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«Na literatura, como no amor,<br />
fi camos espantados com as<br />
escolhas dos outros.»<br />
– André Maurois<br />
1.Havia um muro.<br />
(A caneta <strong>de</strong>tém-se a poucos<br />
milímetros da superfície. Cada<br />
palavra <strong>de</strong>termina um rumo –<br />
encerra possibilida<strong>de</strong>s – compromete,<br />
não o texto que passou,<br />
mas o que vem a seguir. A página<br />
em branco está no início <strong>de</strong> tudo,<br />
mãe <strong>de</strong> todas as obras, clássicas<br />
e ignoradas. Mãe do universo. A<br />
caneta vacila. No útero, o texto<br />
ainda é perfeito. Dar-lhe forma<br />
vai retirar-lhe força e substância, e<br />
banalizá-lo com tiques <strong>de</strong> idioma<br />
e circunstâncias temporais da fala.<br />
A escrita está para a i<strong>de</strong>ia como<br />
o adulto está para a criança: uma<br />
versão enrugada, amolgada, inútil<br />
da promessa.<br />
Mas não há outro veículo.<br />
A caneta pousa.)<br />
2.Começo: o leitor <strong>de</strong>para-se<br />
com a página escrita, com a performance<br />
ensaiada. Não pon<strong>de</strong>ra<br />
as possibilida<strong>de</strong>s – excepto se for<br />
um crítico atento – que se <strong>de</strong>spegam<br />
vertiginosamente da narrativa<br />
à medida que avança.<br />
Risca. Começo: viagem – expe-<br />
«É uma vida boa»<br />
– e outros contos<br />
magnífi cos da época<br />
dourada da FC<br />
Anuncia-se o culpado<br />
na frase <strong>de</strong> abertura –<br />
e nem por isso <strong>de</strong>ixa<br />
<strong>de</strong> ser fascinante.<br />
riência – ilusão: a leitura ocorre<br />
num espaço muito próprio, entre<br />
o sonhar acordado e o estar atento,<br />
formando memórias que não<br />
são íntimas sobre pessoas e lugares<br />
e eventos que não existiram.<br />
Risca. Começo: as leituras divertidas<br />
trazem uma bagagem recheada<br />
<strong>de</strong> emoções, <strong>de</strong>slumbram com<br />
truques <strong>de</strong> magia. As leituras importantes<br />
transformam o leitor:<br />
ao levantar os olhos, é agora capaz<br />
<strong>de</strong> ver o que antes lhe estava<br />
oculto.<br />
Risca. Começo: a experiência da<br />
leitura é única, íntima, solitária.<br />
Não há escritor mediano que não<br />
tenha sido leitor exímio, como<br />
não há carpinteiro que não entranhe<br />
primeiro a natureza das<br />
árvores.<br />
Anotação na margem: «O universo<br />
é pequeno, só os planetas são<br />
gran<strong>de</strong>s», disse Clarke. Mas também<br />
se aplica aos livros.<br />
3.On<strong>de</strong> estão elas, essas personagens<br />
com quem passei tantos<br />
dias? On<strong>de</strong> está a Zé e o Tim, o<br />
Gordo e o grupo dos Sete? Assentaram<br />
na vida, engordaram,<br />
tiveram fi lhos, tomarão medicamentos?<br />
Sentem-se mais perplexas<br />
pela <strong>de</strong>claração do IRS do<br />
que pelas luzes em faróis abandonados<br />
e vultos na noite? E o<br />
Langelot, o que é feito <strong>de</strong>le? Detrás<br />
da secretária, director <strong>de</strong> uma<br />
empresa <strong>de</strong> segurança privada, a<br />
analisar gráfi cos <strong>de</strong> rendibilida<strong>de</strong><br />
– os olhos cavados <strong>de</strong> não<br />
dormir, aquele tremor constante<br />
no pulso que o retirou do activo,<br />
incapaz <strong>de</strong> acertar no alvo<br />
à distância <strong>de</strong> antigamente? A<br />
vonta<strong>de</strong> guia a bala. Que vonta<strong>de</strong><br />
te guia agora?<br />
Conta-me um segredo que<br />
só os escritores conheçam,<br />
avô – e o avô pensou e disse:<br />
as personagens po<strong>de</strong>m calar-se<br />
mas nunca se vão embora.<br />
E assim comecei a acompanhar<br />
os Cinco em aventuras<br />
<strong>de</strong>calcadas mas com ligeiras<br />
transformações. Combati os<br />
Fios ao lado <strong>de</strong> F’lar e apoiei<br />
Jaxon na difícil conquista do<br />
crescimento – nada encanta<br />
mais um adolescente do que<br />
aquele momento em que outro<br />
adolescente encontra a sua<br />
razão <strong>de</strong> ser no mundo. Mergulhei<br />
incauto nas águas turbulentas<br />
das colecções existentes,<br />
em romances para adultos a<br />
transbordar <strong>de</strong> conceitos novos<br />
– engenharia genética, mecânica<br />
quântica, velocida<strong>de</strong>s relativísticas,<br />
controlo populacional,<br />
drogas, sexo, relacionamentos,<br />
organização social, política -,<br />
fruto <strong>de</strong> décadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate literário<br />
e da revolução dos anos<br />
60, apresentando um manancial<br />
vasto <strong>de</strong> visões e conhecimento,<br />
além dos subúrbios enfadonhos,<br />
do existir mundano<br />
num país da periferia. Havia<br />
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