Guardados da Memória - Academia Brasileira de Letras
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Clóvis Beviláqua<br />
Raskolnikov é um Lancenaire bem educado, que rouba e mata, reconhecendo<br />
o horror e a repulsão <strong>de</strong> seu ato, mas sem po<strong>de</strong>r resistir à força ignota que o<br />
arrasta ao crime.<br />
Swidrigailov, Catarina Ivanova, Isabel, Pulcheria, Sonia, são outros tantos<br />
caracteres <strong>de</strong>sequilibrados; mas, em Sonia, é o sentimento que leva a dianteira à<br />
inteligência.<br />
Nela a inteligência afoga-se nas irradiações emocionais do sentimento<br />
como o planeta Mercúrio nas irradiações ofuscadoras do Sol.<br />
Não vá, porém, o leitor iludir-se com o que acaba <strong>de</strong> ler. Este mundo<br />
<strong>de</strong> nevróticos não é a visão <strong>de</strong> um alucinado, que teve a sorte <strong>de</strong> nascer<br />
num hospital. É um mundo real que não nos causa estranheza e que nos<br />
acor<strong>da</strong> simpatias, porque estes doentes são todos umas almas sofredoras,<br />
que nós vemos <strong>de</strong>smaiar e ouvimos gemer no acume <strong>de</strong> uma dor que sufoca<br />
e esmaga.<br />
É mesmo uma idéia predileta do autor, é uma <strong>de</strong> suas principais obsessões<br />
literárias essa <strong>da</strong> supremacia do pobre <strong>de</strong> espírito, do sofredor. É a velha tese<br />
do cristianismo a que os i<strong>de</strong>alistas russos dão, às vezes, por adubo, uns tons <strong>de</strong><br />
pessimismo alemão bebido nos livros <strong>de</strong> Schopenhauer e Hartmann.<br />
O idiota, o imbecil é <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as criaturas humanas a melhor, porque não<br />
faz o mal, porque é improdutiva, porque é neutra!<br />
E se a essas inteligências curtas se alia um bom coração, como em Sonia, então<br />
realiza-se o i<strong>de</strong>al humano.<br />
Não é esta, porém, a idéia capital <strong>de</strong> Le crime et le châtiment. Vem ela aqui somente<br />
para acentuar as cores do quadro e para suscitar, no cérebro dos leitores,<br />
uma tempesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamentos paradoxais.<br />
A idéia fun<strong>da</strong>mental, <strong>de</strong> que esta se apresenta, aliás, como uma feição ou<br />
uma conseqüência, é a antítese psíquica, a que aludi, entre a emocionali<strong>da</strong><strong>de</strong> e a<br />
intelectuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
É extravagante que Marmelladov, Raskolnikov, Swidrigailov, tenham consciência<br />
plena do lo<strong>da</strong>çal em que se chafur<strong>da</strong>m, sintam repulsão pelos atos <strong>de</strong><br />
indigni<strong>da</strong><strong>de</strong> que praticam e não encontrem estímulos bons que os levem a ou-<br />
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