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Guardados da Memória - Academia Brasileira de Letras

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Clóvis Beviláqua<br />

<strong>de</strong> do romance, particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> em que primam os franceses? Que estará nestes<br />

quando, per<strong>de</strong>ndo o tom agressivo <strong>de</strong> reação, se embeberem um pouco do<br />

i<strong>de</strong>alismo necessário para velar, numa obra <strong>de</strong> arte, certas asquerosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> humana? Talvez nesta segun<strong>da</strong> hipótese se escon<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. É meu<br />

pensar. Um outro característico <strong>da</strong> escola naturalista é a <strong>de</strong>composição do<br />

assunto em minudências <strong>de</strong>scritivas que insiste, sobre certos pontos, ao passo<br />

que, <strong>de</strong> outras vezes, <strong>de</strong>ixa suspeitar um mundo por trás <strong>de</strong> uma frase ou<br />

<strong>de</strong> uma palavra. Esse processo Dostoievski o adotou, e, a ca<strong>da</strong> passo, o vemos<br />

em rigorosa aplicação.<br />

Penetremos um tanto mais profun<strong>da</strong>mente no âmago <strong>da</strong> produção artística<br />

em questão. To<strong>da</strong> ela repousa numa antítese <strong>da</strong> emocionali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

do sentimento e <strong>da</strong> inteligência. Um tal sincretismo físico que po<strong>de</strong>, em<br />

sua generali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ser um fato comum resultante do retar<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> evolução<br />

emocional, como há quem o pense, é, no caso presente, o fruto <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sequilíbrio<br />

ocasionado por <strong>de</strong>sarranjo fisiológico ou por crise social que abala e <strong>de</strong>sloca<br />

os indivíduos. É este o caso dos nevropáticos <strong>de</strong> Le crime et le châtiment.<br />

Marmeladoff é um vicioso incorrigível que tem consciência <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>gra<strong>da</strong>ção,<br />

que (parece estranho dizê-lo!) abomina o vício, mas continua, tout <strong>de</strong> même,<br />

a ser um insigne beberrão. Ébrio a não po<strong>de</strong>r mais suster-se em pé, ergue-se ele<br />

a custo numa taberna <strong>de</strong> baixa categoria, e, entre os criados que riem e os freqüentadores<br />

que cochilam, faz sua autopsicologia.<br />

O trecho que vai ser transcrito é <strong>de</strong>cisivo, me parece. Na impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

trasla<strong>da</strong>r para aqui to<strong>da</strong> a patética arenga <strong>de</strong>ste interessante nevropata, escolhi<br />

esta passagem.<br />

Marmeladoff, interrompido por um aparte pouco lisonjeiro do taberneiro,<br />

muito exaltado, estático, respon<strong>de</strong>-lhe nestes termos: “Por que ter compaixão<br />

<strong>de</strong> mim, dizes tu? É ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não há motivo. Devo ser crucificado, martirizado<br />

e não lastimado! Crucifica-me, juiz, mas, crucificando-me, tem compaixão <strong>de</strong><br />

mim. E então, eu irei ao encontro <strong>de</strong> meu suplício, porque eu não tenho se<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> alegria, porém, <strong>de</strong> dor, <strong>de</strong> lágrimas. Pensas tu, mercador, que tua meia garrafa<br />

me proporcionou algum prazer? Eu procurei a tristeza, a tristeza e as lágri-<br />

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