domínio da ficção científica, em Supertoys Last All SummerLong, <strong>de</strong> Brian Aldiss.Enquanto a maioria dos autores góticos mais conhecidos,como Poe, Stevenson, ou Mary Shelley se centramno carácter humano, na propensão para a malda<strong>de</strong>, advindodaí a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alcançar o i<strong>de</strong>al romântico do Paraísona Terra, uma <strong>das</strong> características mais marcantes <strong>de</strong>Lovecraft é a menor incidência <strong>de</strong>ssa centralida<strong>de</strong> da psiquee da malda<strong>de</strong> humanas. Na maior parte da sua escritamais significativa, o maior acto <strong>de</strong> malda<strong>de</strong> será, no limite,a tomada <strong>de</strong> consciência, mais frequentemente aci<strong>de</strong>ntal doque intencional, <strong>das</strong> forças imensas que nos ro<strong>de</strong>iam e jazemadormeci<strong>das</strong>, cobrindo-nos com a sua sombra imensae tornando-nos insignificantes.O carácter materialista cada vez mais importante nopresente é referido por Rosemary Jackson a propósito domito faustiano e <strong>das</strong> suas transformações:Goethe’s ‘Faust’ (1808) moves towards this apprehensionof the <strong>de</strong>monic: as a realm of non-signification.His Mephistopheles is much more complex than astock representation of evil: ‘he’ introduces a negationof cultural or<strong>de</strong>r, insisting that there is noabsolute meaning in the world, no value, and thatbeneath phenomena, all that can be dis-covered (sic)is a sinister absence of meaning. ‘His’ ‘<strong>de</strong>monic’ enterpriseconsists in revealing this absence, expressingthe world’s concealed vacuity, emptiness and its latestpull towards disor<strong>de</strong>r and undifferentiation. (…)Transformation of the Faust myth epitomize thesemantic changes un<strong>de</strong>rgone by fantasy in literaturewithin a progressively secularized culture (Jackson1981: 57).Aautora <strong>de</strong> Fantasy – The Literature of Subversion refere queno Fantástico mo<strong>de</strong>rno, o Mal ou o <strong>de</strong>moníaco nãodizem já respeito ao puramente sobrenatural, mas simàquilo que está atrás ou entre formas e estruturas que vemosseparados. Trata-se <strong>de</strong> um híbrido, <strong>de</strong> uma transgressão. O“Exterior”, o “Outro” é, então, tudo aquilo que ameaça“este” mundo, o mundo “real” com a sua dissolução.A ficção lovecraftiana parece seguir um caminho paradoxalao querer apresentar-nos como estrutura <strong>de</strong> fundoum mundo <strong>de</strong>calcado da realida<strong>de</strong>, opondo-o <strong>de</strong>pois ao rostodo “Exterior”. Contudo, como num jogo <strong>de</strong> espelhos,o próprio acontecimento rompedor da normalida<strong>de</strong> irá serenquadrado por Lovecraft na realida<strong>de</strong>, ao tentar explicar ousugerir uma via “material” para o acontecimento disruptor.Tal como o título da obra <strong>de</strong> Rosemary Jackson indica,o modo fantástico tem, como característica fundamental,para esta autora, o carácter subversivo. Esta característicanão <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser aplicável à ficção <strong>de</strong> H. P. Lovecraft, umavez que a realida<strong>de</strong> resultante da intervenção <strong>de</strong> forças exterioresficará profundamente alterada, com algumas <strong>das</strong> suasconstruções sociais e culturais quase totalmente <strong>de</strong>stroça<strong>das</strong>.A intervenção do “Exterior”, fruto da imaginação doautor e po<strong>de</strong>ndo ser vista, numa perspectiva psicanalista,como uma projecção <strong>das</strong> suas próprias ansieda<strong>de</strong>s, é umamanifestação do irracional, <strong>de</strong> forças primevas e que nãotêm significado (non-significant).Ao conferir um claro pendor materialista ao “Exterior”,Lovecraft consegue, paradoxalmente, criar uma ligação fluidae credível entre a realida<strong>de</strong> e o produto da sua imaginação,uma reacção contra um excessivo racionalismo e arrogânciahumana, utilizando esse mesmo racionalismo e fénaquilo que é material, explicável, ou que ainda po<strong>de</strong>rá vir asê-lo. Este processo <strong>de</strong> progressiva perda <strong>de</strong> importância dosobrenatural no Gótico é igualmente reconhecido por RosemaryJackson: “Changes in Gothic can be seen as correspondingto a slow diminution of faith in supernaturalism”(Jackson 1981: 97).Também como consequência <strong>de</strong>sse enfraquecimento,Jackson aponta a propensão do Fantástico em “esvaziar” oreal, expondo-o como algo sem sentido, embora continuandoà espera que algum acontecimento possa preencher essevazio <strong>de</strong>ixado pela ausência <strong>de</strong> fé no sobrenatural. ComoJackson <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>:Religious or spiritual epiphany becomes inconceivable:matter is merely matter, unre<strong>de</strong>emed, yet strangelyhollowed out, insufficient in itself, without meaning,without transcen<strong>de</strong>nce, mo<strong>de</strong>rn fantasy still functionsas if meaning and transcen<strong>de</strong>nce were to be found. Ituncovers mere absence and emptiness yet it continuesits quest for an absolute. Waiting, impossible expectation,l’attente, are characteristics of mo<strong>de</strong>rn fiction, fromKafka to Beckett and Pynchon (Jackson 1981: 159).Tal como em A Metamorfose <strong>de</strong> Kafka, Gregor Samsa é,efectivamente, (não metaforicamente) transformado eminsecto sem qualquer razão aparente, também na ficçãolovecraftiana o “Exterior” não-sobrenatural irrompe e estilhaçaas vi<strong>das</strong> <strong>de</strong> todos aqueles que com ele contactam,revelando algo mais para além da realida<strong>de</strong> aparente, massem que essas revelações correspondam aos anseios <strong>de</strong> umsentido absoluto para a vida. Pelo contrário, o contacto como “Exterior” apenas revelará mais arbitrarieda<strong>de</strong>, caos eausência <strong>de</strong> qualquer sentido teleológico para o Universo.Tal como a transformação em A Metamorfose não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Samsa, também as pacatas personagens <strong>de</strong>Lovecraft não têm outra opção a não ser <strong>de</strong>ixarem-se serarrasta<strong>das</strong> pelo turbilhão <strong>de</strong> acontecimentos a que se vêminvoluntariamente presas. Outras partes em comum sãopossíveis <strong>de</strong> encontrar entre as ficções <strong>de</strong>stes dois autores,nomeadamente a progressiva perda <strong>de</strong> significado e valorda linguagem, temática recorrente na ficção mo<strong>de</strong>rnista. Damesma forma que Gregor Samsa per<strong>de</strong> progressivamente acapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se fazer enten<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r os objectosque o ro<strong>de</strong>iam, também as personagens principais em Lovecraftse vêem confronta<strong>das</strong> com essa situação. Des<strong>de</strong> osininteligíveis sons guturais (<strong>de</strong>s)articulados pelos <strong>de</strong>formadoshabitantes <strong>de</strong> Innsmouth, passando pelos alienígenas, as50 51frases encantatórias dos seguidores <strong>de</strong> Cthulhu, até às misteriosaspalavras “Tekele-li” proferi<strong>das</strong> pelo protagonistaenlouquecido <strong>de</strong> At the Mountains of Madness, a temática daperda <strong>de</strong> significado não passou ao lado do mestre <strong>de</strong> Provi<strong>de</strong>nce.Ela manifesta-se, igualmente, na perda <strong>de</strong> sentido<strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> que julgavam conhecer, mas que se revelanuma plenitu<strong>de</strong> inabarcável e, por isso, incompreensível.A ânsia por algo que substitua o espaço <strong>de</strong>ixado pelaausência <strong>de</strong> espiritualida<strong>de</strong> na contemporaneida<strong>de</strong> aumentaperante uma total ausência <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção. Inquietações semelhantessão possíveis <strong>de</strong> encontrar nas várias obras <strong>de</strong>Thomas Pynchon, referido na introdução <strong>de</strong>sta dissertação,quando nos confrontamos com as suas personagens envoltasna teia labiríntica <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> inteiramente secularizada,exce<strong>de</strong>ntária <strong>de</strong> produtos materiais, mas <strong>de</strong>ficitária <strong>de</strong>sentido e <strong>de</strong> significados. Segundo Jackson, a palavra-chaveda ficção <strong>de</strong> Pynchon é “entropia”, num irresistível movimentopara a <strong>de</strong>cadência e ausência <strong>de</strong> movimento:Entropy does not function metaphorically for Pynchon,but literally: it is apprehen<strong>de</strong>d as the conditionof life, and one which is peculiarly appropriate as anexpression of the world running down with consumerculture. He tells of the exhaustian of social andof secular systems alike (Jackson 1981: 167).Em “The Horror at Red Hook”, escrito por Lovecraftenquanto se encontrava mergulhado no caleidoscópio<strong>de</strong> raças, línguas, culturas e competitivida<strong>de</strong> capitalistanova-iorquina, é possível perceber a ausência <strong>de</strong> sentido e<strong>de</strong>cadência provocada pela metrópole, atestando a incapacida<strong>de</strong>da vida mo<strong>de</strong>rna em conferir sentido aos anseios <strong>de</strong>significado do escritor e dos protagonistas <strong>das</strong> suas obras.Tal como em Pynchon, as massas humanas <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntesfun<strong>de</strong>m-se com o ambiente igualmente <strong>de</strong>crépito, tornando-seum só e atestando um materialismo tudo menos re<strong>de</strong>ntor,característico da cultura contemporânea. Fica assimrealçado o <strong>de</strong>sprezo que Lovecraft nutria pelo excessivomaterialismo da socieda<strong>de</strong>, sua contemporânea, e um sentimento<strong>de</strong> nostalgia por uma época que, temporalmente nãoera a sua.Consequência da sua recusa <strong>de</strong> qualquer sentido religiosoou influência sobrenatural, o resultado do contacto como Exterior, com a realida<strong>de</strong> para além da aparência quotidiana,é, no caso <strong>de</strong> H. P. Lovecraft, quase sempre trágico:The negative versions (inversion) of unity, found in themo<strong>de</strong>rn fantastic, from Gothic novels – Mary Shelley,Elizabeth Gaskell, Dickens, Poe, Dostoevsky, Stevenson,Wil<strong>de</strong> – to Kafka, Cortázar, Calvino, Lovecraft,Peake and Pynchon, represent dissatisfaction and frustrationwith a cultural or<strong>de</strong>r which <strong>de</strong>flects or <strong>de</strong>feats<strong>de</strong>sire, yet refuse to have recourse to compensatory,transcen<strong>de</strong>ntal other-worlds (Jackson 1981: 180).A impotência <strong>das</strong> personagens perante acontecimentosque as ultrapassam muito em gran<strong>de</strong>za é, segundo RichardChase, autor <strong>de</strong> The American Novel and its Tradition, uma herançacalvinista, portanto estreitamente ligada à fundaçãoda nação americana e da sua mentalida<strong>de</strong> intrínseca. Para oscalvinistas, o Homem é um ser impotente, incapaz <strong>de</strong> modificaraquilo que já foi pré-<strong>de</strong>lineado pela entida<strong>de</strong> suprema.A mentalida<strong>de</strong> dos autores mo<strong>de</strong>rnos afasta-se e, ao mesmotempo, aproxima-se <strong>de</strong>sta concepção. O Homem continua aser incapaz <strong>de</strong> se impor perante forças irresistíveis, incompreensíveise contraditórias, permanecendo uma vítima.É evi<strong>de</strong>nte que na obra lovecraftiana, essa impotêncianão é posta em evidência por uma entida<strong>de</strong> sobrenatural,entendida numa perspectiva religiosa, mas sim pelos terroresvindos do Cosmos longínquo, produzindo efeitos semelhantese induzindo o pretendido terror cósmico. Nãoobstante as terríveis consequências que daí possam advir,a atracção <strong>das</strong> personagens e do próprio autor pelo terrívelfaz parte, segundo Richard Chase, do código genético daliteratura americana, não sendo também ausente o própriocarácter romântico, <strong>de</strong> alguma forma, presente no escritoramericano e que se revela na recusa <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> quaseunicamente centrada na prosperida<strong>de</strong> material. No seio <strong>de</strong>sta,personalida<strong>de</strong>s sensíveis e mal-prepara<strong>das</strong> <strong>de</strong> um ponto<strong>de</strong> vista pragmático não se sentiriam à vonta<strong>de</strong>, como foiclaramente o caso <strong>de</strong> Lovecraft. A redução até à insignificância<strong>de</strong> um mundo material e <strong>de</strong> uma mentalida<strong>de</strong> antropocêntrica,face a um Cosmos vastíssimo e povoado <strong>de</strong>seres quase omnipotentes, po<strong>de</strong>rá ser interpretado comouma forma <strong>de</strong>, na sua imaginação, tudo aquilo que limitou oescritor na sua vida ser colocado em perspectiva e adjectivado<strong>de</strong> insignificante, inconsequente e transitório.Na mais pura tradição gótica americana, o <strong>de</strong>spertar do“Gran<strong>de</strong> Cthulhu” po<strong>de</strong>rá ser entendido como um regressodo reprimido, do outro lado do optimismo americano, potenciadopelos avanços científicos e tecnológicos do iníciodo século XX, contemporâneo do escritor americano e comcujas consequências sociais, económicas e culturais este nãose i<strong>de</strong>ntificava. Não nos querendo basear numa leitura psicanalistada obra do escritor, é quase incontornável concordarcom Maggie Kilgour quando esta afirma que “psychoanalysisis a late gothic story” (Kilgour 1995:61).Apesar <strong>de</strong>, na sua ficção, Lovecraft preten<strong>de</strong>r dar vidaa seres concretos e materiais, potencialmente explicáveis àluz da Ciência, com a qual tinha uma relação ambivalente,dificilmente po<strong>de</strong>remos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> olhar para estes produtosda sua imaginação e criativida<strong>de</strong> como “fantasmas” <strong>das</strong> suasansieda<strong>de</strong>s mais profun<strong>das</strong>.Northrop Frye, citado por Neil Cornwell em The LiteraryFantastic – From Gothic to Postmo<strong>de</strong>rnism corrobora esta posição,se enten<strong>de</strong>rmos “fantasy” como “fantastic”, tal comoCornwell o faz:Fiction in the last generation or so has turned increasinglyfrom realism to fantasy, partly because fantasyis the normal technique for fiction writers who do notbelieve in the permanence or continuity of the societythey belong to (Frye, cit Cornwell 1990: 211).
THE COLOUR OUT OFSPACE E O MARAVILHOSOCIENTÍFICOcrescimento não parece passível <strong>de</strong> vir a ser controladopelo conhecimento e pela vonta<strong>de</strong> humana, pelo que, emmuitos casos, a mensagem vai no sentido <strong>de</strong> um alertapara não explorarmos as fronteiras do conhecimento em<strong>de</strong>masia. Não parece contudo evi<strong>de</strong>nte, neste e noutroscontos, tais como “The Call of Cthulhu”, ou na novela Atthe Mountains of Madness, por exemplo, que o conhecimentoseja intrinsecamente mau. De forma geral, as personagenscria<strong>das</strong> por Lovecraft não procuram o saber comobjectivos sinistros, como acontece por exemplo com VictorFrankenstein, ou outros protagonistas acometidos <strong>de</strong>uma hubris <strong>de</strong>smedida. Com efeito, o orgulho <strong>de</strong>smesuradonão parece representar um tema tão forte na ficçãolovecraftiana como noutros autores.O que alguns dos contos do mestre <strong>de</strong> Provi<strong>de</strong>nce nosparecem querer dizer é que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do nossoconhecimento, e dos nossos maiores esforços, os terríveisacontecimentos <strong>de</strong> dimensão cósmica irão continuara acontecer, com a diferença agravante <strong>de</strong> que agora omundo parecerá bem mais ameaçador aos olhos humanos,<strong>de</strong>stroçada que está para sempre a ”placid island of ignorancein the midst of black seas of infinity” (Lovecraft1994: 61), que Lovecraft refere no início <strong>de</strong> “The Call ofCthulhu”.Uma vez que este conto particular respeita a condição<strong>de</strong> transversalida<strong>de</strong> do tema analisado no ponto anterior,será pertinente falar aqui sobre “a indiferença doUniverso e a realida<strong>de</strong> para além da aparência”. Para alémdisso, é particularmente ilustrativo da questão enunciada notópico anterior, levando aos limites o nosso entendimentoacerca do que po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado natural e sobrenaturalna ficção do autor. Com efeito, da<strong>das</strong> as características totalmentein<strong>de</strong>fini<strong>das</strong> e alienígenas da “entida<strong>de</strong>” que, comoveremos, causa a <strong>de</strong>struição gradual <strong>de</strong> toda uma família e a<strong>de</strong>cadência <strong>de</strong> uma vasta área rural, torna-se difícil enten<strong>de</strong>r,concretamente, do que se trata e se a mesma po<strong>de</strong>rá seralgum dia explicável pela Ciência.Tal como a narrativa no-la apresenta, essa explicação ée será durante muito tempo inatingível. Narrado na primeirapessoa por um agrimensor <strong>de</strong>stacado para os trabalhosiniciais da construção <strong>de</strong> um reservatório <strong>de</strong> água, “The ColourOut of Space” dá conta dos acontecimentos terríveis,que se seguiram à queda <strong>de</strong> um estranho meteorito. O objectocaído do espaço <strong>de</strong>ixa uma enorme clareira on<strong>de</strong> nenhumavegetação voltou a crescer, referida no conto como“blasted heath” mas, ao mesmo tempo, potencia um crescimentoanormalmente exuberante da vegetação circundante,para além <strong>de</strong> notórias, se bem que in<strong>de</strong>fini<strong>das</strong>, alteraçõesmorfológicas nos animais. O conto é ainda o relato em analepseda <strong>de</strong>cadência física e mental <strong>de</strong> uma família expostaàs estranhas radiações, culminando na sua <strong>de</strong>gradação e<strong>de</strong>struição total. É inevitável recordarmos o que aconteceuà família Curie, exposta à radiação durante um longo período<strong>de</strong> tempo, na sua busca pelo conhecimento, embora sejapossível que Lovecraft não tenha associado conscientementeesse facto à sua história. A construção do reservatório <strong>de</strong>água serviria para encobrir os efeitos visíveis do fenómeno,embora o futuro consumo daquela água fosse esten<strong>de</strong>r acontaminação exponencialmente. Um dos aspectos mais relevantesdo conto para este trabalho diz respeito à análise dometeorito, levada a cabo por uma equipa <strong>de</strong> cientistas. Estaanálise não obtém qualquer explicação satisfatória, pois omaterial analisado possui características claramente alienígenas,fora do presente alcance da Ciência humana:Stubbornly refusing to grow cool, it soon had the collegein a state of real excitement; and when upon heatingbefore the spectroscope it displayed shining bands unlikeany known colours of the normal spectrum therewas much breathless talk of new elements, bizarre opticalproperties, and other things which puzzled men ofscience are wont to say when faced by the unknown.(…) Asi<strong>de</strong> from being almost plastic, having heat, magnetism,and slight luminosity, cooling slightly in powerfulacids, possessing an unknown spectrum, wastingaway in air, and attacking silicon compounds with mutual<strong>de</strong>struction as a result, it presented no i<strong>de</strong>ntifyingfeatures whatsoever; and at the end of the tests the collegescientists were forced to own that they could notplace it. It was nothing of this earth, but a piece of thegreat outsi<strong>de</strong>; and as such dowered with outsi<strong>de</strong> propertiesand obedient to outsi<strong>de</strong> laws (Lovecraft 1994:242-243).Embora os cientistas não consigam explicar aquele estranhoobjecto, nem sequer <strong>de</strong>terminar se se tratava <strong>de</strong>uma entida<strong>de</strong> viva ou não, Lovecraft não opta pela viahabitualmente utilizada por autores mais tradicionais. Bem<strong>de</strong> acordo com o modo fantástico, a dúvida sobre aquelamisteriosa entida<strong>de</strong> permanece, embora no seio da sua ficçãoo escritor <strong>de</strong>ixe a porta entreaberta para uma futura explicaçãoatravés da Ciência. Ainda que o “meteorito” nãose pareça comportar <strong>de</strong> acordo com as leis conheci<strong>das</strong> pelaCiência, comportar-se-á <strong>de</strong> acordo com outras que, por enquanto,ainda <strong>de</strong>sconhecemos, constituindo um exemplo <strong>de</strong>que o sobrenatural po<strong>de</strong> ser visto como uma parte do real,por enquanto ainda <strong>de</strong>sconhecido. Esta é uma perspectivaque a poetisa Emily Dickinson já havia intuído e afirmadonuma <strong>das</strong> suas cartas: ”I was thinking today, as I noticed,that the ‘Supernatural’, was only the natural disclosed” 1 .Das múltiplas leituras pertinentes para o tema em análisee que são permiti<strong>das</strong> pelo conto, <strong>de</strong>stacaríamos, uma vezmais, a intromissão do “exterior” na vida do Homem. Ometeorito constitui um elemento tão alienígena, tão exteriorao Homem e ao ambiente que pensamos dominar,que nem a natureza da ameaça po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>terminar. Torna-sedifícil enten<strong>de</strong>r se a ameaça e as suas consequênciasnefastas para os seres humanos são <strong>de</strong>libera<strong>das</strong> ou não,numa evi<strong>de</strong>nte alusão à indiferença do Universo perantea Humanida<strong>de</strong>.A relação da Ciência com a realida<strong>de</strong> posta a <strong>de</strong>scobertoé também interessante, pois coloca em evidência aincapacida<strong>de</strong> em lidar com possíveis <strong>de</strong>scobertas que acuriosida<strong>de</strong> humana possa vir a realizar. Mesmo após osacontecimentos terríveis na “blasted heath” pareceremterminados, não havendo mais vítimas humanas a registar,a ameaça subsiste na forma <strong>de</strong> uma clareira que seexpan<strong>de</strong> lenta, mas inexoravelmente, ano após ano. Esse1 In http://www.theatlantic.com/unbound/poetry/emilyd/edletter.htm, consultado a23 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 2008.52 53“TERROR CÓSMICO”UMA PERSPECTIVA EXISTENCIALISTAWilliam Van O’Connor na sua obra The Grotesque: AnAmerican Genre and Other Essays afirma o seguinte:There is of course a <strong>de</strong>eply existentialist drift in mo<strong>de</strong>rnfiction, European and American. Medieval orRenaissance man could dream of the harmonies implicitin the doctrine of the microcosm-macrocosm relationship.Citizens in Pope’s world could dream of theharmonies of a mechanistically or<strong>de</strong>red universe. Shelleyand Byron could reassert that man was a Prometheus.Herbert Spencer and others testified to havingobserved that evolution is biological, social and moral.Common to all of these doctrines is the belief that manmay rely on spiritual and rational forces in the universe.There was an or<strong>de</strong>r of things upon which he could <strong>de</strong>pendfor succor, a sense of purpose, and the assurancethat he was rational. The mo<strong>de</strong>rn writer seems certainonly of uncertainty (O’Connor 1962: 17).Uma perspectiva existencialista também po<strong>de</strong>rá ajudar aexplicar a actualida<strong>de</strong> da ficção lovecraftiana, embora, numprimeiro momento, esta pareça ser difícil <strong>de</strong> conciliar comoutras posições <strong>de</strong>fendi<strong>das</strong> na sua ficção e correspondênciapessoal. À primeira vista, o autor parece, através da sua féna Ciência, essencialmente mecanicista, ou também comoviria a ser conhecido posteriormente, mais próximo <strong>de</strong> umpositivismo lógico, algo que o afastaria, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, <strong>de</strong>ssaperspectiva filosófica. No entanto, uma análise mais cuidadosapo<strong>de</strong>rá mostrar-nos algo diferente. Lovecraft não seencontra exclusivamente preso a uma perspectiva objectivado mundo. O autor percebe as limitações dos nossos sentidose as consequentes dificulda<strong>de</strong>s para a obtenção <strong>de</strong>ssa,por muitos almejada, objectivida<strong>de</strong>.É conhecida a importância que os sonhos <strong>de</strong>têm nasua obra e os mesmos eram muitas vezes vistos pelo autorcomo uma forma tão ou mais válida do que as outras convencionalmenteaceites para um conhecimento autêntico darealida<strong>de</strong>. Essa forma <strong>de</strong> ace<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong>s escondi<strong>das</strong> por“<strong>de</strong>trás <strong>de</strong> véus” não estará acessível a todos, apenas os maissensíveis o po<strong>de</strong>rão fazer, ainda que os mesmos possam vira correr o risco <strong>de</strong> serem mal-interpretados pela maioria.Vejamos o início do conto “The Tomb”:It is an unfortunate fact that the bulk of humanity istoo limited in its mental vision to weigh with patienceand intelligence those isolated phenomena, seen andfelt only by a psychologically sensitive few, which lieoutsi<strong>de</strong> its common experience. Men of broa<strong>de</strong>r intellectknow that here is no sharp distinction betwixt thereal and the unreal; that all things appear only as theydo only by virtue of the <strong>de</strong>licate individual physical andmental media through which we are ma<strong>de</strong> consciousof them; but the prosaic materialism of the majoritycon<strong>de</strong>mns as madness the flashes of supersight whichpenetrate the common veil of obvious empiricism (Lovecraft1987: 18).