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O Dia das - Saída de Emergência

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1LCREditorialCaros leitores, apresento-vos, aqui ao meu lado, onovo co-editor da Bang!: o Nuno Fonseca. Nuno,apresento-te, aqui à nossa frente, os verda<strong>de</strong>irosleitores portugueses <strong>de</strong> fantástico. E por quê umco-editor, perguntam vocês? Por duas razões: a Saída <strong>de</strong>Emergência, com a prata da casa, já não conseguia manter arevista em andamento. E, mais importante, porque só valiaa pena manter a revista se fosse para a melhorar. Nas vossasmãos está o número 7. Acreditamos que é a melhor <strong>de</strong>sempre. Leiam e digam <strong>de</strong> vossa justiça.Para marcar esta evolução na revista Bang! voltámos aimprimir alguns exemplares que vão ven<strong>de</strong>r-se na nossapágina online. Vamos no entanto continuar a disponibilizaruma versão gratuita em PDF. Mesmo que vendamos todos osexemplares impressos, a editora não vai ganhar um cêntimo.Pelo contrário. Mas esperamos conquistar novos leitores parao género fantástico, incentivar outros a escrever e, em últimainstância, dar a conhecer a melhor colecção <strong>de</strong> literaturafantástica em Portugal: a Colecção Bang!2010 entrou-nos pela porta a<strong>de</strong>ntro. O que po<strong>de</strong>mosesperar para além da crise? Da parte da Colecção Bang!, muito!Dune <strong>de</strong> Frank Herbert, consi<strong>de</strong>rado o melhor romance <strong>de</strong>fc <strong>de</strong> sempre, vai ter direito a uma edição <strong>de</strong> excelência comnova tradução. Flashforward <strong>de</strong> Robert J. Sawyer, um clássicomo<strong>de</strong>rno da fc, chega já em Março, Tim Powers mais nofinal do ano com O Portal <strong>de</strong> Anúbis. A fantasia vai continuara dar cartas: Raymond E. Feist, Jacqueline Carey e Laurell K.Hamilton são as novida<strong>de</strong>s, mas Mervyn Peake, Robin Hobb,H. P. Lovecraft e George R. R. Martin vão ter o seu lugar.Temos ainda o novo romance <strong>de</strong> David Soares, O Evangelhodo Enforcado, já em Fevereiro, e pelo menos duas antologiasgaranti<strong>das</strong> para este ano: Os Anos <strong>de</strong> Ouro da Pulp FictionPortuguesa (edição fac-similada organizada pelo historiadorLuís Filipe Silva com a melhor pulp nacional dos últimos cemanos) e o Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead para DoençasExcêntricas e Desacredita<strong>das</strong> com muita ficção original portuguesa.Mas agora é hora da Bang! 7. Votos <strong>de</strong> uma boa leitura e,se a consi<strong>de</strong>rarem satisfatória, aju<strong>de</strong>m-nos a divulgá-la eencontrem-se connosco no número 8, já daqui a 3 meses.LUÍS CORTE REAL é editor da Saída <strong>de</strong> Emergência.Fã <strong>de</strong> fantástico, banda <strong>de</strong>senhada e bons livros em geral.Este é o primeiro número do ano e tambémaquele em que a Bang! começa a ensaiar novosautores e conteúdos. Uma publicação tem <strong>de</strong> serenovar constantemente, pisar novos territórios,abraçar novas i<strong>de</strong>ias. E sendo a nossa área a do fantástico,um género em franca evolução mas ainda com muitocaminho a percorrer no nosso país, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong>sentir uma certa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> missão, algoque nos leve a ser melhores. Foi por isto tudo que aceitei ofeliz convite do Luis Corte Real para co-editar a Bang!To<strong>das</strong> as publicações possuem uma história particulare um carisma próprio, algo que nos esforçámos porrespeitar e manter, mas sobre o qual achámos indispensávelinovar e para melhor. Os leitores que pegarem nestenúmero da Bang! continuarão a reconhecê-la, mas<strong>de</strong>tectarão as mudanças - uma tendência que se iráacentuar ao longo do ano e que esperamos seja do vossoagrado. Porque uma revista nada é sem os seus leitores e épara vocês que nos esforçamos. O género Fantástico temuma sólida presença na literatura, mas as suas mo<strong>de</strong>rnasexpressões <strong>de</strong>notam alguma dificulda<strong>de</strong> em penetrar nonosso mercado. Não só questões <strong>de</strong> respeitabilida<strong>de</strong>,como <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, são usualmente esgrimi<strong>das</strong>. Ora aBang! sempre se posicionou não só a favor do génerocomo também pugnando pela sua vitalida<strong>de</strong>, encorajandonovas vozes e novas abordagens. Neste número damo-vosuma boa dose <strong>de</strong> ficção e <strong>de</strong> não-ficção com eleva<strong>das</strong>doses <strong>de</strong> interesse e através <strong>de</strong> opiniões sobre obrasfundamentais do fantástico em áreas tão diferentescomo as do cinema, da banda <strong>de</strong>senhada ou da literatura.Po<strong>de</strong>rão ler, a par <strong>de</strong> tradicionais contribuintes como JoãoBarreiros, António <strong>de</strong> Macedo, Vasco Curado e DavidSoares, novas vozes como a <strong>de</strong> Valéria Rizzi e RicardoVenâncio, conhecer as i<strong>de</strong>ias iconoclastas do brasileiroGerson Lodi-Ribeiro que também se estreia nas nossaspáginas mas que já é conhecido do gran<strong>de</strong> público. E nãoesquecer a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ler uma extraordinária poesia<strong>de</strong> Tennyson, que se acompanha <strong>de</strong> um estupendo ensaiosobre este poeta da autoria <strong>de</strong> Octávio Santos.Como vêem, as novida<strong>de</strong>s são bastantes e estamosentusiasmados com elas. Trabalhámos afincadamente nestenúmero para vocês, os amantes <strong>de</strong> um género que adoraa emoção, a aventura, o maravilhoso. Esperemos quegostem.NFNUNO FONSECA nasceu no ano <strong>de</strong> Woodstock e daída do Homem à Lua, eventos que o condicionarama uma vida <strong>de</strong> amor pela literatura do fantástico eem especial da Ficção Científi ca. Fugindo a umavida comercial e administrativa, mergulhou <strong>de</strong>cabeça no género e não se espera que volte a sair.Foi editor da e-zine Nova, escreve regularmentepara o site <strong>de</strong> literatura generalista Orgia Literária epara o internacional World SF News blog.


Bruxasna guerra compor Richard MathesonSete meninas bonitas, senta<strong>das</strong> em filinha. No exterior,noite e chuva – clima belicoso. No interior, um calor<strong>de</strong>licioso. Sete meninas bonitas a conversarem, comportadinhas.E na placa da pare<strong>de</strong> podia ler-se: Centro <strong>de</strong>Apoio Parental.O céu tossiu um trovão e sacudiu caspa relampejantedos seus ombros imensuráveis. A chuva amainou a terra,refrescando-a e acariciando as árvores. O edifício cúbico,rasteiro, com uma janela <strong>de</strong> acrílico numa <strong>das</strong> pare<strong>de</strong>s.E lá <strong>de</strong>ntro, a conversa sussurrada <strong>de</strong> sete meninasbonitas.‘E então eu disse-lhe – “Nem penses nisso, Senhor Sabichão”.E ele disse: “Ah, é?” E eu respondi-lhe: “Ah, poisé!”’‘Ai, meu Deus, que isto nunca mais acaba… Vi umchapéu liiindooo na última vez que foi às compras. Ai,meu Deus, o que eu não daria para po<strong>de</strong>r usááá-looo!’‘Tu? E achas que eu também não queria? Mas é impossívelconseguir ter um cabelo <strong>de</strong> jeito com este tempo.Porque é que eles não se livram da chuva?...’‘Homens! Metem-me tanto nojo.’Sete a<strong>de</strong>manes, sete atitu<strong>de</strong>s, sete risinhos retinindo àluz dos relâmpagos. Sorrisos <strong>de</strong> meninas com os <strong>de</strong>ntes àmostra. Dedos pequeninos, inquietos, <strong>de</strong>senhando figurasinvisíveis no ar.Centro <strong>de</strong> Apoio Parental. Raparigas. Sete e to<strong>das</strong> bonitas.Nenhuma <strong>de</strong>las com mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>zasseis anos. Caracóis.Trancinhas. Ban<strong>de</strong>letes. Beicinhos feitos com bocas pequeninas– sorri<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong>scontentes; emoções, muitas emoções.Olhos jovens e brilhantes – cintilando, piscando; cumplicida<strong>de</strong>se <strong>de</strong>sconfianças.CONTO ORIGINAL: WITCH W ARSete corpos sadios, endiabrados, nas ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira.Perninhas adolescentes e <strong>de</strong>lica<strong>das</strong>. Meninas – meninasbonitas – sete.Um exército <strong>de</strong> homens horrorosos, indistintos, a rastejarna lama, a avançar com esforço pela estrada enlameadae às escuras.A chuva em catadupa. Bal<strong>de</strong>s <strong>de</strong>la, atirados à bruta paracima dos homens exaustos. As botas a pisarem a lama e afazerem barulhos – splossh! Barulhentas e to<strong>das</strong> emporcalha<strong>das</strong><strong>de</strong> lama castanha e amarela.Homens obstinados – centenas <strong>de</strong>les – ensopados,arrasados, <strong>de</strong>ploráveis. Rapazes curvados que nem velhos.Bocas à banda, chupando ar frio; línguas sem vida, olhosencovados que não viam nada e nada revelavam.Pausa.Homens a afundarem-se na lama <strong>de</strong> barriga para o arcom o peso <strong>das</strong> mochilas. Cabeças caí<strong>das</strong>, bocas abertas,chuva a ricochetear em <strong>de</strong>ntes sujos. Mãos imóveis – membrosmirrados feitos <strong>de</strong> carne e ossos gastos. Pernas semforça – palitos <strong>de</strong> khaki tão quebradiços quanto ma<strong>de</strong>irabichada. Centenas <strong>de</strong> braços e pernas inúteis, atarracados acorpos <strong>de</strong>snecessários.Atrás, à frente, nos lados, o rugido dos camiões e dostanques e dos jipes. Pneus gordos espalhando lama. Lagartaspesa<strong>das</strong> espalmando-a, abrindo escaras no solo. Chuvarufando o ritmo no metal e no vinil.Flashes sem as máquinas fotográficas: explosões brevíssimas<strong>de</strong> luz. O rosto da guerra iluminado por um segundo– rugas <strong>de</strong> canos ferrugentos <strong>de</strong> armas, veículoscercados e soldados atónitos.2 3Trevas. A noite encobriu as luzes tempestivas. Chuvaempurrada pelo vento a tornar escorregadias as estra<strong>das</strong> eos campos, alagando trincheiras e veículos <strong>de</strong> caixa aberta.A terra sulcada sangrou lama e chuva. Raios e trovões.Uma apita<strong>de</strong>la. Homens que estavam mortos ressuscitaram.Botas na lama, outra vez – splossh, splossh! Mais fundo,mais perto. Mais perto <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> que interrompia ocaminho <strong>de</strong> outra cida<strong>de</strong> que barrava o caminho para outracida<strong>de</strong> que…Um oficial sentou-se na sala <strong>de</strong> comunicações do Centro<strong>de</strong> Apoio Parental. Olhou para o operador, curvadosobre o painel <strong>de</strong> controlo com auscultadores nacabeça. Anotava um recado.O oficial olhou para o operador. Eles estão aí a chegar,pensou. Todos molhados, a tremer <strong>de</strong> frio e <strong>de</strong> medo. Marcham paraaqui. Ele rangeu os <strong>de</strong>ntes e fechou os olhos.Abriu-os, <strong>de</strong> repente. Visões encheram-lhe as pupilasenegreci<strong>das</strong> – imagens <strong>de</strong> fumo espesso, homens incinerados,horrores inimagináveis que dispensavam comentários.‘Meu sargento’, disse o operador, ‘uma mensagem do postoavançado <strong>de</strong> observação. O exército inimigo foi avistado.’O oficial levantou-se, dirigiu-se à mesa do operador eagarrou o papel. Leu-o e ficou lívido com a boca transformadanum parêntesis.‘É verda<strong>de</strong>’, disse.Virou-se para trás e caminhou para a porta. Abriu-a eentrou na sala. As sete meninas calaram-se. Fez-se silêncioabsoluto.O oficial ficou voltado <strong>de</strong> costas para a janela <strong>de</strong> acrílico.‘Inimigos’, disse, ‘a três quilómetros daqui. Mesmo àvossa frente.’Virou-se e apontou para a janela.‘Nesta direcção a três quilómetros <strong>de</strong> distância. Algumapergunta?’Uma <strong>das</strong> meninas riu.‘Há carros?’, perguntou outra.‘Há’, disse o oficial. ‘Cinco camiões,cinco jipes e dois tanques <strong>de</strong> assalto.’‘Oh, isso é canja’, disse a menina,penteando o cabelo com os <strong>de</strong>dos.‘É tudo’, disse o oficial. Caminhoupara a porta. ‘Façam-se a eles!’, acrescentou.Em voz baixa, sussurrou: ‘Suasbestinhas!’Saiu.‘Ai, meu Deus’, disse uma <strong>das</strong> meninas, ‘lá vamos nóóósoutra vêêêz.’‘Que chatice’, disse outra. Abriu a boca perfumada, tiroua pastilha-elástica e colou-a <strong>de</strong>baixo da ca<strong>de</strong>ira.‘Até que enfim que parou <strong>de</strong> chover’, comentou a ruiva,apertando os atacadores dos sapatos.As sete raparigas olharam umas para as outras. Estamosprontas?, perguntaram sem palavras. Eu acho que estou. Repimparam-senas ca<strong>de</strong>iras, rindo, arranjando os cabelos e suspirando.Pren<strong>de</strong>ram os pés nas pernas <strong>das</strong> ca<strong>de</strong>iras. Todosos chicletes tinham sido postos <strong>de</strong> parte. Lábios plissadosem beicinhos pudicos. As meninas bonitas estavam prontaspara brincar.Calaram-se. Uma <strong>de</strong>las respirou fundo. E outra. To<strong>das</strong><strong>de</strong>ram as mãozinhas brancas e apertaram-nas com força.Uma <strong>de</strong>las coçou <strong>de</strong>pressa a cabeça e voltou a dar a mão.Outra matou um espirro, soltando um guinchinho.‘Agora’, disse a menina da ponta do lado direito.Sete pares <strong>de</strong> lindos olhinhos fecharam-se. Sete mentesinfantis e inocentes começaram a imaginar, a visualizar, atransportar-se.Lábios <strong>de</strong>scaíram, sem vigor. Rostos per<strong>de</strong>ram a cor.Corpos estremeceram com violência. Dedos trementes,concentrados. Sete meninas bonitas foram à guerra.Os homens aproximaram-se do edifício, vindos dotopo <strong>de</strong> uma colina, quando foram atacados <strong>de</strong> surpresa.O pelotão da infantaria que ia à frente irrompeuem chamas, misteriosamente.Não houve tempo para gritar. Deixaram cair as armasna lama e os olhos caíram, queimados. Tombaram, carbonizados,e fizeram a água da chuva assobiar.Os homens gritaram. As fileiras <strong>de</strong>sorganizaram-se.Agarraram as armas e começaram a disparar à toa para aescuridão. Mais soldados se incendiaram e morreram.‘Separem-se!’, gritou um oficial antes da mão <strong>de</strong>le puxarfogo e a cara ser lambida por uma labareda amarela.Os homens olharam para todo o lado. Estupefactos echeios <strong>de</strong> medo procuraram pelo inimigo. Abriram fogopara os campos e para a mata. Atingiram-se uns aos outros.Desertaram, atrapalhados, pelos caminhos enlameados.Um camião foi envolvido pelo fogo. O motorista saltoupara o chão já transformado numa tocha com duas pernas.O camião seguiu <strong>de</strong>sgovernado e saiu da estrada; escorregoupelo campo abaixo e chocou com uma árvore. Explodiu e


foi consumido pelo incêndio radiante; sombras dançaramentre as chamas. Gritos rasgaram a noite.Todos os homens pegaram fogo e caíram com a carana lama. Fagulhas incan<strong>de</strong>scentes chicotearam a escuridãohúmida – gritaria – acendalhas ambulantes, crepitando, refulgindo,morrendo – um exército quente – camiões cremados– tanques a explodir.Uma pequena lourinha com o corpinho teso <strong>de</strong> tanta excitação.Lábios trémulos; um risinho entupindo-lhe a garganta. Narinas dilatando– estremecendo com o frisson. Imaginou, imaginou…Um soldado correu pelo <strong>de</strong>scampado, inclinado para afrente e a gritar; os olhos doentes <strong>de</strong> medo. Um pedregulhogigantesco <strong>de</strong>spenhou do céu e esmagou-o. O corpo<strong>de</strong>le foi calcado para <strong>de</strong>ntro da terra mole; os <strong>de</strong>dinhos <strong>de</strong>letremelicaram sob a pedra pesada. A rocha ergueu-se no are caiu, novamente: martelo improvisado. Esmagou um camiãoincendiado e <strong>de</strong>sapareceu a voar pelo céu.Uma pequena moreninha, febril <strong>de</strong> alegria. Pensamentos marotoscocegaram-lhe o cérebro virginal. A pele do rosto estava esticada peloêxtase. Os <strong>de</strong>ntes arreganhados. Um soluço <strong>de</strong> terror, ou <strong>de</strong> prazer,escapou-lhe. Imaginou, imaginou…Um soldado caiu <strong>de</strong> joelhos. A cabeça caiu-lhe para ascostas. Ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> camara<strong>das</strong> incendiados, ele olhou, incrédulo,para a onda que se agigantava à frente <strong>de</strong>le.A onda precipitou-se e varreu-lhe o corpo pelo terrenoenlameado, enchendo-lhe os pulmões <strong>de</strong> água salgada. Aonda cavalgante ribombou pelo <strong>de</strong>scampado e afogou centenas<strong>de</strong> soldados queimados; atirou-os ao ar em ruidososrepuxos <strong>de</strong> espuma.Subitamente, a água parou: <strong>de</strong>sintegrou-se em milhões<strong>de</strong> partículas e <strong>de</strong>sapareceu.A adorável ruivinha tinha as mãos fecha<strong>das</strong> em punhinhos cruéis<strong>de</strong>baixo do queixo e, entusiasmada, insufl ou o peito. Os lábios tremeram-lhe.Ela respirou fundo mais uma vez, fazendo subir e <strong>de</strong>scer agarganta branquinha. A ponta do nariz mexeu-se como o focinho <strong>de</strong>um coelho: estava radiante <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>. Imaginou, imaginou…Um soldado em fuga chocou com um leão à solta.Sem conseguir ver no escuro da noite apalpou-lhe ajuba, aterrorizado, e tentou atingi-lo com a coronha daarma. A cara foi-lhe arrancada apenas com uma patada.O rugido selvagem do leão mostrou-se soberano sobretodos os gritos.Um elefante <strong>de</strong> olhos vermelhos pisoteou à bruta tudoo que encontrou e pescou homens com a tromba para osatirar ao ar e esmagá-los com as patas.Lobos formaram-se da própria escuridão e atiraram-seaos pescoços dos soldados. Gorilas ululantes cabriolarampela lama e agarraram aqueles que tentavam fingir-se <strong>de</strong>mortos.Cintilante à luz dos cauterizados, um enorme rinocerontecarregou a toda a velocida<strong>de</strong> na direcção <strong>de</strong> um tanqueque estava a resistir ao fogo; o veículo <strong>de</strong> assalto virousee foi atirado para a escuridão da noite para nunca maisser visto.Presas – garras – <strong>de</strong>ntes afiados – gritos <strong>de</strong> angústia –barridos – rugidos. Choveram serpentes.Silêncio. Um silêncio espesso que se infiltrou em tudo.Não soprava vento, não caía chuva, nem tão-pouco seouviam trovões à distância. A batalha tinha acabado.A cinzenta névoa matinal <strong>de</strong>senrolou-se sobre os estorricados,os mutilados, os afogados, os esmagados, os envenenadose os esquartejados.Camiões imóveis – tanques silenciosos exalaram pequenasfumarolas <strong>de</strong> óleo queimado <strong>das</strong> carcaças <strong>de</strong>rrota<strong>das</strong>.O território estava coberto por uma gran<strong>de</strong> mortanda<strong>de</strong>.Mais uma batalha numa outra guerra.Vitória – estavam todos mortos.As meninas espreguiçaram-se, lângui<strong>das</strong>; esticaram osbraços e estalaram as omoplatas. Lábios rosados <strong>de</strong>sabrocharamem bocejos lindos. Olharam umas para asoutras e <strong>de</strong>sviaram os rostos, sorrindo <strong>de</strong> embaraço. Algumascoraram. Poucas pareceram sentir-se culpa<strong>das</strong>.Então, to<strong>das</strong> se riram em voz alta. Abriram mais pacotes<strong>de</strong> gomas e pastilhas, tiram as caixinhas <strong>de</strong> maquilhagemdos bolsos e falaram entre elas, com intimida<strong>de</strong>, emsussurros <strong>de</strong> meninas da escola, em suspiros <strong>de</strong> meninas dafaculda<strong>de</strong>.Os risinhos quentes, mais leves que o ar, subiram até aotecto e aqueceram o quarto.‘Somos tão mazinhas!’, disse uma <strong>de</strong>las, pondo pó <strong>de</strong>arroz na ponta do nariz arrebitado.Depois <strong>de</strong>sceram e tomaram o pequeno-almoço. BANG!Richard Burton Matheson é um autor americano e argumentista.As suas obras são principalmente dos gêneros <strong>de</strong> fantasia, terrore fi cção cientifi ca. Nascido em Allendale, New Jersey, Mathesoncresceu em Brooklyn. Alistou-se e passou a Segunda GuerraMundial como soldado <strong>de</strong> infantaria. Em 1949 obteve o seubacherelado em jornalismo na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Missouri-Columbiae mudou-se para a Califórnia em 1951. Casou-se em 1952 e temquatro fi lhos, três dos quais são autores <strong>de</strong> fi cção científi ca eargumentistas.O seu primeiro conto, “Born of Man and Woman” (Nascido homeme mulher), apareceu na “Magazine of Fantasy and Science Fiction”em 1950.4 5Aminha primeira visita ao colégiodo padre Sousa tinha-me <strong>de</strong>ixadoimpressionado com a sua personalida<strong>de</strong>.Agora sei que me <strong>de</strong>ixeiiludir pelas aparências e, quanto a isso,o que eu fui encontrar na minha segundavisita não <strong>de</strong>ixou margem paradúvi<strong>das</strong>.O padre, que conheci numa conferência,convidara-me a dar aulas <strong>de</strong>Moral e Conduta Cívica no colégio.Ouvira histórias sobre ele, a formacorajosa e <strong>de</strong>stemida como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ra,no passado, as suas missões em paísesinstáveis. Homem <strong>de</strong> acção, nuncafoi uma pessoa que tentasse <strong>de</strong>moverobstáculos só com o po<strong>de</strong>r da palavraou com uma abnegação exemplar; àviolência que muitas vezes o ameaçara,respondia com uma violência <strong>de</strong> forçaigual, para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os seus interessese as pessoas que tinha à sua guarda.Ao vê-lo, eu podia imaginá-lonesses momentos <strong>de</strong> risco. O facto <strong>de</strong>falar pouco era mais um elemento quereforçava a imposição da sua vonta<strong>de</strong>,pois quando abria a boca era paradizer, seca e objectivamente,qualquer q coisa quenão podia ser contrariada, o que lhedava ainda mais autorida<strong>de</strong>.Regressando <strong>das</strong> suas missões,o padre fundara um colégio pararapazes órfãos e abandonados. Aíestes podiam encontrar tecto, comida,formações profissionais básicas,uma linha <strong>de</strong> orientação para a vida.Ace<strong>de</strong>ndo ao convite para conhecer ocolégio, antes <strong>de</strong> aceitar o lugar, fui aoseu encontro.O padre Sousa recebeu-me noseu gabinete. Inspirou-me segurançacom o seu olhar enérgico. Com a suaatitu<strong>de</strong> objectiva, imbuiu-me também<strong>de</strong> um espírito prático e objectivo, oque é raro em mim, mais propenso quesou à divagação e à incerteza.Falou um pouco do muitotrabalho que tinha ali entremãos, naquele momento,mas sem omínimo tom<strong>de</strong> queixa.Fiqueicom aimpressão <strong>de</strong>que estava apenas adar-me alguns minutospara me habituar à sua própriapessoa. Depois levou-me aconhecer as instalações.Os rapazes estavam nas oficinas enos pavilhões. Cruzámo-nos ocasionalmentecom alguns que levavam pastas emateriais. Notei que o padre não olhavapara eles, embora eles olhassem paraele, empertigando-se levemente paranão parecerem relaxados, ou como se<strong>de</strong>vessem mostrar que reparavam nasua passagem.No final da volta, estávamos nahora do almoço.— Vamos à cantina — disse ele.— Almoça comigo.Quando nos aproximávamosda cantinaouvi o bulício e ovozear naturaisque<strong>de</strong>ixavamadivinhar umasala cheia <strong>de</strong> rapazesbarulhentos. Assim que afigura do padre assomou à porta,o barulho <strong>de</strong> tantas vozes <strong>de</strong>sencontra<strong>das</strong>,que ecoavam ali como o bater<strong>de</strong> asas numa gaiola, <strong>de</strong>sapareceu numápice. Foi quase imediato: o padre a pôrum pé <strong>de</strong>ntro da cantina e o silêncio ainstalar-se, sem uma transição gradualdo ruído ao silêncio. Dirigimo-nos parauma mesa. A maioria <strong>das</strong> crianças ejovens não precisava <strong>de</strong> olhar para saberque ele estava ali.A meio da refeição, fiz uma observaçãoque andava a mastigar há longosminutos:


— Parece que a sua simples presençadisciplina os rapazes.— Tem <strong>de</strong> ser assim — respon<strong>de</strong>u.— Não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> outra forma.Senão, não tinha mão neles.Após uns segundos, acrescentou:— Já li<strong>de</strong>i com todo o tipo <strong>de</strong> pessoas,incluindo loucos, doentes, assassinos,<strong>de</strong>sesperados… Mas nada exigiumais vigor da minha parte, até agora,do que esta centena e meia <strong>de</strong> rapazesque estão aqui. A força que há nestesrapazes pertence à Natureza, não acondições especiais <strong>de</strong> vida, a revoluçõesou guerras. É qualquer coisa <strong>de</strong>vulcânico que ameaça rebentar todosos limites, todos os constrangimentos.— Não acha que estes rapazesestão <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> condições especiais<strong>de</strong> vida? São órfãos…— Bem mais importante do queisso - interrompeu-me ele —, fazendosubmergir isso como um rio quesubmerge as margens, é o facto <strong>de</strong> elesserem uma força violenta da Natureza.Olhe à sua volta. O que é que vê?Olhei e vi to<strong>das</strong> aquelas cabeçasrapa<strong>das</strong> vira<strong>das</strong> para o prato.— Ninguém diria que há aquiqualquer coisa <strong>de</strong> muito violento, poisnão? — disse o padre, com um sorrisomaquinal. — To<strong>das</strong> as pessoasacham que a violência infantil, quandoexiste, é resposta à violência do meio,é um protesto, um pedido <strong>de</strong> socorroda criança… Nada disso. A violêncialatente que há aqui é algo <strong>de</strong> mais elementar,visceral mesmo, é uma possibilida<strong>de</strong>orgânica. Isso é o que encontramosem cada criança. Agora multipliqueisso por cem ou cento e cinquentaindivíduos e ficará com uma noção dopo<strong>de</strong>r com que nos confrontamos aqui.Enquanto o ouvia, incrédulo, euimaginava aqueles rapazinhos, assaltadospor um furor explosivo, a saltarpara cima <strong>das</strong> mesas, a atirar pratos ecomida para o ar, soltando urros e gritosinarticulados, agredindo-se entre si,partindo tudo.Tentando perceber melhor o seupensamento, perguntei:— Eles já fizeram coisas graves,como um motim, uma revolta?— Não, nunca — respon<strong>de</strong>u secamente.— Já houve algum tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m?— Nada por aí além — disse opadre, rapidamente, concentrando-seno manejo dos talheres.Depois, ao notar que me <strong>de</strong>ixavaum pouco <strong>de</strong>sconcertado com estasrespostas, que aparentemente contrariavamas suas i<strong>de</strong>ias, juntou:— A violência fundamental <strong>de</strong>que falo não tem <strong>de</strong> se manifestar emmotins ou em <strong>de</strong>sacatos rebel<strong>de</strong>s. Éalgo mais básico, arcaico… apetece-medizer: mitológico. Conhece com certezaos mitos antigos. Pois digo-lhe queisso o po<strong>de</strong> ajudar a compreen<strong>de</strong>r estascrianças. O conhecimento da infânciada Humanida<strong>de</strong> ajuda a conhecer ainfância dos homens.O padre falava num tom tão incisivoe autoritário que não encontreiensejo para lhe colocar mais questões.Surgia-me com outros aspectos quenão a objectivida<strong>de</strong> prática que eujulgava caracterizá-lo. Agora ele parecia-medado a especulações e elocubraçõesestranhas, às quais, no entanto,conferia o mesmo tom <strong>de</strong>terminado.Após uns minutos <strong>de</strong> silêncio, emque as palavras do padre pesavam nosmeus pensamentos, ele disse:— Eles eram uma horda primitivaque eu transformei num grupo civilizado.Mas não nos iludamos. É ténueo verniz da civilização! Por trás <strong>de</strong> todaa influência educativa permanece omagma palpitante, vulcânico, selvagem,intratável, que reclama os seus direitosorgânicos e po<strong>de</strong>, não se sabe quando,emergir, violando to<strong>das</strong> as regras etodos os códigos.— Vejo, então — disse eu — queas minhas aulas <strong>de</strong> Moral e CondutaCívica vão ter <strong>de</strong> me confrontar comesse adversário respeitável.Aqui o padre olhou para mim comtal intensida<strong>de</strong> que eu temi que não lheagra<strong>das</strong>se a minha tentativa <strong>de</strong> fazerespírito. Mas disse, com ardor, na primeiravez que o ouvi falar com algumardor:— E po<strong>de</strong>mos perguntar-nos sevalerá a pena. Valerá a pena enxertarnormas morais e cívicas, e outras, seelas não chegam a tocar nesse fundo<strong>de</strong> violência arcaica, hereditária, básica?Valerá a pena alguma outra coisa quandonos confrontamos com esta forçaimensa, que em si mesma é majestosa,magnífica?Por momentos pareceu-me que opadre estava fascinado com aquilo queme <strong>de</strong>screvia, como se para ele issofosse mais interessante do que os seusesforços educativos.Esta foi a minha primeira visitaao colégio. A minha segunda visita<strong>de</strong>stinava-se a apresentar-me formalmenteaos alunos e começar a trabalhar.Quando cheguei, vi um carro dapolícia junto ao portão. Entre o portãoe a porta <strong>de</strong> entrada estavam algumaspessoas que conversavam em vozbaixa, gravemente; reconheci algunsprofessores, os restantes eram agentespoliciais.Trocavam impressões enigmáticas,em surdina. Eu podia perceber quealguma coisa grave suce<strong>de</strong>ra. Pergunteion<strong>de</strong> estava o padre Sousa e disseram-meque morrera naquela manhã.O que me contaram então começoupor ser para mim tão chocantecomo foi para todos. Naquela manhã,estavam poucos funcionários no colégio.As duas cozinheirastinham ido ao mercado;o carpinteiro fora fazerumas encomen<strong>das</strong>; umdos contínuos ainda nãotinha chegado. O padreestava sozinho na cantinacom todos os rapazes, quetomavam o pequeno-almoço.No edifício do colégio só estavaa lava<strong>de</strong>ira e um contínuo a quemo padre encarregara <strong>de</strong> fazer umtrabalho administrativo no seu gabinete.A meio da manhã, este contínuofoi procurar o padre e estranhou queestivessem todos ainda na cantina.Mais estranho ainda: as duas portas dacantina estavam tranca<strong>das</strong>. Percebeuque eles ainda lá estavam porque osrapazes faziam barulho, o que nãoseria <strong>de</strong> esperar sabendo que o padreestava ali com eles. Falavam em vozalta, gritavam, riam. Havia ali rebuliço<strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras. Em si mesmo,este rebuliço não era anormal, apenasnão costumava existir na presença dopadre. O contínuo bateu várias vezesà porta, chamou, mas não obteve nenhumaresposta.Voltou ao gabinete por mais unsminutos, sem saber muito bem o quepensar daquilo. Tornou à cantina, masaí tudo continuava na mesma. Portastranca<strong>das</strong>, o rebuliço juvenil. Prestou“O que me contaram então começou por serpara mim tão chocante como foi para todos.”16 7mais atenção e julgou ouvir o barulho<strong>de</strong> apetrechos <strong>de</strong> cozinha, como sehouvesse activida<strong>de</strong> junto aos fornose fogões. Mas as cozinheiras ainda nãotinham voltado. Inquieto, o contínuoresolveu espreitar por uma janelinhaque havia junto ao tecto. Subiu porum escadote, espreitou e viu um cenárioinesperado. As mesas da cantinaestavam dispostas em círculo. Nocentro havia mais mesas, com tachos,panelas, pratos. Os rapazes circulavamalegremente por toda a parte ousentavam-se a comer. Não viuo padre, mas o ângulo <strong>de</strong>visão não lhe permitiaver todo oespaço dacantinanem acozinha adjacente.O contínuochamou pelopadre, mas nem este apareceunem os rapazes lhe ligaram.Chamou também por alguns<strong>de</strong>les, que estavam mais próximos dajanela, mas apenas lhe lançaram umolhar distraído e indiferente. O contínuo<strong>de</strong>sceu e foi bater vigorosamente naporta, não se cansando <strong>de</strong> chamar. Porfim a porta foi aberta, não pô<strong>de</strong> ver porquem. Entrou na cantina e logo se lheadiantou um dos rapazes, gritando:— Quem é que lhe abriu a porta?Ninguém se pronunciou. Houvegargalha<strong>das</strong>, pia<strong>das</strong> grita<strong>das</strong>. O contínuoavançou. De repente, formou-se umabarreira <strong>de</strong> rapazes à sua frente, commodos resolutos, intimando-o a retroce<strong>de</strong>r.A barreira a<strong>de</strong>nsou-se e cresceupara ele. Empunhavam facas e adagas, ehavia nos seus rostos uma tal resoluçãoque o contínuo recuou assustado e saiuda cantina. A porta fechou-se e foi novamentetrancada.Agora o funcionário tinha motivospara estar preocupado. O padre não respondia,os rapazes tinham-se barricadona cantina. Chamou a polícia. Quandoos agentes chegaram, explicou-lhes assuas apreensões. Não sabia o que aconteceraao padre, mas o facto <strong>de</strong> estaremperante uma revolta dos rapazes justificavaque arrombassem uma <strong>das</strong> portas.Desta vez, os rapazes não reagiram ànova intrusão. Já passava do meio-dia,estavam ali fechados há muitas horas.A turbulência foi-se acalmandoe dando lugar a um silêncio não menosestranho e inquietante. Foi-lhesperguntado on<strong>de</strong> estava o padre, oque é que eles estavam ali a fazer, porque razão se tinham fechado. Nãorespondiam. Reagiam comapatia a to<strong>das</strong>as interpelações,como se tivessem acabado<strong>de</strong> acordar <strong>de</strong> um transe.Olhando em volta era evi<strong>de</strong>nteque os rapazes, trancando-se na cantina,tinham-se entregue às <strong>de</strong>lícias <strong>de</strong>um festim feito só por eles, um banqueteprivado e ilegal on<strong>de</strong> nenhumestranho fora admitido.O contínuo foi à cozinha e <strong>de</strong>paroucom as roupas ensanguenta<strong>das</strong> dopadre. Chamou os polícias. Revistaramfornos, bal<strong>de</strong>s do lixo, e encontraramossos humanos meio <strong>de</strong>scarnados. Acabeça do padre estava intacta <strong>de</strong>ntrodo frigorífico. Um terror arcaico apo<strong>de</strong>rou-sedos adultos. Já não podiammais evitar os factos: o padre fora assassinado,esquartejado e comido pelosrapazes. Os adultos olhavam para eles,estupefactos. Os jovens estavam quietose calados, naquela estranha apatia.Entretanto foram chegando os outrosfuncionários do colégio.Quando eu cheguei os rapazesestavam ainda na cantina, mas agoracontidos aí pelos polícias. Foi perguntadoaos rapazes quem era o lí<strong>de</strong>r oulí<strong>de</strong>res, quem realmente matara, o queacontecera exactamente. Mas eles nãorespondiam a nada. O silêncio era amais tenaz e inviolável <strong>das</strong> suas <strong>de</strong>fesas.Ao saber do sucedido, e vencendoos primeiros momentos <strong>de</strong> incredulida<strong>de</strong>,recor<strong>de</strong>i a minha última conversacom o padre. Ele falara <strong>de</strong> uma forçainstintiva que nenhuma influênciaeducativa po<strong>de</strong>ria eliminar nos rapazes.Isto parecera-me uma elocubração fantasiosa,mas agora estávamos perantefactos concretos. A violência fundamentale visceral, que suspeitara nosrapazes, era qualquer coisa que teriaexpressão em cenários mitológicos.Passou-me pela cabeça se tudo aquilo nãoseria uma reencenação compulsiva <strong>de</strong> ummitoantigo, originário,que jaz nos fundamentosda nossa cultura e do nosso inconsciente.Eles mataram o Pai, pensei eu subitamente.Mataram-no e comeram-nonum banquete ritual, repetindo umanecessida<strong>de</strong> ancestral que persiste emestado latente e procura uma reactualização.Comeram o Pai admirado etemido para escapar ao seu po<strong>de</strong>r e,simultaneamente, absorver as suas qualida<strong>de</strong>s.A reemergência do mito, a suaurgência em ser repetido e vivido, surgiaclaramente aos meus olhos.Receei o esplendor terrível <strong>de</strong>stasuposição. Ocorreu-me se o padre,fascinado, não teria <strong>de</strong> alguma formaproporcionado o que acontecera. Senão teria ido ao encontro do seu própriofim, favorecendo o <strong>de</strong>senrolar dosacontecimentos. Para viver plenamentea situação mítica, para se tornar elepróprio mito.Perguntávamo-nos uns aos outroso que fazer dos rapazes. Sugeri quefossem separados em grupos tão restritosquanto possível e que estes fossemespalhados por diferentes colégios.O mito, apesar <strong>de</strong> manejar uma forçanatural, <strong>de</strong>via ser <strong>de</strong>masiado forte paraa consciência dos indivíduos. Seria melhorque eles fossem separados, paranunca terem <strong>de</strong> recordar, na presençauns dos outros, a perigosa atracção domito. BANG!Vasco Luís Curado nasceu em 1971.Publicou o livro <strong>de</strong> contos “A Casa daLoucura” (Ausência, 1999) e o romance“O Senhor Ambíguo” (Escritor, 2001).Colaborou com um conto intitulado “Ahora” na colectânea “A Sombra SobreLisboa” (Saída <strong>de</strong> Emergência, 2006)e alguns contos seus têm aparecido naBang! Psicólogo clínico, publicou uma tese<strong>de</strong> mestrado em Psicopatologia, “Sonho,Delírio e Linguagem” (Fim <strong>de</strong> Século,2000).


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Do cimo da cúpula, bem na crista da linha<strong>de</strong> combate mas oculto pela palha seca, oGeneral sentiu o vento e ficou satisfeito.Dispostos em grelha por logaritmo próprio, os lí<strong>de</strong>rese sargentos controlavam as tropas. Ou quase:<strong>de</strong> on<strong>de</strong> estava, sentiu o <strong>de</strong>sequilíbrio químico,um milésimo <strong>de</strong> segundo antes <strong>de</strong> o <strong>de</strong>tectarpelos meios convencionais. Arrastou o arcaboiçona sua direcção para o i<strong>de</strong>ntificar.Não era uma alteração complexa, pelo queconcluiu tratar-se <strong>de</strong> medo corrente, embora comintensida<strong>de</strong> para furar as hormonas <strong>de</strong> controlo.Provinha do lí<strong>de</strong>r do esquadrão 43721-C/31,agregado à força <strong>de</strong> ataque 4-Alpha que estava aliperto, na margem Sul do quadrante 231B Norte.Uma picuinhice fácil <strong>de</strong> resolver: emissão químicaapropriada e, um pouco mais acima, numaabrigada zona <strong>de</strong> dunas cheia <strong>de</strong> cardos, os corposnegros dos Reguladores puseram-se a caminho.Não pensou mais no assunto e reposicionouo corpo. Sentia-se algo pesado, com as entranhasalgo quentes e balouçando <strong>de</strong>mais, mas não erahora <strong>de</strong> se distrair.O pesa<strong>de</strong>lo normal <strong>de</strong> uma batalha era a logística.Multiplicados pormenores a ter em contana manutenção e uso dos imensos milhares <strong>de</strong>componentes orgânicos, obrigavam a um uso intemperado<strong>de</strong> processamento neural. E mesmoassim, o preço que, como General geneticamenteescolhido, pagaria como Centro — a dissoluçãoao final da campanha, manifestação últimada completa perfeição — não lhe parecia gran<strong>de</strong>:mais do que a glória ou a simples vitória, manterse-iao Ganzzz, o Bio-Equilibrio.Calculou a temperatura da quente manhã queterminava, bem como a distribuição <strong>de</strong> força eólica,suficiente para não haver baixas por merocansaço, e ficou satisfeito. Não queria cair no erro<strong>de</strong> há cinco dias, quando na sequência do toque<strong>de</strong> reunião, milhares <strong>de</strong> soldados se tinham <strong>de</strong>sconchavadonas correntes <strong>de</strong> ar frias e traiçoeirassobre as falésias. Um fenómeno a todos os títulosimprevisível, embora ele <strong>de</strong>vesse ter estabelecidoum perímetro <strong>de</strong> recepção e encaminhamento...ser o General não lhe dava gran<strong>de</strong> margem paraerros <strong>de</strong>stes. O Ganzzz, reflectiu, não é flexível osuficiente para tais coisas.Para além da simples e prosaica ocupação doterreno, a preocupação fundamental, a sua e <strong>de</strong>mais nenhum subalterno posto, era a alimentaçãoe propagação <strong>das</strong> tropas. As suas terminações nervosas,magnifica<strong>das</strong> pelo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> processamentodo total <strong>das</strong> espécies alia<strong>das</strong> reuni<strong>das</strong>, cuidava <strong>de</strong>tudo. Até <strong>de</strong> ataques suici<strong>das</strong> por elementos neuróticos,um dos poucos elementos <strong>de</strong> caos aceitáveisna horda. A tirania eterna <strong>das</strong> pequenas coisas.Sob o areal, as forças inimigas não os tinhamainda <strong>de</strong>tectado. Para além <strong>de</strong> sujeitas à organizaçãomono-espécie, bem como aos padrões <strong>de</strong>referência informacional unívocos que não proporcionavamdados externos inteligíveis, davamàs forças alia<strong>das</strong> esta absurda vantagem. Era certoque o inimigo tinha gran<strong>de</strong> expressão a nívelaéreo, mas não em número preocupante: antes dofim da batalha, pensou o General com o cuidado<strong>de</strong> o retransmitir subliminarmente aos lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong>esquadrão, o céu seria <strong>de</strong>les. Ocultou as pulsõesprimárias na mensagem: não convinha que os soldadospercebessem a possibilida<strong>de</strong> do contrário,da morte total e absoluta, do olvido, do ImpensávelZsoth. Assinou a última transmissão feromonalcom a imagem do campo <strong>de</strong> batalha, umextenso areal, <strong>de</strong>itado em frente como um crescentefértil, contendo alimento suficiente paravárias gerações...Com um subtil trejeito <strong>de</strong> asa, o General Moscardo,único sem nome ou posto entre os milhõesdispostos no terreno, or<strong>de</strong>nou subsonicamente apré-sequência <strong>de</strong> ataque à horda <strong>de</strong> mosquitosque vinha no vento, percorrendo a orla <strong>das</strong> praias.10 11No areal, o ambiente <strong>de</strong> tensão era calmamente alimentadopelos lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> esquadrão e sargentos posicionaisà custa da administração <strong>de</strong> judiciosas doses<strong>de</strong> massas biológicas em vários estados <strong>de</strong> necrose.Todos tinham uma vaga noção da importânciadaquela Intervenção; mesmo os mais estupidamenteneófitos, na pujança hormonal <strong>das</strong> suas forças anímicas,entretinham i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> glória futura, povoada<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s orgias copulatórias <strong>de</strong> propagação nomomento da vitória. Para estes, o Ganzzz era umconceito <strong>de</strong>masiado esotérico para ter em conta.A coberto <strong>de</strong> uma duna cheia <strong>de</strong> cardos mitopoéticos,as forças terrestres reuni<strong>das</strong> com as suastropas iam-se aguentando. Um mistura <strong>de</strong> espécies,com centopeias, escaravelhos, moscas, aranhas, aranhetas,libelinhas, e muitas mais; até os ratos, notoriamenteassociais em questões inter-espécies, tinhamaceitado o repto <strong>de</strong> limpeza ecológica.Os sargentos, com as trelas hormonais possíveis,bem como a mole <strong>de</strong> individualistas Reguladores,tratavam <strong>de</strong> manter as hostes prepara<strong>das</strong> sem ruído.O lí<strong>de</strong>r do esquadrão 43721-C/32 sabia que oGeneral esperava que a eminência do ataque galvanizasseas tropas o suficiente para a matança, masmantê-las ao mesmo tempo calmas estava a provarsedifícil. Há pouco entrara em pânico quando umdos soldados quisera sair a correr areal fora, sozinhoque nem um louco, <strong>de</strong> encontro ao inimigo. Ele próprioo apanhara, mas não sem antes ter emitido umpouco <strong>de</strong> medo. Os Reguladores tinham vindo rapidamente.Não tinham sido meigos e ia sentir faltadaquela pata, mas fazer o quê senão aguentar e calara matraca? Aguentou estoicamente o castigo: Tudopelo Ganzzz!Fixou as suas polifaceta<strong>das</strong> oculares no céu intensamenteazul, tentando ser frio e calculista comouma boa aranheta. Em segundos, o azul celeste elimpo começou a ser filtrado por milhares <strong>de</strong> verrugasgnósticas em busca <strong>de</strong> corpos quentes.A visão era encantadora. Se os mosquitos nãofossem uma tão radical antítese filogenética, seriamuma linda manifestação <strong>das</strong> inúmeras potencialida<strong>de</strong>sdo Ganzzz. Gostaria <strong>de</strong> ser uma melhor aranha,<strong>de</strong> conseguir filosofar ao nível do General Moscardo...mas já tinha problemas suficientes a comandarestes malandros, não precisava <strong>de</strong> trabalhos complexos;tinha era <strong>de</strong> mandar como <strong>de</strong>ve ser ou os Reguladoresviriam aí outra vez.— Deixem-nos pousar — Comunicou com aspinças para o seu esquadrão.De entre a filamentar palha acastanhada <strong>de</strong> fabricohumano, o General, que embora oculto tudopercebera, <strong>de</strong>u o seu tácito aval, não comentando.No que tocava à arraia-miúda, ao soldado no terreno,a expectativa era enorme e ensan<strong>de</strong>cedora. Nãohavia lembrança <strong>de</strong> uma força invasora <strong>de</strong> mosquitoscom aquela envergadura. Algo na memória eidéticapartilhada fazia-os sentir que, tanto a ameaçacomo a reacção <strong>de</strong>les próprios, não eram recentes.Mas <strong>de</strong> memória, nada.Impacientes por dar início à matança, as tropasmoviam-se sobre e sob a areia, presos aos juncos e<strong>de</strong>tritos, ocultos pelas ervas altas e cardos, zumbindonervosamente. Alguns elementos individuais nãoresistiam à pressão, atacando-se mutuamente; nadaque um rápido empregar <strong>de</strong> açaimes hormonais pelossargentos, ou pelo esporádico ferrão dos Reguladores,fiéis unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> irascibilida<strong>de</strong> controlada,não resolvesse antes que houvesse estragos a sério.A mole <strong>de</strong> humanos que como vacas cegas empasto dourad’azul esperava indolente, ignorava aenormida<strong>de</strong> do ataque eminente. As nuvens eclipsantesdo inimigo aproximavam-se.Através dos balouçantes cardos, as tropas alia<strong>das</strong><strong>de</strong>ixaram que eles enchessem os abdómenes.O ataque anofelectico espalhou-se como um manto vivo peloscorpos humanos <strong>de</strong>itados na areia. Enxames <strong>de</strong> centenaszumbiam em torno <strong>das</strong> carnes expostas. Mesmo junto à água,os mosquitos caíram-lhes em cima com uma sanha mais genéticaque calculada, mas nem por isso menos feroz. Pequenosbatalhões picantes acumulavam-se orgiasticamente para aaplicação caótica dos proboscí<strong>de</strong>os e subsequente <strong>de</strong>voragem <strong>de</strong>doces leucócitos.Nesse instante o moscardo General saiu da protecção dapalhota, voando verticalmente: chegara o momento.Seguiu-se a confusão somática total. Milhões <strong>de</strong> dados eminput <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado. Análises teórico-práticas extensas. Teoriacomplexifi cada do Caos. E os seus polimórfi cos contrários.Tudo <strong>de</strong> acordo com o habitual. O sol brasa a imponênciado apogeu climático <strong>de</strong> que é capaz. Porém, lá em baixo, issopouca diferença faz…O General faz pequenos voos circulares <strong>de</strong> modo aabarcar o cenário convenientemente. Vê como empouco tempo e na ânsia da fuga os humanos entupiramas vias terrestres <strong>de</strong> acesso ao areal. Amon-


toavam-se como patos a abater, ignorantes <strong>das</strong> verda<strong>de</strong>irascapacida<strong>de</strong>s mortíferas do adversário, semmeios ou saber que lhes valesse. No fundo, pensouao vê-los agarrados aos seus pertences e entrandonos ina<strong>de</strong>quadamente <strong>de</strong>fensáveis veículos <strong>de</strong> locomoção,os humanos não têm Ganzzz.As forças alia<strong>das</strong> continuavam a atacar o inimigo,com pequenas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> guerrilha, começando afazer notórios estragos, especialmente ao longo <strong>das</strong>dunas.Quando já quase não havia humanos, o inimigocomeçou a comemorar a vitória, o sucesso do seucego bugblitzkrieg. Ainda não se tinham apercebidodo ataque na orla geográfica protegida, entre aservas.Nada mais se via sobre a areia senão nuvens <strong>de</strong>mosquitos em <strong>de</strong>lírio orgiástico; muitos <strong>de</strong>les, <strong>de</strong>barriga cheia, <strong>de</strong>dicavam-se a tarefas propagatórias.Tudo muitíssimo contente e distraído.Nesse inolvidável momento, as forças alia<strong>das</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>fesa da costa fecharam o cerco.Sob a escuridão radial <strong>das</strong> oculares do General,milhares <strong>de</strong> insectos saíram da areia e <strong>das</strong> dunas circundantes,empurrando bolas <strong>de</strong> minas-estrume elançando teias ao vento, enquanto briga<strong>das</strong> <strong>de</strong> peixes<strong>de</strong> várias espécies se posicionaram à espera da insana<strong>de</strong>rrocada do inimigo em direcção ao mar. O resto<strong>das</strong> tropas limitou-se a mor<strong>de</strong>r, picar e <strong>de</strong>vorar.Um clássico e brutal movimento <strong>de</strong> tenaz.A carnificina durou o resto da tar<strong>de</strong> e boa parteda noite, após o que o General se imolou satisfatoriamenteperante as mandíbulas dos seus próprioslí<strong>de</strong>res e sargentos. Fora atingida a perfeição.E o Ganzzz.o lixo variado. A água da maré cheia não chegaracompletamente ao cimo, à zona mais alta on<strong>de</strong> asdunas davam lugar à falésia, o que só aconteceriamais para a noite.O casal foi para mais perto da linha <strong>de</strong> água.Sobre o mar ainda se via alguma agitação, apesar<strong>de</strong> não haver on<strong>das</strong>. Abraçados, com expressões <strong>de</strong>perplexida<strong>de</strong> a ensombrar os rostos bronzeados, resolveramnão ligar para a espuma e para a aparenteprofusão <strong>de</strong> peixes e gaivotas.Namoraram assim, tranquila e lentamente, compequenos encostos e carícias. Só pararam o crescente<strong>de</strong> inevitável ousadia quando resmas <strong>de</strong> famílias,seguindo a diminuição do calor como nóma<strong>das</strong> portadores<strong>de</strong> criancinhas esfomea<strong>das</strong> por natureza, começarama aparecer por todo o lado.A maior praga do amor, murmurou o rapaz, é aexistência dos outros. Ela nada disse, mas abraçou-omais apertado.Acabaram por se afastar em direcção ao abrigoprovisório <strong>das</strong> dunas.Estimulados pela emissão <strong>de</strong> feromonas e com a serena leveza<strong>de</strong> quem está fi rmemente plantado na terra, os juncos e <strong>de</strong>maiservas daninhas, sebes, cardos e árvores <strong>de</strong> pequeno porte, observavamtudo.Algumas discussões fi losófi cas, sobre os acontecimentos <strong>das</strong>últimas horas e sobre a integração <strong>das</strong> activida<strong>de</strong>s falha<strong>das</strong>dos humanos como espécie, viriam ainda a reverberar entreelas durante muitos e bons anos.Principalmente entre as duas correntes onto-antagónicassimples.Entre os que <strong>de</strong>fendiam que nenhum animal, por<strong>de</strong>fi nição, podia ser inteligente e viável, e os que afi rmavam ocontrário. Preocupações discursivas elementares. Tudo <strong>de</strong>baixodo agradável sol do Verão. BANG!12 13— Achas que a praia já está boa? — Perguntou orapaz à namorada, enquanto passavam <strong>de</strong>sconfiadospelo pequeno trilho que levava à praia.— É tentar.A praia continuava <strong>de</strong>serta. Na parte mais seca,milhares <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> pontinhos pretos jaziamentre os cristais <strong>de</strong> sílica, os pedaços <strong>de</strong> palha eValéria Rizzi é uma jovem escritora fi lha <strong>de</strong> pai italiano emãe francesa que vive em Portugal <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 3 anos <strong>de</strong>ida<strong>de</strong>. Espreita para o mundo <strong>das</strong> janelas góticas da suavivenda no Estoril e adora praia, mas do que realmentegosta é <strong>de</strong> ler e escrever sobre este mundo como sendoalgo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iramente fantástico. Esta é a sua primeiracolaboração para a Bang!


Caminho <strong>de</strong> um bordo a outro no convés <strong>de</strong>scoberto,inquieto, distribuindo or<strong>de</strong>ns aos subordinados. OVentos Uivantes já recolheu as espias <strong>de</strong> atracação eestá pronto para zarpar.Os tripulantes não me respeitam mais. Não possoculpá-los. Não <strong>de</strong>pois da experiência vergonhosa e traumáticaque me acometeu dias atrás naquele quarto do EstrelaAzul.O pior são as risotas dos subordinados. Os cutucõesmútuos junto à amurada do convés e as piadinhas murmura<strong>das</strong>proa afora, enquanto <strong>de</strong>slizo entre eles e finjo ignorarseus cochichos maldosos. Nunca alto o bastante para queeu os possa repreen<strong>de</strong>r por indisciplina e no entanto, perfeitamenteaudíveis. Aleijão! Pervertido! Não há o que fazer.Qualquer medida disciplinar terá a eficácia <strong>de</strong> um tiropela culatra e o opróbrio virá à baila outra vez.A agonia profunda aflora do meu âmago e me afligena região atingida. O formigamento me incomoda atéhoje. Dor surda; fantasma <strong>de</strong> um membro amputado.Não é mera questão <strong>de</strong> dor física. É dor moral. A dorda vergonha, da honra maculada. A nódoa que <strong>de</strong>vo carregarsobre os ombros <strong>de</strong> agora em diante.Em suas juras <strong>de</strong> amor, minha Tee’lak prometeu quejamais me traria dor; só o prazer inconcebível. Cumpriusua promessa. Também manifestou confiança em que eume tornasse um humano inteiro <strong>de</strong> novo. Esta esperançanão se concretizou.A ignorância mútua a respeito <strong>das</strong> incompatibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> nossas anatomias conduziram nosso relacionamento àruptura traumática.E eu, que nutrira tantos planos…Não sei quanto a Tee’lak, mas para mim restou apenaso sofrimento da <strong>de</strong>sonra e o escárnio dos amigos e conhecidos.E pensar que minha <strong>de</strong>sdita começou numa cálidanoite <strong>de</strong> folga no Estrela Azul…Muita gente finge ignorar a existência <strong>de</strong> estabelecimentoscomo o Estrela Azul. Contudo, o fato é que há um lugar<strong>de</strong>sse tipo na maioria <strong>das</strong> cida<strong>de</strong>s e vilas às margens do Rioda Névoa.Exemplar típico <strong>de</strong> sua classe, o Estrela Azul é aqueletipo <strong>de</strong> antro <strong>de</strong> prazeres escusos, que em geral consistenuma mistura mais ou menos harmônica <strong>de</strong> hospedariapara aliens, bar mal freqüentado, on<strong>de</strong> a nata da marginalida<strong>de</strong>do Vale da Neblina se reúne, e bor<strong>de</strong>l capaz <strong>de</strong> saciartodos os apetites variados — dos mais inocentes aos inconfessos,mesmo sob tortura — <strong>das</strong> tripulações dos mercantese <strong>das</strong> guarnições <strong>das</strong> belonaves que singram as águaspujantes do rio mais longo <strong>de</strong>ste lado <strong>das</strong> Cordilheiras.Uma espelunca como aquela não seleciona freguesia.Tanto é que costuma admitir até a presença <strong>de</strong> humanosentre os frequentadores. E é bom que o faça. Afinal, aocontrário do que dizem Vale a<strong>de</strong>ntro, não somos a escumalhado Hemisfério Oriental.E foi <strong>de</strong> uma mesa do Estrela Azul que vislumbrei osemblante luminoso <strong>de</strong> Tee’lak, em nossa segunda noiteem terra, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nossa primeira atracação no porto <strong>de</strong>Nebulosa, após vários anos <strong>de</strong> ausência.Os tripulantes do Ventos Uivantes ignoram o significado dapalavra “castida<strong>de</strong>”. Muito ao contrário, o sexo semprerolou solto a bordo, no porto e em viagem. O tempo todo.Nem po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> outro modo, com uma tripulação fixa<strong>de</strong> trinta e poucos machos e fêmeas humanos e quatroaliens, subindo e <strong>de</strong>scendo o Rio por anos a fio, da nascenteno equador, ao sopé oriental <strong>das</strong> Cordilheiras, até a foz,no Golfo Amaldiçoado, quase no círculo polar sul.Sexo rotineiro, no entanto. Sempre as mesmas velhascaras. As velhas genitálias <strong>de</strong> sempre. Os mesmos parceiros.E, ainda por cima, parceiros tão humanos quanto eu…Ora, eu tenho coisa melhor do que isto em casa.Sexo com nossos tripulantes aliens? Nem pensar!A bordo não havia como exercitar minha predileçãoparticular.Porque, além <strong>de</strong> anatomicamente incompatíveis conosco,nossos três tripulantes insecta e o pseudodino consi<strong>de</strong>ramo sexo uma necessida<strong>de</strong> fisiológica tão tediosa e insípidaquanto respirar. É claro que jamais consentiriam nacópula com humanos. A<strong>de</strong>mais, embora aliens, insecta epseudodinos não constituem exatamente meu tipo. Possogostar <strong>de</strong> aliens, mas não sou tão doente assim…A maioria dos tripulantes humanos, contudo, pareciasatisfeita com a rotina sexual reinante a bordo do VentosUivantes. Por isto, <strong>de</strong> toda a tripulação, apenas eu, Raddamesh,nascido em Ver<strong>de</strong>gris, uma vila nortenha da margemoeste do Rio, primeiro-oficial <strong>de</strong> convés <strong>de</strong>ssa veloz embarcaçãomercante, procurava a cada porto que atracávamosos prazeres proibidos da cópula com fêmeas aliens.A paga <strong>de</strong> oficial era boa. Isto, para não falar na participaçãonos lucros do transporte e da venda <strong>de</strong> mercadorias.Estamos no comércio <strong>de</strong> especiarias, on<strong>de</strong> as margens<strong>de</strong> ganho costumam ser vultuosas. É por este motivo que— mesmo com duas famílias para sustentar em dois trechosdistintos do Rio, e impostos a pagar nas duas cida<strong>de</strong>son<strong>de</strong> elas resi<strong>de</strong>m — em cada porto que atracávamos, eume concedia a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> procurar um estabelecimentocomo o Estrela Azul: um lugar discreto on<strong>de</strong>, com a leniência<strong>das</strong> autorida<strong>de</strong>s locais, um tripulante em trânsito podianegociar algumas horas <strong>de</strong> prazer alien com uma profissionalatraente.14 15Na primeira noite <strong>de</strong> folga em terra, permaneci no bardo Estrela Azul, encarrapitado num tamborete alto <strong>de</strong>maispara um humano. Não <strong>de</strong>scobri ninguém interessante. Nasegunda noite, sentado à mesa junto com outra tripulante edois aliens, vi Tee’lak ondular majestosa rampa abaixo numvestido longo, vinda do segundo andar do estabelecimento.Lorelei, a outra tripulante, apertou meu bíceps esquerdoe acenou com a cabeça em direção à alien que <strong>de</strong>scia a rampa.— Olha só, Radda. Acho que aquele pitéu é mais oumenos o teu tipo.Grunhi uma resposta ininteligível e engasguei com umgole da boa cerveja escura, fabricada a partir da fermentaçãocriteriosa <strong>das</strong> fezes dos insetói<strong>de</strong>s selvagens da Gran<strong>de</strong>Floresta.Ela era linda!Minha amiga estava certa. A belda<strong>de</strong> era o meu tipo:<strong>de</strong>finitivamente alien e, no entanto, muito, muito humanói<strong>de</strong>,se é que vocês enten<strong>de</strong>m o que eu quero dizer…A epi<strong>de</strong>rme era <strong>de</strong> uma tonalida<strong>de</strong> azul encantadora,que resplan<strong>de</strong>cia na penumbra do bar. Seus olhos negros,enormes e brilhantes, atraíram-me <strong>de</strong> imediato com fulgoresígneos insondáveis, como discos <strong>de</strong> acreção <strong>de</strong> doisburacos negros gêmeos… Dois pares <strong>de</strong> seios, cones protuberantesperfeitos, dispostos um par em cima e o outroembaixo, ao longo <strong>de</strong> seu tórax esbelto, fazendo-a parecermuito mais mamífera do que uma humana. Seriam glândulasmamárias, ou outro órgão qualquer?E os quadris? Meu Bom Espírito Galáctico, que quadris!Largos e redondos. Ancas <strong>de</strong> uma fêmea capaz <strong>de</strong>parir filhotes com crânios indubitavelmente maiores do queo <strong>de</strong> um recém-nascido humano…Inteiramente aparvalhado, só consegui balbuciar:— Quem… quem é ela?Os dois aliens <strong>de</strong> nossa mesa trocaram olhares e riramabertamente, antes <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r em seus próprios idiomas.Mesmo si<strong>de</strong>rado pelo álcool, consegui ler a tradução queseus emissores <strong>de</strong> símbolos projetaram sobre nossas cabeças.— Essa é Tee’lak, uma fêmea dos calífagos. — O comerciantereptiliano respon<strong>de</strong>u, erguendo a caneca alta <strong>de</strong> cervejaem direção à humanói<strong>de</strong> azulada, que retribuiu o cumprimentocom um sorriso <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes opalinos pontiagudos.— Uma autêntica <strong>de</strong>usa do prazer! — O emissor doamebói<strong>de</strong> disparou uma série <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ogramas holográficosmiúdos, característicos do tom <strong>de</strong> confidência. — Dizemque oferece o melhor estímulo oral <strong>de</strong>ste lado do Vale daNeblina… Não que eu possa confirmar pessoalmente, éclaro. Mas, vocês humanos apreciam a prática, não é?— Muito… — Sussurrei com a garganta seca, apesardos goles generosos da boa cerveja da Gran<strong>de</strong> Floresta.Meu holotransceptor lançou aquele i<strong>de</strong>ograma solitário,retratando com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> minha admiração e expectativa.— E vocês acaso sabem se ela aceita copular com aliens…com humanos?O comerciante silvou e o citadino borbulhou, gargalhando,cada um a seu modo, e acompanhados nessa açãopelo riso cristalino <strong>de</strong> Lorelei.— Meu bom amigo, como comerciante fluvial, você<strong>de</strong>certo não ignora que tudo nesta vida é uma questão <strong>de</strong>preço. — O reptiliano replicou, serpenteando a língua trifurcadagotejante <strong>de</strong> saliva e cerveja. — Até mesmo copularcom um macho humano!Novas gargalha<strong>das</strong>.— Além disso, se Tee’lak recusasse cópulas com alienígenas,teria que escolher outra profissão ou mudar <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>,visto existirem bem poucos calífagos aqui em Nebulosa.— O amebói<strong>de</strong> comentou com i<strong>de</strong>ogramas <strong>de</strong> matizfilosófico. — Se o amigo consentir, posso intermediar anegociação com a bela Tee’lak. Naturalmente, só cobrareimeus honorários se o acordo for selado.— Naturalmente. — Lorelei respon<strong>de</strong>u, acorrendo em<strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> meus interesses, ante meu silêncio embevecido.O intermediário amebói<strong>de</strong> foi bem sucedido. Incluindoos honorários <strong>de</strong>le, o contrato custou-me <strong>de</strong>z dias <strong>de</strong> paga.A <strong>de</strong>speito da soma exorbitante, senti-me o humano maisfeliz <strong>de</strong> todo o Vale da Neblina.Como Tee’lak já estivesse comprometida para aquelanoite, meu negociador marcou nosso encontro para a noiteseguinte.Regressei para bordo do Ventos Uivantes mais cedo doque <strong>de</strong> costume, vagando trôpego por vielas mal ilumina<strong>das</strong>,sob o céu eternamente nublado que inspirara o nomedaquele núcleo ribeirinho.Deitado em meu catre, no interior do camarote exíguo,não consegui conciliar o sono, tamanha era a expectativa<strong>de</strong> conhecer e <strong>de</strong>sfrutar dos prazeres <strong>de</strong> Tee’lak.— Então, é você o oficial humano que contratou uma noite<strong>de</strong> amor comigo? — Tee’lak me espantou naquele primeiroinstante com seu domínio perfeito <strong>de</strong> nosso idioma.Constatei que não portava sintetizador <strong>de</strong> fala. Notandomeu assombro, ela se apressou em explicar. — Fiz uma intervençãocirúrgica em meus órgãos fonadores para po<strong>de</strong>rarticular seus vernáculos. Nutro predileção especial pelosclientes humanos…Seus olhos fulgurantes capturaram <strong>de</strong> imediato minhaatenção. Como era fácil me afogar nas profun<strong>de</strong>zas escurasdaquele olhar…Observando-a <strong>de</strong> perto, pu<strong>de</strong> perceber que sua bocapossuia uma série <strong>de</strong> tentáculos curtos, que se agitavampor <strong>de</strong>trás dos <strong>de</strong>ntes azuis afiados, como uma miría<strong>de</strong> <strong>de</strong>línguas diminutas, lembrando os apêndices <strong>de</strong> uma anêmona-do-mar.— Vamos subir até meu quarto? Po<strong>de</strong>mos ficar mais àvonta<strong>de</strong> lá em cima.Tomando meu assentimento por certo, não esperouresposta para se dirigir à rampa que conduzia aos quartosexistentes no segundo andar do Estrela Azul. Hipnotizadopelo bamboleio daqueles quadris fabulosos, segui atrás,perto o bastante para inspirar o <strong>de</strong>licioso aroma floral queexalavam.Tee’lak era uma criatura <strong>de</strong> sonho. Moldada sob medida,pela natureza e pela biotecnologia, para aten<strong>de</strong>r meusmínimos <strong>de</strong>sejos.A porta <strong>de</strong> seus aposentos particulares fen<strong>de</strong>u-se ànossa frente e tornou a cerrar-se após nosso ingresso.A iluminação indireta espalhava uma luz alaranja<strong>das</strong>uave por todo o aposento, fazendo com que a pele azul dacalífaga brilhasse com matizes púrpuras. Perguntei-me seaqueles tons correspon<strong>de</strong>riam às lembranças que seu povomantinha <strong>de</strong> seu planeta natal, <strong>de</strong>certo <strong>de</strong>ixado para trás háinúmeras gerações.


Imaginei que iríamos nos <strong>de</strong>spir e <strong>de</strong>itar naquele leitoamplo e acolchoado.Não houve tempo para especulações <strong>de</strong>ste tipo.Seus braços azuis enlaçaram meu pescoço e ela colouaquela boca maravilhosa e omnipresente em meus lábios, nomeu rosto e em minha nuca.Creio que ela segregou alguma espécie <strong>de</strong> feromona,pois mal seus lábios me tocaram, comecei a me sentir enlevadopor um arrebatamento calmo, um êxtase atenuado quejamais me abandonou, até o fim da relação.Aqueles arremedos <strong>de</strong> tentáculos disten<strong>de</strong>ram-se quandonossos lábios se tocaram, tomando minha boca <strong>de</strong> assalto,pressionando e acariciando minha língua, tateando-meas pare<strong>de</strong>s internas <strong>das</strong> bochechas e o céu da boca, ásperosmas macios, espetando como mil agulhas minúsculas. Apósbreves e ligeiríssimas pica<strong>das</strong> <strong>de</strong> dor, um formigamento prazerosoinvadiu primeiro a mucosa bucal, espalhando-se emseguida e aumentando em intensida<strong>de</strong>. Dominou-me a línguae as narinas, como o aroma mais saboroso, como se eutivesse acabado <strong>de</strong> mastigar o primeiro naco do prato maissuculento do melhor banquete…O que aquela feiticeira calífaga fizera a meu corpo eespírito?Em poucos segundos, ainda <strong>de</strong> pé e abraçados, <strong>de</strong>sfizemo-nos<strong>de</strong> nossas roupas. Uma vez <strong>de</strong>spida, Tee’laknão pareceu tão humanói<strong>de</strong> assim. Havia um terceiro pardaqueles montes cônicos semelhantes a seios, menores eabaixo dos quatro outros. Os quadris estonteantes per<strong>de</strong>ramboa parte do volume imponente quando uma cauda,mais grossa que meu pulso e tão azul quanto a peleem volta, <strong>de</strong>senrolou-se pouco a pouco <strong>de</strong> seu ventre eancas, alongando-se, <strong>de</strong>senvolta, até exibir-se por inteiro,com mais <strong>de</strong> um metro <strong>de</strong> comprimento. Aaparição da cauda revelou a vulva recoberta porpenugem <strong>de</strong>nsa, do mesmo branco leitoso <strong>das</strong>cer<strong>das</strong> cranianas da calífaga, só que mais curta emacia ao toque.Durante um ou dois segundos, a admiraçãocom as novida<strong>de</strong>s anatómicas recém-<strong>de</strong>scobertas paralisaramminha iniciativa. Contudo, como já me tornara presada magia feromonal <strong>de</strong> Tee’lak, <strong>de</strong>spertei daquela inaçãoembevecida e acedi, ávido, quando ela envolveu a glan<strong>de</strong>inchada <strong>de</strong> meu pénis com a palma da mão e me conduziu,<strong>de</strong>licada, até seu leito acolchoado.Atirou-se sobre mim aos beijos, tão logo pousei a cabeçanuma almofada do leito. E, que beijos!Seus lábios e aqueles minitentáculos extasiantes exploraramminha boca e minha língua até me <strong>de</strong>ixarem louco.Fiz menção <strong>de</strong> agarrá-la e puxá-la para mim, mas Tee’lak<strong>de</strong>svencilhou-se <strong>de</strong> meu abraço e <strong>de</strong>sceu os lábios até meusmamilos. Em seguida, sua boca fabulosa visitou meu abdómen,explorou meu umbigo e <strong>de</strong>sceu até meu ventre, mordiscandoe brincando em meus pêlos pubianos com seus<strong>de</strong>ntes e tentáculos.Segurou a haste <strong>de</strong> meu pénis com a mão esquerda ebaixou a cabeça, abocanhando a glan<strong>de</strong> intumescida. Comoboa profissional, posicionou-se <strong>de</strong> modo que eu pu<strong>de</strong>sseobservar a felação.A experiência foi algo novo e extraordinário. Muito diferentedo sexo oral recebido <strong>de</strong> humanas ou outras aliens…Os tentáculos da boca <strong>de</strong> Tee’lak envolveram a haste<strong>de</strong> meu membro, espetando-a em centenas <strong>de</strong> pontos, enquantoos lábios e outros tentáculos começaram a me sugara glan<strong>de</strong> com a sofreguidão <strong>de</strong> um filhote faminto agarradoao seio materno.Tee’lak me <strong>de</strong>ixou ali, pelo que me pareceu horas a fio,suspenso nos píncaros do orgasmo iminente, numa torturaatroz <strong>de</strong>liciosa. Tornou-se senhora absoluta <strong>de</strong> meu prazere eu, seu escravo submisso, que teria preferido morrer milvezes a ter aquela boca maravilhosa afastada <strong>de</strong> meu obelisco<strong>de</strong> carne ígnea e pulsante.O gozo chegou enfim, numa explosão súbita e inesperada,que se prolongou por vários minutos, pois minhaamante alterou o ritmo <strong>das</strong> carícias bucais, mas não as interrompeu,nem quando, saciado e exaurido, implorei queo fizesse.Talvez tenham sido as feromonas que ela exalava. Talveztenha sido a excitação imensa induzida pelas artes daquelamestra do prazer. O fato é que minha ereção nãoapenas se manteve intacta após o orgasmo, como, surpreso,percebi-me prestes a gozar outra vez!O segundo orgasmo se abateu sobre meu corpo exaustocom um impacto ainda mais forte e <strong>de</strong>vastador que o doprimeiro.Quando esse segundo gozo finalmente se exauriu, sentique as forças me faltavam. Os músculos <strong>de</strong> minhas pernase costas latejavam doloridos. Minha pele arrepiava-se, recobertapor uma película fina <strong>de</strong> suor.Tee’lak acariciou meu peito e levou as pontas <strong>de</strong> seus<strong>de</strong>dos aos lábios. Debruçou-se então sobre meu tórax eabdómen, e começou a lamber as gotículas <strong>de</strong> transpiraçãoacumula<strong>das</strong> em meus pêlos com seus tentáculos bucais.As lambi<strong>de</strong>las me revigoraram <strong>de</strong> algum modo, porque,após relaxar por alguns minutos, percebique não estava tão exausto assim.Agarrei-a pela cauda, puxando seus quadris para mim.Ela ronronou como uma gata e ce<strong>de</strong>u, posicionando-se sobremim exatamente como eu queria, com aquela bela vulvaalienígena, tão úmida e cheirosa quanto a <strong>de</strong> uma humana, apoucos centímetros do meu rosto.Era uma beleza estranha. Se havia um clitóris imersoem sua farta penugem pubiana, jamais o encontrei. Emcompensação, os lábios vaginais eram repletos <strong>de</strong> lin<strong>das</strong> volutase circunvoluções, que os tornavam muito mais proeminentesque os <strong>de</strong> uma humana. Além disso, terminavam emprotuberâncias oblongas diminutas, bastante pareci<strong>das</strong> comos tentáculos bucais.Uma vulva cujas dobras e reentrâncias pareciam <strong>de</strong>cora<strong>das</strong>com a inspiração mística e o requinte arquitetônico <strong>de</strong>uma catedral primeva.Curioso e extasiado com o aroma inebriante <strong>de</strong> floresexalado pela vagina <strong>de</strong> Tee’lak, comecei a mordiscar e lamberseus tentáculos vulvares. Ela gemeu baixinho, incentivando-mea continuar. A cauda flexível ondulava e tremia,<strong>de</strong>scontrolada, quase um metro acima da minha cabeça.Sem escrúpulos, Tee’lak montou em meu peito, esfregandoa vulva úmida em meu rosto. Quando a imobilizei, agarrando-apelas coxas e quadris, e voltei a lamber seus tentáculosintumescidos, ela baixou a cabeça sobre meu ventre, apoiou oscotovelos no leito e abocanhou meu pénis outra vez.16 17Pelos gemidos e urros que Tee’lak emitiu, imagino quetenha gozado pelo menos três vezes. Se bem que, em setratando <strong>de</strong> fêmeas aliens, nunca po<strong>de</strong>mos ter certeza… Dequalquer modo, só parei quando ela se confessou saciada.Minha ereção persistia, pois, apesar da atenção queTee’lak me <strong>de</strong>dicara, eu não consegui gozar enquanto sugavaseus tentáculos vulvares. Por isto, coloquei-a <strong>de</strong>itada <strong>de</strong>costas sobre o leito acolchoado e me <strong>de</strong>itei por cima, apontandomeu pénis rígido em direção à sua entrada vaginal.— Não costumo copular assim… — Ela sussurrou emmeu ouvido, enquanto procurava me manter afastado comas palmas <strong>das</strong> mãos apoia<strong>das</strong> em meu peito. — Pelo menos,não com alienígenas. Só <strong>de</strong>vo ser penetrada por machos daminha espécie.— Mas, por quê, minha querida? Não te satisfaço?Não estou te fazendo feliz?— Está, sim. Nunca foi tão gostoso assim com umalienígena! É raro que eu goze com um cliente. Você melambeu <strong>de</strong> um jeito que nenhum amante calífago soube fazer…Mas é que… Você não conhece a fisiologia sexualdo meu povo.— Tee’lak, querida, acredite, eu conheço muito bemtudo o que é preciso para copular contigo. Por favor, <strong>de</strong>ixe-meprovar o que afirmo.— Conhece mesmo?— Po<strong>de</strong> confiar em mim.— Humanos não po<strong>de</strong>m…— Este humano aqui é diferente, meu amor.— Tem certeza <strong>de</strong> que é isto mesmo que você <strong>de</strong>seja?— Absoluta. — Respondi, confiante.— E você sabe mesmo o que está fazendo?— Claro que sei, minha querida.Ela assentiu satisfeita e entreabriu as coxas azuis. Eume acomo<strong>de</strong>i entre elas e iniciei a penetração <strong>de</strong>vagar. Elaenlaçou minhas coxas com as pernas bem tornea<strong>das</strong> e cravousuas unhas duras em meus ombros, arranhando e rasgandominhas costas. A penetração foi difícil. A vagina<strong>de</strong> Tee’lak mostrou-se mais apertada do que eu imaginara.Gemeu baixinho em meu ouvido. Dor ou prazer? Nãopu<strong>de</strong> saber ao certo, embora torcesse para que houvessesido um pouco <strong>de</strong> ambos.Não imaginei que a cópula com uma calífaga pu<strong>de</strong>sseser tão maravilhosa…Os tentáculos <strong>de</strong> sua vulva acariciaram meu púbise testículos, à medida que eu a penetrava mais fundo acada nova investida. Seus lábios sequiosos encontraramos meus. Minha língua foi outra vez enlaçada por aquelestentáculos bucais que eu já sabia capazes <strong>de</strong> me levar àloucura.Estimulado na boca e no pénis pelos tentáculos e feromônios<strong>de</strong> Tee’lak, meu corpo era um dínamo conectadonum curto-circuito <strong>de</strong> prazer, fustigado por vagasorgásticas crescentes.On<strong>das</strong> <strong>de</strong> calor e excitação percorreram minha medula<strong>de</strong> cima a baixo, enquanto eu continuava bombeando vigorosamentepara <strong>de</strong>ntro da calífaga.Não sei quando comecei a gozar, mas meu orgasmopareceu interminável. A explosão prolongada <strong>de</strong> prazerme <strong>de</strong>ixou cego e eu só ouvia as bati<strong>das</strong> <strong>de</strong> nossos corações<strong>de</strong>scompassados e os haustos <strong>de</strong> nossas respiraçõesofegantes. Então, penetrei até o âmago <strong>de</strong> Tee’lak e parei<strong>de</strong> me mexer, mas continuei abraçado a minha bela alien,gozando, gozando e gozando…Devo ter <strong>de</strong>smaiado. Porém, mesmo <strong>de</strong>sfalecido,creio que continuei imerso nas profun<strong>de</strong>zas daquele orgasmocósmico por vários minutos ou horas. Afogava-meno universo fluido, quente e escuro do meu próprio prazer.Voguei naquele oceano universal e senti meu corpose dissolver pouco a pouco. Desintegrei-me. Minha individualida<strong>de</strong>se diluiu, até se fundir ao ovo cósmico <strong>de</strong> umnirvana explo<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> gozo.Não imagino por quantas horas permaneci <strong>de</strong>sacordadono abraço cálido e apaixonado <strong>de</strong> Tee’lak.Houvesse eu perecido ali, nos braços <strong>de</strong> minha amada,e teria morrido feliz.Quando <strong>de</strong>spertei afinal, julguei que ainda estava <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> Tee’lak, embora não sentisse mais a ereção.Rolei <strong>de</strong> cima <strong>de</strong>la e então senti aquele formigamentoesquisito, mas <strong>de</strong> modo algum doloroso, espalhando-sepelas virilhas.Tentei me tocar e, assustado, <strong>de</strong>scobri que minha mãonão conseguia encontrar meu membro!Levantei <strong>de</strong> um salto, apavorado, e olhei para baixo,constatando a ausência <strong>de</strong> meu pénis. Em seu lugar, haviaapenas esta cicatriz horrível. Este buraco recoberto porgrossa crosta <strong>de</strong> ferida.— Pelos Po<strong>de</strong>rosos! O que você fez comigo?!Ainda sonolenta, Tee’lak abriu os olhos e levantou acauda, observando a cicatriz sangrenta entre minhas pernas.— Ora, seu órgão sexual foi digerido durante a cópula.— Ela informou no tom mais cândido <strong>de</strong>ste mundo.— Digerido, como?!— Querido, você não me assegurou que sabia tudosobre a fisiologia sexual <strong>de</strong> meu povo?— Não!— Bem, julguei que soubesse que, entre os calífagos,o macho não ejacula <strong>de</strong>ntro da vagina da fêmea. — Elaesclareceu, impávida. — Os gametas masculinos permanecem<strong>de</strong>ntro do pénis. Para que as sementes do macho seunam à da fêmea, é preciso que a vagina dissolva o pénis…— Tee’lak, pelo amor dos Po<strong>de</strong>rosos, o que você mefez? É claro que eu não sabia…— Ao contrário do que eu temia, você não sentiu doralguma durante a digestão. Como nossos machos, vocêsó sentiu o prazer intenso e prolongado que sou capaz <strong>de</strong>induzir com a secreção <strong>de</strong> meus tentáculos. Como vocêé alienígena, temi que o transe orgástico não funcionassecontigo. Por isto, hesitei tanto em me <strong>de</strong>ixar penetrar.


Eu já estive com muitos humanos, mas jamais havia sidopenetrada por um, até hoje. Felizmente, meus temoreseram infundados. Você afirmou saber o que iria acontecer.Quando o processo funcionou direito conosco e vocêpermaneceu gozando por várias horas, eu soube que vocêestava certo, que havia falado a verda<strong>de</strong>. Você é <strong>de</strong> fatoum humano diferente!— Tee’lak, você <strong>de</strong>sgraçou minha vida!— Não exagere, querido. Sei perfeitamente que muitosmachos se sentem <strong>de</strong>primidos na primeira vez que seuspénis são digeridos. Como se a ausência do órgão implicasseperda <strong>de</strong> status ou masculinida<strong>de</strong>. Mas não importa.Logo crescerá um novo para substituir o que eu consumi.— Ah, meu Espírito Galáctico! — Comecei a chorar.— Você está querendo dizer que não vai nascer umpénis novo? — Num átimo, o tom <strong>de</strong> Tee’lak passou dacon<strong>de</strong>scendência simpática a um pesar assustado. — Masvocê me levou a crer que era um humano diferente… queera igualzinho aos calífagos neste ponto…Esta foi a história <strong>de</strong> minha paixão infinita <strong>de</strong> uma só noitepor minha bela calífaga Tee’lak.No amanhecer <strong>de</strong> nossa longa noite <strong>de</strong> amor, naquelasprimeiras horas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero após a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> minhaperda horrenda, tive ganas <strong>de</strong> estrangulá-la com minhaspróprias mãos. Mas <strong>de</strong>pois, caí em mim. Tee’lak não teveculpa. Fui vítima <strong>de</strong> minha própria ignorância.Ainda que reconhecesse a inocência <strong>de</strong>la, não me foipossível permanecer em seus aposentos ou no EstrelaAzul. Vesti-me como um autômato e saí para a rua aostropeções. Desnorteado, vagueei ao acaso até chegar aoVentos Uivantes lá pelo meio da manhã.A comandanta e os oficiais já começavam a se preocuparcomigo.Foi impossível ocultar minha <strong>de</strong>sgraça por muito tempo.Logo me tornei alvo <strong>de</strong> chacotas. Só então percebi oquão poucos amigos <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> eu possuía a bordo <strong>de</strong>ssemercante que eu consi<strong>de</strong>rava meu lar.E <strong>de</strong>scobri o quanto eu sempre fora menosprezadopelos preconceituosos que se abrigavam sob as cobertas<strong>de</strong> nossa nau, sujeitos que jamais aceitaram meu apetitepor alienígenas e que agora parecem secretamente satisfeitoscom minha <strong>de</strong>sdita. Como se julgassem que recebi apaga <strong>de</strong>vida e que agora <strong>de</strong>vo expiar por meus pecados…A comandanta afirmou ter ouvido falar que, fora doVale da Neblina, algures a leste do Planalto do Desespero,quiçá no legendário Império <strong>das</strong> Mil Raças, que muitosgarantem existir junto ao longínquo Oceano Oriental, hánúcleos humanos com tecnologia biomédica avançada.Talvez os sábios <strong>de</strong> lá possam reconstituir o órgão queTee’lak consumiu naquela única noite <strong>de</strong> paixão tórrida.Sei que, mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>, tomarei coragem esairei do Vale da Neblina para tentar encontrar esses núcleoshumanos avançados. Só espero que esse tal Impérionão seja apenas mais uma lenda <strong>de</strong>ste planeta amaldiçoado!Um dia, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> superar a vergonha, enfrentarei minhasfamílias e confessarei a minhas esposas e filhos <strong>de</strong>que forma perdi minha masculinida<strong>de</strong>. Só então po<strong>de</strong>reime <strong>de</strong>sfazer <strong>de</strong> tudo o que tenho e <strong>de</strong>ixá-los amparados,antes <strong>de</strong> romper com a vida que conheci ao longo do Rioda Névoa e partir em peregrinação às regiões <strong>de</strong>sconheci<strong>das</strong>do oriente, em busca da cura para minha <strong>de</strong>formida<strong>de</strong>.É só o que me resta.Enquanto o Ventos Uivantes singra para norte, <strong>de</strong>mandandocontra a corrente do Rio da Névoa, eu me recordo<strong>das</strong> horas <strong>de</strong> paixão ao lado <strong>de</strong> Tee’lak.Iludo-me, afirmando para mim mesmo que, soubesseeu do risco imenso que corria, jamais me teria aproximadoda calífaga.No fundo, sei que tal afirmação não passa <strong>de</strong> bravatavazia.Pois, por mais negro que o futuro me possa hoje parecer,não consigo sentir a mínima ponta <strong>de</strong> arrependimento.Vergonha pela <strong>de</strong>sonra da masculinida<strong>de</strong> perdida, istosim.Remorsos? Algumas vezes.Arrependimento, jamais.Afinal, guardo uma certeza em meu íntimo, bem maisfundo do que a dor da vergonha que ora me consome:pu<strong>de</strong>sse eu voltar atrás no tempo e começar tudo <strong>de</strong> novocom Tee’lak, faria tudo igual.Porque, apesar <strong>de</strong> tudo, hoje compreendo que ter <strong>de</strong>sgraçadominha vida foi um preço ínfimo a pagar, pela glóriaabsoluta daquela noite <strong>de</strong> amor com Tee’lak.E eu não trocaria minhas recordações daquela noite <strong>de</strong>sonho, nem mesmo pela possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> restaurar minhamasculinida<strong>de</strong> e, com ela, minha honra perdida.É provável que muitos <strong>de</strong> vocês não compreendam oporquê <strong>de</strong> eu não nutrir arrependimento.Não posso culpá-los.Vossa ignorância, no entanto, serve para comprovaro quão pouco vocês alienígenas conhecem <strong>das</strong> motivaçõesdos machos humanos… BANG!CONTO INSPIRADO NUMA IDÉIA DE CARLA CRISTINA PEREIRA.Gerson Lodi-Ribeiro é um escritor brasileiro <strong>de</strong> fi cçãocientífi ca, com formação em engenharia eletrônica e emastronomia pela UFRJ. Foi ofi cial da Marinha do Brasil,presi<strong>de</strong>nte do Clube <strong>de</strong> Leitores <strong>de</strong> Ficção Científi ca erecebeu o Prêmio Nova 1996 <strong>de</strong> Melhor Trabalho <strong>de</strong>FC e Fantasia por “O Vampiro <strong>de</strong> Nova Holanda”, jápublicado entre nós.Esta é a sua primeira colaboração para a Bang!18 19O KRAKEN (1830)POEMA DE A LFRED T ENNYSONDebaixo dos trovões <strong>das</strong> profun<strong>de</strong>zas superiores,muito, muito abaixono mar abismal,o seu antigo, sem sonhos, não invadido sonhoo Kraken dormia: <strong>de</strong>smaia<strong>das</strong> luzes solares voavamà volta dos seus lados sombrios; acima <strong>de</strong>le inchavamenormes esponjas <strong>de</strong> crescimento e altura milenárias.E muito longe naluz doentia<strong>de</strong> muitas maravilhosas e secretas célulasinumeráveis eenormes póliposjoeiravam com braços gigantes verduras vicejantes.Aí estava ele estendido há séculos, e assim continuarácevando-se sobre enormes vermes do mar no seu sonoaté o último fogo aquecer as profun<strong>de</strong>zas;E assim que por homem e por anjos for vistorugindo ele se ergueráe na superfíciemorrerá.


O DRUIDA DESOMERSBY1809 não foi só o ano em que nasceramAbraham Lincoln, Charles Darwin e EdgarAllan Poe: foi também o ano em que nasceuAlfred Tennyson, o mais importante poeta <strong>de</strong>língua inglesa do século XIX, cuja influência seespalhou e esten<strong>de</strong>u até aos nossos dias.Na verda<strong>de</strong>, a sua obra abrange uma gran<strong>de</strong>varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> temas e <strong>de</strong> estilos, mas a fantasia, ofantástico, o maravilhoso e o misterioso estão presentesem muitos dos seus trabalhos. E «Poemas»,que a Saída <strong>de</strong> Emergência acaba <strong>de</strong> editar (a primeiratradução para língua portuguesa, por mimrealizada, exclusivamente <strong>de</strong>ste autor em livro),inclui alguns <strong>de</strong>sses textos em que a imaginaçãoimpera: variações sobre a mitologia greco-romana,como «Ulisses» e «Titone»; seres e lugares (maisou menos) irreais, como «O Kraken», «As fa<strong>das</strong>do mar», «Os comedores <strong>de</strong> lótus» e «O Palácio daArte»; «encontros especiais», ou com figuras femininasdo passado em «Um sonho <strong>de</strong> mulheresformosas», ou com a consciência interior em «Asduas vozes»; len<strong>das</strong> <strong>de</strong> Camelot, em «A Senhora<strong>de</strong> Shalott», «Sir Galahad», «Sir Lancelot e a RainhaGuinevere» e «Morte <strong>de</strong> Artur».Em 2009 não só se comemora o bicentenário doseu nascimento mas também o centésimo quinquagésimoaniversário da sua visita a Portugal. Enas paisagens do nosso país po<strong>de</strong> ter encontradomuita da «magia» que havia procurado... e que oinfluenciaria em obras posteriores.POR OCTÁVIO DOS SANTOS20 21Alfred Tennyson nasceu a 6 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1809 emSomersby, Lincolnshire, Inglaterra, quarto filho (<strong>de</strong>um total <strong>de</strong> 12) <strong>de</strong> George Clayton Tennyson e <strong>de</strong>Elizabeth Fytche. Tanto o pai como o avô materno eramhomens do clero anglicano, tendo sido, respectivamente, vigários<strong>das</strong> vilas <strong>de</strong> Grimsby e <strong>de</strong> Louth. Foi na escola <strong>de</strong>staúltima que Tennyson iniciou em 1816 os seus estudos. Incentivadopelo pai, ele próprio um amador da arquitectura,música, pintura e poesia, começou a escrever os seus própriospoemas, frequentemente procurando seguir o estilo <strong>de</strong>um ídolo da juventu<strong>de</strong>: George Byron.O ano <strong>de</strong> 1827 é fundamental na vida <strong>de</strong> Alfred Tennysonpor mais <strong>de</strong> um motivo: publica, juntamente com osseus irmãos (mais velhos) Charles e Fre<strong>de</strong>rick, o seu (e <strong>de</strong>les)primeiro livro, «Poems By Two Brothers»; e entra naUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cambridge, mais concretamente no TrinityCollege; aí, em 1829, conhece e torna-se o melhor amigo <strong>de</strong>Arthur Henry Hallam, dois anos mais novo e filho <strong>de</strong> umhistoriador eminente da época, Henry Hallam. Também em1829 vence um prémio literário da universida<strong>de</strong> – a Medalha<strong>de</strong> Ouro do Chanceler – com o poema «Timbuctoo»,e tanto ele como Hallam são admitidos nos Apóstolos <strong>de</strong>Cambridge, uma socieda<strong>de</strong> (intelectual) secreta. No Verãodo ano seguinte ambos <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m alistar-se num exército revolucionárioespanhol contra o Rei Fernando VII; estacionadosnos Pirenéus, acabaram por não entrar em qualquerrecontro militar. Nesse mesmo ano <strong>de</strong> 1830 Tennyson publica«Poems, Chiefly Lyrical».Porém, o início da década <strong>de</strong> 30 virá a revelar-se funestopara Alfred Tennyson. Em 1831 morre o pai, o que fazcom que se veja obrigado a <strong>de</strong>ixar a Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Cambridge sem concluir os seus estudosnem obter um diploma, paraprover à sua mãeviúva erestante família.No ano seguinte,Edward, um dos seus irmãos maisnovos, é <strong>de</strong>clarado louco e é internado numasilo, on<strong>de</strong> viria a morrer. E em 1833 morre, súbita e inesperadamente,em Viena, vítima <strong>de</strong> uma hemorragia cerebral,Arthur Henry Hallam... que nesse mesmo ano havia ficadonoivo <strong>de</strong> Emily, uma <strong>das</strong> irmãs <strong>de</strong> Alfred. Tudo isto, conjugadocom as críticas negativas ao seu mais recente livro«Poems» (publicado em Dezembro <strong>de</strong> 1832 mas com data<strong>de</strong> 1833), faz com que Tennyson entre numa gran<strong>de</strong> tristezae mesmo em profunda <strong>de</strong>pressão, e ele promete a si próprionão publicar mais qualquer livro durante os <strong>de</strong>z anos seguintes.No entanto, continua a escrever: «The Two Voices»(«As duas vozes»), composto em 1834, é bem significativodo estado <strong>de</strong> espírito do poeta nesse – terrível, e até trágico– período da sua vida.Nos anos que se seguem o silêncio sobre Alfred Tennysonvai sendo – elogiosamente – quebrado, não tanto pelopróprio artista, mas por um número crescente <strong>de</strong> prestigiadosadmiradores, entre os quais John Stuart Mill, LeighHunt, Samuel Taylor Coleridge, Thomas Carlyle e WilliamThackeray. E enfim, em 1842, terminada a «década <strong>de</strong> abstinência»que ele impusera a si próprio, publica (o tambémintitulado) «Poems», obra em dois volumes – um contendopoemas inéditos e outro contendo poemas já conhecidosmas entretanto revistos. Desta vez as críticas são generalizadamentegenerosas, muito positivas. Todavia, o azar não<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> o assediar: em 1843 per<strong>de</strong> praticamente toda a suapequena fortuna – cerca <strong>de</strong> três mil libras – com a falência<strong>de</strong> uma empresa <strong>de</strong> trabalhos em ma<strong>de</strong>ira na qual investiradois anos antes. A sua frágil situação financeira – e a suafrágil saú<strong>de</strong> – só conhecerão melhoras em 1845 quando oentão primeiro ministro do Reino Unido, Robert Peel, lheconce<strong>de</strong> uma pensão governamental vitalícia <strong>de</strong> 200 librasanuais – a pedido <strong>de</strong> Henry Hallam, o pai do seu gran<strong>de</strong>amigo falecido 12 anos antes.A retribuição pelo favor concedido será feita, po<strong>de</strong> dizer-se– <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter publicado em 1847 «The Princess»,outra <strong>das</strong> suas obras mais conheci<strong>das</strong> (uma sátira sobre aeducação <strong>das</strong> mulheres, que será inclusivamente adaptada aoteatro musical por W. S. Gilbert) – em 1850: Alfred Tennysonpublica, finalmente, «In Memoriam A. H. H.», talvez asua obra-prima, e que é uma elegia, um tributo em honra doseu companheiro tão prematuramente <strong>de</strong>saparecido. Aliás,esse ano, a meio do século XIX, acaba por se revelar o maisimportante da vida <strong>de</strong> Tennyson, tanto ao nível profissionalcomo pessoal: em Novembro foi nomeado poeta laureado(isto é, poeta oficial) do Reino Unido, por proposta do PríncipeAlberto (marido da Rainha Vitória) em substituição – eapós a morte – <strong>de</strong> William Wordsworth; antes, em Junho,casou-se com Emily Sellwood, após um namoro/noivado/namoro que durou 14 anos!Alfred Tennyson retomara o convívio com a sua futuraesposa (já se conheciam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância porque o pai <strong>de</strong>lafora solicitador da família Tennyson durante muitos anos)em 1836, ano em que o seu irmão Charles se casou comLouisa Sellwood... uma <strong>das</strong> irmãs <strong>de</strong> Emily. Ela e Alfredficaram noivos em 1838, mas o noivado foi rompido doisanos <strong>de</strong>pois – supostamente, não só <strong>de</strong>vido à instável situaçãomonetária do poeta mas também <strong>de</strong>vido à sua religio-


sida<strong>de</strong> «insuficientemente ortodoxa» (pelo menos para Emily).Aspectos que, aparentemente, só <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois terãoficado satisfatoriamente consolidados, esclarecidos e resolvidos.O infortúnio abateu-se sobre o casal: um primeirofilho nasceu morto em 1851; mas tal já não aconteceu em1852, com o nascimento <strong>de</strong> Hallam, e em 1854, com o nascimento<strong>de</strong> Lionel. O casamento também significou o final<strong>de</strong> uma itinerância <strong>de</strong> Tennyson por várias localida<strong>de</strong>s: coma esposa estabeleceu-se em Twickenham, perto <strong>de</strong> Londres,e em 1853 alugou (três anos <strong>de</strong>pois compraria) a Casa <strong>de</strong>Farringford, em Freshwater, uma pequena cida<strong>de</strong> da ilha <strong>de</strong>Wight – on<strong>de</strong> permanecerá pelo menos uma parte <strong>de</strong> cadaano até ao fim da vida. Antes havia residido, após a mortedo pai e com ou sem a família, em Epping, Tunbridge Wells,Boxley, Cheltenham e também na capital inglesa.A estabilida<strong>de</strong> familiar e financeira <strong>de</strong> Alfred Tennysoncomeça a ter consequências (positivas) na sua obra. Em1854 escreve, enquanto poeta laureado, aquele que é talvezo seu poema mais famoso, «The Charge of the Light Briga<strong>de</strong>»(«A Carga da Brigada Ligeira»), que enaltece um acto <strong>de</strong>coragem do exército britânico durante a Guerra da Crimeia,ocorrido naquele ano; este poema será incluído em «Maud,And Other Poems», livro publicado em 1855. Durante todaa década <strong>de</strong> 50 os seus poemas são crescentemente objecto<strong>de</strong> disputa entre várias publicações periódicas, que oferecemsomas consi<strong>de</strong>ráveis pelo privilégio <strong>de</strong> os publicar em primeiramão – o nome <strong>de</strong> Tennyson aparecerá assim nas páginasda Cornhill Magazine, Examiner, Fraser’s, Macmillan’sMagazine, Morning Chronicle, New Review, NineteenthCentury, Once a Week, Punch, entre outras. Em 1859 é editada(a primeira parte <strong>de</strong>) «Idylls Of The King», obra queo consagrará <strong>de</strong>finitivamente, não só enquanto o poeta <strong>de</strong>língua inglesa mais importante do seu tempo, mas tambémenquanto um dos principais responsáveis pelo revivalismo,no século XIX (e que se prolonga pelo século XX e até aosnossos dias), do chamado «Ciclo Arturiano» – as len<strong>das</strong> <strong>de</strong>Camelot, do Rei Artur, Merlim e dos Cavaleiros da TávolaRedonda. Foi igualmente um enorme sucesso: terá vendidocerca <strong>de</strong> 10 mil exemplares só na primeira semana após olançamento, em Junho.Dois meses <strong>de</strong>pois, a 21 <strong>de</strong> Agosto, chega <strong>de</strong> navio aLisboa para uma visita à capital <strong>de</strong> Portugal e aos seus arredores,em particular Sintra. O poeta quis conhecer as mesmaspaisagens que, além <strong>de</strong> George Byron (exactamente 50anos antes, em Julho <strong>de</strong> 1809), Robert Southey e WilliamBeckford haviam conhecido e elogiado. No nosso país éentão Rei D. Pedro V; António José Sousa Manuel <strong>de</strong> MenesesSeverim <strong>de</strong> Noronha, Duque da Terceira, é primeiroministro... e Fontes Pereira <strong>de</strong> Melo é ministro. AlexandreHerculano tem 49 anos, Camilo Castelo Branco tem 34... eEça <strong>de</strong> Queiroz 14.Apesar <strong>das</strong> dificulda<strong>de</strong>s por que foi passando nos anosanteriores, Alfred Tennyson ia conseguindo ocasionalmenteos meios e as oportunida<strong>de</strong>s para fazer viagens a outros paíseseuropeus. Em 1832, ainda com Arthur Henry Hallam,percorreu (na actual Alemanha) a região do Reno; em 1846foi à Suíça com Edward Moxon, o seu editor; em 1848 <strong>de</strong>slocou-seà Irlanda; em 1851 visitou a Itália com Emily.A viagem a Portugal foi feita na companhia <strong>de</strong> doisamigos: Francis Turner Palgrave, que viria a notabilizar-senão só enquanto poeta, crítico e professor <strong>de</strong> poesia (naUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Oxford), mas também, e principalmente,por ser o organizador da antologia «The Gol<strong>de</strong>n Treasuryof English Songs and Lyrics», em cujo primeiro volume,publicado em 1861, colaborou Alfred Tennyson; e FlorenceCraufurd Grove, então estudante <strong>de</strong> Direito, mas que, maisdo que advogado, ficaria conhecido como alpinista, tendoescalado os Alpes e o Monte Elbrus, e escrito, a propósito<strong>de</strong>ste último (a maior montanha da Europa, na Rússia), o livro«The Frosty Caucasus» (1875). Os pormenores da visitado poeta inglês a seguir referidos foram retirados do artigo«Tennyson e Portugal», <strong>de</strong> Maria Aline Ferreira, publicadona Revista <strong>de</strong> Estudos Anglo-Portugueses (do Centro <strong>de</strong>Estudos Comparados <strong>de</strong> Línguas e Literaturas Mo<strong>de</strong>rnas daFaculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Sociais e Humanas da Universida<strong>de</strong>Nova <strong>de</strong> Lisboa), Nº 4, 1995 (páginas 133 a 149).Hospedados no Hotel Bragança, os três amigos percorreramLisboa ainda a 21 e a 22 <strong>de</strong> Agosto... dias <strong>de</strong> muitocalor. Visitaram o Mosteiro dos Jerónimos, a Sé, a Igreja <strong>de</strong>São Vicente <strong>de</strong> Fora e o Jardim Botânico da Ajuda... e gostaramtanto da «exótica e luxuriante vegetação» do jardim queo visitaram uma segunda vez. Alfred Tennyson terá ficadotão impressionado com o local que po<strong>de</strong>rá tê-lo recordado,e utilizado, enquanto inspiração para poemas posteriores,em especial «Enoch Ar<strong>de</strong>n»; porém, ficou <strong>de</strong>sagradadopor encontrar o cemitério (inglês) protestante encerrado...porque queria ver o túmulo <strong>de</strong> Henry Fielding, o autor <strong>de</strong>«Tom Jones», falecido na capital portuguesa em 1754. A 23<strong>de</strong> Agosto partiram para Sintra, on<strong>de</strong> chegaram após umaviagem <strong>de</strong> três horas; visitaram o castelo, o Parque e o Palácioda Pena, o Palácio da Vila, a Quinta e o Palácio <strong>de</strong>Monserrate (on<strong>de</strong> William Beckford habitara quase 70 anosantes), Colares e a Praia <strong>das</strong> Maçãs – on<strong>de</strong> «permaneceramlongamente, admirando os pescadores, a gran<strong>de</strong> quietu<strong>de</strong>do local e o oceano Atlântico». De volta a Lisboa a 26 <strong>de</strong>Agosto, os três ingleses assistiram a uma tourada no Cam-22 23po <strong>de</strong> Santana, tendo apreciado a «forma menos violenta ecruel (em comparação com Espanha) <strong>de</strong> tratar os touros». A5 <strong>de</strong> Setembro, e já sem Grove, que entretanto partira, Palgravee Tennyson foram a Santarém, on<strong>de</strong>, mais do que docastelo (em ruínas...), dos conventos e <strong>das</strong> igrejas, gostaramda vista sobre o vale da cida<strong>de</strong> e as «longas curvas do ver<strong>de</strong>Tejo». Finalmente, a 7 <strong>de</strong> Setembro, embarcaram <strong>de</strong> regressoa Inglaterra – não concretizando, assim, o plano inicialda viagem, que previa também viagens a Cádis, Granada,Málaga, Sevilha, Gibraltar e Tânger.As cartas e as entra<strong>das</strong> dos diários sobre a viagem a Portugalescritas por Alfred Tennyson e pelos seus companheiros<strong>de</strong>monstram que a impressão inicial não muito agradável– ou mesmo <strong>de</strong>sagradável – se tornou numa impressãofinal agradável, ou pelo menos favorável. Na verda<strong>de</strong>, além<strong>de</strong> com as pulgas, os mosquitos e as moscas, os viajantes inglesespenaram principalmente, como seria <strong>de</strong> esperar, como calor – Tennyson chegou mesmo a sofrer (além <strong>de</strong> umador <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes) uma insolação, que, apesar <strong>de</strong> ligeira e prontamentetratada por um médico seu compatriota, o levou arecear que po<strong>de</strong>ria ter o mesmo <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Henry Fielding...Além disso, admitiu, em carta enviada à esposa, que «Sintra<strong>de</strong>sapontou-me à primeira vista, e talvez vá continuar a <strong>de</strong>sapontar-me,apesar <strong>de</strong>, para os olhos do Sul, os seus semprever<strong>de</strong>s pomares, em contraste com o aspecto árido e ressequidoda paisagem, <strong>de</strong>verem parecer muito adoráveis.» Masa beleza dos lugares (apesar <strong>de</strong> não correspon<strong>de</strong>rem, então,à antiga imagem superlativa <strong>de</strong>senhada por Byron, Southeye Beckford) e a simpatia <strong>das</strong> gentes levaram-no a escrever<strong>de</strong>pois que «eu gosto muito mais do sítio à medida que ovou conhecendo melhor». Isto apesar <strong>de</strong> não ter conseguidomanter o anonimato: <strong>de</strong> nada serviu registar-se no HotelBragança como «E. Tennyson» porque foi reconhecido porum jornalista... inglês, <strong>de</strong> apelido Lewtes, correspon<strong>de</strong>nte doDaily News, que escreveu e fez publicar, na edição do Jornaldo Commercio <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> Agosto, uma notícia dando contada chegada a Lisboa <strong>de</strong> «Mr. Alfredo Tennyson, o poeta laureadoda Inglaterra (...), (que) po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado como oprimeiro poeta inglês da actualida<strong>de</strong>. Se é inferior a Byrone a (Thomas) Moore, po<strong>de</strong> pôr-se a par <strong>de</strong> Southey e <strong>de</strong>Wordsworth. (...) Publicou há apenas dois meses “Idylls OfThe King”, (que) se por um lado lhe granjeou muitos inimigos,por outro lhe atraiu numerosos amigos e admiradores esuscitou gran<strong>de</strong> controvérsia entre as parcialida<strong>de</strong>s literáriaspela novida<strong>de</strong> do seu estilo caprichoso que não tem imitadorna língua inglesa.» E que terminava com o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> que«o ilustre poeta encontre no <strong>de</strong>licioso retiro <strong>de</strong> Sintra amenadistracção e <strong>de</strong>scanso dos seus trabalhos literários, longe<strong>das</strong> conten<strong>das</strong> <strong>de</strong> escolas rivais.» A partir daqui Tennyson«não parou <strong>de</strong> ser assediado por admiradores» e caçadores<strong>de</strong> autógrafos, vários dos quais «membros <strong>de</strong>stacados daaristocracia (portuguesa), <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> o conhecer.» Alguns<strong>de</strong> entre eles o poeta não conseguiu i<strong>de</strong>ntificar – refere nassuas cartas «o Marquês <strong>de</strong> Figueros ou outro som parecido»e «um certo D. Pedro qualquer coisa». Contudo, haveráalguém que se lhe apresenta sem <strong>de</strong>ixar margempara dúvi<strong>das</strong>: João Carlos Gregório DomingosVicente Francisco <strong>de</strong>Saldanha Oliveirae Daun,Duque <strong>de</strong>Saldanha. O veteranomarechal dirigiu-se ao visitanteinglês na sala <strong>de</strong> jantar do Hotel Bragança e«<strong>de</strong>screveu-se a ele próprio como “tendo combatido sobo gran<strong>de</strong> Duque (<strong>de</strong> Welllington, Arthur Wellesley, duranteas invasões francesas), e tendo estado em duzentos e quarentacombates e bem sucedido em todos, e tendo casadocom duas esposas inglesas, ambas mulheres perfeitas”...e terminou apo<strong>de</strong>rando-se da minha mão e exclamando:“Quem é que não conhece o poeta laureado <strong>de</strong> Inglaterra?”»Já em Farringford, e em carta <strong>de</strong> 3 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 1859dirigida ao seu amigo George Campbell, Duque <strong>de</strong> Argyll,Alfred Tennyson recorda que «fui (a Portugal) para veraquela Sintra que Byron e Beckford fizeram tão famosa; masas laranjeiras estavam to<strong>das</strong> mortas <strong>de</strong> doença, e os caudaiscristalinos, com a excepção <strong>de</strong> alguns regatos salpicantes àbeira da estrada, ou secaram ou foram <strong>de</strong>sviados através <strong>de</strong>não vistos túneis para o gran<strong>de</strong> aqueduto <strong>de</strong> Lisboa. A<strong>de</strong>mais,o lugar é castiço («cockney», no original) e quando euestive lá estava abarrotado com janotas lisboetas e nobrezaportuguesa. (...) Sintra não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter as suas belezas,sendo uma montanha <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>s pinheiros erguendo-se <strong>de</strong>uma região árida e trigueira circundante, com um fantásticocastelo mourisco no cume, que comanda uma gran<strong>de</strong> extensãodo Atlântico e a boca do Tejo; aqui na torre mais altasentou-se o Rei – dizem eles – dia a dia nos velhos tempos<strong>de</strong> Vasco da Gama vigiando o seu regresso, até que ele o viuentrar no rio; esse talvez fosse um momento merecedor <strong>de</strong>ter sido esperado.»Ainda em 1859, em Dezembro, é editada a primeira ediçãoilustrada <strong>de</strong> «The Princess» - que se tornará uma <strong>das</strong>principais, e preferi<strong>das</strong>, pren<strong>das</strong> <strong>de</strong> Natal inglesas duranteos 10 anos seguintes. Além <strong>das</strong> reedições, outros novoslivros se seguirão a um ritmo mais ou menos regular <strong>de</strong>


publicação: «Enoch Ar<strong>de</strong>n» (1864); «The Holy Grail, AndOther Poems» (1869); «The Window» (1870); «Gareth AndLynette» (1872, segunda parte <strong>de</strong> «Idylls Of The King»);«The Lover’s Tale» (1879); «Ballads, And Other Poems»(1880); «Tiresias, And Other Poems» (1885); «Locksley HallSixty Years After» (1886); «Demeter, And Other Poems»(1889); «The Death Of Oenone, And Other Poems» (1892).Isto em poesia. Entretanto, Alfred Tennyson também experimentouo teatro: «Queen Mary» (1875, estreada no palcoem 1876); «Harold» (1876); «The Falcon» (1884, estreadano palco em 1879); «The Cup» (1884, estreada no palco em1881); «Becket» (1884, estreada no palco em 1893); «TheForesters» (1892, estreada no palco no mesmo ano – umapeça baseada na lenda <strong>de</strong> Robin dos Bosques).Em 1862, Alfred Tennyson tem, em Abril, a sua primeiraaudiência com a Rainha Vitória – uma ocasião quese revelou emocional para ambos <strong>de</strong>vido à morte recentedo Príncipe Alberto (em Dezembro <strong>de</strong> 1861). O encontroentre a soberana e o poeta laureado <strong>de</strong>u-se no Palácio <strong>de</strong>Osborne, então a residência <strong>de</strong> Verão da família real inglesa,na (zona leste da) ilha <strong>de</strong> Wight. Ou seja, eram quasevizinhos. E a Casa <strong>de</strong> Farringford (na zona oeste da ilha)começou também a ficar conhecida pelos amigos, convidadose visitantes que Tennyson atraía, entre os quais CharlesDarwin, George Fre<strong>de</strong>rick Watts, Guiseppe Garibaldi, HenryJames, Lewis Carroll, Robert Browning e Julia MargaretCameron. Esta, uma <strong>das</strong> pioneiras da fotografia, retratistado poeta e <strong>de</strong> outros notáveis da época, foi também tiaavó<strong>de</strong> Virginia Woolf, que escreverá, em 1923, uma peça<strong>de</strong> teatro intitulada «Freshwater: A Comedy» sobre as individualida<strong>de</strong>sque confluíam na pequena cida<strong>de</strong> da ilha <strong>de</strong>Wight. No entanto, Farringford não será a última casa a serhabitada por Tennyson: em 1868 iniciou-se a construção –numa colina <strong>de</strong>nominada Blackdown que o poeta comprou– <strong>de</strong> Aldworth, a sua residência em Haslemere, Sussex, queficou concluída no ano seguinte. É <strong>de</strong> realçar que a últimamorada <strong>de</strong> Tennyson foi <strong>de</strong>senhada pelo arquitecto JamesKnowles, que também <strong>de</strong>lineara, <strong>de</strong>z anos antes, a remo<strong>de</strong>lação/reconstrução(que <strong>de</strong>finiu a forma actual) do Palácio<strong>de</strong> Monserrate, em Sintra.Serão os seus dois lares que comporão o título nobiliárquicoatribuído pela Rainha Vitória a Alfred Tennyson. A 11<strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 1884 tomou o seu lugar na Câmara dos Lor<strong>de</strong>s,no Parlamento <strong>de</strong> Londres, como Barão <strong>de</strong> Aldworth noCondado <strong>de</strong> Sussex e <strong>de</strong> Freshwater na Ilha <strong>de</strong> Wight. Oseu amigo William Gladstone (com quem fundou, em 1869,e com outros pensadores proeminentes daquele período, aSocieda<strong>de</strong> Metafísica), então (novamente) primeiro ministrodo Reino Unido (e também nascido em 1809, mas a 29<strong>de</strong> Dezembro), terá finalmente conseguido em 1883, apósuma viagem que ambos fizeram à Dinamarca, convencero poeta laureado a tornar-se também o primeiro escritoringlês, súbdito, cidadão comum, a ascen<strong>de</strong>r à nobreza pelosseus méritos enquanto artista; antes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> meados da década<strong>de</strong> 60, várias tentativas nesse sentido haviam falhadoperante a recusa <strong>de</strong> Tennyson, duas <strong>das</strong> quais conduzi<strong>das</strong>por outro primeiro ministro, Benjamin Disraeli. Esta honrapo<strong>de</strong> ter constituído igualmente para o poeta como que umavingança, um ajuste <strong>de</strong> contas com o <strong>de</strong>stino... e com umaparte da família: o pai <strong>de</strong> Tennyson, George Clayton, haviasido <strong>de</strong>serdado pelo seu pai, George, a favor do irmão maisnovo, Charles, que acrescentaria o apelido d’Eyncourt ao<strong>de</strong> Tennyson. Apesar <strong>de</strong> muito mais rico e <strong>de</strong> também tertentado, sem sucesso, obter um título nobiliárquico, o tio<strong>de</strong> Tennyson – que não se eximia <strong>de</strong> criticar publicamente,e <strong>de</strong>preciativamente, a obra do sobrinho, além <strong>de</strong> nunca oter auxiliado em particular nem à família do irmão em geral– acabaria por assistir ao aumento da fama e da fortuna dopoeta... e à sua ascensão social.Na fase final da vida <strong>de</strong> Lord Alfred Tennyson a suaaclamação enquanto figura pública foi constante e até crescente;todavia, na esfera privada, pessoal e familiar conheceumomentos amargos e doces. Em 1878 nasceu o seu primeironeto, Alfred Browning Stanley Tennyson, filho <strong>de</strong> Lionel;este, porém, morreu prematuramente, em 1886, vítima <strong>de</strong>malária, a bordo <strong>de</strong> um barco perto <strong>de</strong> A<strong>de</strong>n, numa viagemda Índia para Inglaterra. Hallam foi por sua vez pai em1889: o segundo neto <strong>de</strong> Alfred Tennyson recebeu o nome<strong>de</strong> Lionel Hallam Tennyson; o pai, por sua vez, distinguiu-seenquanto autor da biografia «Alfred Tennyson: A Memoir»,publicada em 1897, e por ter sido Governador Geral daAustrália; morreu em 1928, em Farringford. Enfim, o poetalaureado morreu a 6 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 1892 em Aldworth, efoi sepultado na Abadia <strong>de</strong> Westminster em Londres.Lord Alfred Tennyson foi, e é, o poeta inglês mais populardo século XIX e um dos mais famosos e admirados <strong>de</strong>sempre; a dignida<strong>de</strong>, frontalida<strong>de</strong>, profundida<strong>de</strong> e versatilida<strong>de</strong>(em estilos e em temas), características da sua poesia,foram também características da sua vida. Por algum motivoele é o segundo nome com mais citações no «The OxfordDictionary of Quotations», só atrás <strong>de</strong> William Shakespeare.Contudo, e ao contrário do «bardo <strong>de</strong> Stratford-upon-Avon», sobre o «trovador (ou druida?) <strong>de</strong> Somersby» nãoexistem quaisquer dúvi<strong>das</strong> quanto à sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e à autoria<strong>das</strong> suas obras. BANG!Octávio dos Santos nasceu em Lisboa a 16 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong>1965. É jornalista e foi redactor, entre outras, <strong>das</strong> revistasCyber.Net, Inter.Face e Comunicações. Por artigos nelaspublicados foi distinguido (com, respectivamente, umprimeiro lugar, uma menção honrosa e um co-primeirolugar ex-aequo) em três anos consecutivos (1998,1999 e 2000) com Prémio <strong>de</strong> Jornalismo Socieda<strong>de</strong>da Informação. Colaborou também com, entre outros,o Diário <strong>de</strong> Notícias, Diário Digital, Diário Económico,Expresso, Público e Vértice. É autor <strong>de</strong> “Visões”, livroinserido na colecção Bibliotheca Phantastica dirigidapor António <strong>de</strong> Macedo (2003, Hugin; áudio-livro em2005, SbH). É co-autor <strong>de</strong> “Os Novos Descobrimentos– Do Império à CPLP: Ensaios sobre História, Política,Economia e Cultura Lusófonas” (2006, Almedina). Foio organizador e um dos 14 autores participantes <strong>de</strong> “ARepública Nunca Existiu!” (2008, Saída <strong>de</strong> Emergência).É autor <strong>de</strong> “Espíritos <strong>das</strong> Luzes” (2009, Gailivro). Émembro, entre outras entida<strong>de</strong>s, da Simetria - AssociaçãoPortuguesa <strong>de</strong> Ficção Científi ca e Fantástico on<strong>de</strong><strong>de</strong>senvolve, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2006, o projecto Simetria Sonora.24 25


“Atravessaram uma praça on<strong>de</strong> havia grupos <strong>de</strong> cegos que se entretinhama escutar os discursos doutros cegos, à primeira vistanão pareciam cegos nem uns nem outros, os que falavam viravaminflamadamente a cara para os que ouviam, os que ouviam viravamatentamente a cara para os que falavam.”ENSAIOAprerrogativa <strong>de</strong> se ser humano talvez consista em, comoescreveu Walter Benjamin, «contemplar a nossa <strong>de</strong>struiçãocomo um requintado prazer estético» 1 . Um significado queatribuo a esta transcrição é que a catástrofe torna-se em verda<strong>de</strong>iraapoteose ao ser virada do avesso; e, como tal, ascen<strong>de</strong>para lá do alcance da moral para ser introduzida no reinodos sentidos. Se, nesse caso, já não nos é permitido julgar atragédia, nem as suas causas ou sequer calcular os danos, éverda<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos saboreá-los. Existem escritores queconseguem exprimir muitíssimo bem essa noção, seja emque género narrativo for, mas uma área da literatura em queela é amplificada com maior arrojo é o Fantástico; em particularna ficção científica e no horror.A <strong>de</strong>sagregação da socieda<strong>de</strong> é um assunto que seapresenta com diversos disfarces; aquele que me interessaobservar neste texto é o tema do indivíduo solitário contraum mundo que se transformou num cenário distinto daqueleque ele conheceu toda a vida. Vou-lhe chamar, provisoriamente,o tema da “Inconformida<strong>de</strong>”; e é sob essa orientaçãoque vou olhar para dois livros em que o objecto é similar.Um título <strong>de</strong> literatura erudita e outro <strong>de</strong> literatura popular,escolhidos por mim; tal como é prescrito pelo <strong>de</strong>safio doeditor da revista BANG!, ao qual respondo: Ensaio Sobre aCegueira <strong>de</strong> José Saramago (Editorial Caminho, 1995) e O<strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s <strong>de</strong> John Wyndham (Doubleday, 1951). Emambas as histórias, a <strong>de</strong>sagregação da socieda<strong>de</strong>, mencionadano início <strong>de</strong>ste parágrafo, cumpre-se pelo artifício dacegueira colectiva, num contexto em que toda a gente ficacega <strong>de</strong> um momento para o outro, <strong>de</strong> modo misterioso.Toda a gente, excepto uma pessoa; e é <strong>de</strong>ssa singularida<strong>de</strong>que nasce o drama.No livro <strong>de</strong> Saramago, a personagem com a qual o leitorse i<strong>de</strong>ntifica é uma mulher e no livro <strong>de</strong> Wyndham é um homem.Ela é dada a conhecer, somente, pela <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong>“a mulher do médico”; ele aten<strong>de</strong> pelo nome <strong>de</strong> Bill Masen.Está estabelecida uma <strong>das</strong> diferenças entre os dois objectosque analisarei: a história <strong>de</strong> Ensaio Sobre a Cegueira ocorrenum local sem nenhumas referências espaciais e temporaisque o caracterizem como baseado no real; o enredo <strong>de</strong> O<strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s é plasmado na Inglaterra, durante a década<strong>de</strong> cinquenta do século XX. A falta <strong>de</strong> alusões no romance<strong>de</strong> Saramago opera um efeito interessante: transmiteao leitor uma sensação <strong>de</strong> cegueira distanciada – não umameta-cegueira, mas uma infra-invisualida<strong>de</strong>. Contudo, pensoque será mais justo esclarecer que prefiro o livro escritopor John Wyndham; e que essa preferência, subjectiva, fruida seguinte percepção: esse autor reflectiu <strong>de</strong> modo mais1 “Illuminations” (Schocken, 1969. Pág. 242).pertinente sobre os efeitos que uma cegueira colectiva po<strong>de</strong>riasurtir; não só na esfera íntima <strong>das</strong> células que são aspersonagens, como no todo do organismo que é o mundoem que o contágio enigmático se espalha. Por conseguinte,não me interessa discorrer sobre se o livro escrito porJosé Saramago se inscreve no género do Fantástico e, porinclusão, na área da ficção-científica (mesmo i<strong>de</strong>ntificandoum elevado grau <strong>de</strong> parentesco entre o registo que costumaestar presente em obras <strong>de</strong>ssa natureza e aquele que sepo<strong>de</strong> ler em Ensaio Sobre a Cegueira). A minha curiosida<strong>de</strong> éestimulada pela busca em perceber como o mesmo tema,neste caso o da Inconformida<strong>de</strong>, por intermédio <strong>de</strong> umacegueira partilhada, é <strong>de</strong>senvolvido tanto por um autor <strong>de</strong>literatura popular, como por outro escritor <strong>de</strong> literaturaerudita; e se já revelei uma preferência, elegendo O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong>Trífi <strong>de</strong>s como o predilecto, admito que farei o possível paraque ela não se transforme numa tendência; ou seja, a apreciaçãoserá imparcial.É útil con<strong>de</strong>nsar o enredo dos trabalhos, em duas sinopses,antes <strong>de</strong> avançar.Ensaio sobre a Cegueira Numa fila <strong>de</strong>trânsito, um automobilista anónimo é atingido por uma cegueirarepentina, que o faz ver tudo branco, e que contagiaaqueles que com ele contactam; a origem da doença nuncaé revelada no <strong>de</strong>curso do romance. A cegueira brancamostra ser muitíssimo virulenta e, aparentemente, incurável.O governo elabora um plano para evitar que o contágio seespalhe pelo resto do país e or<strong>de</strong>na ao exército que reúnatodos os cegos, assim como os suspeitos <strong>de</strong> contágio, paraos isolar num manicómio abandonado. Dentro do edifício,<strong>de</strong>teriorado e com péssimas condições <strong>de</strong> higiene, os cegose os não-cegos são <strong>de</strong>ixados às suas sortes, sem qualquerassistência médica, e lutam <strong>de</strong>sesperados por encontrar umarotina que se assemelhe a uma vida que já não é sua. Depois<strong>de</strong> um conflito armado, que opõe cegos e militares, um pequenogrupo <strong>de</strong> cegos, li<strong>de</strong>rado pela mulher <strong>de</strong> um médico,a única personagem que consegue ver (e que, entretanto,tem servido <strong>de</strong> enfermeira aos incapacitados), escapa do encarceramentoe encontra na cida<strong>de</strong> envolvente um mundohostil que urge evitar a todo o custo. Durante esse percursoterrível, os cegos vão encontrar mais personagens. Em seguida,o grupo refugia-se numa casa on<strong>de</strong> tenciona recuperara dignida<strong>de</strong> perdida, mas a cegueira branca, <strong>de</strong> súbito,<strong>de</strong>saparece tão inesperadamente quanto apareceu. Incrédu-26 27los, os ex-cegos olham pelas janelas e não compreen<strong>de</strong>m aalegria sentida pelos cidadãos que <strong>de</strong>ambulam entre a miséria.O mundo <strong>de</strong>les nunca mais voltará a ser o mesmo.O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi<strong>de</strong>s Certa noite, uma raríssimapassagem <strong>de</strong> asterói<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> bizarra luminescência ver<strong>de</strong>,cega toda a população mundial que assiste ao fenómeno.Na manhã seguinte, Bill Masen <strong>de</strong>sperta num hospital <strong>de</strong>Londres, on<strong>de</strong> recupera <strong>de</strong> um aci<strong>de</strong>nte que o obriga a ter osolhos cobertos por ligaduras; horas <strong>de</strong>pois, quando suspeitaque ninguém virá vê-lo, levanta-se da cama, intrigado, tira asligaduras e <strong>de</strong>scobre que é, até prova em contrário, o únicohomem que consegue ver. Como se a cegueira não fossemal suficiente, o risco aumenta quando uma espécie vegetal,chamada Trífi<strong>de</strong>, se aproveita do caos para invadir a cida<strong>de</strong>e atacar os in<strong>de</strong>fesos. Na narrativa, as trífi<strong>de</strong>s são plantasque possui um comportamento animal: têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> se<strong>de</strong>senraizar e usar três pedúnculos para se locomoverem.Usam um apêndice tóxico para paralisar as pessoas. Comoesta espécie, <strong>de</strong> origem <strong>de</strong>sconhecida, já coexistia com oshomens, sendo até usada para a manufactura <strong>de</strong> diversosprodutos, Masen é incapaz <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r se ela apenas aproveitoua cegueira repentina para tomar conta do mundo ouse toda aquela situação faz parte <strong>de</strong> um plano elaborado. Nafuga às trífi<strong>de</strong>s, que estão espalha<strong>das</strong> por todo o lado, tendosido perfeitamente integra<strong>das</strong> na socieda<strong>de</strong> durante anos,Masen encontra múltiplos grupos <strong>de</strong> cegos e <strong>de</strong> não-cegosque se organizaram <strong>das</strong> mais varia<strong>das</strong> formas: uns encontramna adversida<strong>de</strong> uma razão criar laços <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong>,outros <strong>de</strong>ixam-se levar pelos piores instintos. Inversamentea Ensaio Sobre a Cegueira, a doença <strong>de</strong> O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s nuncachega a ser vencida. Num mundo falido, Masen acaba sozinho;fazendo o possível não só por sobreviver, mas porencontrar sentido numa existência que se esgota a si própria.O mundo inteiro nunca mais voltará a ser o mesmo.Po<strong>de</strong>r e vulnerabilida<strong>de</strong>: rituais <strong>de</strong>sujeição Tanto Ensaio Sobre a Cegueira como O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong>Trífi <strong>de</strong>s, ao fazerem da cegueira o objecto dos seus horroressociais e físicos, escolheram concentrar-se nas reacções <strong>de</strong>personagens pertencentes à classe média: não existem personagens<strong>de</strong> outras classes que tenham uma voz activa nessesdois romances. Esta <strong>de</strong>finição “média” escon<strong>de</strong>, <strong>de</strong> certeza,opiniões políticas e serve <strong>de</strong> memorando para o factoque a classe média é, na verda<strong>de</strong>, vital para o funcionamentodo sistema social que foi instaurado no mundo oci<strong>de</strong>ntalapós o término da Segunda Gran<strong>de</strong> Guerra. É interessantenotar, ainda, o seguinte: Wyndham nunca oferece umaorigem para as trífi<strong>de</strong>s, mas sugere, pela voz <strong>de</strong> Masen, umfuncionário que trabalhou a vida toda em contacto com essaespécie, que ela foi <strong>de</strong>senvolvida artificialmente nos laboratóriosda União Soviética (uma escolha autoral que, <strong>de</strong> certezaabsoluta, se alimentou do burburinho que foi provocadopelo trabalho <strong>de</strong> Trofim Denisovich Lysenko, o director doInstituto <strong>de</strong> Ciências Agrícolas do Partido Comunista, durantea ditadura <strong>de</strong> Estaline, cujas medi<strong>das</strong> geneticistas paraoptimizar o crescimento dos cereais apavoraram as opiniõespúblicas europeia e norte-americana quando os preceitoscomeçaram a ser utilizados para purgar as populações<strong>de</strong> instintos capitalistas). Atentando a isso é fácil <strong>de</strong>scobrirreceios <strong>de</strong> uma invasão comunista em O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s, publicadono período clássico da guerra-fria; um receio que,<strong>de</strong> modo menos transversal, está contido em A Invasão dosVioladores <strong>de</strong> Jack Finney (1954). Contudo, as trífi<strong>de</strong>s tambémpo<strong>de</strong>rão ter uma origem extraterrestre; i<strong>de</strong>ia reforçadapela passagem da chuva <strong>de</strong> asterói<strong>de</strong>s, responsável pela cegueira– estariam à espera <strong>de</strong>sse momento para se revelaremcomo invasoras? Sejam as trífi<strong>de</strong>s produtos transgénicos ouorganismos oriundos <strong>de</strong> outra galáxia, Wyndham não per<strong>de</strong>tempo com elaborações sobre a origem <strong>de</strong>las e investe, comagilida<strong>de</strong>, no <strong>de</strong>senvolvimento do drama pessoal <strong>de</strong> Masen ea sua busca por outros indivíduos que consigam ver. Nessaóptica, assemelha-se à direcção que Saramago imprime emEnsaio Sobre a Cegueira: os efeitos provocados pela epi<strong>de</strong>miatêm uma dimensão maior que a especulação sobre a suaprocedência ou a busca por uma cura.O tema da Inconformida<strong>de</strong> é introduzido aqui: as personagensnas quais os leitores se reconhecem (a mulher domédico e Bill Masen) são aquelas que se cifram como anormais,face à maioria. O conflito <strong>de</strong> sentimentos experimentadopelo leitor é po<strong>de</strong>roso: ele sabe que a razão, a norma,está do lado <strong>de</strong>las (e do <strong>de</strong>le), mas num mundo às avessasas coisas assumem diferentes configurações. No final <strong>das</strong>leituras sente-se um gosto amargo na boca; um estranhoembaraço quando se consi<strong>de</strong>ra a comicida<strong>de</strong> que as situaçõesnarra<strong>das</strong> possuem. Na realida<strong>de</strong>, fomos todos obrigadosa uma “abdicação do ser” para conseguir levar a leituraaté ao fim, porque, no <strong>de</strong>curso <strong>de</strong>sse exercício, os vilões, osmonstros, fomos nós.Todavia, a leitura <strong>de</strong> Ensaio Sobre a Cegueira obriga uminesperado adiamento da abjecção, paralelamente à <strong>de</strong>missãodo ego que O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s também produz. Obriga auma suspensão da náusea. Essa é uma qualida<strong>de</strong> a reter, na minhavisão daquilo que a arte <strong>de</strong>ve oferecer; e eu encontro-aem inúmeros romances, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> O Pássaro Pintado <strong>de</strong> JerzyKosinski, passando por Viagem ao Fim da Noite <strong>de</strong> Céline,até Os Cantos <strong>de</strong> Maldoror <strong>de</strong> Isidore Ducasse e as obras maisverrinosas <strong>de</strong> Sa<strong>de</strong> e Bataille. Porém, evito incluir o EnsaioSobre a Cegueira nesse rol <strong>de</strong> títulos “grand-guignolescos”. O queexiste em Ensaio Sobre a Cegueira é mais uma paródia ao abjectoque uma visão autoral sobre o abjecto – e penso queisso faz toda a diferença.Esse juízo foi-me reforçado pelo <strong>de</strong>sfecho da narrativa:não pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> me sentir ludibriado quando li o finalem que a cegueira se dissipa e toda a gente recupera a visão.As violências coagi<strong>das</strong> nas personagens, pelos cegos e


pelos não-cegos, <strong>de</strong>ntro do manicómio isolado transmitem,nesse mol<strong>de</strong>, mais uma apreciação negativa sobre um estilocosmopolita <strong>de</strong> viver, uma aversão sentida pela cultura capitalista,que uma escalpelização da inumanida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>ser influenciada pelo cativeiro 2 . O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s é, nessesentido, mais sincero: numa curva ascen<strong>de</strong>nte gulliveriana,Masen vai contactando com várias bolsas <strong>de</strong> população quesobrevivem <strong>de</strong> acordo com muitas filosofias diferentes. Apersonagem encontra grupos que se aproximam mais dolado esquerdo do espectro político e outros que estão mais àdireita: existe uma pluralida<strong>de</strong> que está ausente no romance<strong>de</strong> Saramago, porque no livro <strong>de</strong>le parece que só existe umaforma <strong>de</strong> ser mau e uma forma <strong>de</strong> ser bom.A monstruosida<strong>de</strong> em Ensaio Sobre a Cegueira e O <strong>Dia</strong><strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s não é, com efeito, uma consequência da cegueira.Nasce, com maior autorida<strong>de</strong>, <strong>das</strong> nossas próprias noçõessobre o que é normal e higiénico; da i<strong>de</strong>ia que, na culturaoci<strong>de</strong>ntal, qualquer coisa que se distancie, pela singularida<strong>de</strong>,dos mo<strong>de</strong>los afeiçoados aos cânones, se transforma numacontagiosa fonte <strong>de</strong> horrores. Quando lemos sobre um cegoa apalpar as fezes dos companheiros <strong>de</strong> reclusão enquantoprocura o buraco da latrina para se aliviar, não po<strong>de</strong>mosfazer nada a respeito disso. E quando lemos sobre trífi<strong>de</strong>s aalimentarem-se <strong>de</strong> corpos em <strong>de</strong>composição, também não.Ambas as situações são obscenas fugas à norma – aci<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> percurso: testemunhá-las <strong>de</strong>ixa-nos muitíssimovulneráveis. Uma vulnerabilida<strong>de</strong> que se misturacom o nojo, mas esse sentimento é, em últimaanálise, <strong>de</strong> pechisbeque diante da biologia. Convido-vosa uma pequena experiência: façam umabola <strong>de</strong> saliva <strong>de</strong>ntro da boca e engulam-na; emseguida, façam outra bola <strong>de</strong> saliva, cuspam-napara <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um copo e engulam-na. Se nãotiveram problemas em realizar a primeira operação,certamente irão recusar-se a fazer a segunda. Masporquê? A saliva é a mesma; não adquiriu, magicamente,proprieda<strong>de</strong>s tóxicas ao ser vertida para o copo. A experiênciamostra que o conceito que classifica o que é asquerosonada tem a ver com a biologia, mas tem tudo a ver com acultura. «Po<strong>de</strong> ser que o nojo tenha uma estrutura que se impõe nasnossas noções culturais?», pergunta William Ian Miller no livroThe Anatomy of Disgust (Harvard University Press, 1997. Pág.62). O livro <strong>de</strong> Miller é o melhor ensaio que conheço sobrea temática do nojo, enquanto agente formador do humano;2 «(…) se não nos parecer sufi ciente o que entregarem, simplesmente nãocomem, entretenham-se a mastigar as notas <strong>de</strong> banco e a trincar os brilhantes.»“Ensaio Sobre a Cegueira” (Editorial Caminho, 1995. Págs. 140-141).«Entalado entre dois carros, o corpo <strong>de</strong> um homem apodrece. A mulher do médico<strong>de</strong>svia os olhos. O cão <strong>das</strong> lágrimas aproxima-se, mas a morte intimida-o (…)Atravessaram uma praça on<strong>de</strong> havia grupos <strong>de</strong> cegos que se entretinham aescutar os discursos doutros cegos, à primeira vista não pareciam cegos nem unsnem outros, os que falavam viravam infl amadamente a cara para os que ouviam,os que ouviam viravam atentamente a cara para os que falavam. Proclamavam-seali os princípios fundamentais dos gran<strong>de</strong>s sistemas organizados, a proprieda<strong>de</strong>privada, o livre câmbio, o mercado, a bolsa, a taxação fi scal, o juro, a apropriação,a <strong>de</strong>sapropriação, a produção, a distribuição, o consumo, o abastecimento eo <strong>de</strong>sabastecimento, a riqueza e a pobreza, a comunicação, a repressão e a<strong>de</strong>linquência, as lotarias, os edifícios prisionais, o código penal, o código civil, ocódigo <strong>de</strong> estra<strong>das</strong>, o dicionário, a lista <strong>de</strong> telefones, as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prostituição,as fábricas <strong>de</strong> materiais <strong>de</strong> guerra, as forças arma<strong>das</strong>, os cemitérios, apolícia, o contrabando, as drogas, os tráfi cos ilícitos permitidos, a investigaçãofarmacêutica, o jogo, o preço <strong>das</strong> curas e dos funerais, a justiça, o empréstimo,os partidos políticos, as eleições, os parlamentos, os governos, o pensamentoconvexo, o côncavo, o plano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso,o fugido, a ablação <strong>das</strong> cor<strong>das</strong> vocais, a morte da palavra. Aqui fala-se <strong>de</strong>organização, disse a mulher do médico ao marido. Já reparei, respon<strong>de</strong>u ele, ecalou-se.» “Ensaio Sobre a Cegueira” (Págs. 295-296).uma <strong>das</strong> i<strong>de</strong>ias que o autor avança, para interrogar como éque ele se manifesta, relaciona-se com o tema da Inconformida<strong>de</strong>:«(…) coisas que metem nojo porque falham em se encaixarnas nossas expectativas. Explica-se, <strong>de</strong>sse modo, o nojo que po<strong>de</strong> provocara pele <strong>de</strong> um homem que possua o toque <strong>das</strong> escamas <strong>de</strong> um réptile o nojo que po<strong>de</strong> provocar as escamas <strong>de</strong> um réptil que possuam o toqueda pele humana.» 3 Nessa perspectiva, os militares e os cegos“malvados” [sic] <strong>de</strong> Saramago, mais os hooligans <strong>de</strong> Wyndhampossuem uma falsa humanida<strong>de</strong>: são humanos só porquenão são, morfologicamente, monstros!... Esse papel está, emexclusivo, reservado às trífi<strong>de</strong>s.Em suma: nós, leitores <strong>de</strong>sprevenidos, po<strong>de</strong>mos sentirnojo pelo médico cego que tacteia na trampa em busca dacloaca 4 , mas imagino que uma enfermeira, por exemplo, quecontacta com fezes, escarros e sangue o dia inteiro, tenha“Os efeitos provocados pela epi<strong>de</strong>mia têmuma dimensão maior que a especulação sobrea sua procedência ou a busca por uma cura.”uma reacção diferente ao ler o mesmo texto. Talvez pieda<strong>de</strong>.Ou ennui… Outro livro que recomendo a quem <strong>de</strong>seja lercom maior rigor sobre esta temática é Pouvoirs <strong>de</strong> l’Horreur:Essai Sur l’Abjection <strong>de</strong> Julia Kristeva (Seuil, 1980), mas TheAnatomy of Disgust é que é o título fundamental. Para remataresta sumária incursão sobre o asco, e o modo como essaemoção se relaciona com a cultura, transcrevo esta passagem<strong>de</strong> A Insustentável Leveza do Ser <strong>de</strong> Milan Kun<strong>de</strong>ra (apenasporque o trecho é muito a<strong>de</strong>quado a este tópico): «Quando euera pequeno, punha-me a olhar para uma imagem <strong>de</strong> Deus Nosso Senhor<strong>de</strong> pé, em cima <strong>de</strong> uma nuvem que havia no Antigo Testamento,contado às crianças e ilustrado com gravuras <strong>de</strong> Gustave Doré, que costumavafolhear. Era um senhor bastante velho, com olhos, nariz, umagran<strong>de</strong> barba, e eu achava que, como tinha boca, também <strong>de</strong>via comer.E, se comia, também <strong>de</strong>via ter intestinos. Mas fi cava logo assustadocom a i<strong>de</strong>ia porque, embora a minha família fosse quase ateia, percebiabem a blasfémia que era pensar que Deus Nosso Senhor tinha intestinos.Sem a mínima preparação teológica, com toda a espontaneida<strong>de</strong>,a criança que eu era então já compreendia, portanto, a fragilida<strong>de</strong> datese fundamental da antropologia cristã, segundo a qual o homem foicriado à imagem e semelhança <strong>de</strong> Deus. Das duas, uma: ou o homemfoi criado à imagem <strong>de</strong> Deus e Deus tem intestinos, ou Deus não temintestinos e o homem não se parece nada com ele. Os gnósticos antigossentiam-no tão claramente como eu, aos cinco anos. Para acabar <strong>de</strong>uma vez por to<strong>das</strong> com este maldito problema, Valentino, grão-mestreda Gnose do século II, afi rmava que Jesus “comia, bebia, mas não3 “The Anatomy of Disgust.” Pág. 62.4 “Ensaio Sobre a Cegueira”. Págs. 96-97.28 29<strong>de</strong>fecava”. A merda é um problema teológico mais difícil do que o mal.Deus ofereceu a liberda<strong>de</strong> ao homem e, portanto, po<strong>de</strong> admitir-se queele não é responsável pelos crimes da humanida<strong>de</strong>. Mas a responsabilida<strong>de</strong>pela existência da merda incumbe inteiramente àquele que criouo homem, e só a ele.» 5 O que é bem verda<strong>de</strong>: é que a primeiracoisa que se <strong>de</strong>senvolve no embrião humano, pelo processoiniciático conhecido por gastrulação, é o ânus!...O regresso do rei Após a queda <strong>das</strong> Twin Towersdo World Tra<strong>de</strong> Center, em 2001, não po<strong>de</strong>mos ler certaspassagens <strong>de</strong> O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s sem sentir um calafrio na espinha;com honestida<strong>de</strong>, o calafrio já lá estava, enrolando-secomo uma serpente, mas as imagens pós-11 <strong>de</strong> Setembrooferecem-nos ícones certeiros para dar substância a <strong>de</strong>termina<strong>das</strong>frases que, sem esse suporte visual, po<strong>de</strong>riam seranedia<strong>das</strong> pela negação da imaginação. Quando lemos sobreos indivíduos cegos que se suicidam na primeira partedo romance, atirando-se <strong>das</strong> janelas, não são os cidadãos aprecipitar-se no asfalto <strong>de</strong> Manhattan, para fugir ao incêndioque <strong>de</strong>strói os escritórios, aqueles em que pensamos? «By thewindow he paused. With one hand he felt his position very carefully.Then he put both arms around her, holding her to him. “Too won<strong>de</strong>rfulto last, perhaps”, he said softly. “I love you, my sweet, I love you sovery, very much”. She tilted her lips up to him to be kissed. As helifted her he turned, and stepped out of the window.» 6 No livro <strong>de</strong>Saramago, as imagens que vêm à memória são as que construímoscom base no que vimos sobre os campos <strong>de</strong> concentraçãodos diversos regimes totalitários do século XX; oque não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> alçar interrogações interessantes: se, 1) aocontrário do livro <strong>de</strong> Wyndham, a cegueira colectiva está, <strong>de</strong>início, localizada numa pequena amostra <strong>de</strong> indivíduos, então2) qual é a lógica do “governo” [sic] montar um onerosoaparato pseudo-nazi (ou pseudo-estalinista), com a ajuda doexército, para <strong>de</strong>ixar meia-dúzia <strong>de</strong> cegos a morrer à míngua?De facto, não é <strong>de</strong>scrita nenhuma tentativa por parte<strong>das</strong> autorida<strong>de</strong>s em compreen<strong>de</strong>ros sintomas dacegueira ou como se po<strong>de</strong>riaachar uma vacina. Aacção <strong>de</strong>liberada é, apenas,o isolamento dos doentes,em condições que não garantemnenhuma forma<strong>de</strong> evitar que a cegueirase espalhe fora <strong>de</strong> portas.As intenções do autor são,neste sentido, <strong>de</strong>masiadoevi<strong>de</strong>ntes para que surtam“Coisas que metem nojoporque falham em seencaixar nas nossasexpectativas.”um efeito genuíno: ou o leitor aceita ser manipulado e avançana leitura ou não aceita e fecha o livro. Não existe mesmoum meio-termo. O mesmo tipo <strong>de</strong> artifício está presenteno livro Ensaio Sobre a Luci<strong>de</strong>z (Editorial Caminho, 2004),que possui muitos pontos em comum com Ensaio Sobre aCegueira (tantos que po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado uma sequela), masenquanto este se aproxima da ficção-científica, o outro temuma tonalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> romance policial: a segunda meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>Ensaio Sobre a Luci<strong>de</strong>z lê-se como uma novela <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectives.Ambos os títulos contêm i<strong>de</strong>ias que, à partida, oferecemoportunida<strong>de</strong>s excelentes para se escrever ensaios interessantessobre relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a fragilida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>mocracia5 “A Insustentável Leveza do Ser” (RBA Editores, 1994. Pág. 260).e o que significa ser-se humano em condições <strong>de</strong>sumanas:convido-vos a ler os livros para concluírem sobre o sucesso<strong>de</strong>sses empreendimentos, já que a este texto apenas competeuma leitura paralela entre Ensaio Sobre a Cegueira e O <strong>Dia</strong><strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s, sem incorrer num <strong>de</strong>svio para à análise crítica;que vise, ou não, olhar para o conjunto formado pelas obrasdos dois autores.Em O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s po<strong>de</strong>-se ler o seguinte: «”Make arule for yourself not to speak to anyone, and nobody’s going to guessyou can see. It was only being quite unprepared that lan<strong>de</strong>d you in thatmess before. In the country of the blind the one-eyed man is king.”“Oh yes – Wells said that, didn’t he? Only in the story it turned outnot to be true.” “The crux of the difference lies in what you mean bythe word ‘country’ – patria in the original,” I said. “Caecorum inpatria luscus rex imperat omnis – a classical gentleman calledFullonius said that: it’s all anyone seems to remember about him. Butthere’s no organized patria, no state, here – only chaos. Wells imagineda people who had adapted themselves to blindness. I don’t thinkthat is going to happen here – I don’t see how it can.”» 7 Wyndhamrefere-se à história The Country of the Blind <strong>de</strong> H. G. Wells,publicada na revista The Strand, em 1904.O conto <strong>de</strong> Wells fala sobre um alpinista chamado Nunezque, por aci<strong>de</strong>nte, encontra uma al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> indígenas cegos;o recém-chegado <strong>de</strong>pressa compreen<strong>de</strong> que a cegueiraé congénita e pensa em tornar-se lí<strong>de</strong>r da comunida<strong>de</strong>: emterra <strong>de</strong> cegos quem tem um olho é rei, pensa. Contudo, adaptadosa uma vida inteira sem o sentido da visão, os al<strong>de</strong>ões nãocompreen<strong>de</strong>m as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> Nunez, nementen<strong>de</strong>m o conceito <strong>de</strong> ver; tomando-o porum louco inofensivo, <strong>de</strong>ixam-no à sua sorte.Mais tar<strong>de</strong>, o alpinista enamora-se por umaíndia chamada Medina-Saroté; para casarcom ela, concorda em que lhe sejam furadosos olhos, <strong>de</strong>vido à suspeita partilhada pelosrestantes que a tal visão seja, afinal <strong>de</strong> contas,uma doença perigosa. Todavia, na noiteanterior à cerimónia, Nunez foge, <strong>de</strong>cididoa encontrar o caminho <strong>de</strong> regresso à civilização;apesar <strong>de</strong> conseguir sair do vale perdido,morre, <strong>de</strong>sorientado, nas montanhas. A máxima<strong>de</strong> Fellonius entrou no léxico oci<strong>de</strong>ntal pela mão <strong>de</strong>Erasmus <strong>de</strong> Roterdão, que a compilou no volume Adagia(1500); o conto <strong>de</strong> Wells mostra que, por vezes, possuir umavantagem po<strong>de</strong> tornar-se em <strong>de</strong>svantagem.O tema da Inconformida<strong>de</strong> está presente em outrasobras literárias bastante conheci<strong>das</strong>, como A Peste <strong>de</strong> AlbertCamus (1947), A Metamorfose <strong>de</strong> Franz Kafka (1915) e Os Filhosdo Homem <strong>de</strong> P. D. James (1992); um exemplo muitíssimocurioso é uma peça teatral <strong>de</strong> Eugène Ionesco chamada Rhinocéros(1959), na qual a Inconformida<strong>de</strong> advém da transformaçãoem rinocerontes <strong>de</strong> todos os habitantes <strong>de</strong> uma vilafrancesa. Recupero aqui aquilo que escrevi sobre a temática6 “The Day of the Triffi ds” (Mo<strong>de</strong>rn Library, 2003. Pág. 68).


do nojo: que, segundo a intuição <strong>de</strong> Miller, ele nasce porqueas coisas falham em se encaixar nas nossas expectativas. Naverda<strong>de</strong>, as histórias <strong>de</strong> transformações escritas por Ionescoe Kafka são excelentes exemplos disso: a repulsa, o ódio eo asco dirigem-se contra os inconformes que falham em seencaixar nas expectativas <strong>das</strong> personagens que os ro<strong>de</strong>iam.Os cegos <strong>de</strong> Saramago e Wyndham po<strong>de</strong>riam muitobem ser criaturas tão exóticas quanto os rinocerontes <strong>de</strong> Ionescoe o insecto gigante <strong>de</strong> Kafka, mas não são: em O <strong>Dia</strong>s<strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s, como já vimos, o ónus da monstruosida<strong>de</strong> competeàs plantas malignas; e o Ensaio Sobre a Cegueira, apesardo rol <strong>de</strong> violações e cruelda<strong>de</strong>s que contém, não mergulhana monstruosida<strong>de</strong>. Como Narciso, a olhar o reflexo, fica-sepela superfície. Infelizmente, é esse reflexo que nós olhamosquando lemos o livro; também por virtu<strong>de</strong> da pessoaheterodiegética do narrador, voz invasora que tudo comentasem participar na narrativa. A atentar ao conteúdo perversodo romance, a presença <strong>de</strong>ste género <strong>de</strong> narrador até fazlembrar os vetustos bufões romanos, onanistas, proibidos<strong>de</strong> participar nas orgias que assistiam. BANG!O escritor e ensaísta David Soares é o autor do romance “AConspiração dos Antepassados”, sobre o encontro do poetaFernando Pessoa com o mago Aleister Crowley (Saída <strong>de</strong>Emergência, 2007), e dos livros <strong>de</strong> contos “Os Ossos do Arco-Íris”(Saída <strong>de</strong> Emergência, 2006), “As Trevas Fantásticas” (Polvo,2005) e “Mostra-me a Tua Espinha” (Círculo <strong>de</strong> Abuso, 2001).Participa regularmente em antologias relaciona<strong>das</strong> com o géneroFantástico, sendo <strong>de</strong> referir “A Sombra Sobre Lisboa” (Saída<strong>de</strong> Emergência, 2006), “Contos <strong>de</strong> Terror do Homem-Peixe”(Chimpanzé Intelectual, 2007), “Ficções Científi cas e Fantásticas”(Chimpanzé Intelectual, 2006) e “O Homem que Desenhava naCabeça dos Outros” <strong>de</strong> Pedro Zamith (Ofi cina do Livro, 2006).Traduziu para português o romance “A Voz do Fogo” <strong>de</strong> Alan Moore(Saída <strong>de</strong> Emergência, 2006). Escreveu e gravou um trabalho em‘spoken word’ intitulado “Lisboa” (2002).7 “The Day of the Triffi ds”. Pág. 65.30 31


Ao lado da casa, havia uma galeria em tijolovermelho e com gran<strong>de</strong>s janelas quepermitiam ver arte no interior. Pelomenos, supus que fosse arte. Era possívelque estivessem a remo<strong>de</strong>lar o espaço.Nesse caso, a peça que fazia lembrarum escadote coberto com plásticosalpicado <strong>de</strong> branco era mesmo o queparecia. Passei o carro-patrulha estacionadoà entrada, junto a uma árvore <strong>de</strong>copa baixa no pequeno jardim, que tapavaparte da fachada e quase escondia o portão. Bai- xei-mee entrei. A porta principal estava encostada e com a fechaduraarrombada, o que ia contra as regras da segurança dolar, mas, pela informação que me tinha sido transmitida, oproprietário não se importaria. O interior não tinha mauaspecto. O único <strong>de</strong>feito seria um excesso <strong>de</strong> minimalismona <strong>de</strong>coração. E também um excesso <strong>de</strong> cabedal. Um bar<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira escura ao canto, com bancos altos <strong>de</strong> cabedalcastanho. Uma mesa <strong>de</strong> jantar sem nada por cima, com duasca<strong>de</strong>iras revesti<strong>das</strong> a cabedal castanho <strong>de</strong> cada lado e maisuma em cada extremida<strong>de</strong>. Um gran<strong>de</strong> quadro na pare<strong>de</strong>branca po<strong>de</strong>ria ser uma paisagem africana ou apenas umasobreposição <strong>de</strong> riscas vermelhas, castanhas e amarelas compintas pretas. Era impossível dizer ao certo sem pedir opiniãoa um crítico <strong>de</strong> arte. Talvez houvesse um disponível nagaleria ao lado. Ou podia mandar a investigação às urtigase iniciar uma carreira como apreciador <strong>de</strong> arte profissional.Teria <strong>de</strong> averiguar qual era o salário base.Sentados no gran<strong>de</strong> sofá <strong>de</strong> cabedal castanho, dois patrulheirosmantinham-se <strong>de</strong> costas para a rua e <strong>de</strong> olhos coladosno LCD <strong>de</strong> última geração. O que a mulher no ecrã faziaao cavalheiro bronzeado que a acompanhava era proibidopela maioria <strong>das</strong> religiões. Ou mesmo por to<strong>das</strong>. Mais umacoisa a averiguar quando tivesse tempo. Bati com os <strong>de</strong>dosna porta envidraçada que separava a sala do átrio.— Se estiverem ocupados posso voltar mais tar<strong>de</strong> —disse.Levantaram-se os dois ao mesmo tempo e olharam-mecomo se tivessem treze anos e acabassem <strong>de</strong> ser apanhadosem flagrante pela mãe. Um <strong>de</strong>les, revelando maior espírito<strong>de</strong> iniciativa, pegou no comando e tentou <strong>de</strong>sligar a televisão.Depois <strong>de</strong> aumentar o volume dos gemidos para umnível embaraçoso à primeira tentativa, acabou por conseguirà segunda.— Senhor inspector — disse o outro. — Estávamos àsua espera.— Pois estavam. — Apontei o LCD com o queixo. De-pois <strong>de</strong> uma pausa, perguntei: — O nosso homem?Saíram da sala e percorreram o corredor.Segui-os. A cozinha estava equipadacom o recheio <strong>de</strong> catálogos mo<strong>de</strong>rnose caros. O cadáver na ca<strong>de</strong>ira seria umextra. Era o dono da casa, sentado à suamesa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sign com a cabeça caída sobreo peito, como se olhasse com reprovaçãoa poça <strong>de</strong> sangue que ensopava aspáginas do livro à sua frente e se alongavaaté ao cálice prateado, semelhante aos que se usam na missa.Havia uma mancha a condizer nos armários por trás emais salpicos do que seria possível limpar. Aproximei-mee agachei-me junto à ca<strong>de</strong>ira. A bala entrara quase no centrogeométrico da testa. O autor da obra não disparara umaarma pela primeira vez. Pelo que se conseguia ler do livroensanguentado, estava escrito com letras cirílicas ou gregas.O amarelo envelhecido <strong>das</strong> folhas combinava com o vermelhodos miolos do leitor. <strong>Dia</strong>nte do livro, havia uma peça <strong>de</strong>charme. Uma vela grossa preta com pingos <strong>de</strong> cera solidificadossobre uma ban<strong>de</strong>ja <strong>de</strong> aço inoxidável. Seria tambémarte? Quantas vezes pensara em arte naquele dia? Talvez ai<strong>de</strong>ia da apreciação artística não fosse totalmente <strong>de</strong>scabida.Além da vela, havia uma caixa <strong>de</strong> fósforos fechada e umúnico fósforo queimado num cinzeiro <strong>de</strong> folha.Pairava no ar um cheiro a pêlo queimado.— Alguém grelhou um cão? — As duas caras <strong>de</strong> parvoque me fitaram indicavam que não faziam i<strong>de</strong>ia do que queriadizer com aquilo. Decidi mudar <strong>de</strong> rumo com urgência eapontei a vela. — Estava apagada?Acenaram os dois com a cabeça, dizendo-me que sim.Não me parecia particularmente relevante, mas era convenientemanter nos agentes <strong>de</strong> giro o apreço pelo trabalhoenigmático dos inspectores.O cálice tinha o brilho baço da prata maciça e, colocadapor cima, a faca tinha lâmina do mesmo material e cabo <strong>de</strong>osso. Não era longa e estava manchada <strong>de</strong> vermelho. Algunspingos <strong>de</strong> sangue tinham sido vertidos para o fundo do recipiente.— Pensamos que o sangue na faca possa ser do assassino— disse um dos patrulheiros. A placa na camisa azuldizia-me que se chamava Anjos. Luís Anjos.— Está na cozinha a ler à luz da vela um livro <strong>de</strong> receitascomprado num alfarrabista <strong>de</strong> Moscovo. Para tirar i<strong>de</strong>iaspara o jantar. Entra alguém que lhe aponta uma pistola àcabeça e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se com a faca <strong>de</strong> <strong>de</strong>scascar fruta. É maisou menos esta a teoria?3233Baixaram a cabeça ao mesmo tempo. Era óbvio que tinham<strong>de</strong>positado gran<strong>de</strong> fé numa explicação simples e queos <strong>de</strong>ixaria ir para casa mais cedo, sem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relatórios<strong>de</strong>morados.— Se não é do assassino, <strong>de</strong> quem é? — perguntou ooutro. A placa anunciava: Alberto Marques.O morto tinha a mão direita caída e a esquerda estavapousada sobre o tampo da mesa com a palma voltadapara baixo. Puxei um pano pendurado no puxador <strong>de</strong>uma gaveta e usei-o para lhe erguer a mão. Ali estava. Erguimais a mão, mostrando-lhes o corte diagonal na pele.— Isto também explica o papel manchado.— Qual papel manchado? — perguntou-me Anjos.Lancei o pano para <strong>de</strong>ntro do lava-louça.— Estou a ver que se aplicaram antes <strong>de</strong> investigarema colecção <strong>de</strong> canais badalhocos do tipo — disse-lhes. —Nem sequer olharam para baixo da mesa?Curvaram-se os dois e olharam. Perto do pé direito,havia um papel branco manchado <strong>de</strong> vermelho. Podia serum lenço <strong>de</strong>scartável, um guardanapo ou um pedaço <strong>de</strong> papelhigiénico. Amarrotado como estava era difícil perceber.E não lhe mexeria até chegarem os melindrosos da políciacientífica.— E os outros? — perguntei. Começavam a odiar-me.Achei melhor não referir o tecto chamuscado por cima damesa. Seria abusar da sorte.Voltámos ao corredor. A viagem foi curta, mas bastoupara me informarem do que sabiam. Não era muito.— Não traziam carteira, mas um tem ar <strong>de</strong> russo ouucraniano. O outro não se percebe — disse Marques. —Pistolas com silenciador e com os números <strong>de</strong> série raspados.Parecem profissionais. O amigo ali na cozinha chamava-seLuís Torres. Há cartas en<strong>de</strong>reça<strong>das</strong> na mesa do átrio.Parece que tem ca<strong>das</strong>tro.— E não é pequeno — confirmei. Conhecia o falecido<strong>de</strong> ginjeira. Não lhe sentia a falta. — Chamavam-lhe LuísEspanhol.— Espanhol? — repetiu Anjos. — Porra. Lá teremos<strong>de</strong> avisar a embaixada.— Só se for a embaixada da Trafaria. Era uma alcunha.Não sei <strong>de</strong> on<strong>de</strong> veio. Era tão espanhol como um prato <strong>de</strong>bacalhau à Brás.Estávamos parados à frente <strong>de</strong> uma porta fechada. Marquespôs a mão sobre a maçaneta. Parecia ansioso por abrire partilhar o conteúdo. Preparei-me mentalmente. Por norma,já vinha preparado quando me mandavam a cenários <strong>de</strong>homicídio, mas precisava <strong>de</strong> um ou outro reforço. A portacontinuou fechada. Os sacanas gostavam <strong>de</strong> fazer suspense.— Que fazia ele na vida? — perguntou Anjos.Excelente. Uma pergunta capaz <strong>de</strong> queimar uns bonsminutos.— Geria uma empresa <strong>de</strong> camionagem — respondi. —É a melhor fachada para uma carreira <strong>de</strong> sucesso no tráficointernacional.— Droga? — perguntou Marques.— Droga, tabaco, bebida, mulheres. O que aparecesse.Era muito polivalente. Mas pisou os calos aos ucranianose andavam às turras. O nosso Luís estava a per<strong>de</strong>r.Parece que o jogo acabou hoje. Só falta saber quem limpouo sebo aos gajos que vieram eliminar a concorrência.Como foi? Pistola à queima-roupa? Caça<strong>de</strong>ira?Não me agradou o sorriso pateta que trocaram um como outro. On<strong>de</strong> estava a graça?— Tivemos <strong>de</strong> arrombar a porta para entrar — disseAnjos. — O ferrolho estava corrido por <strong>de</strong>ntro. E as janelastêm gra<strong>de</strong>s. Quem entrou, não saiu. E não há mais ninguém.Fomos às divisões to<strong>das</strong>.Se o objectivo era tornar a coisa intrigante, tinham conseguido.Pelo menos, por enquanto.— Quem avisou?— Uma vizinha do prédio ao lado — respon<strong>de</strong>u Marques.— Diz que ouviu gritos. Estava à porta quando chegámose insistiu em entrar connosco. Raio da velha.— Tem antece<strong>de</strong>ntes?— Não vimos. Mas tem oitenta e dois anos. — O sorriso<strong>de</strong> Anjos ficou ainda maior e mais pateta.Marques abriu, finalmente, a porta.— Foda-se. — Foi a coisa mais eloquente que conseguidizer. O comentário era perfeitamente ajustado.— Então? Qual é a teoria? — perguntou Anjos.O que vi <strong>de</strong>ntro da casa <strong>de</strong> banho fez-me dar graças porainda não ter almoçado.O tipo tinha a cabeça encaixada na sanita. O suficientepara não sair com facilida<strong>de</strong>. Um braço estava caído nochão e o outro sobre o bidé. O tronco estava na vertical e aspernas penduravam-se para trás. A coluna vertebral estavadobrada a meio <strong>das</strong> costas e os pés tocariam a cabeça se estanão estivesse tão bem resguardada.— Foda-se — repeti.Marques aplicou-me uma palmada nas costas.— Deixe lá. Eu disse o mesmo. Três vezes.— Ainda vai a tempo da terceira — disse Anjos, atravessandoo corredor e abrindo outra porta.Tinha razão. A face ensanguentada parecia russa. Mesmoque nunca tivesse visto um russo com uma broca <strong>de</strong> açoespetada na cabeça, entrando-lhe pelo olho direito e saindopelo lado oposto do crânio, pren<strong>de</strong>ndo-o à pare<strong>de</strong>. O outroolho estava aberto e parecia mirar-nos a fivela do cinto. Seestivesse <strong>de</strong> pé, olhar-nos-ia directamente nos olhos, mas dificilmenteo efeito conseguiria ser mais perturbador do quejá era. Continuava a segurar o berbequim com as duas mãosergui<strong>das</strong>. A ferramenta era gran<strong>de</strong>, ver<strong>de</strong> e parecia pesadae cara. Dei comigo a pensar se teria sido ele a comprá-lo.Um homem <strong>de</strong>via ter direito a <strong>de</strong>sconto quando compraum berbequim que será usado para lhe provocar uma morteatroz. Naquele caso, parecia ter tirado a própria vida, masera difícil acreditar que conseguisse resistir o tempo necessáriopara que a broca lhe atravessasse a cabeça.Consegui afastar os olhos do corpo e olhei em redor.Era o escritório. Havia gavetas no chão, com o conteúdoespalhado. Também sobre a secretária havia papéis dispersos.Um armário ao canto estava aberto e, sobre uma prateleira,um cofre pequeno com dois furos. O pó e as aparasmetálicas misturavam-se com o sangue no chão. As outrasprateleiras continham uma selecção <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada <strong>de</strong> velas<strong>de</strong> diversos tamanhos e cores, recipientes <strong>de</strong> várias formase materiais, alguns frascos cujo conteúdo preferia não i<strong>de</strong>ntificar.Tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais. Antes <strong>de</strong> olhar novamente o corpo,percebi que um dos frascos continha ossos <strong>de</strong> animais pequenos.— Tem os braços rígidos. Não solta o berbequim pornada — disse Anjos. — Nunca vi nada igual.Nem eu. Mas não lho disse. Não podia fazer mais nadaali. Havia muito pouco no que vira que fizesse sentido epreferia ignorar o que tudo aquilo me sugeria. Havia recordaçõesque não queria avivar. Além disso, era inútil gastar


tempo com o assunto até a casa ser virada do avesso à procura<strong>de</strong> impressões digitais e <strong>de</strong> outros indícios invisíveis aolho nu. Despedi-me e saí.Não perdi muito tempo a pensar na morte <strong>de</strong> LuísEspanhol. A explicação oficial (homicídio motivado poractivida<strong>de</strong> criminosa e retaliação por autor <strong>de</strong>sconhecido)tinha alguns buracos incontornáveis, mas ninguém mostravagran<strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> em preenchê-los e nenhuma <strong>das</strong> vítimasmerecia o esforço. Fechei os olhos às incoerências, arquiveio assunto na categoria mental <strong>de</strong> “casos passados” e seguiem frente. Um mês <strong>de</strong>pois, o caso acabou por me cair novamenteem cima.Passei por um corredor <strong>de</strong>corado com fotografias <strong>de</strong>operacionais mortos em serviço, uma coisa longa e <strong>de</strong>primentea que chamava “alameda dos coitadinhos” sem partilhara graça com ninguém. Não podia evitar passar por aliporque era a única forma <strong>de</strong> alcançar a “área <strong>de</strong> lazer”, <strong>de</strong>signaçãocriativa para uma sala acanhada contendo um sofáencardido, um cesto com revistas e jornais pré-históricos,uma máquina <strong>de</strong> café e outra <strong>de</strong> doces e aperitivos. Quasejunto à porta, dois patrulheiros olhavam uma fotografiaque nunca vira antes. Passei por eles, sem interrompera conversa que <strong>de</strong>corria em tom sóbrio, olhei brevementea fotografia, avancei dois passos e voltei atrás para vermelhor. Reconheci Anjos, um dos agentes que me receberaem casa <strong>de</strong> Luís Espanhol. Com farda <strong>de</strong> gala e exibindo osorriso pateta que tanto me irritara, agora eternizado emmonumento fúnebre. Os dois patrulheiros continuaram afalar, virando-se para me acolher na conversa sem qualquerestranheza.— O mais esquisito é terem morrido os dois no mesmodia em sítios diferentes — disse um. — Foi quase como seestivesse <strong>de</strong>stinado.Ai.— Juntos em patrulha, juntos na eternida<strong>de</strong> — comentouo outro, beberricando café do pequeno copo <strong>de</strong> plásticobranco que segurava numa mão.— O Marques também morreu? — A pergunta saltou-medos lábios antes que tivesse tempo <strong>de</strong> pensar no quedizia. Respon<strong>de</strong>ram-me com acenos <strong>de</strong> cabeça pesarosos.— On<strong>de</strong> está a fotografia?— Caiu da varanda <strong>de</strong> casa — explicou o outro. — Nãoestava <strong>de</strong> serviço. Diz-se muita coisa, mas a mulher estava lácom os filhos e jura que parecia normal.Aparentemente, havia mortes mais dignas <strong>de</strong> enfeitarpare<strong>de</strong>s do que outras.— Como foi? — perguntei, apontando a fotografia <strong>de</strong>Anjos.— Atravessou-se na estrada a correr. Há quem diga quecorria atrás <strong>de</strong> um carteirista, mas não há certezas — respon<strong>de</strong>uo do café. — Não viu o eléctrico. Há exactamentequinze dias. No mesmo dia e quase à mesma hora. Até custaa crer.Custava, realmente.— E o Raimundo — disse o outro. Esperei que elaborasse.Não me <strong>de</strong>siludiu. — O Jorge Raimundo da científica.Teve um aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> mota no fim-<strong>de</strong>-semana. Só respirapela máquina. Morte cerebral. Os médicos esperam autorizaçãoda família para <strong>de</strong>sligar o interruptor.Senti um tilintar incómodo na nuca. Com o passar dosanos, fui-me convencendo <strong>de</strong> que era fisicamente alérgico asarilhos. Agoniavam-me e tentava evitá-los sempre que possível.Mas, daquela vez, não conseguiria escapar. Jorge Raimundo.Para os dois patrulheiros que miravam a fotografia,o <strong>de</strong>stacamento tinha perdido três agentes no mesmo mês.Era uma coincidência trágica. Para mim, havia algo mais.Fora Raimundo a varrer a casa <strong>de</strong> Luís Espanhol à procura<strong>de</strong> indícios. Três dos polícias enviados ao local mortos. Sefosse só uma coincidência, óptimo. Se, por um acaso, fossealgo mais, o quarto elemento não esperaria calmamente asua vez.Reli o relatório que escrevera à pressa. Não era uma <strong>das</strong>minhas produções literárias mais inspira<strong>das</strong>, mas continhaa informação que procurava. O <strong>de</strong>partamento não enviaramais ninguém ao local do crime. Além dos polícias, apenasmais dois elementos tinham entrado na casa: dois técnicosda Medicina Legal, encarregados <strong>de</strong> atestar as três mortes(convenhamos que não lhes <strong>de</strong>u muito trabalho) e <strong>de</strong> removeros cadáveres para autópsia (o que foi bastante maiscomplicado). Contactei os serviços do instituto e pergunteipor eles. Um estava fora em serviço. O outro gozava umasférias mereci<strong>das</strong> na Polinésia, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> regressaria com forçasredobra<strong>das</strong> e com um sorriso que levaria meses a esbater.Claro que não. Esta resposta facilitar-me-ia muito a vidae pouparia horas <strong>de</strong> sono preciosas, mas não teria essa sorte.Estava morto. Encontraram-no numa casa <strong>de</strong> banho do instituto.Escorregou no chão ainda molhado <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> umalimpeza, caiu mal e partiu o pescoço. Havia uma hipóteseem mil <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r acontecer. Um verda<strong>de</strong>iro felizardo o nossohomem. Pedi os relatórios <strong>de</strong> autópsia dos dois políciasmortos e a secretária com que falei prometeu enviar-mospor email. Ao abrigo do protocolo entre os serviços <strong>de</strong> investigaçãoe a Medicina Legal, os inspectores estavam autorizadosa solicitar relatórios <strong>de</strong> autópsia e estes <strong>de</strong>veriam serfornecidos sem perguntas. Claro que esta directiva <strong>de</strong>veriaaplicar-se apenas aos relatórios <strong>de</strong> autópsia relevantes paraas investigações, mas alguém se esquecera <strong>de</strong> incluir essaressalva e tornara-se habitual pedir relatórios <strong>de</strong> autópsiasaleatórias apenas como material <strong>de</strong> leitura. Ninguém estranhava.Ninguém queria saber. Não pedi também o relatóriodo homem que lhes morrera para não <strong>de</strong>spertar atençõesin<strong>de</strong>seja<strong>das</strong> e porque aqueles bastariam para confirmar ounegar a teoria que começava a afligir-me o cerebelo com<strong>de</strong>masiada insistência.Chegaram em formato digitalizado uns minutos <strong>de</strong>pois.Pensei se o instituto teria gente cuja única função fosse enviarrelatórios à polícia ou se seria um dia <strong>de</strong> pouco movimento.As duas mortes estavam classifica<strong>das</strong> como aci<strong>de</strong>ntais,não havendo indícios que sugerissem o contrário.O corpo <strong>de</strong> Marques apresentava fracturas múltiplas provoca<strong>das</strong>pela queda <strong>de</strong> um oitavo andar e o relatório incluíaum parágrafo longo <strong>de</strong> palavreado médico que dizia, basicamente,que a maior parte dos seus órgãos internos tinhamficado reduzidos a puré. Não tinha outras marcas no corpoalém <strong>das</strong> que resultavam da queda. O relatório da autópsia<strong>de</strong> Anjos era muito mais curto. O que sobrara do seu infelizencontro com o eléctrico não chegava para motivar dissertaçõesteóricas.Recor<strong>de</strong>i os objectos que Luís Espanhol tinha sobre amesa quando foi encontrado. O livro. A vela negra. O cálice<strong>de</strong> prata. Afastei o pensamento que me assaltou mais umavez. Ainda era cedo. Antes <strong>de</strong> começar a pon<strong>de</strong>rar seriamenteessa possibilida<strong>de</strong>, precisava <strong>de</strong> mais uma confirmação.Não queria voltar a vê-lo se não fosse absolutamente necessário.A última vez continuava a alimentar-me pesa<strong>de</strong>los,anos <strong>de</strong>pois.34 35Voltei à rua on<strong>de</strong> tudo começara. A casa <strong>de</strong> Luís Espanholtinha uma placa numa <strong>das</strong> janelas, dizendo: “VEN-DE-SE”. Seria capaz <strong>de</strong> apostar que nenhum agente imobiliáriopartilharia a peculiar história recente da moradia comeventuais interessados na compra. Um passado envolvendohomicídios violentos e inexplicáveis não era consi<strong>de</strong>radoelemento valorizador do imóvel.A morada da vizinha fora anotada pela letra <strong>de</strong> Anjosou <strong>de</strong> Marques numa folha <strong>de</strong> papel agrafada por mim aorelatório do caso. Vivia no prédio baixo situado imediatamenteao lado da casa on<strong>de</strong> tinham ocorrido as mortes. Batià única porta do rés-do-chão. A mulher que abriu estava adéca<strong>das</strong> <strong>de</strong> ter os oitenta e dois anos da testemunha. Apresentei-me,mostrei o crachá e expus ao que vinha.— Chamo-me Baltazar Men<strong>de</strong>s e sou inspector da investigaçãocriminal. Gostaria <strong>de</strong> falar com a Dona IsauraMachado, se fosse possível.A mulher franziu o sobrolho e não fez qualquer esforçopara escon<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>sagrado. Não respon<strong>de</strong>u.Estava ali por motivos muito pouco ortodoxos e nãotinha maneira <strong>de</strong> forçar a colaboração. Por mais que me apetecesserespon<strong>de</strong>r à bruta.— A Dona Isaura foi registada como testemunha numcaso que investigamos. Tem a ver com a morte do proprietárioda casa aqui ao lado. Posso falar com ela? Prometo serrápido.A nesga que mantinha aberta estreitou-se ainda mais.— Agra<strong>de</strong>ço que não me meta em confusões. Não sei<strong>de</strong> nada.— É a filha?Não respon<strong>de</strong>u, mas percebi pela expressão que sim.— Já disse que não sei <strong>de</strong> nada. Não me meta em confusões,por favor — voltou a pedir.Tive <strong>de</strong> encostar a mão à porta para impedir que a fechasse.Mas sem forçar. Isso po<strong>de</strong>ria meter-me a mim emconfusões sérias, se lhe passasse pela cabeça apresentarqueixa.— A Dona Isaura po<strong>de</strong> ter informações essenciais àinvestigação. Ela não está?A porta abriu-se e a expressão da mulher mudou.— A sério que não sabe?Aquela frase costumava antece<strong>de</strong>r a martelada.— Não. Não sei.— A minha mãe morreu. Fez agora quinze dias.Engoli um pedregulho.— Como?Vi passar-lhe pelo olhar algo que me arrepiaria, se fossedado a arrepios. Baixou a cabeça e tornou a erguê-la antes<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r.— Abriu a garganta com uma faca <strong>de</strong> amanhar peixe.Não sei como nem porquê.Outro pedregulho. Se continuasse assim, ia precisar <strong>de</strong>um digestivo. Precisava <strong>de</strong> uns minutos para conseguir dizer-lhealguma coisa. Felizmente, a mulher continuou.— Levaram-me para a esquadra e passaram uma noiteinteira a chatear-me a cabeça. Fartei-me <strong>de</strong> lhes dizer que aminha mãe já estava na cama quando me fui <strong>de</strong>itar e que aencontrei <strong>de</strong> manhã naquele estado. Só quando fizeram aautópsia é que me <strong>de</strong>ixaram ir.Consegui dizer-lhe qualquer coisa, mas não sei o quefoi. Quando <strong>de</strong>i por mim, a porta esta fechada e eu continuavaali, a olhar as lascas <strong>de</strong> tinta que se soltavam da ma<strong>de</strong>irae a pensar que não podia adiar mais o inevitável.Arrastei-me <strong>de</strong> volta ao comissariado, sentei-me à secretáriae abri a gaveta que abria com menos frequência. Aofundo, por baixo <strong>de</strong> uma pilha <strong>de</strong> agen<strong>das</strong> <strong>de</strong> anos passados,encontrei o cartão, escurecido e com um canto dobrado.Pousei-o sobre a secretária e olhei-o durante um longo momento.Não que o conteúdo justificasse exame tão <strong>de</strong>morado.Tinha apenas um nome, “Sr. Salcedo”, sobre um número<strong>de</strong> telefone fixo. Por cima do nome, um pentagramaencaixado num círculo. Pelo menos, não estava <strong>de</strong> pernaspara o ar. Ou <strong>de</strong> vértices para o ar. Todos sabem que ospentagramas invertidos são coisas terríveis. Mas, orientadoscom o vértice certo para cima, muda tudo. Ou, em alternativa,não passava <strong>de</strong> um disparate pseudo-místico alimentadopor gente com imaginação a mais e inteligência a menos.Não me interpretem mal. Não sou um daqueles fundamentalistasracionais que remetem to<strong>das</strong> as questões supostamentesobrenaturais para as categorias <strong>de</strong> embuste,crendice ou doença mental. Ou melhor. Já não sou. Deixei<strong>de</strong> ser precisamente por culpa do Sr. Salcedo. Trato-o assimnão por especial <strong>de</strong>ferência mas porque nunca lhe soube oprimeiro nome e porque tratá-lo só pelo apelido po<strong>de</strong>riasugerir uma familiarida<strong>de</strong> que não <strong>de</strong>sejo.Aconteceu há oito anos, quando me aproximava do segundoaniversário <strong>de</strong> serviço. Numa noite <strong>de</strong> plantão, fuiacordado por uma mulher <strong>de</strong> uma reflexão profunda emque babava o tampo da secretária. Não era particularmentebonita, mas era suficientemente vistosa para preferir quenão me tivesse visto naquela figura. Disse que tinha faladocom alguém na recepção e que a tinham mandado ter comigo.Pedi-lhe que se sentasse e que me contasse qual era oproblema. Começou a chorar <strong>de</strong> imediato e lá me foi dizendoentre soluços que fora violada repeti<strong>das</strong> vezes e que nãoaguentava mais. Peguei numa ficha e comecei a pedir-lhe osdados do costume. Nome, ida<strong>de</strong>, morada, profissão, estadocivil. A seguir, passei aos dados relativos à queixa. Pergunteise conhecia o violador. Respon<strong>de</strong>u-me que não. Pergunteiquando acontecera pela última vez. Respon<strong>de</strong>u que fora nanoite anterior. Perguntei on<strong>de</strong> fora. Fora no quarto. Forasempre no seu quarto. Perguntei-lhe como entrava alguémque não conhecia no seu quarto repeti<strong>das</strong> vezes. Respon<strong>de</strong>uque não sabia. Perguntei porque não fizera queixa antes.Respon<strong>de</strong>u que tivera medo. Pedi-lhe uma <strong>de</strong>scrição do violadorem traços gerais. Respon<strong>de</strong>u que era invisível.Obviamente, fiz o que qualquer pessoa sensata faria eman<strong>de</strong>i-a embora. Voltou na semana seguinte, visivelmentemaltratada. Um olho negro, o lábio ferido. Arranhões e nódoasnegras na cara e nos braços. Disse que tinha acontecidomais uma vez e que tentara resistir, sem sucesso. A questãoagravou-se. Não era apenas o <strong>de</strong>lírio inofensivo <strong>de</strong> umadoida e tinha <strong>de</strong> tomar medi<strong>das</strong> para evitar que a mulhervoltasse a fazer aquilo a si própria. Se a man<strong>das</strong>se embora,não po<strong>de</strong>ria prever o que faria a seguir para provar que diziaa verda<strong>de</strong>. Encaminhei-a para o psicólogo que fazia acompanhamentoàs vítimas <strong>de</strong> crime violento. Recebeu-a e veiover-me poucos dias <strong>de</strong>pois. Disse que pedira à mulher umexame médico para averiguar a extensão dos estragos. Osresultados provavam que as feri<strong>das</strong> não tinham sido provoca<strong>das</strong>pela própria e, além disso, mostravam que tinha sidoviolada, tal como dizia. A avaliação psicológica não revelavanada além da profunda fragilida<strong>de</strong> emocional provocadapelo choque. Sugeri que a mulher po<strong>de</strong>ria estar a protegera i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do violador e o psicólogo discordou, dizendoque, se fosse essa a intenção, não fazia sentido pedir ajuda


à polícia. Vi-me forçado a dar-lhe razão. Sem saber o quefazer, olhei-o, tentando pensar em alguma coisa. Foi quandoo ouvi dizer-me que teríamos <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a hipótese <strong>de</strong> asua história ser verda<strong>de</strong>ira. Ri-me, sem achar qualquer graça.Apenas por reflexo. O psicólogo não se riu. Discutimos oassunto e acabou por me convencer a contactar alguém queconhecia, um especialista naqueles assuntos menos claros.Chamou-lhe “investigador paranormal” e <strong>de</strong>u-me o mesmocartão que agora tinha sobre a secretária.Contactei o Sr. Salcedo, por intermédio do seu assistente,e prontificou-se a ajudar. Marcámos encontro na casada mulher e, por insistência sua, também estive presente.Passeou-se pela casa <strong>de</strong> mão dada com a mulher, erguendodiante <strong>de</strong> si uma espécie <strong>de</strong> can<strong>de</strong>ia fedorenta. Com o pequenoapartamento cheio <strong>de</strong> fumo, disse-nos que se tratava<strong>de</strong> um íncubo, um <strong>de</strong>mónio libidinoso que atormentava osono <strong>de</strong> mulheres e, em casos extremos, podia possuí-lasfisicamente. Explicou que era urgente fazer um exorcismo.Não consigo <strong>de</strong>screver o ritual. Foi apenas uma sucessão<strong>de</strong> gestos e actos aparentemente banais e a falta <strong>de</strong> espectacularida<strong>de</strong>contribuiu para agravar ainda mais o meucepticismo. Mas não tardaram a suce<strong>de</strong>r coisas que prefironão lembrar em pormenor, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> as ter conseguido remeterpara o recanto menos visitado da memória. Bastarádizer que a mulher ficou satisfeita e pagou ao assistente doSr. Salcedo a quantia registada na conta que lhe apresentaram,elevada mas sem exageros. Depois disso, soube queacabou por ser internada numa clínica psiquiátrica e que seenforcou com um lençol. A minha primeira impressão estavacerta. Era realmente maluca. Mas isso não apagaria o quevi durante o exorcismo.Peguei no telefone e marquei o número.Acúrcio, o assistente, <strong>de</strong>u-me a morada e pus-me a caminho.Era um prédio em plena avenida, la<strong>de</strong>ado por mamarrachosmulticoloridos e com marquises espelha<strong>das</strong>. Nãoconseguia disfarçar os anos. Da última vez que a fachadafora pintada, talvez uns cinquenta anos antes, teria ficadocom aspecto quase encantador, com as suas janelas estreitase varan<strong>das</strong> pequenas e elegantes. Todo o prédio, aliás, eraestreito e, quem o olhasse do lado oposto da avenida, quaseacreditaria que era espalmado pelos prédios mais mo<strong>de</strong>rnos<strong>de</strong> ambos os lados, como se estes preten<strong>de</strong>ssem fazê-lo <strong>de</strong>saparecer.A cor fora-se há muito, substituída por um cinzentoenegrecido, aplicado década após década pelos escapesdos muitos carros que ali passavam. No alto, um frontãoque a <strong>de</strong>gradação progressiva fizera parecer mordido porum gigante <strong>de</strong>vorador <strong>de</strong> tijolo, pedra e cimento. Ao centrodo que restava do frontão, via-se ainda a maior parte <strong>de</strong> umpainel <strong>de</strong> azulejos representando motivos florais. Faltava jáa maior parte dos azulejos que formavam uma moldura emtorno do motivo central.Bati à porta. A meu lado, reparei num botão branco ro<strong>de</strong>adopor um rectângulo <strong>de</strong> metal escuro com cantos arredondados.Pressionei-o e ouvi o zumbido eléctrico no interior.Momentos <strong>de</strong>pois, uma sombra mostrou-se pelo vidrofosco da porta. Ouvi a chave rodar na fechadura e duastrancas serem corri<strong>das</strong>. O homem que me surgiu diante dosolhos não mudara nada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a última vez que o vira. Se amemória não me falhava, até a camisa branca e as calças pretasvinca<strong>das</strong> eram idênticas. Cabelo castanho-escuro penteadocom risco ao meio, nariz gran<strong>de</strong> e torto, olhos <strong>de</strong>masiadojuntos, lábios grossos. Tive <strong>de</strong> inclinar a cabeça para cimapara lhe ver os traços da cara. A mulher que tinham libertadodo seu violador invisível comentou quando ficámos sozinhosapós o exorcismo, que Acúrcio tinha a constituiçãofísica <strong>de</strong> uma pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> betão e o temperamento <strong>de</strong> umajaula <strong>de</strong> leões famintos à espera que alguém se esquecesse <strong>de</strong>fechar a porta. Era precisamente isso. Pobre coitada. Talveza capacida<strong>de</strong> para fazer comparações inspira<strong>das</strong> fosse umdos primeiros sintomas da loucura.Acenou com a cabeça em reconhecimento do nossoencontro anterior e pôs-se <strong>de</strong> lado para me <strong>de</strong>ixar entrar.Chamava-lhe “assistente”, mas não compreendia realmentequal o papel que <strong>de</strong>sempenhava. Podia ser um secretário,um guarda-costas, um mordomo. Ou talvez um pouco <strong>de</strong>tudo isso. Não me interessava o suficiente para pedir esclarecimentose arriscar levar um sopapo que me partisseo nariz.No interior, esperava-me um pequeno vestíbulo. Um cilindro<strong>de</strong> latão on<strong>de</strong> se viam alguns guarda-chuvas e bengalas<strong>de</strong> castão simples. Na pare<strong>de</strong> oposta, uma pequena mesa<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira dourada e, na pare<strong>de</strong>, um espelho <strong>de</strong> tal formamanchado pelo tempo que há muito <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> reflectir oque fosse. Sobre a mesinha, uma vela alta, estreita e branca,com um círculo <strong>de</strong> ervas murchas entrança<strong>das</strong> ro<strong>de</strong>ando-lheo castiçal. Erguia-se um fio <strong>de</strong> fumo do pavio. Acúrcio fechoua porta, trancou-a e voltou a acen<strong>de</strong>r a vela com umisqueiro <strong>de</strong>scartável que retirou do bolso. A seguir, indicou-meos reposteiros que velavam a passagem ao corredor.— Faça favor — disse.Não havia perfumes sinistros no ar. Apenas o cheiro dacera da vela e uma sugestão <strong>de</strong> bolor. Nada <strong>de</strong> corujas empalha<strong>das</strong>em pose sinistra ou caveiras humanas. Nem umaestatueta representando uma divinda<strong>de</strong> esquecida pelos milénios.À esquerda, a escada para o piso superior. E, à frente,um corredor não muito largo revestido com papel <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>florido e <strong>de</strong> cor esbatida. Sob a escada, à esquerda, via-seuma porta baixa. To<strong>das</strong> as outras se abriam na pare<strong>de</strong> direita,incluindo o arco que permitia a entrada na sala. Acúrcioseguia à frente, com o peso dos passos abafado pela passa<strong>de</strong>iragrossa. Segui-o, admirando os quadros pendurados àaltura dos olhos, representando paisagens bucólicas que, àprimeira vista, pouco pareciam diferenciar-se umas <strong>das</strong> outras.Entrámos pela porta ao fundo do corredor.Se esperara ser recebido na câmara <strong>de</strong> um praticante<strong>de</strong> artes mágicas, <strong>de</strong> imediato me <strong>de</strong>siludi. Era a cozinha.Pequena para o tamanho da casa e revestida com azulejosbrancos que contrastavam com o amarelo em que se transformarao branco original da parte superior <strong>das</strong> pare<strong>de</strong>s. Oúnico elemento <strong>de</strong> cor era assegurado pela lagosta <strong>de</strong> louçavidrada disposta sobre um prato <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> couve do mesmomaterial e pendurada no exterior da chaminé.— Inspector Men<strong>de</strong>s, que sauda<strong>de</strong>s! — disse o homem olhando-me e esboçando um sorriso <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes amarelos e<strong>de</strong> pé junto à bancada.As “sauda<strong>de</strong>s” eram absur<strong>das</strong> vin<strong>das</strong> <strong>de</strong> alguém quesalientes. Os óculos <strong>de</strong>lentes grossas tornavam-lhe osolhosminúsculos s e os aros apertavam o nariz arredondado. do. —conhecera durante tão pouco tempo e numa situação tãoÉ servido? — perguntou, vendo as chamas esgotarem-seformal, mas o pouco tempo que convivemos foio suficientee enchendo ndo um copo com o vinho brancono interior dapara me fazer perceber que o Sr. Salcedo era alguémmui-garrafa a ver<strong>de</strong>.eto… sui generis. .Àfalta <strong>de</strong> melhor expressão. sãNão percebi sefalava do vinho, do chouriço ou <strong>de</strong> am-— Chame-me Baltazar, por favor. Ou só Men<strong>de</strong>s — re-bos. De qualquer forma, a minha resposta teria sido a mestorqui.— «Inspector Men<strong>de</strong>s» es» »pparece personagem em <strong>de</strong> umahistória má.ma:— Não, obrigado.— O amigo é que sabe — disse. «Amigo.»Outro ab-Passou uochouriço para outro prato com a ajuda <strong>de</strong> umsurdo. Vestia calças risca<strong>das</strong> curtas quelheexpunhamasgarfo,retirou um naco <strong>de</strong> pão saloio <strong>de</strong> uma caixa <strong>de</strong> latapeúgas brancas até acima do tornozelo. o o Para compensar aaocanto da bancada e fez-me sinal para seguir à sua frente,falta <strong>de</strong> comprimento em baixo, chegavam-lhe quase a meio <strong>de</strong> volta aocorredor, enquanto pegava também mno copo.<strong>das</strong> costas em cima. Por baixo dos suspensórios,uma camisolaFomos para a a sala. Acúrcio estava sentado numa poltronainterior branca encardida e com um buraco no ombro.junto à janela, aproveitando aluzque permeava as cortinasO cabelo continuava grisalho, escasso, oleoso e penteadobrancas para ler. O Sr. Salcedo colocou ouo repasto sobre umasobre a testa <strong>de</strong>masiado alta. — Deixe-me e só acabar estemesa redonda (notei que tinha quatro pernas; a predilecçãoservicinho e já conversamos — acrescentou.dos praticantes <strong>de</strong> artes sobrenaturais pelas mesas <strong>de</strong>pé galoQualquer u que fosse a natureza do “servicinho”, achei era mais um estereótipo eótipo que tombava após confirmação).que haveria locais mais a<strong>de</strong>quados do que a cozinha. Havia Pairava na sala o mesmo moodor ligeiro a bolor que existia nolouça asecar e tudo indicava que também se cozinhava ali. resto da casa, agora misturado com o cheiro do chouriçooNenhum dos resi<strong>de</strong>ntes se importaria <strong>de</strong> comer alimentoassado. O papel <strong>de</strong> pare<strong>de</strong> e era também florido, mas com coresconfeccionado no mesmo sítio on<strong>de</strong> se faziam “serviços”e padrão diferentes do que revestia o corredor. Os mó-<strong>de</strong> natureza indigesta? Ou estaria a ser <strong>de</strong>masiado susceptível?veis eram antiquados e não parecendo ter valor. Sobre umapequena lareira, o elemento <strong>de</strong>corativo mais invulgar: umO Sr. Salcedo terminou <strong>de</strong> colocar parte do conteúdoquadro <strong>de</strong> papel escuro (ou talvez fosse pergaminho) on<strong>de</strong><strong>de</strong> um frasco <strong>de</strong> vidro transparente sem rótulo num prato <strong>de</strong> fora pintado um brasão <strong>de</strong> fundo cinzento com uma árvorebarro, cobriu-o com a tampa e colocou-o <strong>de</strong>lado. A seguir,ver<strong>de</strong> sobreposta. Sobre o tronco <strong>de</strong>sta, um escudo amarelo aergueu uma garrafa <strong>de</strong> vidro ver<strong>de</strong>, igualmente sem rótulo, com cinco pequenos elementos ver<strong>de</strong>s dispostos sem cruz,abriu-a e verteu algumas gotas <strong>de</strong> líquido para o prato. Pousoucuja natureza era impossível <strong>de</strong> <strong>de</strong>scortinar doponto on<strong>de</strong>também a garrafa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> a fechar e, com minúcia, me encontrava. a. Por baixo do brasão, uma faixa a amarela semergueu ligeiramente o prato acima do mármore da bancadaqualquer inscrição. Por cima, o mesmo pentagrama que3637e moveu-o emcírculos cuidadosos para misturar os dois ingredientes.adornava aocartão <strong>de</strong> visita.Pensei se <strong>de</strong>veria aguardar ali ou retirar-me. Era — Peço-lhe que me <strong>de</strong>sculpe, mas estive ocupado atépossível que me arrepen<strong>de</strong>sse do que veria a seguir. Acúrcio agora enão pu<strong>de</strong> parar para o almocinho. Estava cá comvoltara a sair da cozinha pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> entrar, <strong>de</strong>ixando-meuma fraqueza… — Começou a comer, mor<strong>de</strong>ndo o pão esozinho com o seu patrão. Deveria procurá-lo? o chouriço espetado no garfo. A fome era óbvia. Ou talvezO prato foi pousado eo Sr. Salcedo retirou uma caixa comesse sempre como se não visse alimento àfrente há<strong>de</strong> fósforos <strong>de</strong> um suporte ao lado do fogão. Deu dois pas-várias semanas. A única pausa a serviupara esvaziar o coposos empantufados até ao frigorífico, abriu-o e retirou um <strong>de</strong> uma assentada.volume <strong>de</strong> papel vegetal manchado <strong>de</strong> vermelho. Abriu-o Limpou a boca à mangada camisola interior e ergueuusobre a bancada, cortou ouum pedaço com uma faca simples os olhos do prato.<strong>de</strong> cozinha e colocou-o ono interior do prato com o líquido.— Queira então <strong>de</strong>screver r o problema — disse-me.seDepois, riscou umfósforo fe aproximou-o do prato. As Acúrcio ergueu-se, e, pegou no prato e no copo o esaiu comchamas azula<strong>das</strong> envolveram <strong>de</strong> imediato a substância aocentro.eles.Contei-lhe o que vira em casa <strong>de</strong> Luís Espanhol, tentan-tan-— O chouricinho fica sempre melhor se usarmos do não esquecer pormenores ore que pu<strong>de</strong>ssem em ser importan-álcool etílico com umas gotas <strong>de</strong> vinho branco — disse, tes. A seguir, passei às mortes <strong>de</strong> todos os que tinhamentradona casa, com três excepções, incluindo o<strong>de</strong>sgraçadoRaimundo que dificilmente se po<strong>de</strong>ria consi<strong>de</strong>rar realmentevivo.— E o que o preocupa? — perguntou. — Seja sincero.Acúrcio regressou, trazendo um roupão <strong>de</strong> veludo vermelho<strong>de</strong> aspecto pesado. O Sr. Salcedo pôs-se <strong>de</strong> pé e enfiouos braços nas mangas enquanto o seu assistente segura-va a vestimenta. Voltou a sentar-se <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dar um nó nocordão à cintura e Acúrcio regressou à poltrona e ao livro.Fui sincero, como pediu.— Não conseguimos explicar a morte dos assassinos <strong>de</strong>Luís Torres — disse. — A opinião oficial refere queforammortos por elementos que se puseram em fuga sem <strong>de</strong>ixarvestígios no local, oque dificulta a sua i<strong>de</strong>ntificação e loca-


lização. Mas a verda<strong>de</strong> é que ninguém po<strong>de</strong>ria ter entrado.Todos os pontos <strong>de</strong> entrada estavam barrados.O Sr. Salcedo acenou com a cabeça.— Mas não é tudo — afirmou.— Não, não é tudo — concor<strong>de</strong>i. — A forma comomorreram os dois assassinos e os objectos encontrados àfrente do dono da casa fizeram-me pensar em… — Não oquis dizer. Optei por um caminho alternativo. — Reconhecialguns dos objectos do nosso encontro anterior.Sorriu.— Tais como?— O cálice <strong>de</strong> prata e a faca. Não me lembro <strong>de</strong> tervisto uma vela.— É muito observador. Não havia nenhuma vela.Usam-se velas apenas para invocações e para a sua inversão.No caso que refere, o espírito já estava presente e o objectivoera precisamente o inverso: convencê-lo a partir.Permaneci em silêncio.— Qual era o título do livro? — perguntou.— Não sei. Estava aberto e não lhe toquei para nãocontaminar as provas. As páginas estavam sujas <strong>de</strong> sangue,mas parecia escrito em russo.— Em grego, possivelmente. De que cor era a vela?Aparentemente, apesar da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser minucioso,faltara-me referir aquele pormenor.— Preta. E era grossa — acrescentei.— A espessura é irrelevante. A cor não. Diga-me, inspector…— corrigiu a tempo — Baltazar, acredita que existemfenómenos cuja explicação não po<strong>de</strong> ser alcançada pelaciência?— Feitiçaria, assombrações e afins?Novo sorriso.— Precisamente.— Não. Se alguém me perguntar, será essa a minharesposta. Não acredito. São histórias da carochinha. Ecorrespondia à verda<strong>de</strong> até ver o que vi em casa daquelamulher.Acúrcio riu-se. Continuava a olhar o livro. O riso brevepo<strong>de</strong>ria ter sido provocado por algo que lera. Ou não.— É compreensível — disse-me o Sr. Salcedo. — Terásido, sem dúvida, impressionante para um leigo. Para alguémcomo eu, que <strong>de</strong>dicou tantos anos ao estudo e investigaçãodo mundo sobrenatural… Bom… Digamos que jávi muito pior.Engoli em seco.— Não duvido. — Quebrei o momento <strong>de</strong> silêncio quese seguiu: — Luís Torres era um… Não sei qual a expressãomais correcta. Um praticante <strong>de</strong> artes sobrenaturais?— Um feiticeiro — corrigiu o Sr. Salcedo. — Não, nãome parece. Se fosse, penso que o conheceria. Pelo menos<strong>de</strong> nome. Seria apenas um curioso. Tentou fazer algo para oqual não estava preparado e pagou as consequências.— Mas é assim tão fácil? Até um curioso po<strong>de</strong> invocarforças que lhe possam fazer mal a si e aos outros?— Exige os conhecimentos certos. E é muito difícilou mesmo impossível evitar que esses conhecimentoscaiam em mãos menos instruí<strong>das</strong> ou com intenções menosnobres. Como suce<strong>de</strong>rá em qualquer outra área do saber.Depois, é tudo uma questão <strong>de</strong> empenho. A feitiçaria nãoé um dom inato, ao contrário do que suce<strong>de</strong> com a verda<strong>de</strong>iramagia, tão rara que se tornou quase mitológica. Parasimplificar, po<strong>de</strong>remos dizer que é comparável à confecção<strong>de</strong> uma refeição. Com os ingredientes e os procedimentoscertos, qualquer um conseguirá cozinhar um prato. A qualida<strong>de</strong>do mesmo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá, claro, do talento, do rigor e daqualida<strong>de</strong> dos ingredientes usados. Alguém que tenha acessoaos ingredientes e aos procedimentos necessários paraoperar efeitos mágicos através da feitiçaria não será necessariamenteum feiticeiro, da mesma forma que alguém comuma receita não será necessariamente um cozinheiro.Novo momento <strong>de</strong> silêncio, mais <strong>de</strong>morado. Naquelaocasião, foi ele a quebrá-lo.— O primeiro passo é sempre começar por i<strong>de</strong>ntificara natureza do fenómenozinho. Tudo indica que se trate <strong>de</strong>um espírito, mas é necessário <strong>de</strong>terminar com que tipo <strong>de</strong>entida<strong>de</strong> lidamos. Tenho as minhas suspeitas, mas preferianão as partilhar até obter uma confirmação. Para isso, precisarei<strong>de</strong> examinar o livro e a vela. Suponho que tenham sidoguardados como provas.— Sim — confirmei.— Muito bem. Então traga-mos. Logo que possa. Nãopo<strong>de</strong>mos per<strong>de</strong>r tempo. Se conseguir, volte ainda hoje.Havia apenas um problema. Precisava <strong>de</strong> o expor compalavras que não me fizessem parecer completamente <strong>de</strong>sprovido<strong>de</strong> coluna vertebral.— Receio ser a próxima vítima.Quase conseguia.O Sr. Salcedo sorriu. Acúrcio ergueu os olhos do livropor um instante e observou-me. Não sorria.— Seria uma preocupação perfeitamente razoável —consi<strong>de</strong>rou o Sr. Salcedo. — Mas não nas suas circunstâncias.Não percebi on<strong>de</strong> queria chegar com aquilo.— Porquê?O sorriso continuava. Não via nada <strong>de</strong> engraçado naquelahistória, mas, aparentemente, ele sim.— Se estivermos perante o agente que suponho, e lembroque carece <strong>de</strong> confirmação, trata-se <strong>de</strong> um espírito metódico,quase obsessivo, se lhe pudéssemos atribuir traçoshumanos. Compreen<strong>de</strong>?— Não. — Para quê mentir? Não conseguiria parecerinteligente naquele diálogo, mesmo que me esforçasse. Omelhor seria <strong>de</strong>sistir à partida.— Acompanhe o meu raciocínio. Quem foram os primeirosa morrer? Depois do proprietário da casa e dos seusassassinos, claro.Não precisei <strong>de</strong> pensar.— Anjos e Marques. Os dois polícias.— Mais ninguém?— E a vizinha. Todos no mesmo dia.— E <strong>de</strong>pois?Começava a recear que a conversa não chegasse a partealguma.— Raimundo. Da polícia científica. Bom… esse está sótecnicamente morto.— E <strong>de</strong>pois? — Notou o meu <strong>de</strong>sagrado e tentou acalmar-me.— Seja paciente. Verá on<strong>de</strong> quero chegar.Fiz-lhe a vonta<strong>de</strong>.— Um dos técnicos da Medicina Legal.— Muito bem. Agora, peço-lhe que recor<strong>de</strong> a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>entrada na casa <strong>das</strong> pessoas que referiu. — Recostou-se naca<strong>de</strong>ira e olhou-me enquanto pensava.Ah. Eureka. Ali estava.— A or<strong>de</strong>m é a mesma — disse-lhe. — Mas não fazsentido.— Porque não?38 39— Porque eu entrei antes do Raimundo. Por essa lógica,teria morrido <strong>de</strong>pois dos dois polícias e da vizinha.O Sr. Salcedo levantou-se e caminhou até um armário.Abriu-o e retirou uma caixa da ma<strong>de</strong>ira com aplicações metálicas.Aquilo que vira no interior antes <strong>de</strong> voltar a fechar oarmário fora uma coruja empalhada?— A explicação resi<strong>de</strong> numa particularida<strong>de</strong>zinhacuriosa que tem, meu caro Baltazar. — Voltou a sentar-se,colocando a caixa à sua frente. — Reparei nela quando nosencontrámos pela primeira vez. A princípio, não conseguii<strong>de</strong>ntificar o que o tornava diferente. Não é um traço muitocomum e apenas o encontrei duas vezes na minha carreira,que é bastante longa, como talvez não saiba. Num homemque conheci há muitos anos em Novgorod, na Rússia, e noprezado amigo aqui sentado diante <strong>de</strong> mim.— Não estou a perceber. — Começava a repetir-me. —De que fala?— Já verá.Abriu a caixa e retirou um volume embrulhado numpano azul-escuro. Pousou-o ao centro da mesa, afastou rapidamentea caixa e <strong>de</strong>sembrulhou o pano.— O que é isto? — perguntei, não acreditando no quevia.— O que lhe parece? — perguntou Acúrcio, soandoquase divertido.— Parece-me que estão a brincar comigo. Não é ce<strong>de</strong>r<strong>de</strong>masiado ao estereótipo?— É apenas um instrumento. Nada mais — disse o Sr.Salcedo, colocando a mão sobre a bola <strong>de</strong> cristal apoiadanum suporte <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira quase negra. — Peço-lhe que olheo centro da bola.— Porquê?— Por favor. Será mais fácil explicar através <strong>de</strong> uma<strong>de</strong>monstração.Assim fiz. Vi um reflexo <strong>das</strong> cores em redor distorci<strong>das</strong>pelo cristal maciço. Mais nada.— E então? — perguntei.O Sr. Salcedo voltou-se para Acúrcio. Este acenou-lhecom a cabeça por um momento e olhou-me com atenção.Não me agradava o escrutínio.— O que foi? Fiz alguma coisa mal? — insisti.— Não fez mais do que tornar patente a sua natureza.— A natureza <strong>de</strong> pessoa que não vê nada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>bolas <strong>de</strong> cristal?— Nem mais! — O sorriso ampliou-se e pareceu agradar-lhea minha conclusão. Mas não me parecia que o sarcasmocontasse como conclusão. — A imagem que invoqueina bola foi suficientemente perturbadora para abalarseriamente a saú<strong>de</strong> mental <strong>de</strong> uma pessoa comum. E, comome diz, não viu nada. A conclusão só po<strong>de</strong> ser uma. O amigoBaltazar é imune ao sobrenatural.— Ah. — Era só o que me faltava. — E isso é positivo.Ou não?Encolheu os ombros. A ausência <strong>de</strong> pescoço tornava ogesto bizarro.— É a sua natureza. Para quê tecer juízos <strong>de</strong> valor? Temvantagens e <strong>de</strong>svantagens, como quase tudo na vida e além<strong>de</strong>la — explicou. — Por um lado, não po<strong>de</strong>rá ser prejudicadopela magia ou por outra força arcana, mas também éverda<strong>de</strong> que nunca po<strong>de</strong>rá colher <strong>de</strong>las qualquer benefício.Ocorreu-me uma possibilida<strong>de</strong> tranquilizadora.— Isso quer dizer que posso fazer <strong>de</strong> conta que o espíritonão existe?— Expliquei-me mal. — Ora bolas. — É imune à influênciado sobrenatural exercida sobre a sua pessoa, mas nãoé imune ao que se apresentar perante os seus sentidos e aoque se tornar evi<strong>de</strong>nte à sua razão.— Ou seja…?Enquanto o Sr. Salcedo pensava numa explicação alternativa,Acúrcio antecipou-se:— Ou seja, se lhe aparecer um espírito maligno à frente,não se livra do susto, mas a pior coisa que po<strong>de</strong> acontecer éborrar-se <strong>de</strong> medo.Eloquente. E eficaz.— Então é impossível que seja eu a próxima vítima —concluí.— Ou, pelo menos, altamente improvável. Por vezes, aimpossibilida<strong>de</strong> prega-nos parti<strong>das</strong> — corrigiu o Sr. Salcedo.— Mas não será impossível que o espírito em questãofaça outras vítimas.Havia um elemento que não batia certo.— Se as mortes ocorreram pela or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> entrada nacasa, porque não morreram os homens da Medicina Legalao mesmo tempo?— Precisaremos <strong>de</strong> apurar o motivo — respon<strong>de</strong>u oSr. Salcedo.Se o meu eu presente contasse ao meu eu passado quetivera uma conversa séria sobre aquele assunto, o Baltazarque fora oito anos antes não teria aguentado muito temposem aplicar uma valente palmada na testa do Baltazar presente,recomendando-lhe que ganhasse juízo, com um ououtro palavrão à mistura para maximizar o efeito.Novamente lembrado <strong>de</strong> que não havia tempo a per<strong>de</strong>r,<strong>de</strong>spedi-me e comprometi-me a voltar mais tar<strong>de</strong> com asprovas.Depois <strong>de</strong> recolhi<strong>das</strong>, regista<strong>das</strong>, fotografa<strong>das</strong> dos ângulospossíveis e espremi<strong>das</strong> <strong>de</strong> to<strong>das</strong> as informações relevantesque pu<strong>de</strong>ssem transmitir e que, nas provas daquelecaso em particular e no que à polícia dizia respeito, eramquase inexistentes, os elementos eram armazenados atépassar o período <strong>de</strong> tempo previsto na lei para po<strong>de</strong>remser <strong>de</strong>struídos ou reaproveitados. O reaproveitamento raramenteacontecia. O material passível <strong>de</strong> nova utilização(armas, equipamento electrónico, carros) não resistia à passagemdos anos e tornava-se inutilizável ou obsoleto. Jóias eoutros objectos <strong>de</strong> valor eram <strong>de</strong>volvidos aos proprietáriosou aos seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, quando resultavam <strong>de</strong> aquisiçãolegítima, ou revertiam a favor do erário, em todos os outroscasos. Mas era mais comum que <strong>de</strong>saparecessem misteriosamente.Alguns dos meus colegas <strong>de</strong> serviço tinham-seespecializado em organizar caças ao tesouro no armazém<strong>de</strong> material apreendido. Tão comuns eram as visitas que oagente <strong>de</strong> serviço à entrada, na cave, nem ergueu os olhosdo Correio da Manhã quando passei.Segui as indicações no relatório até à estante e prateleiracertas e puxei uma caixa <strong>de</strong> cartão. O código rabiscado amarcador preto conferia. Puxei do canivete e usei-o paracortar a fita a<strong>de</strong>siva que mantinha a caixa fechada. Era aquela.Soube-o antes mesmo <strong>de</strong> olhar o conteúdo. O cheiro apêlo queimado era mais intenso. Peguei na caixa e saí, semuma palavra do guarda zeloso. Houvera um incêndio nazona industrial <strong>de</strong> Vila do Con<strong>de</strong> no dia anterior. A gravida<strong>de</strong>do acontecimento não permitia distracções.Quando regressei a casa do Sr. Salcedo, a noite caíra.Tive <strong>de</strong> mostrar o crachá ao taxista para que me <strong>de</strong>ixasselevar a caixa a meu lado e não no porta-bagagens. E ainda


nem tinha sentido o cheiro. Quando lhe chegou às narinas,abriu as janelas e não parou <strong>de</strong> resmungar durante todo ocaminho. Quase congelei.Espetei o <strong>de</strong>do sobre a campainha e Acúrcio abriu. Pareciaabalado. Depois <strong>de</strong> fechar a porta, disse-me, enquantose ocupava a reacen<strong>de</strong>r a vela no vestíbulo:— O Sr. Salcedo está indisposto.— Espero que não seja grave — repliquei.Olhou-me como se tivesse dito algo ofensivo. Logo aseguir, recompôs-se.— Não é grave. Uma indisposição passageira.Incomodava-me ter ali vindo para nada.— Sendo assim, será melhor voltar amanhã?— Não — Acúrcio indicou o corredor. — Antes <strong>de</strong>recolher, transmitiu-me or<strong>de</strong>ns precisas. Não po<strong>de</strong>rá analisaros elementos que traz, mas há mais alguém que po<strong>de</strong>ráfazê-lo.Não se referia a si próprio.— Quem? Pensei que fosse você o aprendiz <strong>de</strong> feiticeiro?— Quando me apercebi, já as palavras tinham sido ditase não havia nada a fazer. Receei o pior.O fósforo com que acen<strong>de</strong>ra a vela continuava a ar<strong>de</strong>r ea pequena chama amarela tocava-lhe os <strong>de</strong>dos. Extinguiu-secom um fio <strong>de</strong> fumo, sem qualquer gesto da mão. Atirou opalito fumegante para um cinzeiro ao lado do castiçal.— Muito divertido. — Voltou a indicar o corredor.Passei e dirigi-me para a entrada da sala. Acúrcio chamou-mecom um “psst”. Voltei-me. Estava parado junto àporta aberta sob os <strong>de</strong>graus para o piso superior, que abrira.Voltei para trás e entrei. Esca<strong>das</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes. Pouca luz.Olhei Acúrcio <strong>de</strong> relance. Aquela ligeira inclinação do lábiopo<strong>de</strong>ria ser um sorriso? O sacana ria-se <strong>de</strong> mim? Iniciei a<strong>de</strong>scida. Senti-lhe os passos atrás <strong>de</strong> mim. A única luz era aque entrava pela porta. Que significaria aquilo? Teria vindoali à procura <strong>de</strong> ajuda para acabar assassinado por um maníacomovido por sabe-se lá que rancor arbitrário?O pânico crescente não teve tempo <strong>de</strong> crescer muitomais. A escadaria era muito curta e terminava numa porta.Via-se luz por baixo e pelo buraco da fechadura. Acúrcioespremeu-se para passar por mim. Tinha um cheiro quemisturava sabonete neutro e hortaliça crua. Não era o meubouquet preferido. Destrancou a porta com uma chave queretirou do bolso e entrou. Segui-o.A cave tinha sido transformada num quarto improvisado.O cheiro a bolor era particularmente intenso e as manchasnegras nas pare<strong>de</strong>s húmi<strong>das</strong> não enganavam ninguém.Havia também um outro odor vagamente <strong>de</strong>sagradável, masera impossível i<strong>de</strong>ntificá-lo. Tinham sido dispostos algunsmóveis. Uma mesa, ca<strong>de</strong>iras, um armário, uma escrivaninha.Mas continuava a ser uma cave. A luz fraca vinha <strong>de</strong> umaúnica lâmpada sem can<strong>de</strong>eiro. A um canto, uma arca longa ebaixa colocada sobre um suporte metálico e completamentecoberta com um pano escuro <strong>de</strong> franja dourada. Muitoperto, no mesmo canto, havia um manequim <strong>de</strong> modista.No canto oposto, um ca<strong>de</strong>irão <strong>de</strong> estofos remendados eum banco ao lado, servindo <strong>de</strong> suporte a um cesto on<strong>de</strong> seviam rolos <strong>de</strong> linha <strong>de</strong> várias cores, pedaços <strong>de</strong> pano e umaalmofada <strong>de</strong> alfinetes em forma <strong>de</strong> coração vermelho. Sentadano ca<strong>de</strong>irão, uma mulher ocupava-se a passar a agulhapara <strong>de</strong>ntro e para fora <strong>de</strong> um pano branco on<strong>de</strong> a linhaver<strong>de</strong> dava o seu contributo para <strong>de</strong>senhar um ramo <strong>de</strong> flores.Vestia uma saia até aos pés <strong>de</strong> pano castanho grosso euma blusa com mangas <strong>de</strong> balão em tecido florido, calçandosapatos <strong>de</strong> couro preto com fivela e meias da cor da saia. Tinhao cabelo escuro preso num carrapito no alto da cabeça,<strong>de</strong> uma forma que parecia <strong>de</strong>sajustada à sua ida<strong>de</strong>, e estavacompletamente absorvida pelo que fazia.— Lucília — disse Acúrcio. — Tem uma visita.A mulher ergueu finalmente os olhos do bordado eolhou primeiro para Acúrcio e só <strong>de</strong>pois para mim. Tinhaolheiras profun<strong>das</strong> e lábios quase brancos. Os olhos eramescuros como o cabelo. A iluminação <strong>de</strong>ficiente fez-me pensarque começaram a brilhar mais intensamente quando meviu. Pousou o bordado no regaço.— Que surpresa! — exclamou, unindo as mãos e erguendo-separa vir ao nosso encontro. — É tão raro recebervisitas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o Sr. Salcedo me acolheu <strong>de</strong> formatão amável. Peço-lhe que <strong>de</strong>sculpe a <strong>de</strong>sarrumação em quese encontram os meus aposentos, mas também funcionamcomo meu ateliê. Lucília Honório e Sá. — Esten<strong>de</strong>u-me amão, sem se preocupar com a caixa <strong>de</strong> cartão que me ocupavaas duas mãos e me impedia <strong>de</strong> retribuir o cumprimento.— Senhor…?Notei que Acúrcio lhe fez um gesto rápido com a mão.Não consegui perceber o que fora. No mesmo momento,Lucília baixou a mão e <strong>de</strong>u um passo atrás. Acúrcio respon<strong>de</strong>upor mim.— Este é o inspector Men<strong>de</strong>s. — Pareceu-me vê-lo novamentea sorrir. — Procurou o Sr. Salcedo para solucionarum problema e precisa da sua ajuda.— Seja qual for o problema — disse Lucília, olhando-me.O brilho dos olhos parecia ter-se intensificado aindamais, se tal fosse possível —, po<strong>de</strong> ficar <strong>de</strong>scansado. O Sr.Salcedo é o homem indicado. Muitos lhe invejam o talento,mas ninguém consegue chegar-lhe aos calcanhares. Verá quetenho razão. Em que posso ser útil?— Precisamos que examine uma vela <strong>de</strong> sortilégio —respon<strong>de</strong>u-lhe Acúrcio, sem conseguir que a mulher <strong>de</strong>sviasseos olhos <strong>de</strong> mim. Começava a sentir-me incomodadopor um olhar tão intenso. Segui Acúrcio até à mesa e coloqueisobre ela a caixa. Abri-a e retirei o primeiro objecto. Olivro. Acúrcio tirou-mo <strong>das</strong> mãos, olhou a capa e a lombada,on<strong>de</strong> não havia nada escrito, e abriu-o. — Como suspeitámos.É um compêndio <strong>de</strong> invocações. Da escola assíria.Não tão eficaz como as invocações sumérias, mas capazes<strong>de</strong> satisfazer as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um amador. — Procurouas páginas abertas quando o cadáver <strong>de</strong> Luís Espanhol foiencontrado e leu por breves instantes. — Hmm… Claro.Previsível.Não lhe perguntei o que quisera dizer com aquilo. Supusque perceberia tanto da sua resposta como do que disseraantes. Limitei-me a continuar a retirar objectos da caixa,consciente <strong>de</strong> que Lucília se aproximara também da mesa econtinuava a fitar-me em silêncio. Não seguia os meus movimentos,mantendo o olhar fixo nalgum ponto acima dosmeus ombros. Tentei ignorar como pu<strong>de</strong> e retirei frascostrazidos do escritório do criminoso morto, o cálice e a facaem sacos <strong>de</strong> plástico individuais, um frasco <strong>de</strong> ossos, outrocontendo algo que parecia musgo seco, um <strong>de</strong> pó brancocomo farinha e outro que parecia meio cheio <strong>de</strong> areia. Oguincho quase me fez saltar para o colo <strong>de</strong> Acúrcio. Parabem do meu ego e da minha integrida<strong>de</strong> física, foi uma sorteconseguir conter-me.Lucília espalmava-se contra a pare<strong>de</strong>, arreganhando os<strong>de</strong>ntes e abrindo muito os olhos. Já não me olhava a cara,mas sim a mão que acabara <strong>de</strong> retirar da caixa. E silvava40 41como uma panela <strong>de</strong> pressão. Não soube o que fazer. Acúrciosim. Pren<strong>de</strong>u-me a mão e retirou o objecto que segurava.Era um pequeno frasco bojudo <strong>de</strong> vidro com tampa metálica<strong>de</strong> enroscar. Tinha no interior um líquido transparente.Lucília tornou a guinchar, <strong>de</strong>ixando que o guincho se prolongassenuma espécie <strong>de</strong> rosnado. Acúrcio voltou a colocaro frasco na caixa e falou-lhe.— Foi sem intenção. Está segura.A mulher pareceu <strong>de</strong>scontrair, mas continuava a rosnare a olhar a caixa. Fechou a boca e, por um segundo, pareceuesforçar-se para recordar como po<strong>de</strong>ria transformar o esgarferoz na expressão plácida que exibira momentos antes. Atransformação foi impressionante. Levou a mão ao cabelo eaproximou-se novamente da mesa, mantendo uma distânciacautelosa. Sorriu, mas passava a ser a caixa a merecer a suaatenção e não eu.— O que era? — sussurrei.— Água — respon<strong>de</strong>u Acúrcio.Claro. Água. Fazia todo o sentido. Era perfeitamentenormal que as pessoas sofressem crises animalescas por veremfrascos <strong>de</strong> água. Acúrcio substituiu-me no processo <strong>de</strong>retirar objectos da caixa. O pequeno frasco não voltou asair, claro. Procurou a vela e retirou-a. Estava <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> umsaco <strong>de</strong> plástico selado. Abriu e o cheiro espalhou-se. Nãopareceu incomodar nenhum dos dois. Desejei que o taxistaali estivesse. Seria bom partilhar a normalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umacareta <strong>de</strong> nojo com alguém. Passou o que restava da velanegra a Lucília, que a rodou nas mãos antes <strong>de</strong> a cheirar.Não apenas o fedor não a incomodava como parecia querersenti-lo melhor.— Sim — disse, antes <strong>de</strong> tornar a cheirar. — Sim. Umespírito milenar. — Nova inspiração profunda. — Não éeuropeu. Isso é certo. Talvez egípcio. Um víndix.— Um quê? — não me contive.— Um espírito vingador. Invocado para vingar a morte<strong>de</strong> quem executa o ritual — respon<strong>de</strong>u Lucília, voltando aolhar-me e a sorrir. — Extremamente eficaz. Implacável. Oritual <strong>de</strong> expurgação é muito complexo e exige gran<strong>de</strong> forçamental. Qual foi a fórmula escolhida?Acúrcio recebeu-lhe a vela <strong>das</strong> mãos e voltou a selá-lano saco e a colocá-la <strong>de</strong>ntro da caixa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter passadoos instantes anteriores a arrumar os objectos que dispussobre a mesa.— Não houve ritual <strong>de</strong> expurgação — retorquiu, baixandoas abas da caixa.A informação sobrepôs-se ao fascínio que Lucília pareciasentir por mim.— Isso é muito mau — consi<strong>de</strong>rou.Tinha finalmente encontrado uma questão relevante acolocar, mas fui impedido <strong>de</strong> o fazer por um grito lancinanteque <strong>de</strong>sceu pelas esca<strong>das</strong> até à cave. A questão relevantefoi substituída por:— O que foi isto?Acúrcio parecia agitado. Foi Lucília a respon<strong>de</strong>r. A explicaçãoera-me inteiramente dirigida.— Pobre Sr. Salcedo. Se não fosse um homem tão bon-doso, talvez não fosse presa tão apetitosa para o maldito<strong>de</strong>mónio. E por mais que consiga aplacá-lo, há momentosem que se torna impossível controlar o mal que o possui.Não sei se me perturbaram mais as palavras ou o facto<strong>de</strong> as proferir com um sorriso radioso.— Precisamos <strong>de</strong> ir — disse-me Acúrcio.— Porque não aco<strong>de</strong> ao nosso querido Sr. Salcedo e<strong>de</strong>ixa o inspector comigo, Acúrcio? Saber-me-ia bem umpouco <strong>de</strong> conversa.Perdi toda a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> conversar. Não saberia explicarporquê, mas era um facto.— De certeza que o inspector adoraria — disse-lheAcúrcio. Não. Estava completamente enganado. — Massabe que não po<strong>de</strong> ser. Ficará para uma próxima oportunida<strong>de</strong>.— Muito bem — Lucília pareceu resignada. — Mas nãose esqueçam <strong>de</strong> levar… — <strong>de</strong>ixou a frase a meio e apontoua caixa antes <strong>de</strong> continuar — o que trouxeram. Ainda lhesinto a presença. É insuportável.Duvidava que se referisse à vela, pela forma como acheirara quase com avi<strong>de</strong>z apenas momentos antes. Ouviu-senovo grito. Acúrcio dirigiu-se para a porta. Peguei nacaixa e segui-o.— Foi um prazer, inspector — disse Lucília, quandoolhei para trás uma última vez. Havia algo muito perturbadorno seu sorriso. A forma como passou a língua pelos<strong>de</strong>ntes não melhorou nada. — Espero que nos voltemos aver.Acenei-lhe com a cabeça e saí. «Não se pu<strong>de</strong>r evitá-lo»,pensei. Acúrcio puxou a porta e trancou-a. Claro que tambémnão era propriamente normal pren<strong>de</strong>r uma costureirana cave, mas a sobredosagem <strong>de</strong> bizarria começava a <strong>de</strong>ixar-meindiferente aos pormenores. Quando voltámos aocorredor, Acúrcio fechou a porta <strong>das</strong> esca<strong>das</strong> e voltou-separa mim, no preciso momento em que soava novo grito.Vinha <strong>de</strong> um dos pisos superiores.— As suspeitas do Sr. Salcedo foram confirma<strong>das</strong> —disse-me. — Prevendo esta possibilida<strong>de</strong>, pediu-me quemarcasse encontro para a casa on<strong>de</strong> foi feita a invocação.É crucial que leve consigo o elemento sobrevivente. O técnico<strong>de</strong> Medicina Legal que referiu. Amanhã ao meio-dia.— Não sei se conseguirei autorização da imobiliáriacom tão pouco tempo <strong>de</strong> antecedência — argumentei. —Além disso, é possível que já tenha sido vendida.— Não foi. Liguei para a agência durante a tar<strong>de</strong> parame informar. Também marquei uma visita.— Isso é… — qual era a expressão certa? — muitoprevi<strong>de</strong>nte. — Nada mal.— Agora é necessário que se vá. — Avançou para mime vi-me forçado a recuar para o vestíbulo. Levou uma mãoà pequena mesa por baixo do espelho manchado e alcançouum livro <strong>de</strong> capa forrada a pano vermelho. Colocou-o notopo da caixa que levava nos braços. — O Sr. Salcedo recomendaeste livro para esclarecer as dúvi<strong>das</strong> que possa teracerca do nosso adversário. — Apontou o post-it amareloque espreitava entre as páginas. — Mas leia apenas a secçãoassinalada. O resto talvez lhe pareça <strong>de</strong>masiado intenso.E, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> transmitido o recado, curvou-se para soprara vela, abriu a porta e quase me empurrou para fora.— Só mais uma coisa — disse-lhe.Hesitou em vez <strong>de</strong> me fechar a porta na cara.— O que é?— O Sr. Salcedo está mesmo possuído por um <strong>de</strong>mónio?


Novamente o sorriso trocista que começava a conhecer<strong>de</strong>masiado bem.— Ora, inspector… Não me diga que acredita em históriasda carochinha.E fechou a porta, parecendo muito agradado pelo dramatismocom que lhe foi permitido fazê-lo.Passei parte da noite a ler o livro e outra parte a tentaresquecer o que lera para conseguir dormir. O autor eraFrancisco Salcedo e tinha como título: “Espíritos, Assombrações,Fantasmas e Outras Manifestações Etéreas.” Nãotinha indicação <strong>de</strong> editora ou <strong>de</strong> ano <strong>de</strong> edição. A julgarpelas páginas amarela<strong>das</strong> e <strong>de</strong> cheiro intenso a papel velhoteria sido impresso déca<strong>das</strong> antes. A secção assinalada, integrandoum capítulo chamado “Espíritos invocáveis, suasqualida<strong>de</strong>s e possíveis consequências” falava <strong>de</strong> víndix, ou“espíritos vingadores”, entida<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>riam ser invoca<strong>das</strong>em situação <strong>de</strong>sesperada para assegurar que <strong>de</strong>terminadoassassínio não ficaria impune. Depois da morte do invocador,o víndix manifesta-se e exerce represálias ferozessobre os homici<strong>das</strong>. O principal problema relacionava-secom a natureza da invocação. Porque o espírito é libertado<strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> quem o invoca, não restará ninguémpara proce<strong>de</strong>r ao ritual <strong>de</strong> expurgação, a não ser que se tomemprovidências para que assim seja. Depois <strong>de</strong> consumadaa vingança, o espírito permanece livre no mundo, portempo in<strong>de</strong>terminado, e po<strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r a missão original àmorte arbitrária <strong>de</strong> quem a sua lógica unidireccional conseguirencaixar na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> “vingança”. Como a morte <strong>de</strong>todos os que entram em contacto com o cadáver do invocador,por exemplo. Ou que entram no domicílio do mortoenquanto este ainda se encontra no interior. O texto referiaainda que o ritual <strong>de</strong> invocação é simples, exigindo apenasuma vela com características específicas (<strong>de</strong> cor negra, compavio torcido e fabricada com cera <strong>de</strong> abelha misturada comessências), a récita <strong>de</strong> palavras a<strong>de</strong>qua<strong>das</strong> e um sacrifício emsangue sobre prata maciça. Mais adiante, referiam-se relatosda existência doutros tipos <strong>de</strong> víndix capazes <strong>de</strong> tarefas quenão se limitariam à simples vingança, po<strong>de</strong>ndo ser aplicadosa funções preventivas para proteger uma pessoa, umobjecto ou um local. Como exemplo, citava-se a utilização<strong>de</strong> espíritos com estas características pelos antigos egípciospara proteger os túmulos dos seus faraós e também pelosetruscos e por civilizações do Oriente longínquo.A secção terminava ali. Li alguns parágrafos da secçãoseguinte, atraído pelo sugestivo título “Aparições <strong>de</strong> carizvenéreo”. Era uma listagem resumida dos tipos <strong>de</strong> espíritoque po<strong>de</strong>riam ser invocados para proporcionar prazer carnal.Eram semelhantes no seu comportamento aos <strong>de</strong>móniosíncubo e súcubo, mas com a distinção <strong>de</strong> possuíremuma natureza imaterial e serem sexualmente ambíguos, nãose lhes po<strong>de</strong>ndo atribuir traços maioritariamente masculinosou femininos. A leitura estava a ser interessante atéchegar às consequências da perda <strong>de</strong> controlo sobre aparições<strong>de</strong>ste tipo. Não consegui concluir a leitura do segundorelato <strong>de</strong> uma invocação venérea que correu mal, fechei olivro, pousei-o na mesa-<strong>de</strong>-cabeceira e apaguei a luz, tentandoadormecer. Minutos <strong>de</strong>pois, tornei a acen<strong>de</strong>r a luz,levantei-me e fui levar o livro à <strong>de</strong>spensa, equilibrando-osobre duas latas <strong>de</strong> salsichas. Fechei a porta da <strong>de</strong>spensa evoltei a <strong>de</strong>itar-me. Não apaguei a luz.Acor<strong>de</strong>i com os primeiros raios <strong>de</strong> sol do dia seguinte,após uma ou duas horas <strong>de</strong> sono intermitente. Queimeitempo até uma hora aceitável e liguei para o Serviço <strong>de</strong>Medicina Legal. Perguntei pelo técnico e disseram-me queainda não tinha chegado. Deixei o meu número e pedi paralhe darem um recado. Era urgente que entrasse em contactocomigo logo que chegasse. O motivo estava relacionadocom a morte do seu colega. Consegui transmitir a mensagemcom o tom <strong>de</strong> urgência a<strong>de</strong>quado porque, uma hora<strong>de</strong>pois, ouvi o telefone tocar. Era ele. Chamava-se PedroMateus. Começou por dizer, sem que lhe perguntasse, quea morte do colega tinha sido uma gran<strong>de</strong> tragédia, mas nãotinha quaisquer informações que não constassem no relatório<strong>de</strong> autópsia e que não compreendia o interesse quepo<strong>de</strong>ria ter em conversar com ele, não tendo sequer competênciapara interpretar dados médicos e sendo apenas alguémque recolhia cadáveres. Tranquilizei-o e <strong>de</strong>ixei claro,por outras palavras, que não era suspeito, mas esclarecendotambém que era provável que a morte do seu colega tivessesido provocada por alguém. Dizer que fora provocada por“alguma coisa” teria sido <strong>de</strong>masiado perturbador e optei pornão o fazer. Acho que foi a melhor escolha. Continuei, dizendo-lheque precisava <strong>de</strong> ter com ele uma conversa absolutamenterotineira e <strong>de</strong> lhe fazer algumas perguntas sobre olocal do crime. Para tal, pedi-lhe que se encontrasse comigoao meio-dia na casa que pertencera a Luís Espanhol. Tentouesquivar-se, dizendo que estaria ocupado em serviço, masvoltei a sublinhar a importância da sua colaboração parai<strong>de</strong>ntificar o assassino. Pedi que justificasse a sua ausência<strong>de</strong> alguma forma que não levantasse <strong>de</strong>masia<strong>das</strong> suspeitas.Disse-lhe que a discrição era exigida pelo caso, mas a verda<strong>de</strong>era que não queria atrair para mim mais atenção do quea estritamente necessária, na eventualida<strong>de</strong> sempre possível<strong>de</strong> estar louco e <strong>de</strong> toda aquela história não passar <strong>de</strong> um<strong>de</strong>lírio alimentado por gente igualmente louca. Acabou poraceitar acrescentar uma hora à sua hora <strong>de</strong> almoço habituale <strong>de</strong>sligou.Passei pelo comissariado para trazer a arma que tinhatrancada no meu cacifo. As balas podiam não ser eficazescontra criaturas sobrenaturais (nem sequer eram <strong>de</strong> pratabenzida como nos filmes <strong>de</strong> terror), mas serviriam para <strong>de</strong>terhumanos com intenções menos agradáveis e isso bastavapara me tranquilizar um pouco.Cheguei ao local combinado dois minutos antes domeio-dia. Pouco <strong>de</strong>pois, à hora certa, um táxi estacionou àminha frente. O Sr. Salcedo vinha sentado no banco <strong>de</strong> tráse acenou, esboçando o seu sorriso <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes sujos. Quandoo carro se imobilizou, vi Acúrcio sair pela porta do condutore contornar o táxi para abrir a porta traseira voltada parao passeio e ajudar o passageiro a sair. Vinha vestido da mesmaforma. A mesma camisa branca imaculada e as mesmascalças pretas vinca<strong>das</strong>. Ou outras exactamente iguais. O Sr.4243Salcedo ostentava um casaco castanho algo surrado e quenão conseguiria abotoar sobre o ventre volumoso, cobertopor uma camisola <strong>de</strong> malha com gola em V e dividida emquadrados <strong>de</strong> dois tons <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>.— On<strong>de</strong> está o taxista? — perguntei a Acúrcio.— O táxi pertence-me — respon<strong>de</strong>u, fechando a portae dirigindo-se para o porta-bagagens. — Alguma objecção?—Não. Nenhuma.Penseique os fantasmas não pagariam muito bem.Louvei-lhe oespírito prático por ter encontrado uma ocu-pação adicional. Retirou uma gran<strong>de</strong> maleta <strong>de</strong> cabedal doporta-bagagens, fechou-o e voltou a aproximar-se.— Meu caro amigo — começou o Sr. Salcedo —, tenho<strong>de</strong> me <strong>de</strong>sculpar pelo achaquezinho <strong>de</strong>ontem. São imprevisíveis.Felizmente, fui dotado com uma saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> ferro, masafecta-me um problema <strong>de</strong> outra natureza. Ainda nãoconseguiencontrar-lhe uma cura, mas não perco a esperança. Éa última a morrer, como diz o ditado.— Claro. — Não disse mais nada. A pergunta lógicaseguinte seria: “É mesmo verda<strong>de</strong> que está possuído por umco<strong>de</strong>mónio?” Mas não me queria ouvir a dizê-lo.Pedro Mateus chegou a seguir numa carrinha da Medi-cina Legal. Caminhou até nós e cumprimentou-me. Tinhacara <strong>de</strong> adolescente tardio e cabelo alourado. Os olhos pareciamquase tão amarelos como o cabelo e também a peleapresentava uma tonalida<strong>de</strong> enfermiça. Apresentei quemme acompanhava, expliquei que qeo Sr. Salcedo era um peritoe esperei que não quisesse saber em quê. Não quis. Esten<strong>de</strong>ua mão, mas nem o Sr. Salcedo nem Acúrcio fizeramqualquer movimento para a receber. O primeiro limitou-sea sorrir. O segundo olhou-o fixamente enquanto formulavaum seco:— Muito gosto.Passámos quase <strong>de</strong>z minutosnum silêncio <strong>de</strong>sconfor-ortávelinterrompido apenas as quando Mateus me perguntou se<strong>de</strong>moraria. Respondi que esperávamos alguém que nos viesseabrir a porta da casa e ouvi-o expressar o seu <strong>de</strong>sagradocom um sopro. O agente imobiliário chegou pouco <strong>de</strong>pois.Pediu <strong>de</strong>sculpa pelo atraso e cumprimentou-nos a todoscom apertos <strong>de</strong> mão, incluindo o Sr. Salcedo e Acúrcio. Di- rigiu-se para o portão e convidou-nos ou-nos a segui-lo. A casa nãomudara muito<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a vira. O mobiliário mantinha-se nhae a maior diferença parecia ser a camada <strong>de</strong> pó e o cheiro acimento que pairavano ar.Caminhando à nossa frente, o agente imobiliário iarecitandouilo? C mio? perguna sualadainha, enumerando as muitas qualida<strong>de</strong>sda moradia que a tornavam i<strong>de</strong>al para albergar uma famí-lia <strong>de</strong> dimensão média. Não percebi se achou que éramosuma família <strong>de</strong> dimensão média. A sua ocupação <strong>de</strong>veriaexigir-lhe espírito aberto para todo o tipo <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong>sna composição os <strong>de</strong> agregados gadosfamiliares. Notei que o LCD<strong>de</strong>saparecera da sala. a. .Oresto mantinha-se.— A casa <strong>de</strong> banho e o escritório foram totalmente te remo<strong>de</strong>ladosdos — explicou. — Oresto encontra-se nt pronto ahabitar. hb Falta-nos apenas acabar ar<strong>de</strong> pintar e equipar a cozinha,mas não levará muito tempo a estar concluída.— Po<strong>de</strong>mos vê-la? — perguntou o Sr. Salcedo. — É ocoração od<strong>de</strong> qualquer lar. Não pon<strong>de</strong>raria sequer a compra <strong>de</strong>uma casa sem uma rica cozinha.A eu cabO agente imobiliário iliápareceu apanhado <strong>de</strong> surpresa resarpelo interesse na divisão quepermanecia por ajeitar. Mur-murou um “com certeza” econduziu-nos pelo corredor.Na cozinha, as diferenças eramnotórias. Os armários, amesa e as ca<strong>de</strong>iras tinham <strong>de</strong>saparecido e não havia vestígios<strong>de</strong> sangue nas pare<strong>de</strong>s nuas. O centro era ocupadopor uma mesa improvisada com tábuas e um par <strong>de</strong> cavaletes,sobre a qual tinham sido colocados bal<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tinta,pincéis, rolos e outro equipamento <strong>de</strong> pintura. Uma <strong>das</strong>pare<strong>de</strong>s tinha já sido pintada <strong>de</strong> branco. Mantinha-se notecto a mancha escura e o cheiro intenso da tinta não tinhaconseguido sobrepor-se por completo ao odor a pêloqueimado. Enquanto o agente imobiliário referia o gás canalizado,a ventilação e o equipamento mo<strong>de</strong>rno que pretendiainstalar, num esforço óbvio para satisfazer o gostopor cozinhas manifestado pelo Sr. Salcedo, vi que Acúrciocolocara a maleta sobre a bancada e retirara um pequenofrasco do interior. Levou a mão a um bolso <strong>das</strong> calçase extraiu um lenço branco, que <strong>de</strong>sdobrou. De seguida,retirou a rolha do frasco, tapou o gargalo com o lenço einverteu-o por um segundo, pousando-o sobre a mesa evoltando a rolhá-lo. O que se seguiu foi quase <strong>de</strong>masiadorápido para conseguir acompanhar com o olhar. Ro<strong>de</strong>ouo pescoço do agente imobiliário com um braço e este ia ameio <strong>de</strong>uma frase sobre as vantagens <strong>das</strong> placas eléctricas<strong>de</strong> fogão quando lhe cobriu a boca e o nariz com o lenço.O homem esboçou um princípio <strong>de</strong> reacção, mas levouapenas as alguns segundos a per<strong>de</strong>r os sentidos e a tombarinanimado no chão, <strong>de</strong>vidamente amparado por Acúrciopara evitar gran<strong>de</strong>s efeitos da queda.Mateus exaltou-se e começou a perguntar-me o que sepassava.Respondi-lhe que estava tudo bem e que não havia motivopara preocupação. Estava tudo sob controlo.— Que raio oseppassa? — perguntei a Acúrcio, vendo-oarrastar o agente imobiliário inerte para fora da cozinha.Voltou a entrar e fechou a porta. Percebendo que não merespondia e se limitava a guardar o frasco e o lenço <strong>de</strong>ntroda maleta, repeti a mesma pergunta, dirigindo-me agora aoSr. Salcedo. — Que raio se passa?—Não é necessário envolver outros elementos alémdos estritamente necessários sários — respon<strong>de</strong>u, sem nunca ter<strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> sorrir.— Que era aquilo? Clorofórmio? — perguntei-lhe.— Óleo <strong>de</strong> calêndula com um outro ingrediente adicional.Nada <strong>de</strong><strong>de</strong>masiado po<strong>de</strong>roso — respon<strong>de</strong>u-meAcúrcio, retirando rando ummolho <strong>de</strong> velas comuns da maletae baixando-se para as equilibrar no chão junto à porta. —Vai acordar muito <strong>de</strong>scontraído e sem se preocupar com amemória perdida <strong>das</strong> últimas horas. A euforia acabará porpassar com os meses, mas, atélá, terá uma vida muito divertida.Foi um favor que lhe fizemos.Mateus disse que se ia embora e dirigiu-se igiu-se i para a porta.Acúrcio olhou-o, sem se erguer, e apontou-lhe um banco aocanto da cozinha. Sentou-se e<strong>de</strong>sistiu <strong>de</strong> protestar. Acaban-do <strong>de</strong> dispor as velas, vi Acúrcio retirar do bolso um pedaço<strong>de</strong> giz branco e começar a traçarlinhas paralelas no chão,junto à base ed<strong>de</strong> cada cilindro <strong>de</strong> cera branca. No interva-lo entre as linhas, acrescentou símbolos que não reconheci.A seguir, dirigiu-se novamente à maleta para retirar novomolho <strong>de</strong> velhas e dispô-las no parapeito da única janelada cozinha, voltando o a usar o gizpara traçar algo que nãoconsegui ver do sítio on<strong>de</strong> me encontrava.— Estamos prontos? — perguntou o Sr. Salcedo. Acúrciovoltou a aproximar-se da maleta e acenou-lhe uma únicavez com a cabeça. — Então, comecemos.Fechou os olhos e murmurou qualquer coisa em vozão p ir pan


<strong>de</strong>masiado baixa para compreen<strong>de</strong>r. A seguir, bateu comas mãos e o ruído ecoou como um pequeno trovão. Emsimultâneo, to<strong>das</strong> as velas se acen<strong>de</strong>ram. Ali estava um truqueque não me incomodava nada. Impressionante, práticoe aparentemente inofensivo. Acúrcio retirou outros objectosda maleta e colocou-os sobre a mesa improvisada. Umasalva <strong>de</strong> prata. Uma gran<strong>de</strong> navalha. E, por fim, a vela pretamalcheirosa encontrada precisamente ali. Abriu a navalha epassou-a ao Sr. Salcedo. Horrorizado, vi-o encostar a pontaafiada ao peito da mão e <strong>de</strong>ixar escorrer algumas gotas sobrea salva. Continuava horrorizado quando Acúrcio fez omesmo e o meu horror bateu novos recor<strong>de</strong>s quando percebique a navalha me era estendida.— A sério? — perguntei.— É essencial — respon<strong>de</strong>u o Sr. Salcedo.Ignorando to<strong>das</strong> as objecções sanitárias, fiz um pequenogolpe no peito da mão e cerrei o punho sobre a salva,permitindo que o meu sangue se juntasse à mistura. Depois<strong>de</strong> o fazer, levei a mão à boca até parar <strong>de</strong> sangrar e o Sr.Salcedo abriu um vidro que Acúrcio lhe passara e verteutodo o conteúdo sobre a salva. Ao tocar o sangue, o líquidoescuro fervilhou e aumentou <strong>de</strong> volume. Num ápice, a salvaficou perto <strong>de</strong> transbordar com uma substância mais espessae vermelha do que o sangue.Enquanto sentia a ferida na mão estancar, o Sr. Salcedoergueu a salva com as duas mãos, disse algumas palavrasnum idioma que não reconheci e, com uma ligeireza <strong>de</strong> quenão o julguei capaz, lançou a mistura dos três sangues sobrea cara <strong>de</strong> Mateus, que permanecia sentado ao canto dacozinha.— Isso foi nojento — não resisti a dizer, olhando-os àespera <strong>de</strong> uma explicação.— Será aconselhável afastar-se — disse-me o Sr. Salcedo.Estava entre eles e Mateus e não percebi a que se referiam.Até me voltar na direcção oposta e olhar o técnico <strong>de</strong>Medicina Legal.Ou o que restava <strong>de</strong>le.No lugar que antes ocupara, estava agora o que pareciaser um cadáver num estado <strong>de</strong> putrefacção muito adiantado.Apenas percebi que não era realmente um cadáver porquea cabeça pingando sangue se ergueu e fixou em mim umpar <strong>de</strong> olhos on<strong>de</strong> reluzia uma centelha homicida. Griteie tentei afastar-me, mas era <strong>de</strong>masiado tar<strong>de</strong>. Uma mãoparcialmente <strong>de</strong>scarnada ro<strong>de</strong>ou-me o braço esquerdo eapertou, esmagando-me músculos e tendões. Levei a mãodireita ao coldre escondido pelo casaco e retirei a pistola,apontando-lha. Acúrcio lançou-se sobre mim e torceu-meo braço até <strong>de</strong>ixar cair a arma no chão. Olhei-o, sem perceber,e vi que, junto à mesa, o Sr. Salcedo voltava a batercom as mãos. Novo estrondo e as chamas <strong>das</strong> velas já acesasalongaram-se por um instante enquanto a vela negra seacendia. A criatura que fora Mateus começou a guinchar elibertou-me finalmente o braço para correr até à porta. Antes<strong>de</strong> pisar as linhas <strong>de</strong> giz, foi projectado para trás comose fosse impelido por uma mola e embateu contra a pare<strong>de</strong>do lado oposto, <strong>de</strong>slizando até ao chão e logo se endireitando,esten<strong>de</strong>ndo os braços para mim e silvando enquantoavançava. Curvei-me para a pistola caída, mas Acúrciopontapeou-a e, segurando-me pelo colarinho, projectou-mepara trás <strong>de</strong> si.— Não! — disse, com uma expressão que preferia nãotornar a ver. Mateus, presumindo que continuaria a ser ele,voltou-se então para Acúrcio e lançou-lhe as garras ao pescoço,tentando libertar-se <strong>das</strong> mãos do assistente, que lheseguravam a cabeça e mantinham à distância os <strong>de</strong>ntes escurospingando muco enegrecido.O Sr. Salcedo disse mais alguma coisa na mesma línguaque antes ouvira e a criatura cadavérica guinchou com maiorintensida<strong>de</strong> e ajoelhou por terra com a boca escancarada.Juntamente com o guincho, começou a sair pela medonhagoela o que me pareceu ser fumo preto, puxado para a nuvemque se formava sobre a vela negra acesa. O cheiro apêlo queimado tornou-se insuportável. Ao mesmo tempo,a nuvem alimentava também uma coluna <strong>de</strong> fumo <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nteque ia sendo consumida pela chama anormalmenteintensa da vela. Mateus acabou por cair ao chão, imóvel, e anuvem foi-se esgotando. Quando os últimos resquícios <strong>de</strong>fumo foram tragados pela vela, a cera restante irrompeu emchamas que prontamente se extinguiram, não restando nadaalém <strong>de</strong> um amontoado disforme <strong>de</strong> cera negra <strong>de</strong>rretida.Acúrcio esten<strong>de</strong>u a mão e içou-me, entregando-me apistola que entretanto apanhara. No momento em que mepreparava para lhe pedir explicações pelo seu comportamento,notei pelo canto do olho que algo se movia no chão.Mateus tossia e erguia-se com esforço, apoiando-se na mesapara se conseguir pôr <strong>de</strong> pé. Estava pálido, mas era o mesmohomem que antes vira e já não o cadáver animado que tentaraatacar-me. Os seus olhos já não estavam amarelos comoantes. Olhou-nos com a boca aberta.— Está tudo bem — disse-lhe o Sr. Salcedo. — Portou-semaravilhosamente. — Esten<strong>de</strong>u o braço e colocou-lheum frasco por baixo do nariz. Mateus estranhou,mas não conseguiu evitar inalar. Caiu redondo no chão. Reconhecio frasco <strong>de</strong> óleo <strong>de</strong> calêndula enquanto o Sr. Salcedovoltava a fechá-lo.Deitámos o agente imobiliário adormecido no sofá <strong>das</strong>ala e Acúrcio saiu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> revistar Mateus e <strong>de</strong> lhe encontraras chaves da carrinha. Trouxe-a para junto do passeio eabriu as portas traseiras. Levámo-lo ambos, eu segurandoos pés e ele ocupando-se dos ombros. A rua estava <strong>de</strong>serta,mas era impossível perceber se alguém nos veria <strong>das</strong> muitasjanelas. Dois homens saindo <strong>de</strong> uma casa à venda on<strong>de</strong>ocorrera um homicídio algum tempo antes, transportandoum corpo inanimado para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma carrinha do Instituto<strong>de</strong> Medicina Legal levantaria gran<strong>de</strong>s suspeitas. O Sr.Salcedo saiu, fechando a porta da casa atrás <strong>de</strong> si. Trocouimpressões com Acúrcio e este comprometeu-se a levar acarrinha para longe dali, <strong>de</strong>ixando Mateus sozinho no interioraté acordar. Ambos concordaram que seria melhor senão tivesse memória do sucedido. Aceitei conduzir o táxi<strong>de</strong> volta à casa do Sr. Salcedo na avenida e pusemo-nos a44 45caminho. Eu ao volante e o Sr. Salcedo no banco <strong>de</strong> tráscomo meu passageiro, claro. Que rica figura se alguém mereconhecesse. A explicação do que acontecera foi-me facultadadurante o percurso.— Os espíritos não resistem muito tempo neste mundosem possuir um corpo vivo — disse-me o Sr. Salcedo. — Ofim <strong>das</strong> mortes entre os visitantes da casa tornou claro queo víndix já não estaria presente no local da sua invocação eapenas po<strong>de</strong>ria ter saído <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> possuir alguém presenteno local. O meu caro inspector não po<strong>de</strong>ria ser, pela particularida<strong>de</strong>que antes lhe expliquei. A morte <strong>de</strong> apenas umdos técnicos <strong>de</strong> Medicina Legal não <strong>de</strong>ixava dúvi<strong>das</strong> quantoà i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do receptáculo.— Que aconteceu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> acen<strong>de</strong>r a vela?— Os espíritos mais comuns possuem receptáculoshumanos sem que estes percebam o que alojam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>si — explicou. — Uma possessão po<strong>de</strong> durar toda a vi<strong>das</strong>em que o espírito se manifeste. Agrada-lhes a partilha davida e contentam-se com ela, fazendo <strong>de</strong>finhar aos poucoso corpo que possuem. Quando este morre, procuram novoanfitrião e o processo repete-se até serem expurgados. Masa possessão <strong>de</strong>ixa marcas, como lhe disse. Não é apenas a<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> física, mas também uma <strong>de</strong>gradação <strong>das</strong> capacida<strong>de</strong>spsíquicas que, em muitos casos, conduz à loucura.Quando acendi a vela, o víndix percebeu que estava encurraladoe viu-se forçado a assumir o controlo do corpo,dotando-o da aparência medonha que viu. Era apenas umailusão. Cada um <strong>de</strong> nós o viu <strong>de</strong> uma forma diferente, segundoo que mais nos assusta. Quando lhe segurou o braço,tentava transferir-se para o seu corpo, talvez por sentir queestava armado e po<strong>de</strong>ria eliminar-me. Não conseguiu. Sabiaque não podia limitar-se a assumir a sua forma etérea porqueficaria à minha mercê e não conseguiria resistir ao ritual<strong>de</strong> expurgação. Foi necessário arrancá-lo à força.Olhei a nódoa negra no braço. Não <strong>de</strong>sapareceria tãocedo. Levei o táxi para a garagem acessível por um portãoao lado do prédio e acompanhei o Sr. Salcedo até à porta.Perguntou-me se queria entrar.— A Lucília ficou muito impressionada consigo e gostaria<strong>de</strong> voltar a vê-lo — acrescentou. — Gosta <strong>de</strong> companhiae há muito que apenas comunica comigo e com oAcúrcio.— Que tipo <strong>de</strong>… pessoa é ela? — À falta <strong>de</strong> melhor<strong>de</strong>signação, “pessoa” teria <strong>de</strong> servir.O Sr. Salcedo sorriu.— Creio que já percebeu — disse. — O folclore encarregou-se<strong>de</strong> divulgar bastante a sua condição. Mas foi umaboa mulher e, <strong>de</strong> certa forma, continua a sê-lo. Com as condicionantesóbvias. Se não lhe reconhecesse méritos, não aalojaria em minha casa. Como talvez saiba, existem riscos.Não lhe fiz mais perguntas. Já sabia <strong>de</strong>mais. Recusei oconvite para entrar e <strong>de</strong>sculpei-me com o trabalho para meir embora. Não insistiu e <strong>de</strong>spediu-se com um “até ao nossopróximo encontro”. Antes <strong>de</strong> entrar, lembrou-se <strong>de</strong> algo.Levou a mão a um bolso do casaco e entregou-me um envelopedobrado ao meio.Voltei para casa a pé. A brisa fria que se levantara ajudava-mea clarear as i<strong>de</strong>ias. A meio do caminho, consegui reunircoragem suficiente para abrir o envelope. Esperara umamissiva altamente perturbadora e revelando factos que metirariam o sono durante meses. Ou que po<strong>de</strong>riam fazer-meenlouquecer <strong>de</strong> vez.Era a conta. Devia ao Sr. Salcedo uma quantia bastanteavultada pelos seus serviços. Pagável através <strong>de</strong> cómodatransferência bancária. Afinal, ganhava-se bom dinheiro noramo da resolução <strong>de</strong> problemas oficialmente imaginários eracionalmente impossíveis. Talvez <strong>de</strong>vesse aplicar a minharecém-<strong>de</strong>scoberta imunida<strong>de</strong> ao sobrenatural a um ramo <strong>de</strong>investigação por conta própria.Não. Péssima i<strong>de</strong>ia.Lembrei-me do livro que continuaria fechado na <strong>de</strong>spensa,com latas <strong>de</strong> salsichas como suporte. Teria <strong>de</strong> melivrar <strong>de</strong>le <strong>de</strong> alguma forma. Não o queria em casa e não o<strong>de</strong>volveria.Porque <strong>de</strong>volvê-lo implicaria voltar a ver aquele homeme havia uma coisa <strong>de</strong> que tinha absoluta certeza.Não queria voltar a ver o Sr. Salcedo. Nunca mais. BANG!Renato Carreira nasceu em 1977 e tem-se mantido vivo <strong>de</strong>forma mais ou menos contínua <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então. Frequentou váriosestabelecimentos <strong>de</strong> ensino, fez trabalhos <strong>de</strong> mérito intermitentepara televisão e imprensa e tem feito traduções, conquistando umareputação unânime <strong>de</strong> “gajo esquisito” entre aqueles que com eletrabalharam. Passa <strong>de</strong>masiado tempo a atafulhar o ciberespaçocom coisas como a Inépcia, site satírico que mantém <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2001.Tem vários livros na sua estante, mas este é apenas o segundocom o seu nome na capa. Gosta <strong>de</strong> bifi nhos com cogumelos, masnão nega um bom bacalhau à brás, uma francesinha com batatafrita ou uma alheira <strong>de</strong> Miran<strong>de</strong>la. O grão-<strong>de</strong>-bico será sempre asua perdição <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira.Promete ofertar uma quantia simbólica emdinheiro a quem o abordar na rua, segredando-lhe ao ouvido aspalavras “Costa da Caparica”.


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O CONCEITODO SOBRENATURALEM LOVECRAFTNa sua mitologia artificial, os “<strong>de</strong>uses” utilizados porLovecraft não são <strong>de</strong>uses num sentido literal. Todossão constituídos por átomos, embora a disposição <strong>de</strong>stespossa dar origem a matérias e formas perfeitamentealienígenas para o ser humano. Esta minúscula alusão aouniverso quântico da Física serve para afirmarmos que osobrenatural no seio da ficção lovecraftiana é um conceitoalgo problemático. Parece-nos evi<strong>de</strong>nte que, para um mecanicista-materialistacomo o autor em questão, não fariasentido a utilização <strong>de</strong> um sobrenatural propriamente ditocomo aquele utilizado nos autores mais tradicionais do Gótico.Essa seria uma contradição face às suas mais profun<strong>das</strong>convicções pessoais. Uma característica fundamental dosseres que rasgam o “véu” da normalida<strong>de</strong>, como os “OldOnes”, é, <strong>de</strong>ntro da lógica ficcional <strong>de</strong>ste autor, o seu caráctermaterial, <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> contornos “mágicos”.Apesar <strong>de</strong>, à partida, ser possível enten<strong>de</strong>r o carácternatural <strong>de</strong>stas entida<strong>de</strong>s superiores, far-nos-á falta umamaior exactidão na utilização <strong>de</strong> termos. Para tal, serápertinente utilizarmos a teoria <strong>de</strong>senvolvida por TzvetanTodorov sobre o Fantástico na sua obra The Fantastic- AStructural Approach to a Literary Genre. Entre Lovecraft eTodorov, refira-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, existe algo em comum, poisambos os autores, Lovecraft em Supernatural Horror in Literaturee Todorov na obra acima referida, tratam a literaturafantástica numa perspectiva dos seus efeitos. No caso doescritor americano o efeito <strong>de</strong>sejado é o medo, uma ansieda<strong>de</strong>inexplicável perante uma ameaça exterior e que nãoé ainda perceptível. A este tipo <strong>de</strong> medo chamou, como jávimos, “terror cósmico”.Para o autor <strong>de</strong> The Fantastic, o efeito pretendido é ahesitação. Com efeito, Todorov explica, em primeiro lugar,que o Fantástico é, perante uma situação que extravasa anormalida<strong>de</strong>, uma hesitação na atribuição <strong>de</strong>sse acontecimentoa uma estranha combinação <strong>de</strong> leis naturais, portanto,possível <strong>de</strong> acontecer, ou a acontecimentos sobrenaturais,quebrando as referi<strong>das</strong> leis naturais.No caso <strong>de</strong> a narrativa ser racionalmente explicável, entãoestaremos perante aquilo que Todorov <strong>de</strong>signa comopuramente “uncanny”, ou o que po<strong>de</strong>remos chamar <strong>de</strong> “estranho”,exemplificado, na obra <strong>de</strong>ste autor, através do conjunto<strong>das</strong> obras <strong>de</strong> Dostoievsky.Já no “fantástico-uncanny”, o leitor é colocado peranteuma hesitação em que, inicialmente, todos os acontecimentosapontam para a intervenção do sobrenatural, para nofinal surgir uma explicação racional, em conformida<strong>de</strong> comas leis naturais. Todorov exemplifica com recurso a histórias<strong>de</strong> <strong>de</strong>tectives, que insinuam a intervenção <strong>de</strong> elementossobrenaturais, mas que, no final, nos dão uma explicaçãoperfeitamente racional.Por outro lado, no “fantástico-maravilhoso”, os acontecimentos<strong>de</strong> uma narrativa seguem realmente para umaexplicação sobrenatural, uma explicação em consonânciaapenas com a própria estrutura e lógica interna da narrativa.É o caso <strong>de</strong> narrativas em que encontramos a intervenção<strong>de</strong> criaturas como <strong>de</strong>mónios, espíritos ou elfos sendo, <strong>de</strong>facto, apresentados como tal. Finalmente, tal como o puramente“uncanny”, Todorov também apresenta um “maravilhoso”,sem hibridismo. Este irá ser subdividido em quatro:um “maravilhoso hiperbólico” e um “maravilhoso exótico”,em que as narrativas sobre as viagens <strong>de</strong> Sinbad servem <strong>de</strong>exemplo; um “maravilhoso instrumental”, em que objectos“mágicos”, tais como as lâmpa<strong>das</strong> ou os anéis <strong>de</strong> Aladino<strong>de</strong>sempenham um papel fundamental na narrativa e, finalmente,o “maravilhoso científico”, que po<strong>de</strong>mos associar àficção científica.Neste, os acontecimentos iniciais apontam para o sobrenatural,que no caso <strong>de</strong> Lovecraft são quase semprematerializados em raças extraterrestres muito anteriores aoaparecimento do Homem e com capacida<strong>de</strong>s que escapamàquilo que a Ciência po<strong>de</strong> explicar no momento. Contudo,apesar <strong>de</strong> uma incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreensão actual, nãosignifica que as leis “naturais” sejam quebra<strong>das</strong>. As transgressões<strong>de</strong> leis <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> ficcionada, mas que sequer próxima da realida<strong>de</strong> exterior à ficção, possibilitam aoleitor a ilusão <strong>de</strong> que aquilo que lêem po<strong>de</strong>rá ser possível.A este propósito po<strong>de</strong>ríamos socorrer-nos <strong>de</strong> Oscar Wil<strong>de</strong>,que afirmou: “Man can believe the impossible, but man cannever believe the improbable” (Wil<strong>de</strong> 1973: 84), atestando aimportância <strong>de</strong> uma explicação científica ou pseudo-científicaque pareça plausível. O que o leitor encontra em Lovecrafté, nesse sentido, uma explicação racional dos eventos,embora tente sempre causar a hesitação que possibilita oFantástico. Todorov afirma o seguinte acerca do “instrumentalmarvelous”:The «instrumental marvelous» brings us very close towhat in nineteenth-century France was called the scientific marvelous. Here the supernatural is explained in a rationalmanner, but according to laws which contemporaryscience does not acknowledge. In the high periodof fantastic narratives, stories involving magnetism arecharacteristic of the scientific marvelous: magnetism«scientifically» explains supernatural events, yet magnetismitself belongs to the supernatural (Todorov 1970:56).48 49Osobrenatural <strong>de</strong> Lovecraft parece integrar-se nesta últimacategoria, pois muitas <strong>das</strong> entida<strong>de</strong>s e eventos nassuas narrativas, frutos da imaginação do escritor, surgemaos olhos dos seus protagonistas como completamentesobrenaturais, quando na verda<strong>de</strong> a sua materialida<strong>de</strong> epossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem explica<strong>das</strong> num estádio mais avançadoda Ciência permanece entreaberta. Para dar apenas umexemplo refira-se “The Call of Cthulhu”, em que os seresextraterrestres são vistos como <strong>de</strong>uses, num sentido literalda palavra, por socieda<strong>de</strong>s vivendo num estágio culturalmais “primitivo”. Para os protagonistas do conto, levando acabo uma autêntica investigação digna do famoso <strong>de</strong>tectivetocador <strong>de</strong> violino e fumador <strong>de</strong> cachimbo, parece-lhes perfeitamenteclaro que a entida<strong>de</strong> com que estão a lidar, nãoobstante ser muitíssimo po<strong>de</strong>rosa, será ou po<strong>de</strong>rá vir a serexplicável do ponto <strong>de</strong> vista científico.O mesmo po<strong>de</strong>, por exemplo, vir a acontecer com acomunicação aparentemente telepática que Cthulhu estabelececom os seus seguidores. Apesar <strong>de</strong> esta ainda não serexplicável, ou mesmo aceite pela Ciência, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>a mesma vir a ser enquadrada no seu seio num futuro maisou menos distante não é <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezar. Não admira, pois,que Lovecraft seja reconhecido aos olhos <strong>de</strong> muitos críticos,como um dos precursores da ficção científica no século XX.Esta característica da sua escrita reporta-se, fundamentalmente,àquela que po<strong>de</strong>rá ser consi<strong>de</strong>rada a terceira e maisinfluente fase da sua escrita, constituída pelos textos conotadoscom o “Cthulhu Mythos”.Para além <strong>de</strong> Todorov, também Rosemary Jackson, autora<strong>de</strong> Fantasy – The Literature of Subversion nos apresentaalguns pontos <strong>de</strong> vista interessantes para uma melhor <strong>de</strong>finição<strong>de</strong> algumas características da escrita lovecraftiana. Umaposição importante <strong>de</strong>sta autora resi<strong>de</strong> no facto <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rarque o Fantástico não constitui um género, mas sim ummodo. Este <strong>de</strong>verá ser localizado entre o “mimético” e o“maravilhoso”, eles próprios, igualmente modos. De umaforma muito breve, po<strong>de</strong>remos dizer que o mimético é omodo narrativo que preten<strong>de</strong> imitar o real, sendo o maravilhosoum modo com uma lógica própria e não <strong>de</strong> acordocom aquilo que a experiência comum convencionou <strong>de</strong>“real”. Jackson sugere, então, que o Fantástico utiliza a extravagânciado “maravilhoso” e o carácter comum do “mimético”,não pertencendo assim a nenhum modo <strong>de</strong> formadistinta. Será então no Fantástico que, <strong>de</strong> acordo com a autora,fará sentido enquadrar a obra <strong>de</strong> Lovecraft.De acordo com o já anteriormente dito no presente capítulo,a obra <strong>de</strong> Lovecraft escolhe a via do materialismo ouda explicação materialista para construir o elemento fantásticona sua ficção, numa clara tentativa <strong>de</strong> obtenção <strong>de</strong> verosimilhança,estando igualmente <strong>de</strong> acordo com a perda <strong>de</strong>importância do sobrenatural no século XX e com o caráctereminentemente racional do próprio autor. Não obstanteessa opção que o aproxima da ficção científica, o escritornão escapa às problemáticas que envolvem o modo fantástico,como Rosemary Jackson lhe chama. De facto, segundoesta autora, a escrita fantástica apresenta uma relutância ouincapacida<strong>de</strong> em apresentar versões <strong>de</strong>finitivas da “verda<strong>de</strong>”ou da “realida<strong>de</strong>”:Structured upon contradiction and ambivalence, thefantastic traces in that which cannot be said, thatwhich eva<strong>de</strong>s articulation or that which is represente<strong>das</strong> ‘untrue’ and ‘unreal’. By offering a problematicre-presentation of an empirically ‘real’ world, thefantastic raises questions of the nature of the realand unreal, foregrounding the relation between themas its central concern (Jackson 1981: 37.Lovecraft tenta criar um mundo aparentemente real, <strong>de</strong>calcadodo convencional, introduzindo <strong>de</strong>pois algo queperturba essa mesma convencionalida<strong>de</strong>. O caráctermaterialista da sua ficção faz com que tente que o próprioelemento estranho possa vir a ser explicado. Contudo, ascaracterísticas exteriores e totalmente alienígenas em relaçãoà realida<strong>de</strong> quotidiana farão com que haja dificulda<strong>de</strong>s emtorná-las credíveis ou em <strong>de</strong>screvê-las. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntementeda realida<strong>de</strong> com que Lovecraft tenta imbuir os seres alienígenas,as criaturas serão sempre fruto da imaginação doautor, advindo daí as dificulda<strong>de</strong>s em encontrar uma linguagemcapaz <strong>de</strong> exprimir plenamente aquilo que os protagonistasdos seus contos vivenciam. Rosemary Jackson refereo seguinte acerca <strong>de</strong>ste aspecto: “H. P. Lovecraft’s horrorfantasies are particularly self-conscious in their stress onthe impossibility of naming this unnameable presence, the«thing» which can be registered in the text only as absenceand shadow” (Jackson 1981: 39).Uma manifestação <strong>de</strong>sse inominável na ficção lovecraftianaé o conjunto <strong>de</strong> nomes que <strong>de</strong>signam as entida<strong>de</strong>salienígenas, como “Cthulhu”ou “Azathoth”, <strong>de</strong>spidos <strong>de</strong>qualquer significado no “mundo real”. É uma tentativa <strong>de</strong>,levando a linguagem aos seus limites, alcançar aquilo queJean-Paul Sartre <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> como “não-tético”, uma irrealida<strong>de</strong>,que o modo literário do Fantástico tenta alcançar.Apesar <strong>de</strong> não haver uma ligação real entre esses significantese um significado, Lovecraft não abdica <strong>de</strong> quererconvencer o leitor acerca da sua materialida<strong>de</strong>. Nesta suarecusa <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r estes elementos do “Exterior” <strong>de</strong> umaforma maioritariamente metafórica, mas sim apresentá-loscomo literais, resi<strong>de</strong> uma <strong>das</strong> suas principais características.Essa característica acaba também por ser uma <strong>das</strong> característicasdo Fantástico em geral, distinguindo-se, assim, daalegoria e da poesia.A materialida<strong>de</strong> do “exterior” e dos seres que a ele pertencemna ficção lovecraftiana encaixam no conceito <strong>de</strong>“non-signification” que Rosemary Jackson <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> serempróprias do Fantástico mo<strong>de</strong>rno, pois já não estamos peranteum mal moral convencional, pertencente a uma visãomaniqueísta do mundo, mas sim perante algo menos fácil<strong>de</strong> <strong>de</strong>finir: criaturas que <strong>de</strong>safiam a nossa crença <strong>de</strong> centralida<strong>de</strong>no Universo e cuja atitu<strong>de</strong> é maioritariamente <strong>de</strong>indiferença em relação a nós. Não se po<strong>de</strong>rá falar <strong>de</strong> ummal <strong>de</strong>liberadamente dirigido ao ser humano, mas sim <strong>de</strong>algo que coloca em causa a concepção que fazemos <strong>de</strong> umarealida<strong>de</strong> convencionada entre todos, antes mostrando umUniverso indiferente e caótico, portanto, <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> significadoe <strong>de</strong> sentido moral. Aqui residirá, porventura uma<strong>das</strong> maiores originalida<strong>de</strong>s do autor americano, pois, comopo<strong>de</strong>remos verificar em At the Mountains of Madness e “TheShadow Out of Time”, por exemplo, as criaturas extraterrestresretrata<strong>das</strong> como cientistas po<strong>de</strong>rão ser entendi<strong>das</strong>como duplos dos cientistas humanos, impossibilitando queestes últimos possam ser vistos <strong>de</strong> uma perspectiva mais favorávelque os alienígenas. De facto, a dado momento, estesparecem mais imbuídos <strong>de</strong> características supostamentehumanas do que os próprios seres humanos, numa inversão<strong>de</strong> papéis que po<strong>de</strong>remos encontrar em Frankenstein, ou no


domínio da ficção científica, em Supertoys Last All SummerLong, <strong>de</strong> Brian Aldiss.Enquanto a maioria dos autores góticos mais conhecidos,como Poe, Stevenson, ou Mary Shelley se centramno carácter humano, na propensão para a malda<strong>de</strong>, advindodaí a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alcançar o i<strong>de</strong>al romântico do Paraísona Terra, uma <strong>das</strong> características mais marcantes <strong>de</strong>Lovecraft é a menor incidência <strong>de</strong>ssa centralida<strong>de</strong> da psiquee da malda<strong>de</strong> humanas. Na maior parte da sua escritamais significativa, o maior acto <strong>de</strong> malda<strong>de</strong> será, no limite,a tomada <strong>de</strong> consciência, mais frequentemente aci<strong>de</strong>ntal doque intencional, <strong>das</strong> forças imensas que nos ro<strong>de</strong>iam e jazemadormeci<strong>das</strong>, cobrindo-nos com a sua sombra imensae tornando-nos insignificantes.O carácter materialista cada vez mais importante nopresente é referido por Rosemary Jackson a propósito domito faustiano e <strong>das</strong> suas transformações:Goethe’s ‘Faust’ (1808) moves towards this apprehensionof the <strong>de</strong>monic: as a realm of non-signification.His Mephistopheles is much more complex than astock representation of evil: ‘he’ introduces a negationof cultural or<strong>de</strong>r, insisting that there is noabsolute meaning in the world, no value, and thatbeneath phenomena, all that can be dis-covered (sic)is a sinister absence of meaning. ‘His’ ‘<strong>de</strong>monic’ enterpriseconsists in revealing this absence, expressingthe world’s concealed vacuity, emptiness and its latestpull towards disor<strong>de</strong>r and undifferentiation. (…)Transformation of the Faust myth epitomize thesemantic changes un<strong>de</strong>rgone by fantasy in literaturewithin a progressively secularized culture (Jackson1981: 57).Aautora <strong>de</strong> Fantasy – The Literature of Subversion refere queno Fantástico mo<strong>de</strong>rno, o Mal ou o <strong>de</strong>moníaco nãodizem já respeito ao puramente sobrenatural, mas simàquilo que está atrás ou entre formas e estruturas que vemosseparados. Trata-se <strong>de</strong> um híbrido, <strong>de</strong> uma transgressão. O“Exterior”, o “Outro” é, então, tudo aquilo que ameaça“este” mundo, o mundo “real” com a sua dissolução.A ficção lovecraftiana parece seguir um caminho paradoxalao querer apresentar-nos como estrutura <strong>de</strong> fundoum mundo <strong>de</strong>calcado da realida<strong>de</strong>, opondo-o <strong>de</strong>pois ao rostodo “Exterior”. Contudo, como num jogo <strong>de</strong> espelhos,o próprio acontecimento rompedor da normalida<strong>de</strong> irá serenquadrado por Lovecraft na realida<strong>de</strong>, ao tentar explicar ousugerir uma via “material” para o acontecimento disruptor.Tal como o título da obra <strong>de</strong> Rosemary Jackson indica,o modo fantástico tem, como característica fundamental,para esta autora, o carácter subversivo. Esta característicanão <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser aplicável à ficção <strong>de</strong> H. P. Lovecraft, umavez que a realida<strong>de</strong> resultante da intervenção <strong>de</strong> forças exterioresficará profundamente alterada, com algumas <strong>das</strong> suasconstruções sociais e culturais quase totalmente <strong>de</strong>stroça<strong>das</strong>.A intervenção do “Exterior”, fruto da imaginação doautor e po<strong>de</strong>ndo ser vista, numa perspectiva psicanalista,como uma projecção <strong>das</strong> suas próprias ansieda<strong>de</strong>s, é umamanifestação do irracional, <strong>de</strong> forças primevas e que nãotêm significado (non-significant).Ao conferir um claro pendor materialista ao “Exterior”,Lovecraft consegue, paradoxalmente, criar uma ligação fluidae credível entre a realida<strong>de</strong> e o produto da sua imaginação,uma reacção contra um excessivo racionalismo e arrogânciahumana, utilizando esse mesmo racionalismo e fénaquilo que é material, explicável, ou que ainda po<strong>de</strong>rá vir asê-lo. Este processo <strong>de</strong> progressiva perda <strong>de</strong> importância dosobrenatural no Gótico é igualmente reconhecido por RosemaryJackson: “Changes in Gothic can be seen as correspondingto a slow diminution of faith in supernaturalism”(Jackson 1981: 97).Também como consequência <strong>de</strong>sse enfraquecimento,Jackson aponta a propensão do Fantástico em “esvaziar” oreal, expondo-o como algo sem sentido, embora continuandoà espera que algum acontecimento possa preencher essevazio <strong>de</strong>ixado pela ausência <strong>de</strong> fé no sobrenatural. ComoJackson <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>:Religious or spiritual epiphany becomes inconceivable:matter is merely matter, unre<strong>de</strong>emed, yet strangelyhollowed out, insufficient in itself, without meaning,without transcen<strong>de</strong>nce, mo<strong>de</strong>rn fantasy still functionsas if meaning and transcen<strong>de</strong>nce were to be found. Ituncovers mere absence and emptiness yet it continuesits quest for an absolute. Waiting, impossible expectation,l’attente, are characteristics of mo<strong>de</strong>rn fiction, fromKafka to Beckett and Pynchon (Jackson 1981: 159).Tal como em A Metamorfose <strong>de</strong> Kafka, Gregor Samsa é,efectivamente, (não metaforicamente) transformado eminsecto sem qualquer razão aparente, também na ficçãolovecraftiana o “Exterior” não-sobrenatural irrompe e estilhaçaas vi<strong>das</strong> <strong>de</strong> todos aqueles que com ele contactam,revelando algo mais para além da realida<strong>de</strong> aparente, massem que essas revelações correspondam aos anseios <strong>de</strong> umsentido absoluto para a vida. Pelo contrário, o contacto como “Exterior” apenas revelará mais arbitrarieda<strong>de</strong>, caos eausência <strong>de</strong> qualquer sentido teleológico para o Universo.Tal como a transformação em A Metamorfose não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Samsa, também as pacatas personagens <strong>de</strong>Lovecraft não têm outra opção a não ser <strong>de</strong>ixarem-se serarrasta<strong>das</strong> pelo turbilhão <strong>de</strong> acontecimentos a que se vêminvoluntariamente presas. Outras partes em comum sãopossíveis <strong>de</strong> encontrar entre as ficções <strong>de</strong>stes dois autores,nomeadamente a progressiva perda <strong>de</strong> significado e valorda linguagem, temática recorrente na ficção mo<strong>de</strong>rnista. Damesma forma que Gregor Samsa per<strong>de</strong> progressivamente acapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se fazer enten<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r os objectosque o ro<strong>de</strong>iam, também as personagens principais em Lovecraftse vêem confronta<strong>das</strong> com essa situação. Des<strong>de</strong> osininteligíveis sons guturais (<strong>de</strong>s)articulados pelos <strong>de</strong>formadoshabitantes <strong>de</strong> Innsmouth, passando pelos alienígenas, as50 51frases encantatórias dos seguidores <strong>de</strong> Cthulhu, até às misteriosaspalavras “Tekele-li” proferi<strong>das</strong> pelo protagonistaenlouquecido <strong>de</strong> At the Mountains of Madness, a temática daperda <strong>de</strong> significado não passou ao lado do mestre <strong>de</strong> Provi<strong>de</strong>nce.Ela manifesta-se, igualmente, na perda <strong>de</strong> sentido<strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> que julgavam conhecer, mas que se revelanuma plenitu<strong>de</strong> inabarcável e, por isso, incompreensível.A ânsia por algo que substitua o espaço <strong>de</strong>ixado pelaausência <strong>de</strong> espiritualida<strong>de</strong> na contemporaneida<strong>de</strong> aumentaperante uma total ausência <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção. Inquietações semelhantessão possíveis <strong>de</strong> encontrar nas várias obras <strong>de</strong>Thomas Pynchon, referido na introdução <strong>de</strong>sta dissertação,quando nos confrontamos com as suas personagens envoltasna teia labiríntica <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> inteiramente secularizada,exce<strong>de</strong>ntária <strong>de</strong> produtos materiais, mas <strong>de</strong>ficitária <strong>de</strong>sentido e <strong>de</strong> significados. Segundo Jackson, a palavra-chaveda ficção <strong>de</strong> Pynchon é “entropia”, num irresistível movimentopara a <strong>de</strong>cadência e ausência <strong>de</strong> movimento:Entropy does not function metaphorically for Pynchon,but literally: it is apprehen<strong>de</strong>d as the conditionof life, and one which is peculiarly appropriate as anexpression of the world running down with consumerculture. He tells of the exhaustian of social andof secular systems alike (Jackson 1981: 167).Em “The Horror at Red Hook”, escrito por Lovecraftenquanto se encontrava mergulhado no caleidoscópio<strong>de</strong> raças, línguas, culturas e competitivida<strong>de</strong> capitalistanova-iorquina, é possível perceber a ausência <strong>de</strong> sentido e<strong>de</strong>cadência provocada pela metrópole, atestando a incapacida<strong>de</strong>da vida mo<strong>de</strong>rna em conferir sentido aos anseios <strong>de</strong>significado do escritor e dos protagonistas <strong>das</strong> suas obras.Tal como em Pynchon, as massas humanas <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntesfun<strong>de</strong>m-se com o ambiente igualmente <strong>de</strong>crépito, tornando-seum só e atestando um materialismo tudo menos re<strong>de</strong>ntor,característico da cultura contemporânea. Fica assimrealçado o <strong>de</strong>sprezo que Lovecraft nutria pelo excessivomaterialismo da socieda<strong>de</strong>, sua contemporânea, e um sentimento<strong>de</strong> nostalgia por uma época que, temporalmente nãoera a sua.Consequência da sua recusa <strong>de</strong> qualquer sentido religiosoou influência sobrenatural, o resultado do contacto como Exterior, com a realida<strong>de</strong> para além da aparência quotidiana,é, no caso <strong>de</strong> H. P. Lovecraft, quase sempre trágico:The negative versions (inversion) of unity, found in themo<strong>de</strong>rn fantastic, from Gothic novels – Mary Shelley,Elizabeth Gaskell, Dickens, Poe, Dostoevsky, Stevenson,Wil<strong>de</strong> – to Kafka, Cortázar, Calvino, Lovecraft,Peake and Pynchon, represent dissatisfaction and frustrationwith a cultural or<strong>de</strong>r which <strong>de</strong>flects or <strong>de</strong>feats<strong>de</strong>sire, yet refuse to have recourse to compensatory,transcen<strong>de</strong>ntal other-worlds (Jackson 1981: 180).A impotência <strong>das</strong> personagens perante acontecimentosque as ultrapassam muito em gran<strong>de</strong>za é, segundo RichardChase, autor <strong>de</strong> The American Novel and its Tradition, uma herançacalvinista, portanto estreitamente ligada à fundaçãoda nação americana e da sua mentalida<strong>de</strong> intrínseca. Para oscalvinistas, o Homem é um ser impotente, incapaz <strong>de</strong> modificaraquilo que já foi pré-<strong>de</strong>lineado pela entida<strong>de</strong> suprema.A mentalida<strong>de</strong> dos autores mo<strong>de</strong>rnos afasta-se e, ao mesmotempo, aproxima-se <strong>de</strong>sta concepção. O Homem continua aser incapaz <strong>de</strong> se impor perante forças irresistíveis, incompreensíveise contraditórias, permanecendo uma vítima.É evi<strong>de</strong>nte que na obra lovecraftiana, essa impotêncianão é posta em evidência por uma entida<strong>de</strong> sobrenatural,entendida numa perspectiva religiosa, mas sim pelos terroresvindos do Cosmos longínquo, produzindo efeitos semelhantese induzindo o pretendido terror cósmico. Nãoobstante as terríveis consequências que daí possam advir,a atracção <strong>das</strong> personagens e do próprio autor pelo terrívelfaz parte, segundo Richard Chase, do código genético daliteratura americana, não sendo também ausente o própriocarácter romântico, <strong>de</strong> alguma forma, presente no escritoramericano e que se revela na recusa <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> quaseunicamente centrada na prosperida<strong>de</strong> material. No seio <strong>de</strong>sta,personalida<strong>de</strong>s sensíveis e mal-prepara<strong>das</strong> <strong>de</strong> um ponto<strong>de</strong> vista pragmático não se sentiriam à vonta<strong>de</strong>, como foiclaramente o caso <strong>de</strong> Lovecraft. A redução até à insignificância<strong>de</strong> um mundo material e <strong>de</strong> uma mentalida<strong>de</strong> antropocêntrica,face a um Cosmos vastíssimo e povoado <strong>de</strong>seres quase omnipotentes, po<strong>de</strong>rá ser interpretado comouma forma <strong>de</strong>, na sua imaginação, tudo aquilo que limitou oescritor na sua vida ser colocado em perspectiva e adjectivado<strong>de</strong> insignificante, inconsequente e transitório.Na mais pura tradição gótica americana, o <strong>de</strong>spertar do“Gran<strong>de</strong> Cthulhu” po<strong>de</strong>rá ser entendido como um regressodo reprimido, do outro lado do optimismo americano, potenciadopelos avanços científicos e tecnológicos do iníciodo século XX, contemporâneo do escritor americano e comcujas consequências sociais, económicas e culturais este nãose i<strong>de</strong>ntificava. Não nos querendo basear numa leitura psicanalistada obra do escritor, é quase incontornável concordarcom Maggie Kilgour quando esta afirma que “psychoanalysisis a late gothic story” (Kilgour 1995:61).Apesar <strong>de</strong>, na sua ficção, Lovecraft preten<strong>de</strong>r dar vidaa seres concretos e materiais, potencialmente explicáveis àluz da Ciência, com a qual tinha uma relação ambivalente,dificilmente po<strong>de</strong>remos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> olhar para estes produtosda sua imaginação e criativida<strong>de</strong> como “fantasmas” <strong>das</strong> suasansieda<strong>de</strong>s mais profun<strong>das</strong>.Northrop Frye, citado por Neil Cornwell em The LiteraryFantastic – From Gothic to Postmo<strong>de</strong>rnism corrobora esta posição,se enten<strong>de</strong>rmos “fantasy” como “fantastic”, tal comoCornwell o faz:Fiction in the last generation or so has turned increasinglyfrom realism to fantasy, partly because fantasyis the normal technique for fiction writers who do notbelieve in the permanence or continuity of the societythey belong to (Frye, cit Cornwell 1990: 211).


THE COLOUR OUT OFSPACE E O MARAVILHOSOCIENTÍFICOcrescimento não parece passível <strong>de</strong> vir a ser controladopelo conhecimento e pela vonta<strong>de</strong> humana, pelo que, emmuitos casos, a mensagem vai no sentido <strong>de</strong> um alertapara não explorarmos as fronteiras do conhecimento em<strong>de</strong>masia. Não parece contudo evi<strong>de</strong>nte, neste e noutroscontos, tais como “The Call of Cthulhu”, ou na novela Atthe Mountains of Madness, por exemplo, que o conhecimentoseja intrinsecamente mau. De forma geral, as personagenscria<strong>das</strong> por Lovecraft não procuram o saber comobjectivos sinistros, como acontece por exemplo com VictorFrankenstein, ou outros protagonistas acometidos <strong>de</strong>uma hubris <strong>de</strong>smedida. Com efeito, o orgulho <strong>de</strong>smesuradonão parece representar um tema tão forte na ficçãolovecraftiana como noutros autores.O que alguns dos contos do mestre <strong>de</strong> Provi<strong>de</strong>nce nosparecem querer dizer é que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do nossoconhecimento, e dos nossos maiores esforços, os terríveisacontecimentos <strong>de</strong> dimensão cósmica irão continuara acontecer, com a diferença agravante <strong>de</strong> que agora omundo parecerá bem mais ameaçador aos olhos humanos,<strong>de</strong>stroçada que está para sempre a ”placid island of ignorancein the midst of black seas of infinity” (Lovecraft1994: 61), que Lovecraft refere no início <strong>de</strong> “The Call ofCthulhu”.Uma vez que este conto particular respeita a condição<strong>de</strong> transversalida<strong>de</strong> do tema analisado no ponto anterior,será pertinente falar aqui sobre “a indiferença doUniverso e a realida<strong>de</strong> para além da aparência”. Para alémdisso, é particularmente ilustrativo da questão enunciada notópico anterior, levando aos limites o nosso entendimentoacerca do que po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado natural e sobrenaturalna ficção do autor. Com efeito, da<strong>das</strong> as características totalmentein<strong>de</strong>fini<strong>das</strong> e alienígenas da “entida<strong>de</strong>” que, comoveremos, causa a <strong>de</strong>struição gradual <strong>de</strong> toda uma família e a<strong>de</strong>cadência <strong>de</strong> uma vasta área rural, torna-se difícil enten<strong>de</strong>r,concretamente, do que se trata e se a mesma po<strong>de</strong>rá seralgum dia explicável pela Ciência.Tal como a narrativa no-la apresenta, essa explicação ée será durante muito tempo inatingível. Narrado na primeirapessoa por um agrimensor <strong>de</strong>stacado para os trabalhosiniciais da construção <strong>de</strong> um reservatório <strong>de</strong> água, “The ColourOut of Space” dá conta dos acontecimentos terríveis,que se seguiram à queda <strong>de</strong> um estranho meteorito. O objectocaído do espaço <strong>de</strong>ixa uma enorme clareira on<strong>de</strong> nenhumavegetação voltou a crescer, referida no conto como“blasted heath” mas, ao mesmo tempo, potencia um crescimentoanormalmente exuberante da vegetação circundante,para além <strong>de</strong> notórias, se bem que in<strong>de</strong>fini<strong>das</strong>, alteraçõesmorfológicas nos animais. O conto é ainda o relato em analepseda <strong>de</strong>cadência física e mental <strong>de</strong> uma família expostaàs estranhas radiações, culminando na sua <strong>de</strong>gradação e<strong>de</strong>struição total. É inevitável recordarmos o que aconteceuà família Curie, exposta à radiação durante um longo período<strong>de</strong> tempo, na sua busca pelo conhecimento, embora sejapossível que Lovecraft não tenha associado conscientementeesse facto à sua história. A construção do reservatório <strong>de</strong>água serviria para encobrir os efeitos visíveis do fenómeno,embora o futuro consumo daquela água fosse esten<strong>de</strong>r acontaminação exponencialmente. Um dos aspectos mais relevantesdo conto para este trabalho diz respeito à análise dometeorito, levada a cabo por uma equipa <strong>de</strong> cientistas. Estaanálise não obtém qualquer explicação satisfatória, pois omaterial analisado possui características claramente alienígenas,fora do presente alcance da Ciência humana:Stubbornly refusing to grow cool, it soon had the collegein a state of real excitement; and when upon heatingbefore the spectroscope it displayed shining bands unlikeany known colours of the normal spectrum therewas much breathless talk of new elements, bizarre opticalproperties, and other things which puzzled men ofscience are wont to say when faced by the unknown.(…) Asi<strong>de</strong> from being almost plastic, having heat, magnetism,and slight luminosity, cooling slightly in powerfulacids, possessing an unknown spectrum, wastingaway in air, and attacking silicon compounds with mutual<strong>de</strong>struction as a result, it presented no i<strong>de</strong>ntifyingfeatures whatsoever; and at the end of the tests the collegescientists were forced to own that they could notplace it. It was nothing of this earth, but a piece of thegreat outsi<strong>de</strong>; and as such dowered with outsi<strong>de</strong> propertiesand obedient to outsi<strong>de</strong> laws (Lovecraft 1994:242-243).Embora os cientistas não consigam explicar aquele estranhoobjecto, nem sequer <strong>de</strong>terminar se se tratava <strong>de</strong>uma entida<strong>de</strong> viva ou não, Lovecraft não opta pela viahabitualmente utilizada por autores mais tradicionais. Bem<strong>de</strong> acordo com o modo fantástico, a dúvida sobre aquelamisteriosa entida<strong>de</strong> permanece, embora no seio da sua ficçãoo escritor <strong>de</strong>ixe a porta entreaberta para uma futura explicaçãoatravés da Ciência. Ainda que o “meteorito” nãose pareça comportar <strong>de</strong> acordo com as leis conheci<strong>das</strong> pelaCiência, comportar-se-á <strong>de</strong> acordo com outras que, por enquanto,ainda <strong>de</strong>sconhecemos, constituindo um exemplo <strong>de</strong>que o sobrenatural po<strong>de</strong> ser visto como uma parte do real,por enquanto ainda <strong>de</strong>sconhecido. Esta é uma perspectivaque a poetisa Emily Dickinson já havia intuído e afirmadonuma <strong>das</strong> suas cartas: ”I was thinking today, as I noticed,that the ‘Supernatural’, was only the natural disclosed” 1 .Das múltiplas leituras pertinentes para o tema em análisee que são permiti<strong>das</strong> pelo conto, <strong>de</strong>stacaríamos, uma vezmais, a intromissão do “exterior” na vida do Homem. Ometeorito constitui um elemento tão alienígena, tão exteriorao Homem e ao ambiente que pensamos dominar,que nem a natureza da ameaça po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>terminar. Torna-sedifícil enten<strong>de</strong>r se a ameaça e as suas consequênciasnefastas para os seres humanos são <strong>de</strong>libera<strong>das</strong> ou não,numa evi<strong>de</strong>nte alusão à indiferença do Universo perantea Humanida<strong>de</strong>.A relação da Ciência com a realida<strong>de</strong> posta a <strong>de</strong>scobertoé também interessante, pois coloca em evidência aincapacida<strong>de</strong> em lidar com possíveis <strong>de</strong>scobertas que acuriosida<strong>de</strong> humana possa vir a realizar. Mesmo após osacontecimentos terríveis na “blasted heath” pareceremterminados, não havendo mais vítimas humanas a registar,a ameaça subsiste na forma <strong>de</strong> uma clareira que seexpan<strong>de</strong> lenta, mas inexoravelmente, ano após ano. Esse1 In http://www.theatlantic.com/unbound/poetry/emilyd/edletter.htm, consultado a23 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 2008.52 53“TERROR CÓSMICO”UMA PERSPECTIVA EXISTENCIALISTAWilliam Van O’Connor na sua obra The Grotesque: AnAmerican Genre and Other Essays afirma o seguinte:There is of course a <strong>de</strong>eply existentialist drift in mo<strong>de</strong>rnfiction, European and American. Medieval orRenaissance man could dream of the harmonies implicitin the doctrine of the microcosm-macrocosm relationship.Citizens in Pope’s world could dream of theharmonies of a mechanistically or<strong>de</strong>red universe. Shelleyand Byron could reassert that man was a Prometheus.Herbert Spencer and others testified to havingobserved that evolution is biological, social and moral.Common to all of these doctrines is the belief that manmay rely on spiritual and rational forces in the universe.There was an or<strong>de</strong>r of things upon which he could <strong>de</strong>pendfor succor, a sense of purpose, and the assurancethat he was rational. The mo<strong>de</strong>rn writer seems certainonly of uncertainty (O’Connor 1962: 17).Uma perspectiva existencialista também po<strong>de</strong>rá ajudar aexplicar a actualida<strong>de</strong> da ficção lovecraftiana, embora, numprimeiro momento, esta pareça ser difícil <strong>de</strong> conciliar comoutras posições <strong>de</strong>fendi<strong>das</strong> na sua ficção e correspondênciapessoal. À primeira vista, o autor parece, através da sua féna Ciência, essencialmente mecanicista, ou também comoviria a ser conhecido posteriormente, mais próximo <strong>de</strong> umpositivismo lógico, algo que o afastaria, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, <strong>de</strong>ssaperspectiva filosófica. No entanto, uma análise mais cuidadosapo<strong>de</strong>rá mostrar-nos algo diferente. Lovecraft não seencontra exclusivamente preso a uma perspectiva objectivado mundo. O autor percebe as limitações dos nossos sentidose as consequentes dificulda<strong>de</strong>s para a obtenção <strong>de</strong>ssa,por muitos almejada, objectivida<strong>de</strong>.É conhecida a importância que os sonhos <strong>de</strong>têm nasua obra e os mesmos eram muitas vezes vistos pelo autorcomo uma forma tão ou mais válida do que as outras convencionalmenteaceites para um conhecimento autêntico darealida<strong>de</strong>. Essa forma <strong>de</strong> ace<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong>s escondi<strong>das</strong> por“<strong>de</strong>trás <strong>de</strong> véus” não estará acessível a todos, apenas os maissensíveis o po<strong>de</strong>rão fazer, ainda que os mesmos possam vira correr o risco <strong>de</strong> serem mal-interpretados pela maioria.Vejamos o início do conto “The Tomb”:It is an unfortunate fact that the bulk of humanity istoo limited in its mental vision to weigh with patienceand intelligence those isolated phenomena, seen andfelt only by a psychologically sensitive few, which lieoutsi<strong>de</strong> its common experience. Men of broa<strong>de</strong>r intellectknow that here is no sharp distinction betwixt thereal and the unreal; that all things appear only as theydo only by virtue of the <strong>de</strong>licate individual physical andmental media through which we are ma<strong>de</strong> consciousof them; but the prosaic materialism of the majoritycon<strong>de</strong>mns as madness the flashes of supersight whichpenetrate the common veil of obvious empiricism (Lovecraft1987: 18).


Para além da crítica a um excessivo empirismo, po<strong>de</strong>mosigualmente testemunhar a perspectiva <strong>de</strong> que o mundoé apreendido através dos sentidos, mas também pelamente, processo nada surpreen<strong>de</strong>nte em Lovecraft. Porém,numa perspectiva mais existencialista, fica também patentea i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o Mundo apenas se materializa porque nós ocriamos ao tomarmos consciência <strong>de</strong>le. De salientar tambéma admissão, invulgar em alguém com uma componentefortemente mecanicista como Lovecraft, <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mexistir momentos em que a realida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser percebidaatravés <strong>de</strong> formas menos convencionais, embora nesse seumecanicismo não seja <strong>de</strong> excluir que a Ciência possa vir aexplicá-las um dia. A ligação ao existencialismo também po<strong>de</strong>ráser estabelecida, começando pelo paralelo existente entreo conceito <strong>de</strong> “terror cósmico” e o conceito <strong>de</strong> “Angst”<strong>de</strong>senvolvido pelo filósofo Sören Kierkegaard.Tal como na maioria <strong>das</strong> obras góticas, a iminênciada morte possibilita, <strong>de</strong> alguma forma, traçar a dimensãoda nossa existência pela sua inevitabilida<strong>de</strong>. A preocupaçãoem revelar a medida da nossa existência e a autenticida<strong>de</strong>da vida humana tornar-se-ia numa preocupação central paraos chamados filósofos existencialistas. Em Lovecraft po<strong>de</strong>remosencontrar todo um Universo cheio <strong>de</strong> incertezas,um cosmos estranho, alienígena e talvez hostil. No entanto,uma certeza permanece em toda a sua ficção: a existênciada Humanida<strong>de</strong> é apenas uma nota <strong>de</strong> rodapé no <strong>de</strong>sfiar <strong>de</strong>eras que compõem a história do Universo. O <strong>de</strong>stino final<strong>de</strong> todos os homens e da sua civilização é o <strong>de</strong>saparecimentoe a morte. Essa inevitabilida<strong>de</strong> da morte e do <strong>de</strong>saparecimentopo<strong>de</strong>rão, contudo, possibilitar a percepção da vida <strong>de</strong>uma forma mais autêntica.À semelhança <strong>de</strong> inúmeras obras do Gótico, tambéma ficção lovecraftiana “alerta” para o verda<strong>de</strong>iro significadoda vida face às ameaças <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição e <strong>de</strong> loucura que sãoimpostas aos protagonistas, tal como em Frankenstein, emcujo final o cientista aconselha uma vida isenta <strong>de</strong> ambições,ainda que aparentemente benignas, como aquelas que pensamosestarem ao serviço da Ciência. Em At the Mountainsof Madness, o narrador alerta:Certain things we had agreed, were not for people toknow and discuss lightly – and I would not speak ofthem now but for the need of heading off that Starkweather–Moore expedition, and others, at any cost.It is absolutely necessary, for the peace and safety ofmankind, that some of earth’s dark, <strong>de</strong>ad corners andunplumbed <strong>de</strong>pths be let alone; lest sleeping abnormalitieswake to resurgent life, and blasphemously survivingnightmares squiem and splash out of their blacklairs to newer and wi<strong>de</strong>r conquests (Lovecraft, ed. Joshi1997: 329).Apesar <strong>de</strong> to<strong>das</strong> as precauções, fica patente nesta e noutrasobras <strong>de</strong> Lovecraft que nada po<strong>de</strong>rá, em última análise,evitar a <strong>de</strong>struição da Humanida<strong>de</strong> e a sua substituiçãopor uma outra qualquer forma <strong>de</strong> vida dominante. Há nestaperspectiva um olhar bastante crú em relação à própria existência,até mesmo uma negação da distinção entre o Bem eo Mal, face àquilo que nos ameaça com a <strong>de</strong>struição. Estanegação <strong>das</strong> tradicionais dicotomias Bem / Mal e a perspectivaem que o medo é central na vida <strong>de</strong> todos nós, patenteno início <strong>de</strong> Supernatural Horror in Literature, são factores <strong>de</strong>aproximação entre o Gótico e o Existencialismo.Na coragem perante o sentimento <strong>de</strong> inevitabilida<strong>de</strong>da morte e a sua aceitação, Lovecraft irá aproximar-se dofilósofo Hei<strong>de</strong>gger, também ligado às correntes filosóficasexistencialistas.Régis Jolivet em As Doutrinas Existencialistas (1961), põeem evidência o pensamento <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger, <strong>de</strong>monstrandoque para a generalida<strong>de</strong> dos seres humanos a morte é, sobretudo,“algo” que acontece aos outros:Os homens, geralmente, eximem-se à angústia da morte.Uns encaram-na como simples verda<strong>de</strong> estatística oucerteza experimental (…) outros reduzem a certeza damorte à certeza <strong>de</strong> que “se morre”, como se a morteatingisse apenas o “se”, que não é ninguém (…). Hásempre a preocupação <strong>de</strong> dissimular aquele “ser-para-a-morte”que nós somos: consolam-se os moribundos,escon<strong>de</strong>ndo-lhes a iminência da morte (quemconsola é que, <strong>de</strong> facto, se esforça por se animar a simesmo). O “se” foge diante da morte: afasta o pensamentoda morte como <strong>de</strong>bilitante; não tem a coragemnecessária para afrontar a angústia que ela envolve (Jolivet1961: 128).Nas palavras do próprio filósofo: “As soon as man comesto life he is at once old enough to die” (Hei<strong>de</strong>gger 1962:289). Por conseguinte a consciência e aceitação da morteé uma condição para uma existência autêntica. Hei<strong>de</strong>ggerrefere-se ao ser inautêntico como o “they-self ”, aquele queé influenciado pelos <strong>de</strong>mais (“they”), pelas multidões, ao invés<strong>de</strong> contar com as suas próprias potencialida<strong>de</strong>s.Distinguindo entre o ser autêntico e o inautêntico, ofilósofo <strong>de</strong>screve este último como aquele que encara amorte como capaz <strong>de</strong> produzir um medo cobar<strong>de</strong> e sinal<strong>de</strong> insegurança, portanto, um tópico a ser evitado. A morteé evitada através daquilo a que Hei<strong>de</strong>gger chama <strong>de</strong> “constanttranquilization about <strong>de</strong>ath”, provocando com issouma indiferença em relação à morte. Paradoxalmente, estaindiferença em relação à morte é uma atitu<strong>de</strong> cobar<strong>de</strong>. Aatitu<strong>de</strong> corajosa e mais autêntica é a ”courageous anxiety”.Contudo, esta ansieda<strong>de</strong> não é um sinónimo <strong>de</strong> medo, massim uma ansieda<strong>de</strong> em relação à liberda<strong>de</strong> e às possibilida<strong>de</strong>sque o “Nada” da morte levanta. Este estado <strong>de</strong> espíritopermite uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapaixonada liberda<strong>de</strong> em relaçãoà morte. Para Hei<strong>de</strong>gger a morte <strong>de</strong>ve ser verda<strong>de</strong>iramenteaceite e encarada com naturalida<strong>de</strong>:The falling everydayness of Dasein is acquainted with<strong>de</strong>ath’s certainty, and yet eva<strong>de</strong>s Being-certain. But in thelight of what it eva<strong>de</strong>s, this very evasion attests phenomenallythat <strong>de</strong>ath must be conceived as one’s ownmostpossibility, non-relational, not to be outstripped, and –above all – certain (Hei<strong>de</strong>gger 1962: 302).O filósofo não oferece uma esperança religiosa, nemtampouco insiste numa mórbida obsessão em relação àmorte. Ao invés disso, uma ansieda<strong>de</strong> saudável permite umapositiva e corajosa tomada <strong>de</strong> consciência, a aceitação damorte e da finitu<strong>de</strong> da nossa existência.O mesmo acontece com Lovecraft. O autor americanoolha a inevitabilida<strong>de</strong> da morte <strong>de</strong> frente, assume-a na suaficção e na sua vasta correspondência pessoal, incorporaesse medo e essa angústia como algo central na sua vida ena <strong>de</strong> todos os seres humanos. Como Maria Antónia Lima54 55refere em Terror na Literatura Norte-Americana, a propósito<strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger, a morte po<strong>de</strong> ser encarada como uma libertação<strong>de</strong> uma existência banal, distinguindo-se, assim, o serautêntico, do inautêntico (cf. Lima 2008: 77). Lovecraft iráinsurgir-se contra esta maneira banal <strong>de</strong> viver e contra umaliteratura que tentava retratar a banalida<strong>de</strong> da vida <strong>de</strong> umaforma realista.É neste confronto perante o “Nada”, algo inefável eparadoxal, que o sentimento <strong>de</strong> solidão e da inevitabilida<strong>de</strong>da morte é realçado. Também aqui po<strong>de</strong>remos estabelecerum paralelo entre o conceito <strong>de</strong> “Angst”, <strong>de</strong>senvolvido porKierkegaard e o conceito <strong>de</strong> “terror cósmico” <strong>de</strong> Lovecraft.Em sentido lato, “Angst” po<strong>de</strong> significar um estado emque o homem se sente sufocado perante um mal que estáiminente, que é inevitável e, pelo menos em parte, não foiainda experimentado. Este conceito trabalhado pelo filósofodinamarquês aproxima-se, na sua in<strong>de</strong>finição e envolvência,do cerne do terror em Lovecraft, mas o carácter maisinterior <strong>de</strong>sta emoção, atribuído pelo pensador escandinavoafasta o filósofo do escritor americano, uma vez que emLovecraft esse terror, embora perpassando para o interiordo indivíduo, provém do exterior.Comum às noções <strong>de</strong> “Angst” e <strong>de</strong> “terror cósmico” éo seu carácter intangível, in<strong>de</strong>finido, ambas <strong>de</strong>signando algoque não se consegue precisar, mas que é profundamenteinquietante. Por outras palavras, “Angst” e “terror cósmico”po<strong>de</strong>rão ser entendidos como medo do <strong>de</strong>sconhecido.Como Régis Jolivet regista a propósito <strong>de</strong> Kierkegaard: “Devemosobservar aqui que nada reforça tanto o sentimentoda existência como a imaginação e a angústia. O homem, viventee existente, prova-se muito mais no sofrimento doque na alegria (Jolivet 1961:43).” O filósofo também diferedo escritor no sentido em que o primeiro irá orientar a suafilosofia para a sua interpretação do cristianismo, portanto,para uma forma <strong>de</strong> religião. No caso do escritor, a ausência<strong>de</strong> fé ou <strong>de</strong> orientação do seu pensamento para uma religiãoirá, neste aspecto, aproximá-lo mais <strong>de</strong> outros filósofos, taiscomo Friedrich Nietzsche.O escritor americano irá transportar esta angústia individual,igualmente presente em tantas personagens <strong>de</strong> boaparte da ficção gótica, para toda a Humanida<strong>de</strong>. É a própriaHumanida<strong>de</strong> que se encontra só na vastidão do Universo,um Universo <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> sentido. Lovecraft não evita esseconfronto e é nessa coragem <strong>de</strong> confrontar que tambémencontramos semelhanças com Nietzsche e a sua filosofianiilista, bem como com Schopenhauer, na concepçãoque ambos tinham <strong>de</strong> um Cosmos cego, amoral e sem umrumo <strong>de</strong>finido. Nietzsche em Assim Falava Zaratustra é talvezquem mais violentamente se insurja contra a religião e aintenção <strong>de</strong> uma teleologia capaz <strong>de</strong> amenizar uma angústiaexistencialista:Foram os doentes e os moribundos que menosprezaramo corpo e a terra e inventaram as realida<strong>de</strong>s celestese as gotas do sangue re<strong>de</strong>ntor: mas até esses doces elúgubres venenos os foram buscar ao corpo e à terra!Queriam fugir da sua miséria, e as estrelas pareciam-lhes<strong>de</strong>masiado longínquas. Então suspiraram: “Oh!, se houvessecaminhos celestes para alcançar outra existência eoutra felicida<strong>de</strong>!” – Foi então que inventaram os seusartifícios e as suas sangrentas beberagens (Nietzsche2000: 47).Lovecraft po<strong>de</strong>rá ter sido, em certa medida, um Nietzscheliterário, pois na sua recusa da religião e da teleologiaassemelha-se ao que o filósofo advogava para o espírito:<strong>de</strong>sembaraçar-se do peso milenar da religião.Também a i<strong>de</strong>ia do perpétuo <strong>de</strong>vir encontra eco na mitologialovecraftiana, como o <strong>de</strong>monstra este pequeno verso<strong>de</strong> “The Call of Cthulhu”: “That is not <strong>de</strong>ad which caneternal lie/ And with strange aeons even <strong>de</strong>ath may die”(Lovecraft 1994: 81). Essa característica <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong> colocaos “Old Ones” como os verda<strong>de</strong>iros soberanos <strong>de</strong>stemundo, por ora adormecidos, mas que voltarão “quando asestrelas estiverem alinha<strong>das</strong>”. Em the “The Call of Cthulhu”é possível ler:They worshipped, so they said, the Great Old Oneswho lived ages before there were any men, and whocame to the young world out of the sky. These OldOnes were gone now, insi<strong>de</strong> the earth and un<strong>de</strong>r thesea; but their <strong>de</strong>ad bodies had told their secrets in dreamsto the first man, who formed a cult which had neverdied. This was that cult, and the prisoners said it hadalways existed and always would exist, hid<strong>de</strong>n in distantwastes and dark places all over the world until the timewhen the great priest Cthulhu, from his dark house inthe mighty city of R’lyeh un<strong>de</strong>r the waters, should riseand bring the earth again beneath his sway. Some dayhe would call, when the stars were ready, and the secretcult would always be waiting to liberate him (Lovecraft1994: 78).Para além <strong>de</strong> roubar a primazia habitual da Humanida<strong>de</strong>como peça central, esta concepção, à semelhança <strong>das</strong>concepções dos referidos filósofos, não se limita a umconceito moral simplesmente assente na i<strong>de</strong>ia dicotómica<strong>de</strong> Bem / Mal. Os “Old Ones”, assim como o próprio Universo,não são intrínsecamente malévolos. Estes po<strong>de</strong>rãosê-lo apenas na perspectiva da Humanida<strong>de</strong> e não em absoluto.De facto, a aproximação com a filosofia <strong>de</strong> Nietzschetorna-se aqui mais evi<strong>de</strong>nte ao constatarmos que a ausência<strong>de</strong> valores absolutos postulada pelo filósofo encontra econa obra do escritor. Para Nietzsche, a ausência do absolutoesten<strong>de</strong>-se até à própria Ciência, ao colocar em causaa fiabilida<strong>de</strong> dos sentidos com que o Homem apreen<strong>de</strong> oMundo, preocupação essa partilhada pelo autor americano.A apreciação do que quer que seja está <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da avaliação.Tudo advém da vonta<strong>de</strong> que o Homem possui paratransformar o mundo em que vive <strong>de</strong> acordo com os seusinteresses. Os conceitos <strong>de</strong> Bem e Mal, por exemplo, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mda sua relação com os nossos interesses. Para o filósofoalemão, isto <strong>de</strong>ve-se às características do ser humano, umacriatura que possui aquilo a que chama “Der Wille Zu Macht”.A este respeito afirma:


Quereis primeiro criar um mundo tal que possais adorá-lo<strong>de</strong> joelhos; é a vossa última esperança, o vossosupremo êxtase.Os não-sábios, todavia, o povo, são semelhantes ao riopor on<strong>de</strong> avança um barquinho e no barco vão, solenese disfarçados, os juízos <strong>de</strong> valor.Pusestes a vossa vonta<strong>de</strong> e os vossos valores no rio doporvir; estas crenças do povo a respeito do bom e domau revelam uma muito antiga vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.Fostes vós sábios insignes, que instalastes esses passageirosno barquinho, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> os ter<strong>de</strong>s enfeitado comadornos e nomes sumptuosos – fostes vós e a vossavonta<strong>de</strong> dominadora (Nietzsche 2000: 138).Desta forma, uma outra implicação resi<strong>de</strong> no facto <strong>de</strong>não po<strong>de</strong>r existir uma verda<strong>de</strong> objectiva imutável, ainda quese tente alcançá-la exclusivamente pela Ciência, o que, porsua vez, implica que também não haja uma moral absoluta.Para Nietzsche, quer os cientistas, quer os moralistas procuramalgo que é impossível alcançar, o absoluto e imutável,factos absolutamente objectivos no caso dos primeiros emorais absolutas e imutáveis no caso dos segundos. Apesardisso, como Mary Warnock em Existentialism (1970) aponta,o filósofo alemão concedia que, apesar <strong>de</strong> os cientistas estaremerrados na sua busca pelo Absoluto, os moralistas ain<strong>das</strong>e encontram mais distantes.Para Nietzsche os conceitos <strong>de</strong> Bem e Mal não sãoinerentes a qualquer objecto e, numa perspectiva elitista,gran<strong>de</strong> parte dos valores são os valores do povo e não doindivíduo. Os moralistas encontrarão paradigmas largamenteaplicáveis à gran<strong>de</strong> generalida<strong>de</strong> da nossa realida<strong>de</strong>, aliássão esses paradigmas morais que permitem às nossas socieda<strong>de</strong>sfuncionar. Aquilo que não po<strong>de</strong>mos esperar é queesses paradigmas funcionem in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> qualquercondição e para sempre. Como o filósofo afirma: “Oscriadores <strong>de</strong> valores foram primeiro povos, e só mais tar<strong>de</strong>indivíduos; na verda<strong>de</strong>, o indivíduo foi a última criatura aaparecer” (Nietzsche 2000: 75).A liberda<strong>de</strong> que esta negação da moralida<strong>de</strong> absoluta einerente permite, po<strong>de</strong> cativar-nos, mas ao mesmo tempopo<strong>de</strong> aterrorizar-nos, tal como em Lovecraft a perspectiva<strong>de</strong> um Universo amoral e sem qualquer indício <strong>de</strong> teleologianos cativa nas suas infinitas possibilida<strong>de</strong>s e ausência <strong>de</strong>“amos” a quem <strong>de</strong>ver obediência. Ao mesmo tempo, estaperspectiva assusta-nos, ao relembrar-nos da nossa própriainsignificância face à vastidão e po<strong>de</strong>res que po<strong>de</strong>rão aindaestar ocultos <strong>de</strong> nós.Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser paradoxal que este questionar <strong>de</strong> umamoralida<strong>de</strong> estabelecida, convencional e presente na cosmovisãodo escritor em análise e na sua ficção, contraste comuma personalida<strong>de</strong> tão reconhecidamente conservadora,atraída até pelas convenções sociais do século XVIII emInglaterra. Esse apego po<strong>de</strong>rá ter a ver com uma atitu<strong>de</strong>romântica e saudosista do autor por um tempo <strong>de</strong> valoresmais autênticos, muito diferentes da sua socieda<strong>de</strong> industrial,her<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> um certo racionalismo sem imaginação doséculo XIX, logo, mais liberto <strong>de</strong>sses valores ancestrais. Sãofrequentes as vezes que Lovecraft advoga uma arte e ummodo <strong>de</strong> vida assentes na tradição, nomeadamente nestamissiva dirigida ao seu amigo e escritor Fritz Leiber:Aquele que <strong>de</strong>seja criar <strong>de</strong>ve viver no seio da paisagemque consi<strong>de</strong>ra verda<strong>de</strong>iramente sua, on<strong>de</strong> as suas raízesmergulham no passado. Mas a migração para as cida<strong>de</strong>se os progressos mecânicos arrancam a vida <strong>das</strong> pessoasà rotina natural santificada pelos actos e pensamentos<strong>das</strong> gerações sucessivas. As forças e símbolos familiares– as colinas, os bosques, as estações – interferem cadavez menos com a nossa vida quotidiana, tendo sidosubtituídos por horizontes em tijolo, por ruas sistematicamentevarri<strong>das</strong> e por aquecimentos centrais, e ospequenos carreiros e lugares <strong>de</strong> antigamente morrem<strong>de</strong> inanição, à medida que os meios <strong>de</strong> comunicaçãotransformam toda a paisagem numa só podridão estandardizada(Lovecraft 1991:20).Semelhante apelo é feito pelo filósofo alemão, <strong>de</strong>monstrandoum apego aos elementos mais primordiais da vidae que caíam em esquecimento. Através da figura <strong>de</strong> Zaratustraproclama:Foge, meu amigo, refugia-te na tua solidão! Vejo-teaturdido pelo barulho dos gran<strong>de</strong>s homens e apoquentadopelo aguilhão dos pequenos. Os penedos e as florestassaberão calar-se, gravemente, na tua companhia.Assemelha-te <strong>de</strong> novo à tua árvore querida, a árvore <strong>de</strong>ampla ramagem, que escuta silenciosa, suspensa sobreo mar. On<strong>de</strong> cessa a solidão começa a praça pública: eon<strong>de</strong> começa a praça pública começa também o ruídosdos gran<strong>de</strong>s actores e o zumbido <strong>das</strong> moscas venenosas(Nietzsche 2004: 68).O percurso <strong>de</strong> vida do escritor norte-americano pareceter-se coadunado com esta posição, uma vez que avivência <strong>de</strong> Lovecraft em gran<strong>de</strong>s centros, particularmenteem Nova Iorque, foi traumática, reflectindo-se numa escritamais violentamente crítica <strong>das</strong> minorias étnicas que jápovoavam a gran<strong>de</strong> metrópole. O regresso à “sua” NovaInglaterra irá restabelecer um equilíbrio emocional no autor,o que resultaria num dos períodos mais fecundos <strong>das</strong>ua produção escrita.Na concordância entre Lovecraft e Nietzsche noque à tradição e ao afastamento dos gran<strong>de</strong>s palcos daHumanida<strong>de</strong> diz respeito, há simultaneamente, uma contradiçãoaparente entre o apego <strong>de</strong> Lovecraft pela Ciência,o seu interesse pelas novas <strong>de</strong>scobertas científicas e a suaprofunda ligação à tradição e aos valores que a compõem,bem como aos <strong>de</strong>vaneios da imaginação inerentes ao modofantástico. Não seria <strong>de</strong> estranhar que fosse esta contradiçãoque fizesse Lovecraft olhar para si mesmo como um “pu-56 57ritano em <strong>de</strong>cadência”. É também esse conservadorismo ea fé na Razão e na Ciência que, apesar <strong>de</strong> tudo conservava,que o distingue <strong>de</strong> Nietzsche. Com efeito, o filósofo germânicoprivilegiava os impulsos dionisíacos em <strong>de</strong>trimentoda contenção e da razão apolínea, embora conce<strong>de</strong>ndo anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um relativo equilíbrio entre ambas as forças,residindo aí, na sua opinião, o segredo do sucesso da civilizaçãogrega na Antiguida<strong>de</strong> Clássica.Não encontramos em Lovecraft uma <strong>de</strong>fesa exacerbadados impulsos mais obscurosda mente humana, mas encontramosum profundo <strong>de</strong>sejo<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>r, atravésda imaginação, as amarras queprendiam o autor à sua difícilrealida<strong>de</strong>, sendo a escrita capaz<strong>de</strong> produzir sentimentos no autore no leitor, que se aproximame, por vezes, se confun<strong>de</strong>m comaqueles que a religião provoca.Também por estes motivos, não épor acaso que irá escolher o “weirdtale”, como seu veículo preferencial<strong>de</strong> expressão. É este o modo que melhorexprimirá o seu universo interior,as suas angústias e a sua cosmovisão.Não teremos problemas <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong>na sua escrita, pois a mesma éclaramente um reflexo <strong>de</strong> si mesmo, doseu próprio “Eu”. Lovecraft <strong>de</strong>monstrahonestida<strong>de</strong>, não percepciona um mundocor-<strong>de</strong>-rosa e, como tal, também não oreflecte na sua obra.A autenticida<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrada liga-sedirectamente à perspectiva que o autor temdo “weird tale”: este <strong>de</strong>ve abster-se <strong>de</strong> provi<strong>de</strong>nciar umaleitura moralizante, ou provi<strong>de</strong>nciar uma explicação dosacontecimentos que se enquadre na normalida<strong>de</strong>, tal comopo<strong>de</strong>mos encontrar em antecessores como Ann Radcliffe eCharles Brock<strong>de</strong>n Brown.Como já vimos, partindo do princípio <strong>de</strong> ausência<strong>de</strong> uma teleologia, para Lovecraft o homem está sozinho ecompletamente exposto às forças exteriores. Longe <strong>de</strong> umaliberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> acção com um carácter positivo, essa mesmapossibilida<strong>de</strong> surge como uma nuvem negra perante os protagonistas,ao percebermos que, não obstante todo o po<strong>de</strong>rda Ciência e supremacia que a Humanida<strong>de</strong> julga possuir, ascapacida<strong>de</strong>s humanas são insignificantes perante a ameaçaexterior.Não po<strong>de</strong>remos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> estabelecer um paralelo entrea própria vida <strong>de</strong> Lovecraft e a sua obra. Vindo do ambienteseguro <strong>de</strong> uma família semi-aristocrática, que iria conhecerum lento e doloroso <strong>de</strong>clínio económico, Lovecraft sentiuna pele a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que as regras e princípios, que regiamuma vida protegida pelo nome e dinheiro, não se aplicavamno mundo competitivo e hostil ao qual foi lançado epara o qual não estava preparado. Não é <strong>de</strong> admirar queas suas personagens sejam quase sempre pacatos estudiososda área <strong>das</strong> letras ou <strong>das</strong> ciências exactas, claramenteevocando o próprio autor. A recorrência da ameaça exterior,na sua ficção, acaba por ser reflexo <strong>das</strong> frequentesameaças <strong>de</strong> um mundo contra o qual não tinha as armasa<strong>de</strong>qua<strong>das</strong> para lutar. Não será <strong>de</strong> admirar que escolhessecomo referência estética, política e social o século XVIIIinglês, embora esta também fosse uma visão romântica ei<strong>de</strong>alizada <strong>de</strong>ssa época.Howard Phillips Lovecraft nasceuem Provi<strong>de</strong>nce, Rho<strong>de</strong> Island, a 20<strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1890. A carreira <strong>de</strong>Lovecraft como escritor profi ssional foilargamente comprimida num período<strong>de</strong> <strong>de</strong>zasseis anos. Permaneceuvirtualmente <strong>de</strong>sconhecido exceptopara as pequenas audiências <strong>de</strong>pulp magazines como a Weird Taleson<strong>de</strong> o seu trabalho foi publicado.Os magros rendimentos da escritanão chegavam para reforçar osrendimentos <strong>de</strong> uma empobrecidaherança, e ele continuou a escreveranonimamente para outrosautores. Ao mesmo tempo animouum pouco a sua monótonaexistência com uma extensatroca <strong>de</strong> correspondência comoutros escritores e leitores<strong>de</strong> fi cção fantástica. Quandouma combinação <strong>de</strong> cancro enefrite reclamou a sua vidaaos quarenta e seis anos <strong>de</strong>vida, a perda foi sentida portodos os amigos, muitosconhecendo-o apenascomo correspon<strong>de</strong>ntes.Desta forma, po<strong>de</strong>mos ver que, numa perspectiva existencialista,há uma preocupação com a autenticida<strong>de</strong> da escrita,existindo em Lovecraft uma verda<strong>de</strong>ira consciência dopapel do escritor e da sua condição humana. Uma <strong>das</strong> suasoriginalida<strong>de</strong>s resi<strong>de</strong> no facto <strong>de</strong> que o processo <strong>de</strong> catarse,que normalmente surge associado à escrita e, particularmente,à escrita gótica, revela não tanto os recantos maisobscuros da mente humana, como é particularmente patenteem Poe, mas sim a angústia e precarida<strong>de</strong> da existênciahumana face ao Universo indiferente ou hostil. Esse processocatártico po<strong>de</strong>rá exercer aqui uma função <strong>de</strong> aceitação dacondição humana, tal como ela é, insignificante, mesquinhae transitória, mas também mais verda<strong>de</strong>ira ao aceitarmo-lae tendo consciência da sua real natureza. Esta sua atitu<strong>de</strong>,em relação à existência, seria mantida ao longo <strong>de</strong> toda asua vida, inclusivamente nos seus últimos momentos. Numasua carta, escrita em 1936, respon<strong>de</strong> acerca do que faria setivesse apenas uma hora <strong>de</strong> vida. O que nela <strong>de</strong>clara viria arevelar-se profético:As for the general i<strong>de</strong>a of what one would do if certainof <strong>de</strong>ath in an hour – I fancy most persons in normalhealth tend to sentimentalise and romanticise a bitabout it. For my part – as a realist beyond the age oftheatricalism and naive beliefs – I feel quite certain thatmy own known last hour would be spent quite prosaicallyin writing instructions for the disposition of certainbooks, manuscripts, heirlooms, and other posses-


sions. Such a task would – in view of the mental stress– take at least an hour – and it would be the most usefulthing I could do before dropping off into oblivion. If Idid finish ahead of time, I’d probably spend the residualminutes getting a last look at something closely associatedwith my earliest memories – a picture, a librarytable, an 1895 Farmer’s Almanack, a small music-boxI used to play with at 2 ½, or some kindred symbol– completing a psychological circle in a spirit half ofhumour and half of whimsical sentimentality. Then –nothingness, as before Aug. 20, 1890 (Lovecraft, ed.Joshi 2000b: 339).Na sua preferência por não colocar o ser humano em nenhumlugar especial face a outros seres ou outras forçasda natureza, Lovecraft partilha esta posição com um outrofilósofo que profundamente marcou Friedrich Nietzsche.Trata-se <strong>de</strong> Arthur Schopenhauer. Na sua obra The World asWill and Representation, o filósofo irá colocar o ser humano paralelamentea outros seres vivos em muitos aspectos da suaexistência, mesmo naqueles que habitualmente consi<strong>de</strong>ramoscomo diferenciadores e que nos colocam num lugar central.Christopher Janaway em Schopenhauer: A Very Short Introductionafirma acerca <strong>de</strong>ste aspecto em particular da sua filosofia:So, <strong>de</strong>spite superficial appearances, Schopenhauer doesnot simply wish to un<strong>de</strong>rstand nature in anthropomorphicterms. Although he asks us to interpret theworld using concepts applied first to ourselves, thenotion of the will to life has the effect of <strong>de</strong>motinghumanity from any special status separate from therest of nature. First, in our bodies, the same ‘blind’force operates as throughout nature: we are organizedto live and propagate life not by any consciousact of will. Secondly, there is a close continuity betweeneven the conscious, purposive willing of humanaction and the life-preserving functions and instinctsat work elsewhere. In our seeking of mates andproviding for offspring, we are driven by the sameinstincts as other animals. And Schopenhauer seesthe human capacities for perception, rationality andactions as an offshoot of the same wi<strong>de</strong>r principlewhich leads insects to build nests, feathers to grow,and cells to divi<strong>de</strong>. In this respect, the will to lifecan seem quite a forward-looking notion. Anothercrucial feature is Schopenhauer’s steadfast oppositionto anything approaching an external or divinepurpose for nature. Even though it is ‘a single will’which expresses itself throughout the multiplicity ofphenomena, this means only that all behaviour is ofthe same striving or goal-directed kind. All life-formsstrive towards life; but there is no coordinatedpurpose to nature, rather the kind of purposefulnessand conflict which are usually associated with Darwinism(Janaway 2002:46).Mais uma vez, realçamos a “<strong>de</strong>spromoção” da espéciehumana como centro <strong>de</strong> tudo e uma visão da nossaexistência como <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>das</strong> mesmas condicionantesque afectam as restantes espécies. Existe tambémem comum a noção <strong>de</strong> que o principal impulso <strong>das</strong> nossasvi<strong>das</strong> resi<strong>de</strong>, não numa intenção ou propósito divino jápré-estabelecido, mas <strong>de</strong> que este está contido nas miría<strong>de</strong>s<strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s e conflitos que compõem uma visão darwinistado mundo. O fruto do acaso, o jogo <strong>das</strong> possibilida<strong>de</strong>s,ocupa um lugar <strong>de</strong>stacado na cosmovisão <strong>de</strong> H. P.Lovecraft, aproximando-o <strong>de</strong> autores mais contemporâneoscomo Paul Auster.Extrapolando para a sua obra, sobretudo o ciclo compreen<strong>de</strong>ndoo “Cthulhu Mythos”, não será <strong>de</strong>sta forma, <strong>de</strong>estranhar que as ténues e temporárias “vitórias” dos protagonistasface aos adversários que ameaçam com a <strong>de</strong>struiçãoda Humanida<strong>de</strong> sejam, em muitos casos, fruto do acasoe não tanto dos méritos e acções dos anti-heróis utilizadospelo escritor.Numa perspectiva igualmente darwinista, o conflito <strong>de</strong>interesses entre seres como os “Old Ones” e a raça humananão será perspectivada como um conflito entre o Bem e oMal, mas sim um conflito entre duas espécies, uma incomensuravelmentemais po<strong>de</strong>rosa e adaptada do que a outra,sendo quase inevitável que a vitória reverta, mais cedo oumais tar<strong>de</strong>, para a mais po<strong>de</strong>rosa. A vitória dos “Old Ones”e a <strong>de</strong>struição da raça humana seria apenas o resultado do“survival of the fittest”.Uma vez mais, se recorrermos a Nietzsche, veremosque tal acontecimento não é, em sim mesmo, a vitória doMal. Será apenas Mal na perspectiva avaliadora <strong>de</strong> quemper<strong>de</strong>, neste caso concreto, a Humanida<strong>de</strong>. Esta perspectivarelativista e não absoluta é, pois, partilhada por Lovecrafte constitui, como temos visto, uma <strong>das</strong> suas característicasmais interessantes e originais. Pontos <strong>de</strong> contacto adicionaisentre o escritor e Schopenhauer resi<strong>de</strong>m ainda no profundomaterialismo com que ambos concebiam a percepção darealida<strong>de</strong>.Para Schopenhauer, conceitos espirituais não fazemqualquer sentido, nestas explicações. A apreensão da realida<strong>de</strong><strong>de</strong>ve-se ao orgão no interior do crâneo a que chamamoscérebro. A materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste orgão não po<strong>de</strong> ser separadado seu conceito <strong>de</strong> will to life, essa força que se sobrepõe ato<strong>das</strong> as outras.A ausência <strong>de</strong> crença na espiritualida<strong>de</strong> esten<strong>de</strong>-se, naobra do escritor norte-americano, ao carácter material <strong>das</strong>entida<strong>de</strong>s que ameaçam a Humanida<strong>de</strong>, embora, lembremo-nos,estas sejam sempre fruto da sua imaginação, peloque a materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas apenas faça sentido na lógica internada sua ficção. No seguimento <strong>de</strong>sta lógica interna, talcomo correntes filosóficas mais próximas do século XX, asquais rejeitam a espiritualida<strong>de</strong>, também a obra lovecraftianairá caracterizar-se pelo seu carácter material.Não obstante a estranheza e o carácter totalmente alienígenaque exibem, todos estes seres são compostos porátomos e são passíveis <strong>de</strong> uma explicação assente em leisfísicas, leis essas que Lovecraft reconhece, com a humilda<strong>de</strong>que faz falta à Ciência, não serem ainda totalmente ou atémesmo incipientemente conheci<strong>das</strong>. Talvez até nunca as venhamosa conhecer, pois as limitações do cérebro humanoa isso po<strong>de</strong>rão obstar.Outros pontos <strong>de</strong> aproximação entre o filósofo e o escritordizem igualmente respeito à sua atitu<strong>de</strong> menos positi-58 59va em relação à existência humana. No caso do filósofo, diversosautores consi<strong>de</strong>ram-no um pessimista, já no caso <strong>de</strong>Lovecraft, ele próprio se consi<strong>de</strong>ra um indiferentista. Sejaqual for o caso, quer na obra filosófica do primeiro, quer naobra literária do segundo, o sofrimento ocupa um lugar <strong>de</strong>primazia, embora o peso do sofrimento pareça ser maiorem Schopenhauer do que em Lovecraft. O filósofo chega aafirmar que a não-existência será preferível à existência: “Infact, nothing else can be stated as the aim of our existenceexcept the knowledge that it would be better for us not toexist” (Janaway 2002:110). Schopenhauer <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma totalrepressão dos <strong>de</strong>sejos, da busca do prazer, do próprioimpulso sexual, que consi<strong>de</strong>ra dominante, pois os mesmossão encarados como fontes incessantes <strong>de</strong> sofrimento e dor.Uma tal concepção, aparentemente intolerável, é <strong>de</strong>fendidapor Schopenhauer na perspectiva <strong>de</strong> que cortandotodos os laços que nos ligam ao mundo, todos menosaquele que nos liga à própria existência, será possível umaexistência sem dor nem sofrimento. Nessa restrição do sofrimento,a busca pelo conhecimento é também <strong>de</strong> evitar,pois é também, ela própria, um <strong>de</strong>sejo. Dado que Schopenhauerconsi<strong>de</strong>ra cada <strong>de</strong>sejo como um elo numa ca<strong>de</strong>iainterminável <strong>de</strong> insatisfação, a resposta a uma pergunta ouquestão científica só levará a mais perguntas, ou seja, amais <strong>de</strong>sejos. Cada resposta, cada anseio por conhecimentolevará inevitavelmente a mais sofrimento.É interessante verificar as semelhanças que esta lógicapossui em comum com os acontecimentos habituais naLiteratura Gótica, particularmente com aquilo que po<strong>de</strong>riamoschamar a “busca <strong>de</strong> conhecimento proibido”. Nãoprecisaremos <strong>de</strong> muitos exemplos para recordarmos o queacontece às personagens lovecraftianas e aquelas pertencentesao Gótico em geral, quando estas preten<strong>de</strong>m conhecimentospara além daquilo que <strong>de</strong>viam. Um exemplo quepo<strong>de</strong>remos consi<strong>de</strong>rar clássico <strong>de</strong>ntre os contos <strong>de</strong> Lovecrafté o sofrimento obtido por todos aqueles que buscamconhecimento através do Necronomicon.No que toca às formas para evitar o sofrimento, o filósofoconsi<strong>de</strong>ra que o caminho da estética, apesar <strong>de</strong> ser umaforma <strong>de</strong> serena e tranquilamente se contemplar o Belo, nãoé uma forma <strong>de</strong> chegar à anulação da vonta<strong>de</strong>. Quer Lovecraft,quer o filósofo partilhavam da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a Arte émitigadora <strong>de</strong> muito do sofrimento existencial, po<strong>de</strong>ndo atéconferir um sentido para a vida. Schopenhauer admite quea contemplação estética po<strong>de</strong> subtrair o Homem à ca<strong>de</strong>iacontínua <strong>das</strong> necessida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>sejos. Contudo, mesmo estavia não é absolutamente satisfatória, pois tal como uma esmolaque alivia o sofrimento <strong>de</strong> um mendigo, esta apenasadia e prolonga o seu sofrimento para o dia seguinte.Para Schopenhauer to<strong>das</strong> as artes são libertadoras, <strong>de</strong>rivandoo seu prazer da cessação da dor <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> queoferecem. Contudo, a arte, tal como o ópio, não redime oHomem da vida, fá-lo apenas por breves instantes, não sendoum caminho para a libertação da vida que o filósofo <strong>de</strong>fendia.Muito resumidamente, Schopenhauer aponta comoforma <strong>de</strong> alcançar essa negação uma vida em que os valoresda justiça e da filantropia se elevam em relação aos outros.Desta forma, os impulsos e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser o maisimportante. Outra forma <strong>de</strong> alcançar esse estado <strong>de</strong> libertaçãoé bastante mais árdua. Essa segunda via consiste numavida permeada <strong>de</strong> constante sofrimento, que fará quebrar avonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver e os <strong>de</strong>sejos renunciados, alcançando umapaz imperturbável.Como referido atrás, Lovecraft não se afirma comoum pessimista, mas sim como um indiferentista, sendoeste um factor diferenciador nas suas concepções <strong>de</strong> existência.Não fosse Lovecraft um artista e não ocuparia aestética um lugar importante no seu pensamento e modo<strong>de</strong> se relacionar com o mundo à sua volta. O peso daestética acaba mesmo por constituir um elemento fundamentalda sua ética:About my own attitu<strong>de</strong> toward ethics – I thought Ima<strong>de</strong> it plain that I object only to (a) grotesquely disproportionateindignations and enthusiasms, (b) illogicalextremes involving a reductio ad absurdum , and (c)the nonsensical notion that “right” and “wrong” involveany principles more mystical and universal thanthose of immediate expediency (with the individual’scomfort as a criterion) on the one hand, and those ofaesthetic harmony and simmetry (with the individual’semotional-imaginative pleasure as a criterion) on theother hand. I believe I was careful to specify that I donot advocate vice and crime, but that on the other handI have a marked distaste for immoral and unlawful actswhich contravene the harmonious traditions and standardsof beautiful living <strong>de</strong>veloped by a culture duringits long history. This, however, is not ethics but aestehtics –a distinction which you are almost alone in consi<strong>de</strong>ringnegligible (Lovecraft, ed. Joshi 2000b: 226).Prosseguindo nas diferenças e semelhanças entre Schopenhauere Lovecraft, essenciais no caso do escritor para acompreensão da sua noção <strong>de</strong> terror cósmico, vejamoso que os separa no facto <strong>de</strong> o primeiro ser um pessimista eo segundo um indiferentista. Interessantemente, o facto <strong>de</strong>,para Lovecraft, o Universo ser governado essencialmentepor probabilida<strong>de</strong>s, acaso e leis físicas que se aplicam nageneralida<strong>de</strong> da realida<strong>de</strong> por nós percebida, faz com que osofrimento seja menos central no seu pensamento:The indifferentist laughs as much at irresponsible calamity-howlersand temperamental melancholiacs as hedoes at smirking i<strong>de</strong>alists and unctuous woodrowilsonians.For example – nothing makes me more amusedthan the hypersensitive people who consi<strong>de</strong>r life as essentiallyan agony instead of merely a cursed bore, punctuatedby occasional agony and still rarer pleasure. Lifeis rather <strong>de</strong>pressing because pain and ennui outweighpleasure; but the pleasure exists, none the less, and canbe enjoyed now and then while it lasts. And too – manycan build up a crustacean insensitiveness against thesubtler forms of pain, so that many lucky individualshave their pain-quota measurably reduced. Uniform melancholyis as illogical as uniform cheer (I<strong>de</strong>m: 230-231).Não seria possível terminar este breve capítulo referenteao existencialismo e à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar os seuspontos <strong>de</strong> contacto na obra lovecraftiana, sem falarmos<strong>de</strong> um dos seus expoentes, o filósofo que assumiu inteiramenteo termo “existencialismo”, marcando toda uma geraçãono século XX.Trata-se do filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre,nome que nos dispensa <strong>de</strong> referências ao seu percurso <strong>de</strong>vida. Diremos, contudo, que Lovecraft e Sartre nunca se


terão cruzado, biográfica ou literariamente, apesar da avi<strong>de</strong>ze amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura que Sartre possuía. Não obstante essefacto, o conjunto <strong>de</strong> relações possíveis <strong>de</strong> estabelecer entre opensamento <strong>de</strong> Sartre e a escrita <strong>de</strong> Lovecraft afigura-se-nossuficiente para tentarmos estabelecer algumas ligações entreuma linha <strong>de</strong> pensamento filosófico fundamental e emblemáticado século XX, particularmente para as geraçõesher<strong>de</strong>iras da 1ª e 2ª Guerras Mundiais e para <strong>de</strong>termina<strong>das</strong>concepções professa<strong>das</strong> pelo escritor americano.As mesmas po<strong>de</strong>rão ser consi<strong>de</strong>ra<strong>das</strong> sintomáticas <strong>de</strong>uma era que fez coincidir <strong>de</strong> maneira aguda o <strong>de</strong>scréditona religião, os avanços na Ciência e os dois maiores conflitosbélicos na história da Humanida<strong>de</strong>. Tudo isto justificaa propensão para perceber a vida como algo <strong>de</strong> profundamenteabsurdo. O existencialismo, consolidado por Sartre,acaba, <strong>de</strong> facto, por constituir uma corrente filosófica profundamenteligada a um clima cultural que se caracterizavapela negação <strong>de</strong> qualquer optimismo ainda oriundo do Iluminismoe da sua fé nos valores absolutos da Razão. Haviaaté então uma fé mais generalizada num princípio infinitoque regeria o Mundo e o próprio Homem, garantindo umprogresso e sucesso infalíveis da nossa civilização. O próprioMundo era, assim por dizer, posto à nossa disposiçãopara que livre, e irresponsavelmente, nos servíssemos <strong>de</strong>le.Essas noções não sobreviveriam às convulsões do séculoXX, esmaga<strong>das</strong> na brutalida<strong>de</strong> dos bombar<strong>de</strong>amentos eenterra<strong>das</strong> na lama <strong>das</strong> trincheiras da 1ª Gran<strong>de</strong> Guerra.Como temos vindo a verificar ao longo <strong>de</strong>ste capítulo, oexistencialismo apoia-se em gran<strong>de</strong> medida na consi<strong>de</strong>raçãodo Homem como um ser finito, uma criatura limitadanas suas capacida<strong>de</strong>s, e lançado para um mundo indiferentee até hostil.O Homem, assim sozinho, terá <strong>de</strong>, contra to<strong>das</strong> as probabilida<strong>de</strong>s,tentar manter uma luta incessante em situações,que, não obstante todo o seu empenho, po<strong>de</strong>rão levá-lo aofracasso. Nem só em Lovecraft, que pareceu antecipar futurassensibilida<strong>de</strong>s existencialistas <strong>de</strong> percepcionar o mundo,po<strong>de</strong>mos pressentir hipóteses <strong>de</strong> ligação ao existencialismo.É conhecido o vasto número <strong>de</strong> obras literárias, on<strong>de</strong> resultamevi<strong>de</strong>ntes temas ligados a esta corrente filosófica.Na lista dos seus autores figuram nomes <strong>de</strong> primeira instância,como Dostoievsky, Camus ou Kafka, entre outros,que sempre <strong>de</strong>ram atenção a temáticas on<strong>de</strong> a expressão dacondição humana ficou profundamente gravada.De entre os vários temas recorrentes nessas obras,<strong>de</strong>stacam-se: a liberda<strong>de</strong> e a sua perda; a responsabilida<strong>de</strong>do Homem pelas suas acções; a <strong>de</strong>sumanização através dainsignificância e da banalida<strong>de</strong> quotidiana; uma existênciaameaçada permanentemente sob o peso <strong>de</strong> uma con<strong>de</strong>naçãoiminente e <strong>de</strong> uma ameaça incerta e <strong>de</strong>sconhecida, emborainevitável.Descrito <strong>de</strong>sta forma, são bastante evi<strong>de</strong>ntes as semelhançascom o terror cósmico lovecraftiano, embora nocaso particular <strong>de</strong> Kafka essa ominosida<strong>de</strong> se abata <strong>de</strong> umaforma mais evi<strong>de</strong>nte sobre o indivíduo e seja expressa através<strong>de</strong> uma forma literária menos directamente conotadacom o género gótico.O tema da ambiguida<strong>de</strong> do Bem e do Mal, tão presenteem Lovecraft, está, igualmente, presente em obrasexistencialistas, <strong>das</strong> quais Pour Une Morale <strong>de</strong> L’Ambiguité(1947) <strong>de</strong> Simone <strong>de</strong> Beauvoir constitui um exemplo. To<strong>das</strong>estas temáticas seriam ainda mais aprofunda<strong>das</strong> após a2ª Gran<strong>de</strong> Guerra (a qual Lovecraft felizmente não chegariaa conhecer). Após este conflito, o existencialismo viriaa constituir um fenómeno heterogéneo <strong>de</strong> protesto contraos valores tradicionais da socieda<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>remos, com efeito,chamar-lhe um “fenómeno heterogéneo” na medida emque sob o mesmo nome cresceram diversas correntes quedivergiram umas <strong>das</strong> outras, embora mediante o esforço <strong>de</strong>Sartre, se tenha procedido a uma reconstrução filosófica e auma revisão dos instrumentos conceptuais.Em relação às correntes divergentes, a obra História daFilosofi a <strong>de</strong> Nicola Abbagnano refere o seguinte:O existencialismo <strong>de</strong>senvolveu-se como uma metafísicaontológica, por um lado, como espiritualismoradical, por outro, e ainda como forma <strong>de</strong> empirismoigualmente radical para o qual a experiência, entendidacomo existência, per<strong>de</strong>u o seu carácter <strong>de</strong> inclusivida<strong>de</strong>total e se transformou em abertura para o Mundo.Em algumas <strong>de</strong>stas tendências po<strong>de</strong>-se encontrar, maisou menos total, a uma situação pré-existencialista e auma recuperação <strong>de</strong> teses românticas. Noutras po<strong>de</strong>-senotar a evolução para uma filosofia que projecta, semoptimismo e sem <strong>de</strong>sespero, uma forma mais racionalda existência humana (Abbagnano 2001: 47-48).Po<strong>de</strong>remos dizer que, no caso <strong>de</strong> Lovecraft, a sua obra eo seu próprio pensamento se inclinam fortemente paraesta última perspectiva. Na sua obra, perante acontecimentosque os protagonistas são incapazes <strong>de</strong> controlar,ou em que as suas possibilida<strong>de</strong>s são limita<strong>das</strong>, o optimismonão tem lugar, ao mesmo tempo que po<strong>de</strong>mos assistira uma aceitação <strong>das</strong> limitações humanas face a acontecimentose entida<strong>de</strong>s que nos ultrapassam largamente, possibilitando,apesar <strong>de</strong> tudo, a capacida<strong>de</strong> para continuar aviver, embora esvaziados <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte <strong>das</strong> certezas easpirações erradamente fomenta<strong>das</strong>.Voltando um pouco atrás, mais concretamente à citação<strong>de</strong> Lovecraft, na qual este refere a importância doscostumes e tradições e no modo como estes se relacionamcom os seus conceitos <strong>de</strong> estética, po<strong>de</strong>remos afirmarque, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Sartre, ao aceitar o valorda tradição, Lovecraft estaria a incorrer naquilo a que ofilósofo chama um processo <strong>de</strong> “má-fé”, <strong>de</strong>ixando que amesma limitasse, <strong>de</strong> alguma forma, to<strong>das</strong> as possibilida<strong>de</strong>sque se lhe apresentam. Parece haver aqui uma aparentecontradição entre a concepção cosmológica <strong>de</strong> Lovecraft,a qual <strong>de</strong>spe a vida humana <strong>de</strong> qualquer significado, retirandoo Homem <strong>de</strong> qualquer lugar central face ao Universo,e entre o valor que confere à tradição e aos costumes.Para Sartre, todos os actos e acções, incluindo tradições ecostumes, <strong>de</strong>têm o mesmo valor, são equivalentes. Não háum valor intrínseco numa acção em particular que a leve aser melhor ou pior. A valorização é feita através da escolhado indivíduo, que ao efectuar a escolha irá valorizá-la.Por “má-fé” po<strong>de</strong>remos igualmente enten<strong>de</strong>r o abraçar<strong>de</strong> uma religião ou a fé na Ciência como forma <strong>de</strong> confe-60 61rir sentido à vida. Sartre afirma em O Existencialismo é umHumanismo:O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente.Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menosum ser no qual a existência prece<strong>de</strong> a essência, umser que existe antes <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ser <strong>de</strong>finido por qualquerconceito, e que este ser é o homem ou, como diz Hei<strong>de</strong>gger,a realida<strong>de</strong> humana. Que significará aqui o dizer-seque a existência prece<strong>de</strong> a essência? Significa queo homem primeiramente existe, se <strong>de</strong>scobre, surge nomundo; e que só <strong>de</strong>pois se <strong>de</strong>fine. O homem, tal comoo concebe o existencialista, se não é <strong>de</strong>finível, é porqueprimeiramente não é nada. Só <strong>de</strong>pois será alguma coisae tal como a si próprio se fizer. Assim, não há naturezahumana, visto que não há Deus para a conceber. O homemnão é apenas como ele se concebe, mas como elequer que seja, como ele se concebe <strong>de</strong>pois da existência,como ele se <strong>de</strong>seja após este impulso para a existência; ohomem não é mais que o que ele se faz (Sartre 1962:182).Lovecraft achava a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> religião ridícula, mas olhavapara a Ciência como uma forma muito mais plausível <strong>de</strong>explicar a nossa existência. Perante as quase ilimita<strong>das</strong> e,por isso, assustadoras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escolha nas nossasvi<strong>das</strong>, Sartre <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que <strong>de</strong>vemos ter uma visão clara esermos conscientes ao fazê-las, aceitando <strong>de</strong>pois o que daíresultar. Nos contos <strong>de</strong> Lovecraft, os protagonistas muitasvezes confrontam-se com situações em que as possibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> escolha não são assim tão gran<strong>de</strong>s, constituindo umaforma <strong>de</strong> sublinhar a insignificância e impotência humana,mas existem escolhas que ainda po<strong>de</strong>m ser feitas, assemelhando-seàs reduzi<strong>das</strong> alternativas que um prisioneiro oualguém com uma doença grave tem.Apesar da limitação <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> escolhas,os protagonistas <strong>das</strong> obras do escritor norte-americanoresignam-se às consequências resultantes <strong>das</strong> suas escolhas,<strong>de</strong>monstrando nesse estoicismo uma certa autenticida<strong>de</strong>.Esta atitu<strong>de</strong>, na literatura, faz eco com o próprio percurso<strong>de</strong> vida <strong>de</strong> Lovecraft. As suas personagens são, em gran<strong>de</strong>medida, similares às personagens <strong>das</strong> obras <strong>de</strong> Sartre. Nestas,um assassino, como no conto “Erostratus”, compiladoem Le Mur (1939), ou um simples historiador como emLa Nausée (1938), por exemplo, são muitas vezes representa<strong>das</strong>como heróis trágicos apanhados numa situaçãoda qual não sabem como escapar. As mesmas percebem oque está a acontecer e são responsáveis pelas suas acções,mas sentem-se sem alternativas, sem outro caminho senãoaquele que estão a trilhar. Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> notaras semelhanças evi<strong>de</strong>ntes com os dilemas e circunstânciascolocados às personagens da ficção gótica. Nos seus percursosas personagens conseguem algo que po<strong>de</strong>ríamos, <strong>de</strong>certa forma, consi<strong>de</strong>rar existencialista, o confronto com aautenticida<strong>de</strong> resultante do “rasgar <strong>de</strong> véus”, o contactocom a verda<strong>de</strong>ira realida<strong>de</strong>, com a verda<strong>de</strong>ira dimensão <strong>das</strong>suas existências, libertados e, por isso aterrorizados, pelaconsciência <strong>das</strong> ilusões quotidianas com as quais prosseguiriamuma existência banal.Concluiremos este capítulo com a convicção <strong>de</strong> queexiste uma verda<strong>de</strong>ira dimensão existencialista na obra lovecraftiana,não havendo por parte do autor uma tentativa <strong>de</strong>escamotear a dimensão trágica da existência, nem preten<strong>de</strong>ndoadocicá-la através da convicção <strong>de</strong> uma qualquer centralida<strong>de</strong>da existência humana. Lovecraft toma como missãoa incorporação <strong>de</strong>stes princípios na sua ficção, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndomesmo uma primazia <strong>de</strong>stes na “weird fiction”. O escritoramericano dá conta, <strong>de</strong> uma forma resumida, <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>ssesprincípios fundamentais numa carta pessoal ao primeiroeditor da Weird Tales, Edwin Baird, criticando a convencionalida<strong>de</strong>da maior parte dos autores <strong>de</strong>dicados ao Gótico:Popular authors do not and apparently cannot appreciatethe fact that true art is obtainable only byrejecting normality and conventionality in toto, andapproaching a theme purged utterly of any usual orpreconceived point of view. (…) Good and evil, teleologicalillusion, sugary sentiment, anthropocentricpsychology – the usual superficial stock in tra<strong>de</strong>,and all shot through with the eternal and inescapablecommonplace. Take a werewolf story, for instance –who ever wrote a story from the point of view ofthe wolf, and sympathising strongly with the <strong>de</strong>vil towhom he has sold himself? Who ever wrote a storyfrom the point of view that man is a blemish on thecosmos, who ought to be eradicated? (Lovecraft, ed.Joshi 2000b: 121).Assumindo uma posição ainda mais extrema do que emoutras ocasiões, Lovecraft <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> em relaçãoao escritor <strong>de</strong> “weird fiction”, que se assemelha aalgumas posições contemporâneas perante a vida, capazes<strong>de</strong> serem traça<strong>das</strong> até uma visão existencialista da mesma:Only a cynic can create horror – for behind every masterpieceof the sort must resi<strong>de</strong> a driving daemonic forcethat <strong>de</strong>spises the human race and its illusions, andlongs to pull them to pieces and mock them (i<strong>de</strong>m:122). BANG!José Carlos Gil nasceu em 1975 na República Fe<strong>de</strong>ralda Alemanha. Des<strong>de</strong> os seis anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> que viveno Baixo Alentejo e há onze que exerce a profi ssão <strong>de</strong>professor <strong>de</strong> 3º ciclo e secundário.Terminou recentemente o Curso <strong>de</strong> Mestrado em CriaçõesLiterárias Contemporâneas variante <strong>de</strong> Literatura Norte –Americana Contemporânea.


livros MíticosQuando arranjo dinheiro compro livros.Se me sobra algum, compro comida.ERASMO DE ROTERDÃOSe há mistério que exerça um fascínio irresistível é o<strong>de</strong> existirem livros, tremenda invenção, para não dizeralucinação, <strong>de</strong> um improvável antepassado nosso quemercê <strong>de</strong> algum nebuloso trauma criou esse eficacíssimomeio <strong>de</strong> subverter a memória. Ou pelo menos <strong>de</strong>formá-laao ponto <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> assumir outros nomes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> investigaçãohistórica a fi cções, passando por ensaio científi co e por outras tantasfórmulas tão astuciosas quão sugestivamente enganadoras.Mistério maior que aquele, porém, é o <strong>de</strong> existirem livrosque não existem, e chegado a este ponto importa advertir-vosque o título supra, «livros míticos», talvez não transmita comjusteza o que pretendo aqui alinhavar. Essa expressão sugerereferência a mitos, ou então a livros que se tornaram «míticos»por esta ou aquela razão, mas eu estimaria ir um poucomais longe: alguns dos livros <strong>de</strong> que vou falar-vos não existem<strong>de</strong> todo em todo, outros existem mas são misteriosos ein<strong>de</strong>cifráveis, outros ainda… mas não antecipemos.Página do Necronomicon, com apropria<strong>das</strong>manchas <strong>de</strong> sangue…oua biblioteca(q uase)invisívelPor antónio <strong>de</strong> macedoA tentação <strong>de</strong> inventar livros que não existem é <strong>de</strong> todosos tempos, citemos ao acaso alguns dos milhentos autoresque se divertiram a inventar livros fictícios, H. P. Lovecrafte o seu intolerável e citadíssimo Necronomicon, Umberto Ecoque em O Nome da Rosa (1980) «<strong>de</strong>scobriu» o perdido segundovolume da Poética <strong>de</strong> Aristóteles, George MacDonald,Nelson S. Bond, Fritz Leiber, Kate Atkinson, Poul An<strong>de</strong>rson,Kenneth Bulmer, Michael En<strong>de</strong>, James Branch Cabell,Neil Gaiman, Terry Pratchett, Caitlin R. Kiernan, Tom DeHaven, Joanne K. Rowling… enfim, um nunca mais acabar<strong>de</strong> autores que criaram livros quiméricos com citações, comíndices, com resumos dos conteúdos, com pormenores <strong>de</strong>edição, e até, como Jorge Luis Borges, mestre exímio <strong>de</strong>ssastropelias, misturando referências <strong>de</strong> livros verda<strong>de</strong>iros comlivros imaginários para ser maior a in<strong>de</strong>strinça entre o real e ovirtual — <strong>de</strong> Borges, então, <strong>de</strong>ixam-me perfeitamente magnetizado<strong>de</strong>lírios como La Biblioteca <strong>de</strong> Babel, El libro <strong>de</strong> arena,Examen <strong>de</strong> la obra <strong>de</strong> Herbert Quain, Del libro <strong>de</strong> las 1001 noches,Tlön, Uqbar, Orbis tertius, El acercamiento a Almotásim, PierreMenard autor <strong>de</strong>l Quijote, etc., etc., e não posso seguir adiantesem citar os alucinatórios volumes da Biblioteca (2002) <strong>de</strong>Zoran Zivkovic, e até filmes contendo livros ora maliciososora imprevisíveis (nalguns casos, mesmo, con<strong>de</strong>náveis),como os livros perigosamente comportamentais d’A FamíliaAddams (The Addams Family, 1991) <strong>de</strong> Barry Sonnenfeld, ouos supermágicos Livros <strong>de</strong> Próspero (Prospero’s Books, 1991) <strong>de</strong>Peter Greenaway, ou ainda os tantíssimos volumes satânicosque povoam o universo audiovisual, como o diabólico livroseiscentista d’A Nona Porta (The Ninth Gate, 1999) <strong>de</strong> RomanPolanski, inspirado no recomplexo romance El club Dumas(1993) <strong>de</strong> Arturo Pérez-Reverte.Já agora terei <strong>de</strong> confessar, contrito, o in<strong>de</strong>coroso pecado<strong>de</strong> eu mesmo, com os meus mo<strong>de</strong>stos recursos, tãopoucoter sido imune à lúgubre tentação <strong>de</strong> inventar livros<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> livros, neste caso <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> algumas <strong>das</strong> minhasficções, e com bibliotecas e tudo — uma <strong>de</strong>las, <strong>de</strong> dimensõespouco mais ou menos infinitas, até ostentava a impenetráveltabuleta B.D.T.L.Q.N.E. (isto é, Biblioteca DeTodos os Livros Que Não Existem, mirífica biblioteca queseria o áureo sonho <strong>de</strong> qualquer bibliómano), e que precipitadamenteme limitei a compartimentar em duas secções:(1) A secção dos livros que não existem porque foram<strong>de</strong>struídos (por exemplo, os 700.000 manuscritos da famosabiblioteca <strong>de</strong> Alexandria — e que aparecem, comomilhões <strong>de</strong> outros, miraculosamente recuperados na talB.D.T.L.Q.N.E.);(2) A secção dos livros que não existem porque nuncachegaram a ser escritos.Escusado será dizer que esta última contém os livrosmais geniais <strong>de</strong> sempre. Mas faltava — pelo menos! — umaterceira secção, que na minha precipitação, para não dizeringenuida<strong>de</strong>, não me ocorreu contemplar. Descobri-o maistar<strong>de</strong> num encontro casual com a escritora Rita Ferro, por62 63ocasião do lançamento do livro <strong>de</strong> um amigo comum. Nofinal, por altura do beberete próprio <strong>de</strong>sses eventos, e enquantocavaqueávamos num pequeno grupo <strong>de</strong> outros literatosnossos conhecidos, a conversa resvalou naturalmentepara o escritor e pensador António Quadros, pai <strong>de</strong> Rita emeu amigo <strong>de</strong> longa data (que me lembre, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1957), e quetinha morrido algum tempo antes, em 1993. Aproveitei paramanifestar a minha pena pelo facto <strong>de</strong> António Quadros nãoter chegado a escrever e publicar o terceiro volume da suaobra Portugal Razão e Mistério, cujos dois primeiros tomos,abordando o Portugal Arquétipo, passando pelo País Templário,até ao Projecto Áureo ou Império do Espírito Santo,tinham saído <strong>de</strong> rajada em 1986 e 1987, enquanto o terceiro,que prometia tratar <strong>de</strong> coisas tão palpitantes como o Mito doV Império, a <strong>Dia</strong>léctica da Portugalida<strong>de</strong> ou ainda o enigmado Portugal Encoberto, tardava em vir a lume. Por mais <strong>de</strong>uma vez perguntei a António Quadros: quando tencionavapublicar o ansiosamente aguardado terceiro volume? — masele sempre se mostrou evasivo até que a inesperada morteem 1993 frustrou to<strong>das</strong> as expectativas. Quando a conversaaqui chegou, Rita Ferro <strong>de</strong>cidiu confi<strong>de</strong>nciar-nos o seguinte:também ela, em diversas ocasiões, perguntara ao pai pelomisterioso terceiro volume — estranha <strong>de</strong>mora, porque entretantoele não <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> publicar outros livros —, ao quefinalmente ele respon<strong>de</strong>u, quase em segredo:— Minha filha, nunca ouviste falar em livros que nãoquerem ser escritos? Este é um <strong>de</strong>les.Foi então que percebi qual era a secção que faltava naminha imaginária biblioteca:(3) A secção dos livros que não existem porque nãoquerem ser escritos.Aterradora perspectiva! Os livros pregam-nos cada partida…O astuto Umberto Eco já havia chamado a atençãopara o pormenor inquietante <strong>de</strong> os livros comunicarem misteriosamenteuns com os outros, «os livros falam sempre<strong>de</strong> outros livros, e qualquer história conta uma história jácontada». 1 Mas mais esquisito do que os livros dialogarementre si, sussurrando sem <strong>de</strong>scanso no silêncio <strong>das</strong> prateleiras<strong>das</strong> bibliotecas e citando-se reciprocamente ad infi nitum,como em to<strong>das</strong> as obras eruditas com abundantíssimas notas<strong>de</strong> rodapé remetendo dialogalmente para outras tantasobras, é o facto <strong>de</strong> haver livros com vonta<strong>de</strong> própria quechegam ao <strong>de</strong>scaramento <strong>de</strong> não existirem por não quereremser escritos…Quanto a mim, porém, mais grave que tudo isto é acircunstância <strong>de</strong> haver livros que existem mas não queremser lidos!!!Comecemos por referir um exemplo que veio a lumeno séc. XIX. O príncipe húngaro Gusztáv Batthyány (1803-1883) emigrou muito jovem para Inglaterra on<strong>de</strong> se tornouum conhecido criador e treinador <strong>de</strong> cavalos, tendo conseguidoque alguns dos seus exemplares fossem campiõesna Grã-Bretanha e na Irlanda durante vários anos seguidos.Entretanto, e em paralelo, Batthyány manteve na Hungriauma activa participação política no movimento nacionalMagiar, chegando a ser membro do Ministério HúngaroConstitucional <strong>de</strong> 1848. Antes disso, porém, em 1838, já haviaoferecido à Aca<strong>de</strong>mia Húngara <strong>de</strong> Ciências a sua preciosabiblioteca pessoal, completa, que se conservava na cida<strong>de</strong>(então) húngara <strong>de</strong> Rohonczi, e que actualmente faz parteda Áustria com o nome Rechnitz.1Umberto Eco, Porquê «O Nome da Rosa»? [Postile a «Il Nome <strong>de</strong>lla Rosa»,1984], Lisboa: Difel, 1984; pp. 20-21.E aqui começam os sarilhos! É que entre as preciosida<strong>de</strong>sbibliófilas da livraria <strong>de</strong> Batthyány encontrava-se um<strong>de</strong>nso códice <strong>de</strong> 448 páginas manuscritas em formato aproximado<strong>de</strong> 12cm x 10cm, <strong>de</strong> proveniência <strong>de</strong>sconhecida,que ficou catalogado com a cota K 114 sob o nome Co<strong>de</strong>xRohonczi — ignora-se o seu verda<strong>de</strong>iro nome, que talveznunca venha a ser revelado, e, pior!, to<strong>das</strong> as 448 páginas, exceptoas que apenas contêm misteriosos pictogramas (cerca<strong>de</strong> 87), estão grafa<strong>das</strong> num alfabeto <strong>de</strong>sconhecido e numalíngua ainda mais <strong>de</strong>sconhecida, escrita da direita para a esquerdacomo o árabe ou o hebraico, alfabeto e língua quetêm <strong>de</strong>safiado os cérebros mais científicos, mais argutos emais treinados em <strong>de</strong>scodificar cifras e códigos impenetráveis.Des<strong>de</strong> 1840 até finais do séc. XIX diversos especialistasestudaram o códice, os eruditos húngaros Ferenc Toldy ePál Hunfalvy, o paleógrafo austríaco Dr. Mahl, os professoresJosef Jirecek e Konstantin Jirecek da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Praga, o investigador alemão Bernhard Jülg da Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Innsbruck, e outros… Todos eles esquadrinharam o códicesem chegar a nenhuma conclusão.Co<strong>de</strong>x Rohonczi: págs. 51 e 51-A, com umapresumível imagem <strong>de</strong> Cristo crucifi cadoCo<strong>de</strong>x Rohonczi: págs. 99 e 99-A.A partir <strong>de</strong> princípios do séc. XX os académicos e peritoshúngaros assentaram, como hipótese mais provável, quese trataria <strong>de</strong> uma frau<strong>de</strong> forjada por um antiquário oriundoda Transilvânia (não andará por aqui a garra vampírica <strong>de</strong>Drácula?), Sámuel L. Nemes (1796-1842), conhecido autor<strong>de</strong> famigera<strong>das</strong> falsificações <strong>de</strong> manuscritos e livros rarosque chegaram a enganar os mais reputados especialistas daépoca. Nos anos ’70 do séc. XX ainda havia autores queadmitiam tal possibilida<strong>de</strong>, mas outros indícios vieram contrariaressa conclusão cómoda: o estudo pericial do papelapontou para um tipo <strong>de</strong> papel <strong>de</strong> fabrico veneziano do séc.XVI, conquanto possa ser cópia <strong>de</strong> um original mais antigo,


talvez do séc. XI ou XII, além <strong>de</strong> que o exame dos caracteresparece sugerir uma antiga variante do alfabeto dácionuma escrita semelhante ao proto-romeno.Nos anos ’90 os estudiosos Ottó Gyürk e Miklós Locsmándyempenharam-se em intensas pesquisas com basenuma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dados estatísticos e análisescomputoriza<strong>das</strong> do texto, concluindo (inconclusivamente)que, por um lado, a língua não é aparentada ao húngaro,e por outro, que não se trata <strong>de</strong> uma frau<strong>de</strong> em face <strong>das</strong>típicas regularida<strong>de</strong>s próprias <strong>de</strong> uma linguagem articulada.Quem souber húngaro, queira ter a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consultar olivro que Locsmándy publicou em 2005, A Rohonci Kó<strong>de</strong>x: egyrejtélyes középkori írás megfejtési kísérlete. (Parece que a traduçãodisto é: «O Códice Rohonczi: uma tentativa para <strong>de</strong>cifrarum misterioso manuscrito medieval». Como não sei húngaro,ficarei comovidamente penhorado ao caridoso leitor queme resuma o que lá se contém).De permeio com tudo isto, e após mais umas rocambolescasperipécias eruditas, uma universitária romena, VioricaEnâchiuc, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1982 se <strong>de</strong>dicara a estudar o códice,<strong>de</strong>clarou que conseguira finalmente traduzi-lo e publicouessa sua tradução em 2002, realçando as semelhanças entrecertos grafismos do manuscrito e os grafismos utilizadospelos Dácios e por uma cultura que floresceu em torno doDanúbio por volta <strong>de</strong> 1500 a.C. Nem todos porém se <strong>de</strong>ixaramconvencer e a polémica que já vinha <strong>de</strong> trás recru<strong>de</strong>sceu,pois se há eruditos que apoiam a tradução <strong>de</strong> Vioricacomo o professor N. Sâvescu, director da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Arqueologia, outros não menos qualificados consi<strong>de</strong>ram atradução falsa, observando que nada permite associar os caracteresdo Co<strong>de</strong>x Rohonczi a qualquer alfabeto conhecido,mesmo a antigos alfabetos entretanto <strong>de</strong>saparecidos, chegandoao ponto <strong>de</strong> afirmar que se trata <strong>de</strong> uma escrita aleatória<strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> qualquer significado, enquanto outros,ainda, vão mais longe e julgam <strong>de</strong>tectar todos os traços <strong>de</strong>uma escrita automática mediúmnica…E ainda há quem se queixe <strong>das</strong> inofensivas invençõesda FC&F!E enquanto ficamos nisto, aguardando que algum génioem criptologia nos dê enfim a ler este livro que existe masnão quer ser lido, saltemos para um outro talvez ainda maisinquietante do que o Co<strong>de</strong>x Rohonczi — estou a referir-mea um dos mais <strong>de</strong>batidos e investigados «livros malditos»<strong>de</strong> sempre: o Manuscrito Voynich, documento que <strong>de</strong>ve o seunome ao antiquário e bibliófilo Wilfrid M. Voynich (1865-1930), um anglo-americano <strong>de</strong> origem polaca que o adquiriuem 1912.A história <strong>de</strong>ste livro misterioso (mais um dos tais quenão querem ser lidos, nem a tiro <strong>de</strong> bazuka!) tem sido contadae recontada muitas vezes, com imprevistas variantes,e quem estiver interessado po<strong>de</strong> entreter-se a folhear osseguintes compêndios on<strong>de</strong> o apetite do ávido leitor po<strong>de</strong>ráser (quase) satisfeito: Robert S. Brumbaugh, The MostMysterious Manuscript: The Voynich ‘Roger Bacon’ Cipher Manuscript(1978); Leo Levitov, Solution of the Voynich Manuscript(1987); Gerry Kennedy & Rob Churchill, The Voynich Manuscript:The Mysterious Co<strong>de</strong> That Has Defi ed Interpretation forCenturies (2005); Nick Pelling, The Curse of the Voynich: TheSecret History of the World’s Most Mysterious Manuscript (2006);Lawrence Goldstone & Nancy Goldstone, The Friar and theCipher: Roger Bacon and the Unsolved Mystery of the Most UnusualManuscript in the World (2006); etc., etc. 2Diga-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, e para evitar suspenses <strong>de</strong>snecessários,que após inúmeras investigações <strong>de</strong> reputados especialistas olivro permanece um mistério e ainda hoje se ignora quem teriasido o seu autor, qual o tipo <strong>de</strong> escrita e em que linguagemestará redigido. Actualmente o volume encontra-se <strong>de</strong>positadocom a cota MS 408 na Beinecke Rare Book and ManuscriptLibrary, da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Yale (New Haven, EUA),a maior biblioteca do mundo especializada na conservaçãoe preservação <strong>de</strong> rarida<strong>de</strong>s bibliográficas. É um livro <strong>de</strong> 234páginas com o formato aproximado <strong>de</strong> 23cm x 15cm, semcapa, escrito com uma pena <strong>de</strong> ganso sobre «velino», ou seja,pergaminho virgem <strong>de</strong> alta qualida<strong>de</strong> obtido a partir da pele<strong>de</strong> vitelos mortos no ventre materno. Faltam-lhe 42 páginas,que não se sabe quando se per<strong>de</strong>ram. Devido a alguns aspectosobscuros que ro<strong>de</strong>iam as circunstâncias do seu (ainda)inexplicável aparecimento e do seu percurso, com contornosque prenunciam a suculenta teoria da conspiração, aqui <strong>de</strong>ixoao curioso leitor algumas (magras) pistas.Manuscrito Voynich: exemplo <strong>de</strong> umapágina com escrita <strong>de</strong>sconhecida.2Até há pouco tempo, estes e outros títulos congéneres podiam ser encontrados naAmazon.com.64 65Manuscrito Voynich: folio 75-retro.Secção biológica: nesta secção são abundantesas ilustrações <strong>de</strong> mulheres nuas banhando-se.O prof. <strong>de</strong> Matemática e <strong>de</strong> Informática Gordon Rugg(Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Keel, Inglaterra), num artigo publicadoem 2004, após <strong>de</strong>screver exaustivamente os métodos utilizadospara <strong>de</strong>cifrar o documento, adianta os seguintes esclarecimentos:«Uma análise estatística do texto revela uma gran<strong>de</strong> regularida<strong>de</strong>.As palavras mais utiliza<strong>das</strong> aparecem com frequênciamais <strong>de</strong> uma vez numa linha, e o texto apresentauma percentagem <strong>de</strong> repetições que não tem equivalenteem nenhuma língua conhecida. Por outro lado o “voynich” 3contém pouquíssimas frases em que mais <strong>de</strong> três palavrasdiferentes apareçam juntas. Estas características tornamduvidoso que o “voynich” seja uma linguagem humana: é<strong>de</strong>masiado diferente <strong>de</strong> to<strong>das</strong> as outras línguas. Outra possibilida<strong>de</strong>é consi<strong>de</strong>rar que o manuscrito não passa <strong>de</strong> umludíbrio e <strong>de</strong> uma frau<strong>de</strong>, ou da elucubração <strong>de</strong> algum alucinadoerudito. Mas a sua complexida<strong>de</strong> linguística parececontrariar esta última teoria. […] O Manuscrito Voynich nãoparece ser um texto em código, nem uma linguagem <strong>de</strong>sconhecida,nem uma produção aleatória. Então, o que é? Parasair <strong>de</strong>ste impasse, a minha colega Joanne Hy<strong>de</strong> e eu próprioreexaminámos to<strong>das</strong> as pistas. A conclusão <strong>de</strong> que as característicasdo “voynich” são incompatíveis com qualquerlinguagem humana baseia-se numa peritagem pertinente esólida. A impotência dos melhores criptoanalistas peranteo texto torna pouco provável a existência duma mensagemoculta. Resta a hipótese da mistificação, rejeitada pela maiorparte dos estudiosos por consi<strong>de</strong>rarem que o ManuscritoVoynich é <strong>de</strong>masiadamente complexo para ser falso». 43“Voynich”: nome convencionalmente atribuído à suposta língua em que teria sidoredigido o documento.4Gordon Rugg, “The Voynich Manuscript: An Elegant Hoax?” in: Cryptologia, vol.28, n.º 1, Jan. 2004.Pormenor <strong>de</strong> uma amostra da escritado Manuscrito Voynich.Outros investigadores, invocando a Lei <strong>de</strong> Zipf 5 e observandoque o texto está <strong>de</strong> acordo com esta lei, concluemque se trata <strong>de</strong> uma linguagem concreta (humana ou nãohumana),uma vez que seria pouco plausível que um falsificadordo séc. XV ou XVI 6 conhecesse uma lei da linguísticaque só seria formulada vários séculos <strong>de</strong>pois.Em suma, e quanto a mim, não hesito: se não é linguagemhumana, ou é trapaça ou <strong>de</strong> proveniência extraterrestre.Obviamente prefiro esta última alternativa, que melhorse encaixa nos acarinháveis <strong>de</strong>vaneios da FC&F!Apesar <strong>de</strong> os diversos relatos serem por vezes discordantes,tentemos traçar um pouco da retro-história do manuscrito.A actual proprietária, a Beinecke Rare Book andManuscript Library, obteve-o por oferta graciosa <strong>de</strong> HansP. Kraus (1907-1988), um conhecido comerciante <strong>de</strong> livrosraros que <strong>de</strong>cidiu doá-lo à Beinecke em 1969 porque nãohavia maneira <strong>de</strong> conseguir vendê-lo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1961, quandoo adquirira a uma amiga da viúva <strong>de</strong> Wilfrid Voynich. Este,que falecera em 1930, legara os seus bens à esposa, EthelLilian Voynich, que ao falecer por sua vez em 1960 <strong>de</strong>ixara omanuscrito à sua amiga íntima Anne Nill — a qual o ven<strong>de</strong>uem 1961, como dissemos, ao livreiro Hans P. Kraus. Voynich,por sua vez, comprara o manuscrito em 1912 ao ColégioRomano, que mantinha no palácio <strong>de</strong> Villa Mondragone,perto <strong>de</strong> Roma, a biblioteca pessoal <strong>de</strong> um antigo Superior-Geral da Companhia <strong>de</strong> Jesus, o Reverendo Peter Jan Beckx(1795-1887). Os 200 anos anteriores a esta posse são confusose cheios <strong>de</strong> lapsos, sabe-se que o sábio jesuíta AthanasiusKircher (1601-1680), orientalista e grafólogo, terá tidoo Manuscrito Voynich na sua posse <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1666, sabendo-seigualmente, por umas cartas encontra<strong>das</strong>, que antes dissoo manuscrito fora comprado por Rudolfo II <strong>de</strong> Habsburgo(1552-1612), imperador do Sacro Império e rei da Boémiae da Hungria, que pagou por ele a quantia <strong>de</strong> 600 ducados<strong>de</strong> ouro convencido que o autor do manuscrito seria RogerBacon (1214-1294). Finalmente, parece haver dois candidatosao título <strong>de</strong> proprietário mais antigo do manuscrito: oalquimista Georg Baresch, que vivia em Praga no séc. XVII,e o misterioso sábio isabelino John Dee (1527-1609).O prof. Gordon Rugg, que citei mais atrás, perfilha estaúltima hipótese, com a qual me inclino a concordar. Se havia5Lei <strong>de</strong> Zipf: — Em to<strong>das</strong> as línguas conheci<strong>das</strong> o comprimento <strong>das</strong> palavras éinversamente proporcional à sua frequência <strong>de</strong> aparecimento, ou seja, quanto maisvezes aparece uma palavra num idioma, mais curta é6O máximo que se conseguiu apurar, pericialmente, é que o documento Voynichteria sido escrito entre 1450 e 1520.


alguém no mundo capaz <strong>de</strong> possuir esse manuscrito e <strong>de</strong>tentar <strong>de</strong>cifrá-lo, seria sem dúvida o profundo erudito JohnDee, matemático, astrólogo, criptógrafo e mágico, que aindapor cima tem sobre os restantes candidatos a vantagem<strong>de</strong> ter mantido longas e sugestivas conversações com seressupraterrestres (anjos?) numa linguagem alegadamenteceleste, a Língua Enochiana. O conhecido autor americano<strong>de</strong> FC&F, Lin Carter (1930-1988), <strong>de</strong>clarou que John Deeseria o único capaz <strong>de</strong> traduzir o Necronomicon, caso este livrorealmente existisse, e não esteve com meias medi<strong>das</strong>:após ter «<strong>de</strong>scoberto» essa tradução <strong>de</strong> Dee — publicou-ana íntegra! (Não me surpreen<strong>de</strong>, Lin Carter era capaz <strong>de</strong>tudo, até escreveu coisas com o tortuoso pseudónimo H. P.Lowcraft…) 7Tenho alguns dos livros escritos por John Dee, três dosquais em edições fac-simila<strong>das</strong> <strong>das</strong> edições do séc. XVI, eum dia talvez escreva um artigo totalmente <strong>de</strong>dicado a esteextraordinário personagem, que bem merece. Uma <strong>das</strong> suasobras, sobretudo, promete conhecimentos supranaturais aquem souber interpretá-la; foi editada em Londres em 1564e intitula-se Monas hieroglyphica: Mathematice, Magice, Cabalistice,Anagogiceque, explicata [«A Mónada Hieroglífica: ExplicadaMatematicamente, Magicamente, Cabalisticamente e Anagogicamente»].Estu<strong>de</strong>i os seus 24 Theoremae <strong>de</strong> trás paradiante e <strong>de</strong> diante para trás e confesso que não me sentiagraciado com um sensível acréscimo <strong>de</strong> iluminação, porquenão entendi nem oito por cento. Fracasso que se <strong>de</strong>vesem dúvida à minha notória incapacida<strong>de</strong> para penetrar taisarcanos. Mas quem conseguir entendê-lo, <strong>de</strong> acordo com aadvertência <strong>de</strong> Dee no frontispício, «Qui non intelligit, auttaceat, aut discat» 8 , <strong>de</strong>certo estará em condições <strong>de</strong> realizaros mais inacreditáveis prodígios.John Dee aos 67 anos. Retrato do séc. XVI,por artista <strong>de</strong>sconhecido.7Essa tradução tem por título “The Necronomicon: The Dee Translation Annotatedby Lin Carter”, e vem incluída, na íntegra, em: Robert M. Price (org.), TheNecronomicon: Selected Stories and Essays Concerning the Blasphemous Tomeof the Mad Arab. VvAa. A Chaosium Book, 1996; pp. 130-198.8«Quem não compreen<strong>de</strong>, ou se cale, ou aprenda».Glifo hermético <strong>de</strong> John Dee, interpretado cabalisticamente noseu tratado Monas hieroglyphica (1564).A forma como o Manuscrito Voynich chegou às mãos <strong>de</strong>Dee é nebulosa, e tem sido relatada <strong>de</strong> várias e diferentesmaneiras. Darei a seguir a versão que me parece mais plausível.Arthur Dee (1579-1651), filho <strong>de</strong> John Dee e médicodo rei Carlos I <strong>de</strong> Inglaterra, acompanhou o pai nas suas viagensatravés da Alemanha, Polónia e Boémia, escreveu umacolectânea <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> alquimia, Fasciculus chemicus (1629),e revelou que um manuscrito enigmático teria sido entregueao seu pai pelo primeiro duque <strong>de</strong> Northumberland,que saqueara um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> mosteiros e trouxerao manuscrito juntamente com uma vasta colheita <strong>de</strong> outraspreciosida<strong>de</strong>s. John Dee possuía a reputação <strong>de</strong> ser um coleccionadorentusiasta <strong>de</strong> livros estranhos e um criptógrafo<strong>de</strong> alto calibre, reputação — aliás merecidamente justificada— que levara o duque a procurá-lo para que <strong>de</strong>cifrasse o talescrito e <strong>de</strong>scobrisse os espantosos segredos que certamenteconteria.De que natureza seriam esses segredos não fazemosi<strong>de</strong>ia, mas a convidativa teoria da conspiração sopra-nos aoouvido que «alguém» se empenhou em travar as diligênciasque Dee empreen<strong>de</strong>u para os <strong>de</strong>scobrir. Basta pensarmosna catadupa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraças que sobre ele se abateu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> queiniciou a tarefa <strong>de</strong> tentar <strong>de</strong>scodificar o documento, a começarpor perseguições inexplicáveis e assaltos à sua casa emMortlake, visando preferencialmente a sua enorme biblioteca(mais <strong>de</strong> 3.000 volumes impressos e 3.000 manuscritos),<strong>de</strong>vastada por roubos e vandalizações que arruinaram todoo acervo <strong>de</strong> livros e manuscritos raros incluindo as suas preciosasanotações pessoais. Tudo isso <strong>de</strong>sapareceu e somenteresta uma escassa meia-dúzia <strong>de</strong> livros que se conserva naSt. John’s College Library (University of Cambridge) 9 . Paraculminar, registe-se o pormenor assaz suspeito <strong>de</strong> lhe terapa9 O último exemplar da perdida livraria <strong>de</strong> John Dee, e por sinal da autoria<strong>de</strong>ste, foi <strong>de</strong>scoberto e doado à St. John’s College Library em Junho <strong>de</strong>2009. Tem por título: General and rare Memorials pertayning to the PerfectArte of Navigation (London, 1577).66 67aparecido um persuasivo personagem que muito impressionouDee com as suas capacida<strong>de</strong>s supranaturais…Dee teve a infeliz i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> se associar com ele para progredirnas suas pesquisas — e esclareça-se, <strong>de</strong> imediato,que se tratava <strong>de</strong> um escroque chamado Edward Talbot(1555-1597), con<strong>de</strong>nado por vários crimes e que se intitulavaclarivi<strong>de</strong>nte e capaz <strong>de</strong> realizar as mais espectacularesproezas alquímicas, além <strong>de</strong> falar com espíritossuperiores e <strong>de</strong> visionar prodígios num cristal.Como todos os gran<strong>de</strong>s génios místicos, Dee eraum crédulo e confiava piamente na sincerida<strong>de</strong> <strong>das</strong>pessoas e, nem é preciso dizê-lo, foi enrolado por essealdrabilhas que mudou o nome para Edward Kelley eexplorou John Dee até on<strong>de</strong> pô<strong>de</strong>, acabando por <strong>de</strong>ixáloquase na miséria. Dee casara em segun<strong>das</strong> núpcias,aos 51 anos, com a jovem e apetecível Jane Fromond,que tinha então 23, e o ardiloso Kelley, após uma sessãomediúmnica na Boémia 8 , disse a Dee que o anjo Urielcom quem estivera em contacto <strong>de</strong>ra or<strong>de</strong>m para que osdois homens compartilhassem as respectivas esposas, oque certamente propinou uns bons momentos a Kelleye umas gran<strong>de</strong>s angústias a Dee, que, segundo parece,não duvidou da autenticida<strong>de</strong> da prescrição angélica econsentiu que o trato fosse levado por diante. Afortunadamenteos dois homens separaram-se pouco <strong>de</strong>pois,Kelley prosseguiu a sua carreira <strong>de</strong> alquimista mas nãoconseguiu produzir ouro para o imperador Rudolfo II,que o encarcerou na torre do Castelo Hnevin. Kelleyacabou por morrer estupidamente porque ao tentar fugirescorregando por uma corda, esta era curta <strong>de</strong> maise ele precipitou-se quando ainda se encontrava a meioda <strong>de</strong>scida da altíssima torre.John Dee por sua vez não conseguiu <strong>de</strong>cifrar o misteriosodocumento — «um livro contendo um texto incompreensível»,segundo testemunho do filho, ArthurDee. (Não conseguiu ou não o <strong>de</strong>ixaram?) Para repelir oespectro da miséria John Dee ven<strong>de</strong>u os poucos livrosque lhe restavam, incluindo o Manuscrito Voynich, que foicomprado pelo imperador Rudolfo II, como se disseatrás, por 600 ducados <strong>de</strong> ouro.Mas a história não acaba aqui. Das inúmeras tentativasque se conhecem para <strong>de</strong>cifrar o manuscrito, duas háque teriam estado muito perto da solução — a <strong>de</strong> JohnDee e a <strong>de</strong> um outro erudito, o prof. William Newbold,que veremos a seguir. Em ambos os casos, ambos osautores parecem ter sido «dissuadidos» <strong>de</strong> levar a tarefaa bom termo. William Romaine Newbold (1865-1926),antiquário, especialista em criptografia e professor <strong>de</strong> filosofiana Universida<strong>de</strong> da Pennsylvania, tornara-se conhecidopelas suas pesquisas e <strong>de</strong>scobertas no campo <strong>das</strong>antiguida<strong>de</strong>s e na <strong>de</strong>cifração <strong>de</strong> línguas antigas. Newbol<strong>de</strong>ntrou em contacto com o manuscrito em 1919, quandoeste se encontrava na posse <strong>de</strong> Wilfrid Voynich, e em1921 <strong>de</strong>clarou que <strong>de</strong>scobrira a chave que <strong>de</strong>scodificavao documento. Declaração obviamente sensacional, tantomais que Newbold começou a proferir uma série <strong>de</strong>conferências, em 1921 e 1922, explicando o seu métodobaseado numa hipótese singular: o texto visível não temem si nenhum significado, mas cada letra aparente nãopassa <strong>de</strong> um minucioso constructo <strong>de</strong> pequeníssimasmarcas apenas discerníveis sob potente ampliação. Estavaconvencido que o autor do texto teria sido Roger Bacon,o famoso monge inglês do séc. XIII que tem a seucrédito numerosas <strong>de</strong>scobertas científicas, e, segundoNewbold, muitas <strong>de</strong>las inéditas e somente acessíveis aséculos vindouros. É claro que a comunida<strong>de</strong> científica,sobretudo arqueólogos e paleógrafos, rejeitou o método<strong>de</strong> Newbold tal como rejeitou a sua peculiar visão <strong>das</strong>capacida<strong>de</strong>s inventivas <strong>de</strong> Bacon, que, se por um ladoadvogou e incentivou, nos seus trabalhos, a ciência experimental,por outro lado não po<strong>de</strong>ria, nem por sombras,ter sido o autor do manuscrito.Todavia, e durante os poucos anos <strong>de</strong> vida que restarama Newbold após as suas sensacionais revelações,houve cientistas que o levaram a sério, nomeadamenteos que tinham assento com ele em socieda<strong>de</strong>s académicasrespeitáveis como o Classical Club of Phila<strong>de</strong>lphia,a American Philosophical Society, a Society of BiblicalLiterature e a American Oriental Society. Mas <strong>de</strong> súbitotodos <strong>de</strong>ram o dito por não dito e o próprio Newboldinterrompeu a continuida<strong>de</strong> <strong>das</strong> investigações, até que asua morte em 1926 encerrou silenciosamente o assunto.Subsistem, em todo o caso, algumas perplexida<strong>de</strong>s poresclarecer, como certas frases «traduzi<strong>das</strong>» do ManuscritoVoynich e que Newbold ainda conseguiu publicar, porexemplo: «Vi num espelho côncavo uma estrela em forma<strong>de</strong> caracol. Encontra-se entre o umbigo <strong>de</strong> Pégaso,o busto <strong>de</strong> Andrómeda e a cabeça <strong>de</strong> Cassiopeia…», ouainda passagens que fazem alusão ao «segredo <strong>das</strong> estrelasnovas».Mesmo aceitando a teoria dos cépticos <strong>de</strong> que omanuscrito não passa <strong>de</strong> uma fraudulência do séc. XVIelaborada talvez por John Dee ou por um herbolário daBoémia, Jacobus Sinapius, contemporâneo <strong>de</strong> Dee, senele se revela o segredo energético <strong>das</strong> novae e dos qua-


sars, tal hipótese dá azo a perspectivas pouco risonhas,e, como observava o passarão do Jacques Bergier (malamadoda intelligentsia bem-pensante mas dotado <strong>de</strong> umirresistível sentido do humor), mais vale que o manuscritopermaneça in<strong>de</strong>cifrável antes que ponha ao alcance<strong>de</strong> qualquer curioso (leia-se: qualquer terrorista) umafonte <strong>de</strong> alta energia superior ao actual po<strong>de</strong>r nuclear.Suspeito em todo o caso que este receio seja infundado:felizmente, e apesar <strong>das</strong> fugas e ven<strong>das</strong> clan<strong>de</strong>stinas <strong>de</strong>material radioactivo da ex-União Soviética, ainda ninguémconseguiu — que eu saiba, se estiver enganadopor favor corrijam-me — fabricar uma bomba atómicano forno <strong>de</strong> microon<strong>das</strong> lá <strong>de</strong> casa.Por outro lado a referência a Andrómeda não <strong>de</strong>ixa<strong>de</strong> ser embaraçante: que espécie <strong>de</strong> aparelho seria otal «espelho côncavo» capaz <strong>de</strong> perscrutar os abismoscósmicos a ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir que a nebulosa <strong>de</strong> Andrómeda(hoje conhecida como galáxia <strong>de</strong> Andrómeda,ou M31, ou ainda NGC 224) tem forma <strong>de</strong> caracol(espiral) e se encontra precisamente no local indicadopelo estranho livro? Se é verda<strong>de</strong> que este corpo celestejá era conhecido dos antigos astrónomos persas que selhe referiam como uma «pequenina nuvem», somenteem 1887 é que o astrónomo Isaac Roberts <strong>de</strong>scobriua sua forma espiralada mediante fotografias <strong>de</strong> longaexposição.Folheando o livro, e através do exame <strong>das</strong> gravuras— já que pelo texto nada se fica a saber —, parecepo<strong>de</strong>r <strong>de</strong>duzir-se que o Manuscrito Voynich está divididoem secções específicas: herbolária e botânica, astronómica,cosmológica, farmacológica e uma colecção<strong>de</strong> receitas. Entre as muitas gravuras <strong>de</strong>ssas secções,po<strong>de</strong>mos ver por exemplo reproduções minuciosas epormenoriza<strong>das</strong> <strong>de</strong> plantas que não existem no nossoplaneta; mulheres nuas banhando-se em tinas ou talvezaquários, ou nadando através <strong>de</strong> estranhas tubagens assazelabora<strong>das</strong> e aparentemente orgânicas; diagramascosmográficos, alguns <strong>de</strong>senhados em cartas <strong>de</strong>sdobráveis,contendo símbolos astronómicos ora circularesora com outras formas, e esquemas com conjuntos <strong>de</strong>estrelas on<strong>de</strong> algumas constelações são reconhecíveismas outras parecem diferentes ou estranhamente distorci<strong>das</strong>.Assim sendo, vejo-me constrangido a corrigir a minhasuposição <strong>de</strong> há pouco, da proveniência extraterrestredo manuscrito: o mais certo é ter vindo, afinal,<strong>de</strong> uma outra dimensão, ou <strong>de</strong> um universo paralelo ligeiramente<strong>de</strong>sfasado em relação ao nosso. Ainda porcima, se alguém ou alguma coisa o conseguiu transportaraté cá, é <strong>de</strong> temer que o livro contenha a «receita» daconstrução da «porta» (a famosa porta Z!) que permitea passagem em ambos os sentidos… Deus nos <strong>de</strong>fenda<strong>de</strong> semelhante perigo! Já estou a transpirar.Se me dão licença sigo adiante, e como o tema dos«livros míticos» é pouco menos que inesgotável, reservareipara um próximo artigo, se ainda me restaremforças e alguma sabença, outros livros não menos esquisitose excitantes, como por exemplo os enigmáticose (talvez) inexistentes livros que são mencionadosem certas passagens da Bíblia, ou os chamados «falsosdocumentos», livros tão falsos, tão falsos, mas tão beminformados que parecem perturbadoramente verda<strong>de</strong>iros(sem dúvida associados à inevitável teoria da conspiração…)— vejam-se por exemplo os Monita Secreta[«Instruções Secretas dos Jesuítas para o Domínio doMundo»] (1614), os Protocolos dos Sábios <strong>de</strong> Sião [«InstruçõesSecretas dos Ju<strong>de</strong>us para o Domínio do Mundo»](1903), os Hitlers Tagebücher [«Diários <strong>de</strong> Hitler»] (supostamente<strong>de</strong>scobertos em 1945 e publicados em 1983),etc., etc.Mas não só. Outros há, ainda, que nos põem a imaginaçãonum fervedouro… mas <strong>de</strong>ixemo-los para o talpróximo capítulo que acima vos prometi. BANG!ANTÓNIO DE MACEDO é escritor, cineasta e prof. universitário, nasceu em Lisboaem 1931. Frequentou a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras da Universida<strong>de</strong> Clássica e aEscola Superior <strong>de</strong> BA <strong>de</strong> Lisboa, on<strong>de</strong> se formou em Arquitectura em 1958.Exerceu durante alguns anos a profi ssão <strong>de</strong> arquitecto que abandonou em1964 para se <strong>de</strong>dicar à activida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escritor, cineasta e professor. Inclui na suaextensa fi lmografi a <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> documentários, programas televisivos e fi lmes<strong>de</strong> intervenção, bem como onze longas-metragens <strong>de</strong> fi cção. Paralelamente,especializou-se na investigação e estudo <strong>das</strong> religiões compara<strong>das</strong>, <strong>de</strong> esoterologia,<strong>de</strong> história da fi losofi a e da estética audio-visual, e <strong>das</strong> formas literárias e fílmicas<strong>de</strong> «fi cção especulativa». Dirigiu a colecção Bibliotheca Phantastica, da editoraHugin, e foi um dos promotores dos Encontros Internacionais <strong>de</strong> Ficção Científi ca& Fantástico <strong>de</strong> Cascais, que se iniciaram em 1996. Tem leccionado em diversasinstituições <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1971, como o IADE, a Universida<strong>de</strong> Lusófona, a EscolaOfi cinactores, Universida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna e o ISER.Foi homenageado pelo 30.º Festival Internacional <strong>de</strong> Cinema da Figueira da Foz,em Setembro <strong>de</strong> 2001, pela relevância da sua carreira e pelo contributo prestado àcultura cinematográfi ca portuguesa.6869De A a BDOPINIÃOWATCHMEN - POR DETRÁS DA MÁSCARAAlan Moore <strong>de</strong>fine Watchmen comosendo, em muitos aspectos, uma meditaçãosobre o po<strong>de</strong>r nas suas várias vertentes.Gran<strong>de</strong> parte da sua narrativa exibeum tom <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança em relação aoexercício do po<strong>de</strong>r em si e da responsabilizaçãoque cada um atribui a si própriono uso do mesmo, o que torna a sérienum verda<strong>de</strong>iro produto da sua época.Essa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrença, alimentadapor déca<strong>das</strong> <strong>de</strong> tensão social e <strong>de</strong>silusõespolíticas (aborda<strong>das</strong> nada inocentementepor Moore sob a forma do assassinato<strong>de</strong> Kennedy, a Guerra do Vietnam,o uso <strong>de</strong> Nixon como ainda Presi<strong>de</strong>ntedos EUA), <strong>de</strong>morou a entrar no géneroliterário do super-herói americano, nessaaltura ainda preso à sua génese douradados anos 30 e 40. Nesses idos anos 80,o Sonho Americano sofria <strong>de</strong> uma espécie<strong>de</strong> morte lenta, mas nas páginas <strong>de</strong>um qualquer comicbook, lidava-se comcatástrofes espaciais e crime organizadoem tom <strong>de</strong> telenovela perpétua.Mesmo apesar <strong>de</strong> to<strong>das</strong> as tragédiase dilemas vividos, os escaparatesestavam repletos <strong>de</strong> cores primárias esorrisos amarelos embalados pela censurapromovida pelo Comics Co<strong>de</strong> Authority<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1954. A este propósito écurioso como no álbum Watchmen queaqui analisamos, Moore faça referência àpré-censura dos clássicos da EC Comicscom a história secundária, Tales of theBlack Freighter.O escritor britânico admite quequando entrou no mundo dos super-heróisse sentiu imediatamente atraído pelanatureza mitológica e moralmente ambíguado género, mas ficou também intrigadocom a ausência <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>steem questionar-se a si próprio acerca doseu real papel no mundo ao longo dotempo.Não que fosse inédita a incursão <strong>de</strong>super-heróis em temas actuais (veja-se otrabalho Dennis O’neill e Neal Adamsna dupla Green Arrow/Green Lanternnos anos 70), mas a maioria dos títulosda altura parecia viver numa realida<strong>de</strong>paralela, <strong>de</strong>sfasada do tempo real, imuneà influência dos avanços e recuos da socieda<strong>de</strong>que supostamente retratava. Aspersonagens não envelheciam, tinhamciclos <strong>de</strong> encontros com arqui-inimigos,e os seus problemas pessoais pareciamestar parados no tempo, não importavamas peripécias imagina<strong>das</strong> pelas equipaseditoriais envolvi<strong>das</strong>.“WHAT HAPPENS IN COMICS,STAYS IN COMICS.”É argumentável que essa seja uma <strong>das</strong>pedras base do género, a sacrossantaContinuida<strong>de</strong> em que tudo muda e tudofica na mesma, mas Moore, no meio <strong>de</strong>outros poucos autores da época, queriaalgo mais. Apostado em explorar a partemais humana dos super-heróis, o argumentistacomeçou por querer actualizarum grupo <strong>de</strong> super personagens familiaresmas secundárias, transpostas paraum contexto distante da candura da suaexistência até aí. O primeiro tratamentofoi aparentemente baseado numa equipachamada The Mighty Crusa<strong>de</strong>rs, já<strong>de</strong> si uma tentativa da Archie Comicspara capitalizar o sucesso conquistadopelas linhas <strong>de</strong> super-heróis da Marvel eda DC da altura. Quando o tratamentofoi proposto à DC, o “plot” foi transferidopara um catálogo <strong>de</strong> personagensque esta tinha adquirido recentementea outra editora, a Charlton Comics, masacabou por ser recusado nesses termos,dada a intenção <strong>de</strong> Moore em dar um finalpouco simpático a quase todo o rol<strong>de</strong> personagens.Como alternativa, foi-lhe sugeridoque criasse os seus próprios peões <strong>de</strong>xadrez, o que Moore fez, recorrendo aarquétipos do género super-heróico, mascolados aos nomes da Charlton que eleinicialmente trabalhara.Desta estranha adaptação saíramveículos sobre-humanos para históriaspessoais injecta<strong>das</strong> <strong>de</strong> uma auto consciênciaaté aí nunca vista numa personagemmascarada.No mundo criado por Moore, superseresquestionam-se, reflectem, enganam-se,cometem erros, arrepen<strong>de</strong>m-se,sofrem as consequências da sua naturezae enten<strong>de</strong>m o seu papel no esquema <strong>das</strong>coisas. Todos estão ligados entre si porpassado, presente e futuro, todos são influenciadose influenciam o mundo em| Ricardo Venânciovolta, seja através <strong>de</strong> um encontrosexual fortuito, ou ganhando uma guerraantes perdida, ou mesmo ameaçando omundo inteiro com a própria existência.Esta interligação tem um enormecontributo do ilustrador Dave Gibbons,através da reinvenção da clássica grelha <strong>de</strong>9 planos, que lhe dá um ritmo não muitofácil <strong>de</strong> seguir, mas completamente indicadopara o universo proposto por Moore.Com Watchmen, ambos ajudarama introduzir evolução e introspecção nouniverso do vigilante mascarado (patentesno <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong>gradação doconceito <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>ntro da história), <strong>de</strong>s<strong>de</strong>os super-heróis que escon<strong>de</strong>m os problemasatrás <strong>de</strong> máscaras, à nova geração queexibe os seus estigmas à superfície.Este comentário esten<strong>de</strong>-se aomundo em si, à evolução da socieda<strong>de</strong>humana e à consciência (ou falta <strong>de</strong>la)<strong>das</strong> vitórias e fracassos do nosso <strong>de</strong>senvolvimentocolectivo.Apesar <strong>de</strong> à época a Guerra Fria tersido aparentemente posta <strong>de</strong> parte e <strong>de</strong>Nixon estar morto e enterrado, os dilemase perigos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ilustrados nos 12números <strong>de</strong> Watchmen estavam, e parecemestar ainda, vivos e <strong>de</strong> boa saú<strong>de</strong>.Bob Dylan, na música que embalao genérico do filme, canta “The times,they are a-changin’...”; <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Watchmen,a vida não foi mais pintada a coresprimárias; passou a ser mais cinzenta,discordante e paranóica. E hoje já nãoexistem sorrisos amarelos sem pintas <strong>de</strong>sangue. BANG!Ricardo Venâncio é um ilustrador e autor <strong>de</strong> BD lisboetaa trabalhar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1999. Des<strong>de</strong> tenra ida<strong>de</strong> que foiencorajado a absorver histórias <strong>de</strong> fantasia, mitologia efi cção <strong>de</strong> todo o tipo, em especial através <strong>das</strong> BDs queo seu pai lhe comprava todos os Verões. Essa se<strong>de</strong> <strong>de</strong>se <strong>de</strong>slumbrar com outros mundos levou-o a algunstrabalhos conhecidos como a concepção visual doálbum Sound In Light dos Blasted Mechanism (2006),do vi<strong>de</strong>oclip “É Verda<strong>de</strong>?” dos Terrakota com o colectivoDroid_id (2007), e a sua série <strong>de</strong> BD “Defi er” (2009).Ricardo faz parte do The Lisbon Studio.


Luzes,Câmara...Bang!OPINIÃOOano <strong>de</strong> 2009 acabou razoavelmenteem beleza para os fâsdo fantástico e em especialpara os que preferem ficçãocientífica. Um ano que nos <strong>de</strong>uo empolgantere-boot do franchiseStar Trek,a ternura <strong>de</strong> OSítio <strong>das</strong> Coisas Selvagens,o fabulosoDistrito 9 e o discretomas sólidoMoon, acabou embeleza com Avatar eSherlock Holmes. Falemos<strong>de</strong>stes dois.James Cameron<strong>de</strong>u à luz um eventocinematográfico. Algoque explo<strong>de</strong> cor, luz ealta <strong>de</strong>finição nas retinas,capaz <strong>de</strong> fazersaltar da ca<strong>de</strong>ira o maispesado dos críticos.Avatar foi um dos últimosestouros natalícios ecom toda a razão. Toda?Talvez não: um pequenoburaco negro impe<strong>de</strong> essavisão.Gostaria <strong>de</strong> dizer queesse buraco é um mero efeitovisual, como aquele queo espectador da versão 3D experienciasentado na sala durante as 3 horas <strong>de</strong>projecção, essa sensação <strong>de</strong> que o negroem torno do ecrã não <strong>de</strong>veria existir,como se não houvesse o direito <strong>de</strong>a escuridão absorver a existência, o queacontece nos pixéis da vida real HD.Avatar é um filme bem pensado e bemexecutado a muitos níveis. É genial nosefeitos especiais e do 3D em particular,bastante bom na conceptualização docenário alienígena físico e na sua faunae flora. As referências a outros filmesdo género são abundantes. A intenção<strong>de</strong> maravilhar o espectador é palpável.Mas algumas falhas lógicas e temáticasdo enredo <strong>de</strong>stoam com todos estes indícios<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.Tomemos, a título <strong>de</strong> exemplo, osNa’Vi, os alienígenas inteligentes, acultura que o personagem principal iráconhecer e integrar através do seu avatar“real”. O facto <strong>de</strong> serem uma variaçãobarata <strong>de</strong> gatos azuis com apenasdois espaçados olhos, é uma concessão<strong>de</strong>masiado fácil à verosimilhança enquantoconceito <strong>de</strong> puro marketing eninguém pediu que os animais<strong>de</strong> PandoraAvatar eSherlock HolmesRealização <strong>de</strong> Nuno Fonsecativessem todos 4olhos ou que o azul faça dos Na’vibons alvos para a fauna do planeta, queos torna uma qualse impossibilida<strong>de</strong> segundoDarwin. E ninguém foi capaz <strong>de</strong>pensar numa simples solução para isto?O próprio planeta, <strong>de</strong> nome Pandora,potencia uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> campo <strong>de</strong>batalha on<strong>de</strong> se irá <strong>de</strong>cidir algo sobreo <strong>de</strong>stino humano, como é próprio daboa ficção cientifica. Pandora, que não<strong>de</strong>veria ter aberto a caixa, que a abresoltando os horrores sobre o mundo ecuja última coisa a sair é a Esperança.Há alguma relação no filme a isto? Sóbatendo com um martelo muito gran<strong>de</strong>.Dir-me-ão que é só um nome, quepo<strong>de</strong>ria ter sido outro qualquer, quenão tem importância. Mas esta escolhaexemplifica as fraquezas especulativo-narrativasdo filme. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>esperança, para os Na’vi, para a espéciehumana, para os princípios éticose para a <strong>de</strong>ficiência física <strong>de</strong> Jake et al,para a ecologia e o ambiente, são fundamentaisao conceito do filme. E emmuitos aspectos, Pandora é, juntamentecom Jake, a personagem principal dofilme. Mas o nome enganaa interpretação, pois não érepresentativo da históriaou dos temas. No fim dahistória, não é a esperançao fiozinho que fica,mesmo que sejam soltosos horrores sobre Pandora-Gaiae os Na’vi, eestes sejam salvos. Oque acontece, é que aor<strong>de</strong>m natural, apósmuitra tribulação, éreposta. Os maus andamà solta a fazeremo que querem e nofim per<strong>de</strong>m, graçasao herói humanotravestido <strong>de</strong> alien.Fora isso, paraalém do enjooem ver mais umahistória sobreo complexo dohomem branco,a soporíferanão-abordagemdo tema da protecçãodo ambienteface aos gran<strong>de</strong>s interesses corporativos,a diabolização infantil <strong>de</strong> tudo oque é figura <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> (à excepçãoda personagem <strong>de</strong> Sigourney Weaver,que é logo neutralizada após a chegadaem cena), o messias branco, mesmoque bronco, capaz <strong>de</strong> ser mais alien queos aliens e mais inteligente que eles todosao perceber como domar a maiorbesta alada do planeta…a lista <strong>de</strong> conceitosmal trabalhados é tão extensaque <strong>de</strong>srespeita por completo não só oespectador como a história do cinema170 71fantástico ou <strong>de</strong> FC em particular. Ouseja, temos um enredo que nem nosanos 50 estaria completamente bem colocado,o que é um sério atraso relativoà qualida<strong>de</strong> do género.Há uma tentativa, conceptualmenteengraçada, <strong>de</strong> fazer ficção científicacom técnicas <strong>de</strong> fantasia, e em particular<strong>de</strong> alguma fantasia épica. Mas esteestratagema, que na literatura já foimais que bem feito por exemplo pelosprimeiros livros <strong>de</strong> Pern <strong>de</strong> Ann Mc-Cafrey, é aqui feito <strong>de</strong> forma tosca, esquemática,sem nervo. Após ver Avatar,os espectadores <strong>de</strong> fantasia não ficarãoorientados para a FC, embora o tratamentodos cenários lhes leve a ver queé possível virem a gostar <strong>de</strong>sta o que,sendo um ponto bastante positivo, nãochega para ultrapassar <strong>de</strong>finitivamentea barreira que separa os dois públicoscomo era a intenção.Eu percebo a vertente <strong>de</strong> entretenimentoe <strong>de</strong> como é importante. Masaté este <strong>de</strong>ve ser verosímil, fazer sentido.Uma história po<strong>de</strong> ser simples semser parva. E <strong>de</strong>ve evitar a ausência <strong>de</strong>inteligência a todo o custo, para respeitaros espectadores. Avatar po<strong>de</strong>ria tersido o feito da década, mas só consegueser um objecto bonitinho cuja históriatodos se vão esquecer <strong>de</strong>pressa. É quenão é legitimo hoje em dia tratar a audiênciacomo um bando <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>sacéfalas. Mesmo que muitas vezeselas se possam comportar como tal. Eassim, Avatar é apenas isto: uma objectobonito, um feito técnico prodigioso,mas um enredo fraco ou mesmo <strong>de</strong>ficiente.Ou seja, oportunida<strong>de</strong> perdidaque abre caminho para uma verda<strong>de</strong>iraobra-prima, algo que esperamos paraeste ano <strong>de</strong> 2010.Sherlock Holmes <strong>de</strong> Guy Ritchiefoi também outro bom filme.Como já várias vozes o disseram,este é um Holmes muitodiferente, o que tem provocado afirmaçõesrígi<strong>das</strong> sobre a sua legitimida<strong>de</strong>,tanto a favor como contra. O certo éque agora já não precisamos <strong>de</strong> visualizarum Sherlock velhinho, a caminho<strong>de</strong> cair da tripeça, ou arrogantementeemproado, cheio da sua própria eloquência,<strong>de</strong>bitando intermináveis dissertações<strong>de</strong>dutivas a um abúlico e esclerosadoWatson.Em parte, este é <strong>de</strong> facto Sherlock,o homem <strong>de</strong> carnes secas e trabalha<strong>das</strong>,<strong>de</strong> quem se gosta mesmo não querendo,<strong>de</strong>stemido, bom <strong>de</strong> luta, com raciocíniosrápidos, certeiros e totais, esquisito,e que fica muito irrequieto quandonão tem um objecto-problema, umainvestigação qualquer a efectuar, que ainventa quando ela não surge. Porém,não é o mesmo que Conan Doyle punhaa dobrar uma barra <strong>de</strong> ferro comas próprias mãos, e peca por entrarnuma certa <strong>de</strong>pressão que impossívelao original vitoriano; dirão algumasvozes maledicentes que é um Sherlock<strong>de</strong>masiado Robert Downey Jr., e talveznão estejam longe da razão. O certo éque o resultado é fresco (apesar <strong>de</strong> umnotório <strong>de</strong>salinho com aspecto <strong>de</strong> poucobanho), e o próprio cenário londrinoganha mais vida que o habitual, dandomovimento e cor on<strong>de</strong> os tratamentosprévios se ocupavam com um acinzentadonevoeiro londrino. Os fâs dopersonagem há muito que precisavam<strong>de</strong> ver um <strong>de</strong>tective empolgante, numahistória primeiro misteriosa e <strong>de</strong>poismirabolante.É na história que po<strong>de</strong>mos encontrara maior novida<strong>de</strong>. Curiosamente,por ser muito mais fiel aos contos enovelas originais quanto à estruturautilizada. Há quem se queixe <strong>de</strong> as “explicações”que no filme surgem paraos factos serem cheias <strong>de</strong> buracos ouestapafúrdias, mas a realida<strong>de</strong> é que eraesse o método <strong>de</strong> Conan Doyle: quemleu as aventuras do <strong>de</strong>tective <strong>de</strong> BakerStreet sabe ser impossível adivinhar<strong>de</strong> antemão tais “explicações”, e quequando elas surgiam, também sempreapós o apanhar do bandido, iam buscari<strong>de</strong>ias e factos do arco-da-velha quenão passariam pela cabeça <strong>de</strong> ninguém.A arte do autor era a <strong>de</strong> veicular isso<strong>de</strong> uma forma que parecia ser inevitávele “elementar”, mas que ce<strong>de</strong> a algumadose <strong>de</strong> raciocínio. Até o “namoro”com a temática do sobrenatural e subsequente<strong>de</strong>smistificação com recurso aelementos tecológicos ou <strong>de</strong> especulaçãocientífica, são recursos estilísticosabsolutamente típicos da obra original,veiculando uma aura <strong>de</strong> quase ScientificRomance típico da época, do autore <strong>de</strong> vária da importante produção literáriainglesa (e não só) da época. Etorna-se engraçado pensar que, o maisimportante invento tecnológico do filmetransforma-o em ficção científicamo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> estética steampunk, algo<strong>de</strong> que Arthur Conan Doyle teria certamenteapreciado. BANG!Nuno Fonseca nasceu no ano <strong>de</strong> Woodstock e da ídado Homem à Lua, eventos que o condicionaram a umavida <strong>de</strong> amor pela literatura do fantástico e em especialda Ficção Científi ca. Fugindo a uma vida comercial eadministrativa, mergulhou <strong>de</strong> cabeça no género e não seespera que volte a sair. Foi editor da e-zine Nova, escreveregularmente para o site <strong>de</strong> literatura generalista OrgiaLiterária e para o internacional World SF News blog.


OPINIÃO / João BarreirosÉdifícil imaginar, neste multiversofeito <strong>de</strong> um número incomputável<strong>de</strong> escolhas possíveis, comoteria sido a minha vida, se eu tivesseposto os meus olhos sobre um certolivrinho na altura certa. Se as prateleirason<strong>de</strong> se acoitavam os “livros proibidos”da minha família não estivessemacessíveis aos <strong>de</strong>dinhos pegajososda criança que então fui. Bastava terlido em primeiro lugar um Asimov -falo aqui do profundamente entediantee <strong>de</strong>sconexo ciclo da Fundação - emvez <strong>de</strong> um compacto Ortog do KurtSteiner (1960), André Ruelan <strong>de</strong> seuverda<strong>de</strong>iro nome, para que imediatamenteme afastasse <strong>de</strong> um géneroque afinal marcou a minha existência.Assim sendo, lembro-me ainda <strong>de</strong> percorreras páginas <strong>de</strong>sse livro perdido(e tão fininho que ele era), on<strong>de</strong> Ortog,inocente pastor <strong>de</strong> megatérios -tornado enfim cavaleito-nauta - partiapelo espaço em busca do remédio capaz<strong>de</strong> curar a humanida<strong>de</strong> moribunda.Este livro épico, que foi <strong>de</strong>certoum marco na ostracizada literaturafrancesa <strong>de</strong> FC teve mais tar<strong>de</strong> umasequela nunca publicada em Portugal,Ortog et les ténèbres (1969), on<strong>de</strong> o nossoherói, tal mo<strong>de</strong>rno Orfeu, <strong>de</strong>scia aosinfernos para salvar a “consciência” <strong>das</strong>ua bem-amada. Livrinho discreto, aomesmo tempo sinistro e crepuscular,mal foi lido noite escura e com a ajuda<strong>de</strong> uma lanterna sob os lençóis, logoencheu <strong>de</strong> sombras e angst existencialos meus pesa<strong>de</strong>los <strong>de</strong> infância. Tinhaeu sete anitos quando o li pela primeiravez. Assim se corrompem as almasinocentes. Assim se viciam as criancinhascuja obrigação seria ler mais umaEnid Blyton e ficar por aí. E como seisso não bastasse, vítima da inevitávele maléfica sincronicida<strong>de</strong>, enquanto olia, corria no gira-discos a canção proibidado Zeca Afonso, o No lago do Breu- nunca mais me esqueci da imagemdo megacomputador cujos segredosseriam capazes <strong>de</strong> regenerar a senescentehumanida<strong>de</strong>, afundado numlago <strong>de</strong> alcatrão e <strong>de</strong>fendido por umexército <strong>de</strong> morcegos gigantes.E alguns anos <strong>de</strong>pois, outra pequenaepifania...Lembram-se da colecção da RobertLaffont, Ailleurs et Demain, dirigidapor Gerard Klein e cujas capasmetálicas brilhavam nas prateleiras <strong>das</strong>livrarias <strong>de</strong> Lisboa? Nesses temposépicos on<strong>de</strong> Portugal ainda lia em línguaestrangeira, encontrei outro dosgran<strong>de</strong>s marcos da FC pós new wave,o Nova (1968) do Samuel Delany. Sómais tar<strong>de</strong> vim a <strong>de</strong>scobrir que Delanytinha apenas 26 anitos quando o escreveu.Mas a i<strong>de</strong>ia base era fabulosa.Recolher um metal raríssimo geradono núcleo <strong>de</strong> uma estrela em vias <strong>de</strong>explosão. Mergulhar a nave no coração<strong>de</strong> uma supernova, com todosos riscos inerentes ao capitão/piloto.Cegar por overdose <strong>de</strong> luz. Ficar parao resto da vida com uma estrela a explodir-lheem frente dos olhos. Semesquecer o triângulo amoroso que formao núcleo do livro, também ele tão<strong>de</strong>strutivo como o mergulho no coração<strong>de</strong> uma estrela moribunda. Umpouco como o amour fou a la francaise.On<strong>de</strong> o comandante louco mata porinveja a amada com um beijo. E logo<strong>de</strong> seguida se suicida num banho <strong>de</strong>luz. Sem esquecer que o futuro <strong>de</strong>scritopor Delany, não é <strong>de</strong>certo aqueleon<strong>de</strong> habitam os flashes gordons e oscapitães cometa. É um amanhã <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte,dominado pelas famílias típicas<strong>de</strong> uma Renascença Italiana, <strong>de</strong> tripulantesneuróticos viciados em todo otipo <strong>de</strong> drogas psicotrópicas, <strong>de</strong> unhassujas e roupas enxovalha<strong>das</strong>, on<strong>de</strong> oastrogador/poeta está armado <strong>de</strong> umaespécie <strong>de</strong> cítara electrónica que po<strong>de</strong>matar à distância com a intensida<strong>de</strong> dosom. Com os romances Nova, The Fall ofThe Towers, Babel-17, The Einstein Intersection,e com contos fabulosos como We, Insome strange powers employ, Move on a rigorousline, ou o Time consi<strong>de</strong>red as an helix of semipreciousstones, marcou o nascimento <strong>de</strong>uma FC literária, escrita com rigor, capaz<strong>de</strong> colocar o género a anos-luz dospulp que lhe <strong>de</strong>ram a vida. Claro quenada disto foi publicado em Portugal,a não ser a novela, Babel-17 no Círculo<strong>de</strong> Leitores, com uma tradução abominávelda velha nemesis <strong>das</strong> ediçõesportuguesas, Eduardo Saló.Tristes tristezas.Pois nesta época mole e soturnaon<strong>de</strong> presentemente vivemos, as prateleiras<strong>das</strong> livrarias portuguesas continuama encher-se <strong>de</strong> intermináveisfantasias infanto-pueris, sem esquecero vómito do angst adolescente estimuladopelos vampiros bonzinhos epoliticamente correctos da Meyers.Aqui já não há possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolhaa quem queira encontrar a suaprópria epifania. Para isso, teria <strong>de</strong> lerem Inglês ou Francês. Consultar Enciclopédias.Ser um arqueólogo <strong>de</strong> umpassado que resolveu escon<strong>de</strong>r-se outornar-se invisível. BANG!João Barreiros, licenciado em fi losofi a eprofessor do ensino Secundário, é tradutor,autor e (até já foi) editor <strong>de</strong> fi cção científi ca.Os seus livros saíram com as chancelasda Caminho, Livros <strong>de</strong> Areia, Presençae Saída <strong>de</strong> Emergência. A sua próximaantologia sairá pela Gailivro. Em Espanhafoi publicado pela Bibliopolis.172

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