strong>de</strong> uma<br />

pare<strong>de</strong> sem porta<br />

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,<br />

E ouviu a voz <strong>de</strong> Deus num poço tapado.<br />

Crer em mim? Não, nem em na<strong>da</strong>.<br />

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ar<strong>de</strong>nte<br />

O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,<br />

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.<br />

Escravos cardíacos <strong>da</strong>s estrelas,<br />

Conquistamos todo o mundo antes <strong>de</strong> <strong>no</strong>s levantar <strong>da</strong> cama;<br />

Mas acor<strong>da</strong>mos e ele é opaco,<br />

Levantámo-<strong>no</strong>s e ele é alheio,<br />

Saímos <strong>de</strong> casa e ele é a terra inteira,<br />

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o In<strong>de</strong>finido.<br />

(Come chocolates, pequena;<br />

Come chocolates!<br />

Olha que não há mais metafísica <strong>no</strong> mundo senão chocolates.<br />

Olha que as religiões to<strong>da</strong>s não ensinam mais que a confeitaria.<br />

Come, pequena suja, come!<br />

Pu<strong>de</strong>sse eu comer chocolates com a mesma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> com que comes!<br />

Mas eu penso e, ao tirar o papel <strong>de</strong> prata, que é <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> estanho,<br />

Deito tudo para o chão, como tenho <strong>de</strong>itado a vi<strong>da</strong>.)<br />

Mas ao me<strong>no</strong>s fica <strong>da</strong> amargura do que nunca serei<br />

A caligrafia rápi<strong>da</strong> <strong>de</strong>stes versos,<br />

Pórtico partido para o Impossível.<br />

Mas ao me<strong>no</strong>s consagro a mim mesmo um <strong>de</strong>sprezo sem lágrimas,<br />

Nobre ao me<strong>no</strong>s <strong>no</strong> gesto largo com que atiro<br />

A roupa suja que sou, sem rol, pra o <strong>de</strong>curso <strong>da</strong>s coisas,<br />

E fico em casa sem camisa.<br />

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,<br />

Ou <strong>de</strong>usa grega, concebi<strong>da</strong> como estátua que fosse viva,<br />

Ou patrícia romana, impossivelmente <strong>no</strong>bre e nefasta,<br />

Ou princesa <strong>de</strong> trovadores, gentilíssima e colori<strong>da</strong>,<br />

Ou marquesa do século <strong>de</strong>zoito, <strong>de</strong>cota<strong>da</strong> e longínqua,<br />

Ou cocote célebre do tempo dos <strong>no</strong>ssos pais,<br />

Ou não sei quê mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> - não concebo bem o quê -,<br />

37


Tudo isso, seja o que for, que sejas, se po<strong>de</strong> inspirar que inspire!<br />

Meu coração é um bal<strong>de</strong> <strong>de</strong>spejado.<br />

Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco<br />

A mim mesmo e não encontro na<strong>da</strong>.<br />

Chego à janela e vejo a rua com uma niti<strong>de</strong>z absoluta.<br />

Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,<br />

Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,<br />

Vejo os cães que também existem,<br />

E tudo isto me pesa como uma con<strong>de</strong>nação ao <strong>de</strong>gredo,<br />

E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)<br />

Vivi, estu<strong>de</strong>i, amei, e até cri,<br />

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.<br />

Olho a ca<strong>da</strong> um os andrajos e as chagas e a mentira,<br />

E penso: talvez nunca vivesses nem estu<strong>da</strong>sses nem amasses nem<br />

cresses<br />

(Porque é possível fazer a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo isso sem fazer na<strong>da</strong> disso);<br />

Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo<br />

E que é rabo para aquém do lagarto remexi<strong>da</strong>mente.<br />

Fiz <strong>de</strong> mim o que não soube,<br />

E o que podia fazer <strong>de</strong> mim não o fiz.<br />

O dominó que vesti era errado.<br />

Conheceram-me logo por quem não era e não <strong>de</strong>smenti, e perdi-me.<br />

Quando quis tirar a máscara,<br />

Estava pega<strong>da</strong> à cara.<br />

Quando a tirei e me vi ao espelho,<br />

Já tinha envelhecido.<br />

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.<br />

Deitei fora a máscara e dormi <strong>no</strong> vestiário<br />

Como um cão tolerado pela gerência<br />

Por ser i<strong>no</strong>fensivo<br />

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.<br />

Essência musical dos meus versos inúteis,<br />

Quem me <strong>de</strong>ra encontrar-te como coisa que eu fizesse,<br />

E não ficasse sempre <strong>de</strong>fronte <strong>da</strong> Tabacaria <strong>de</strong> <strong>de</strong>fronte,<br />

Calcando aos pés a consciência <strong>de</strong> estar existindo,<br />

Como um tapete em que um bêbado tropeça<br />

Ou um capacho que os ciga<strong>no</strong>s roubaram e não valia na<strong>da</strong>.<br />

Mas o do<strong>no</strong> <strong>da</strong> Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.<br />

Olhou-o com o <strong>de</strong>sconforto <strong>da</strong> cabeça mal volta<strong>da</strong><br />

E com o <strong>de</strong>sconforto <strong>da</strong> alma mal-enten<strong>de</strong>ndo.<br />

Ele morrerá e eu morrerei.<br />

Ele <strong>de</strong>ixará a tabuleta, e eu <strong>de</strong>ixarei versos.<br />

A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.<br />

Depois <strong>de</strong> certa altura morrerá a rua on<strong>de</strong> esteve a tabuleta,<br />

E a língua em que foram escritos os versos.<br />

Morrerá <strong>de</strong>pois o planeta girante em que tudo isto se <strong>de</strong>u.<br />

Em outros satélites <strong>de</strong> outros sistemas qualquer coisa como gente<br />

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo <strong>de</strong> coisas<br />

como tabuletas,<br />

Sempre uma coisa <strong>de</strong>fronte <strong>da</strong> outra,<br />

Sempre uma coisa tão inútil como a outra,<br />

Sempre o impossível tão estúpido como o real,<br />

Sempre o mistério do fundo tão certo como o so<strong>no</strong> <strong>de</strong> mistério <strong>da</strong><br />

superfície,<br />

Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.<br />

38


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),<br />

E a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> plausível cai <strong>de</strong> repente em cima <strong>de</strong> mim.<br />

Semiergo-me enérgico, convencido, huma<strong>no</strong>,<br />

E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.<br />

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los<br />

E saboreio <strong>no</strong> cigarro a libertação <strong>de</strong> todos os pensamentos.<br />

Sigo o fumo como uma rota própria,<br />

E gozo, num momento sensitivo e competente,<br />

A libertação <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as especulações<br />

E a consciência <strong>de</strong> que a metafísica é uma consequência <strong>de</strong> estar mal<br />

disposto.<br />

Depois <strong>de</strong>ito-me para trás na ca<strong>de</strong>ira<br />

E continuo fumando.<br />

Enquanto o Desti<strong>no</strong> mo conce<strong>de</strong>r, continuarei fumando.<br />

(Se eu casasse com a filha <strong>da</strong> minha lava<strong>de</strong>ira<br />

Talvez fosse feliz.)<br />

Visto isto, levanto-me <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ira. Vou à janela.<br />

O homem saiu <strong>da</strong> Tabacaria (metendo troco na algibeira <strong>da</strong>s calças?).<br />

Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.<br />

(O do<strong>no</strong> <strong>da</strong> Tabacaria chegou à porta.)<br />

Como por um instinto divi<strong>no</strong> o Esteves voltou-se e viu-me.<br />

Ace<strong>no</strong>u-me a<strong>de</strong>us gritei-lhe A<strong>de</strong>us ó Esteves!, e o universo<br />

Reconstruiu-se-me sem i<strong>de</strong>al nem esperança, e o do<strong>no</strong> <strong>da</strong> Tabacaria<br />

sorriu. (CAMPOS, 1997, p.121-125)<br />

A emotivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Campos é explicitamente expressa em seus versos. No poema<br />

acima, <strong>no</strong>ta-se que ele se <strong>de</strong>rrama nas linhas <strong>da</strong> sua poesia, fazendo com que ela<br />

assuma características <strong>de</strong> prosa. Esse eu - lírico possui <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si todos os<br />

sonhos do mundo. E a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sses sonhos é tamanha que faz o leitor se<br />

emocionar diante <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>pressão.<br />

Essa linguagem <strong>de</strong>pressiva, complexa <strong>de</strong>sse heterônimo, <strong>no</strong>s remete à idéia <strong>de</strong> que<br />

ele seja o que mais se aproxima <strong>de</strong> Fernando Pessoa ortônimo, pois, sua linguagem<br />

é também carrega<strong>da</strong> <strong>de</strong>sse sentimentalismo egoísta e <strong>de</strong>pressivo.<br />

Esse, talvez, seja o poema mais conhecido <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos. Oscilando entre o<br />

mundo <strong>interior</strong> e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> universal, o poeta trata, ao mesmo tempo, <strong>da</strong> angústia<br />

com o cotidia<strong>no</strong> e dos sonhos <strong>de</strong> libertação. Isso po<strong>de</strong> ser observado a partir dos<br />

primeiros versos, cujo sentido vai se constituir na base <strong>de</strong> todo seu poema.<br />

O poeta é absolutamente <strong>de</strong>pressivo em relação a si próprio (“Não sou na<strong>da</strong>. /<br />

Nunca serei na<strong>da</strong>. / Não posso querer ser na<strong>da</strong>”), mas, em compensação, ele sabe<br />

que tem “todos os sonhos do mundo”. Fechado em seu quarto, solitário, o eu -<br />

39


poético contempla uma rua, on<strong>de</strong> percebe um mistério, que é a morte e o <strong>de</strong>sti<strong>no</strong><br />

que ninguém vê.<br />

Essa percepção extraordinária <strong>da</strong>s coisas se dá <strong>de</strong>vido à sua gran<strong>de</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

imaginativa, que o faz ver o que os outros não po<strong>de</strong>m ver. Vivendo seus sonhos, ele<br />

procura esquecer to<strong>da</strong> aprendizagem (isto é, aquilo tudo que apren<strong>de</strong>u com os<br />

homens) e parte em busca <strong>da</strong> natureza, contudo essa solução não o satisfaz, na<br />

medi<strong>da</strong> em que se sente <strong>de</strong>sconfortável em qualquer lugar que esteja.<br />

Na seqüência, o poeta volta a opor a fantástica capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sonhar à limitação do<br />

mundo exterior. Mas a sensação <strong>de</strong> euforia com o sonho não dura muito; mais<br />

adiante do poema, ele toma consciência <strong>de</strong> que os sonhos na<strong>da</strong> valem, pois as<br />

“aspirações altas e <strong>no</strong>bres e lúci<strong>da</strong>s” talvez nem vejam “a luz do sol” nem atinjam<br />

“ouvidos <strong>de</strong> gente”. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, “O mundo é para quem nasce para o conquistar / E<br />

não para quem sonha que po<strong>de</strong> conquistá-lo”, ain<strong>da</strong> que tenha razão.<br />

O poeta se vê como um “escravo cardíaco <strong>de</strong> estrelas”, ou seja, uma pessoa que<br />

sonha com as estrelas e sofre <strong>de</strong> uma doença cardíaca, que o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter<br />

emoções fortes, ou como quem só conquista tudo em sonhos. O resultado é um<br />

distanciamento ca<strong>da</strong> vez maior <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, do mundo visível.<br />

A consciência disso causa-lhe um cansaço, um sofrimento <strong>de</strong> maneira que, passa a<br />

invejar uma menina que come chocolates i<strong>no</strong>centemente. Nesse momento, Álvaro<br />

<strong>de</strong> Campos toca num aspecto que é uma constante na obra <strong>de</strong> Fernando Pessoa: o<br />

<strong>de</strong> que o pensar é doloroso, por impedir o homem <strong>de</strong> ser feliz.<br />

Na estrofe oito, ao sentir o vazio <strong>de</strong>ntro se si, o poeta procura alguma coisa que o<br />

inspire. Por isso recorre a musas inspiradoras do passado, mas a sensação <strong>de</strong> vazio<br />

continua a mesma, já que seu “coração é um bal<strong>de</strong> <strong>de</strong>spejado”.<br />

Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, Álvaro <strong>de</strong> Campos expressa aqui a angústia do homem mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>, que<br />

não encontra mais ponto <strong>de</strong> apoio para as suas inquietações e, por isso mesmo, se<br />

entrega ao <strong>de</strong>sespero.<br />

Essa consciência <strong>da</strong> inutili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo leva Campos a sentir-se um exilado, um ser<br />

à parte em relação à humani<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ele imagina o mundo como se fosse um teatro,<br />

40


on<strong>de</strong> todos representam e o “eu” é o único que não sabe nem po<strong>de</strong> representar.<br />

Devido a isso, seu lugar <strong>no</strong> teatro é <strong>no</strong> vestiário e jamais <strong>no</strong> palco.<br />

Os versos finais do poema colocam frente a frente o eu - poético e o do<strong>no</strong> <strong>da</strong><br />

tabacaria que representa o homem comum. Ao vê-lo, o poeta experimenta uma<br />

sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto e passa a ter a sensação <strong>da</strong> absoluta inutili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo,<br />

até <strong>da</strong> própria poesia.<br />

O poema fecha com a absoluta solidão do poeta, que tem consciência <strong>de</strong> que na<strong>da</strong><br />

vale a pena, enquanto o do<strong>no</strong> <strong>da</strong> tabacaria, sem consciência alguma do que o cerca,<br />

apenas sorri.<br />

Álvaro <strong>de</strong> Campos é o poeta do integrar-se e do entregar-se. Sofreu gran<strong>de</strong><br />

influência <strong>de</strong> Walt Whitman, que nasceu <strong>no</strong>s Estados Unidos, foi poeta e jornalista.<br />

Whitman passou parte <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> em Brooklyn Ferry (Nova Iorque), vivendo todo<br />

período <strong>de</strong> transformação industrial <strong>de</strong> seu país, produziu uma obra poética bastante<br />

original escrita em versos <strong>de</strong> métrica livre, linguagem vibrante e musicali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

própria.<br />

Seus poemas apresentam longas enumerações <strong>de</strong> imagens, pregando a valorização<br />

dos sentidos e exaltando a vi<strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rna e a <strong>de</strong>mocracia. Campos confessa sua<br />

admiração por este poeta em Sau<strong>da</strong>ção a Walt Whitman:<br />

... Meu velho Walt, meu gran<strong>de</strong> Camara<strong>da</strong>, evohé!<br />

Pertenço à tua orgia báquica <strong>de</strong> sensações-em-liber<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

Sou dos teus, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sensação dos meus pés até à náusea em meus<br />

sonhos,<br />

Sou dos teus, olha pra mim, <strong>de</strong> aí <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Deus vês-me ao contrário:<br />

De <strong>de</strong>ntro para fora... Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma —<br />

Essa vês tu propriamente e através dos olhos <strong>de</strong>la o meu corpo —<br />

Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro <strong>de</strong> Campos, engenheiro,<br />

Poeta sensacionista,<br />

Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,<br />

Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!<br />

Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir <strong>de</strong>mais...<br />

Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,<br />

E cheira-me a suor, a óleos, a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> humana e mecânica.<br />

Nos teus ver sos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,<br />

Não sei se o meu lugar real é <strong>no</strong> mundo ou <strong>no</strong>s teus versos,<br />

Não sei se estou aqui, <strong>de</strong> pé sobre a terra natural,<br />

Ou <strong>de</strong> cabeça pra baixo, pendurado numa espécie <strong>de</strong> estabelecimento,<br />

No teto natural <strong>da</strong> tua inspiração <strong>de</strong> tropel,<br />

No centro do teto <strong>da</strong> tua intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> inacessível.<br />

41


Abram-me to<strong>da</strong>s as portas!<br />

Por força que hei <strong>de</strong> passar!<br />

Minha senha? Walt Whitman!<br />

Mas não dou senha nenhuma...<br />

Passo sem explicações... (...) (CAMPOS, 1997, p.111-112)<br />

Encontra-se em Campos uma linguagem poética que se difere <strong>da</strong> linguagem do<br />

heterônimo Ricardo Reis, pois, esse, é equilibrado e or<strong>de</strong>nado, enquanto aquele é<br />

<strong>de</strong>sequilibrado, <strong>da</strong> anarquia, <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, do frenesi. Reis preza a contenção, o<br />

refreamento; Campos, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, o rompimento <strong>de</strong> todos os limites. Já Alberto Caeiro,<br />

é o poeta do campo, do paganismo.<br />

2.6 DIÁLOGO ENTRE AS MÚLTIPLAS FACES DE FERNANDO PESSOA<br />

Pessoa nunca está sozinho, ele sempre tem alguém para dialogar, mesmo que<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le mesmo, suas vozes ecoam e dialogam entre si. Personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

distintas, <strong>de</strong> opiniões forma<strong>da</strong>s, essas vozes <strong>de</strong> Fernando Pessoa são diferentes<br />

nas respostas vislumbra<strong>da</strong>s, mais iguais <strong>no</strong> empenho <strong>de</strong> obter conhecimento.<br />

Alberto Caeiro diz:<br />

Ricardo Reis:<br />

Álvaro <strong>de</strong> Campos:<br />

Fernando Pessoa:<br />

Não me importo com as rimas. Raras vezes<br />

Há duas árvores iguais, uma ao lado <strong>da</strong> outra.<br />

Penso e escrevo como as flores têm cor<br />

Mas como me<strong>no</strong>s perfeição <strong>no</strong> meu modo <strong>de</strong> exprimir-me<br />

Porque me fala a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> divina<br />

De ser todo só o meu exterior. (...)(CAEIRO, 1993, p.33)<br />

Severo Narro. Quando sinto, penso,<br />

Palavras são idéias.<br />

Múrmuro, o rio passa, e o que não passa,<br />

Que é <strong>no</strong>sso, não do rio.<br />

Assim quisesse o verso: meu e alheio<br />

E por mim mesmo lido. (...) (REIS, 1997, p.71)<br />

(...) não me tragam estéticas!<br />

Não me falem em moral!<br />

Tirem-me <strong>da</strong>qui a metafísica!<br />

Não me apregoem sistemas completos, não me enfilerem conquistas<br />

Das ciências, <strong>da</strong>s artes, <strong>da</strong> civilização mo<strong>de</strong>rna!(...)<br />

Sou um técnico, mas tenho técnica só <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> técnica.<br />

Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. (...) (CAMPOS, 1993,<br />

p.74)<br />

O poeta é um fingidor.<br />

Finge tão completamente<br />

Que chega a fingir que é dor<br />

42


A dor que <strong>de</strong>veras sente.<br />

E os que lêem o que escreve,<br />

Na dor li<strong>da</strong> sentem bem,<br />

Não as duas que ele teve,<br />

Mas só a que eles não têm.<br />

E assim nas calhas <strong>de</strong> ro<strong>da</strong><br />

Gira, a entreter a razão,<br />

Esse comboio <strong>de</strong> cor<strong>da</strong><br />

Que se chama o coração. (PESSOA, 1993, p. 97)<br />

Nesses diálogos <strong>no</strong>tam-se as divergências que há na maneira como ca<strong>da</strong> um vê a<br />

arte <strong>de</strong> escrever, e também a posição do poeta <strong>no</strong> ato <strong>da</strong> escrita. Caeiro escreve<br />

com simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> e transparência, ele mostra como é que faz seus versos, sem rima,<br />

sem padrão fixo, com um fluir espontâneo e natural do vento que se levanta. O<br />

poeta diz que seu modo <strong>de</strong> exprimir não é tão perfeito quanto o <strong>da</strong>s flores, e isso lhe<br />

causa insatisfação.<br />

Reis diz que palavras são idéias, que ele pensa e sente. E seus versos são seus <strong>da</strong><br />

mesma forma são dos outros que os lêem.<br />

Já Álvaro <strong>de</strong> Campos é <strong>de</strong>siludido com a vi<strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rna e com o convívio social. Ele<br />

versa agressivamente e com virili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ele não quer estéticas e nem moral, diz ser<br />

técnico, mas tem a técnica só <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> técnica. Consi<strong>de</strong>ra-se doido, e com todo<br />

direito a sê-lo.<br />

O ortônimo questiona a respeito <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a criação artística, principalmente à criação<br />

literária, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o artista recriar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> trabalhando a partir <strong>de</strong> suas<br />

emoções. Para ele o artista se transforma num criador <strong>de</strong> mundos, <strong>de</strong> sonhos, <strong>de</strong><br />

ilusões, <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Pessoa afirma que o poeta é um fingidor. Assim ele remete a<br />

uma relação fun<strong>da</strong>mental: a do artista e sua obra, o poeta e o poema. Os diálogos<br />

acima exemplificam muito bem as faces <strong>de</strong> Fernando Pessoa e as diferenças nas<br />

<strong>linguagens</strong> <strong>poéticas</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las.<br />

43


3 CONCLUSÃO<br />

Do <strong>de</strong>sdobrar <strong>de</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s nascem os heterônimos <strong>de</strong> Fernando Pessoa.<br />

Diante <strong>de</strong>sse processo, Fernando Pessoa se divi<strong>de</strong> em múltiplas personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

escrevendo <strong>de</strong> forma diferente, <strong>de</strong> acordo com ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las. Os heterônimos<br />

são, por isso, meios <strong>de</strong> conhecer a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> do mundo, impossível para uma<br />

única pessoa, assim, o poeta multiplica-se em heterônimos.<br />

Compreen<strong>de</strong>-se que esse fenôme<strong>no</strong> <strong>da</strong> heteronímia criado por Pessoa é fascinante,<br />

e além <strong>de</strong>le há outros aspectos relevantes na obra, dos quais po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar: os<br />

heterônimos representam diferentes visões <strong>de</strong> mundo e diferentes personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>poéticas</strong>; tanto na poesia ortônima como na heterônima, constata-se a relativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>s coisas; ao mesmo tempo, há uma busca <strong>da</strong>quilo que é absoluto, universal; o<br />

valor estético <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a obra é indiscutível.<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer também que tanto Fernando Pessoa ortônimo, como Alberto Caeiro,<br />

Ricardo Reis e Álvaro <strong>de</strong> Campos po<strong>de</strong>riam ser consi<strong>de</strong>rados peças <strong>de</strong> Portugal,<br />

pois, as <strong>de</strong>scrições físicas lembram os vários tipos huma<strong>no</strong>s portugueses, enquanto<br />

a formação cultural e a postura i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um remetem aos vários tipos<br />

sociais.<br />

Conclui-se que a obra literária <strong>de</strong> Fernando Pessoa é uma <strong>da</strong>s mais intrigantes <strong>da</strong><br />

literatura portuguesa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940, quando o poeta foi<br />

<strong>de</strong>scoberto pela crítica. E a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> heteronímica <strong>de</strong> Pessoa vem do fato <strong>de</strong>,<br />

serem eles o ego do poeta. Esse processo é uma genial mistura <strong>de</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

e os heterônimos acabam sendo as máscaras, <strong>de</strong> que se valem o poeta para<br />

escon<strong>de</strong>r-se atrás <strong>de</strong>las, a fim <strong>de</strong> melhor revelar-se.<br />

44


4 REFERÊNCIAS<br />

1 CLARET, Martim. Fernando Pessoa – Pensamento vivo. São Paulo: Martin<br />

Claret, 2005.<br />

2 MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 32. ed. São Paulo: Cultrix, 2003.<br />

3 MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia <strong>de</strong> Fernando Pessoa temas<br />

portugueses. 2. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imprensa Nacional-Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>, 1985.<br />

4 NICOLA, José <strong>de</strong>. INFANTE, Ulisses. Como ler Fernando Pessoa. 4.ed. São<br />

Paulo: Scipione, 1993<br />

5 NICOLA, José <strong>de</strong>. Literatura Portuguesa: <strong>da</strong>s origens aos <strong>no</strong>ssos dias. 7.<br />

ed. São Paulo: Scipione, 1999.<br />

6 PASSONI, Célia. As múltiplas faces <strong>de</strong> Fernando Pessoa. 2. ed. São Paulo:<br />

Núcleo, 1995.<br />

7 PESSOA, Fernando. Coleção melhores poemas. 11. ed. São Paulo: Global,<br />

2003.<br />

8 ______. O guar<strong>da</strong>dor <strong>de</strong> rebanhos. São Paulo: Princípio, 1997.<br />

9 ______. Poemas Escolhidos. São Paulo: O Globo, 1997.<br />

10 ______. Poesias <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos. São Paulo: FTD, 1992.<br />

11 SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Imprensa Nacional-Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>, 1988.<br />

12 TERRA, Ernani.; NICOLA, José <strong>de</strong>. Português: <strong>de</strong> olho <strong>no</strong> mundo do<br />

trabalho. São Paulo: Scipone, 2006.<br />

45

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!