11.07.2015 Views

O Dia das - Saída de Emergência

O Dia das - Saída de Emergência

O Dia das - Saída de Emergência

SHOW MORE
SHOW LESS
  • No tags were found...

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

pelos não-cegos, <strong>de</strong>ntro do manicómio isolado transmitem,nesse mol<strong>de</strong>, mais uma apreciação negativa sobre um estilocosmopolita <strong>de</strong> viver, uma aversão sentida pela cultura capitalista,que uma escalpelização da inumanida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>ser influenciada pelo cativeiro 2 . O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s é, nessesentido, mais sincero: numa curva ascen<strong>de</strong>nte gulliveriana,Masen vai contactando com várias bolsas <strong>de</strong> população quesobrevivem <strong>de</strong> acordo com muitas filosofias diferentes. Apersonagem encontra grupos que se aproximam mais dolado esquerdo do espectro político e outros que estão mais àdireita: existe uma pluralida<strong>de</strong> que está ausente no romance<strong>de</strong> Saramago, porque no livro <strong>de</strong>le parece que só existe umaforma <strong>de</strong> ser mau e uma forma <strong>de</strong> ser bom.A monstruosida<strong>de</strong> em Ensaio Sobre a Cegueira e O <strong>Dia</strong><strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s não é, com efeito, uma consequência da cegueira.Nasce, com maior autorida<strong>de</strong>, <strong>das</strong> nossas próprias noçõessobre o que é normal e higiénico; da i<strong>de</strong>ia que, na culturaoci<strong>de</strong>ntal, qualquer coisa que se distancie, pela singularida<strong>de</strong>,dos mo<strong>de</strong>los afeiçoados aos cânones, se transforma numacontagiosa fonte <strong>de</strong> horrores. Quando lemos sobre um cegoa apalpar as fezes dos companheiros <strong>de</strong> reclusão enquantoprocura o buraco da latrina para se aliviar, não po<strong>de</strong>mosfazer nada a respeito disso. E quando lemos sobre trífi<strong>de</strong>s aalimentarem-se <strong>de</strong> corpos em <strong>de</strong>composição, também não.Ambas as situações são obscenas fugas à norma – aci<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> percurso: testemunhá-las <strong>de</strong>ixa-nos muitíssimovulneráveis. Uma vulnerabilida<strong>de</strong> que se misturacom o nojo, mas esse sentimento é, em últimaanálise, <strong>de</strong> pechisbeque diante da biologia. Convido-vosa uma pequena experiência: façam umabola <strong>de</strong> saliva <strong>de</strong>ntro da boca e engulam-na; emseguida, façam outra bola <strong>de</strong> saliva, cuspam-napara <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um copo e engulam-na. Se nãotiveram problemas em realizar a primeira operação,certamente irão recusar-se a fazer a segunda. Masporquê? A saliva é a mesma; não adquiriu, magicamente,proprieda<strong>de</strong>s tóxicas ao ser vertida para o copo. A experiênciamostra que o conceito que classifica o que é asquerosonada tem a ver com a biologia, mas tem tudo a ver com acultura. «Po<strong>de</strong> ser que o nojo tenha uma estrutura que se impõe nasnossas noções culturais?», pergunta William Ian Miller no livroThe Anatomy of Disgust (Harvard University Press, 1997. Pág.62). O livro <strong>de</strong> Miller é o melhor ensaio que conheço sobrea temática do nojo, enquanto agente formador do humano;2 «(…) se não nos parecer sufi ciente o que entregarem, simplesmente nãocomem, entretenham-se a mastigar as notas <strong>de</strong> banco e a trincar os brilhantes.»“Ensaio Sobre a Cegueira” (Editorial Caminho, 1995. Págs. 140-141).«Entalado entre dois carros, o corpo <strong>de</strong> um homem apodrece. A mulher do médico<strong>de</strong>svia os olhos. O cão <strong>das</strong> lágrimas aproxima-se, mas a morte intimida-o (…)Atravessaram uma praça on<strong>de</strong> havia grupos <strong>de</strong> cegos que se entretinham aescutar os discursos doutros cegos, à primeira vista não pareciam cegos nem unsnem outros, os que falavam viravam infl amadamente a cara para os que ouviam,os que ouviam viravam atentamente a cara para os que falavam. Proclamavam-seali os princípios fundamentais dos gran<strong>de</strong>s sistemas organizados, a proprieda<strong>de</strong>privada, o livre câmbio, o mercado, a bolsa, a taxação fi scal, o juro, a apropriação,a <strong>de</strong>sapropriação, a produção, a distribuição, o consumo, o abastecimento eo <strong>de</strong>sabastecimento, a riqueza e a pobreza, a comunicação, a repressão e a<strong>de</strong>linquência, as lotarias, os edifícios prisionais, o código penal, o código civil, ocódigo <strong>de</strong> estra<strong>das</strong>, o dicionário, a lista <strong>de</strong> telefones, as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prostituição,as fábricas <strong>de</strong> materiais <strong>de</strong> guerra, as forças arma<strong>das</strong>, os cemitérios, apolícia, o contrabando, as drogas, os tráfi cos ilícitos permitidos, a investigaçãofarmacêutica, o jogo, o preço <strong>das</strong> curas e dos funerais, a justiça, o empréstimo,os partidos políticos, as eleições, os parlamentos, os governos, o pensamentoconvexo, o côncavo, o plano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso,o fugido, a ablação <strong>das</strong> cor<strong>das</strong> vocais, a morte da palavra. Aqui fala-se <strong>de</strong>organização, disse a mulher do médico ao marido. Já reparei, respon<strong>de</strong>u ele, ecalou-se.» “Ensaio Sobre a Cegueira” (Págs. 295-296).uma <strong>das</strong> i<strong>de</strong>ias que o autor avança, para interrogar como éque ele se manifesta, relaciona-se com o tema da Inconformida<strong>de</strong>:«(…) coisas que metem nojo porque falham em se encaixarnas nossas expectativas. Explica-se, <strong>de</strong>sse modo, o nojo que po<strong>de</strong> provocara pele <strong>de</strong> um homem que possua o toque <strong>das</strong> escamas <strong>de</strong> um réptile o nojo que po<strong>de</strong> provocar as escamas <strong>de</strong> um réptil que possuam o toqueda pele humana.» 3 Nessa perspectiva, os militares e os cegos“malvados” [sic] <strong>de</strong> Saramago, mais os hooligans <strong>de</strong> Wyndhampossuem uma falsa humanida<strong>de</strong>: são humanos só porquenão são, morfologicamente, monstros!... Esse papel está, emexclusivo, reservado às trífi<strong>de</strong>s.Em suma: nós, leitores <strong>de</strong>sprevenidos, po<strong>de</strong>mos sentirnojo pelo médico cego que tacteia na trampa em busca dacloaca 4 , mas imagino que uma enfermeira, por exemplo, quecontacta com fezes, escarros e sangue o dia inteiro, tenha“Os efeitos provocados pela epi<strong>de</strong>mia têmuma dimensão maior que a especulação sobrea sua procedência ou a busca por uma cura.”uma reacção diferente ao ler o mesmo texto. Talvez pieda<strong>de</strong>.Ou ennui… Outro livro que recomendo a quem <strong>de</strong>seja lercom maior rigor sobre esta temática é Pouvoirs <strong>de</strong> l’Horreur:Essai Sur l’Abjection <strong>de</strong> Julia Kristeva (Seuil, 1980), mas TheAnatomy of Disgust é que é o título fundamental. Para remataresta sumária incursão sobre o asco, e o modo como essaemoção se relaciona com a cultura, transcrevo esta passagem<strong>de</strong> A Insustentável Leveza do Ser <strong>de</strong> Milan Kun<strong>de</strong>ra (apenasporque o trecho é muito a<strong>de</strong>quado a este tópico): «Quando euera pequeno, punha-me a olhar para uma imagem <strong>de</strong> Deus Nosso Senhor<strong>de</strong> pé, em cima <strong>de</strong> uma nuvem que havia no Antigo Testamento,contado às crianças e ilustrado com gravuras <strong>de</strong> Gustave Doré, que costumavafolhear. Era um senhor bastante velho, com olhos, nariz, umagran<strong>de</strong> barba, e eu achava que, como tinha boca, também <strong>de</strong>via comer.E, se comia, também <strong>de</strong>via ter intestinos. Mas fi cava logo assustadocom a i<strong>de</strong>ia porque, embora a minha família fosse quase ateia, percebiabem a blasfémia que era pensar que Deus Nosso Senhor tinha intestinos.Sem a mínima preparação teológica, com toda a espontaneida<strong>de</strong>,a criança que eu era então já compreendia, portanto, a fragilida<strong>de</strong> datese fundamental da antropologia cristã, segundo a qual o homem foicriado à imagem e semelhança <strong>de</strong> Deus. Das duas, uma: ou o homemfoi criado à imagem <strong>de</strong> Deus e Deus tem intestinos, ou Deus não temintestinos e o homem não se parece nada com ele. Os gnósticos antigossentiam-no tão claramente como eu, aos cinco anos. Para acabar <strong>de</strong>uma vez por to<strong>das</strong> com este maldito problema, Valentino, grão-mestreda Gnose do século II, afi rmava que Jesus “comia, bebia, mas não3 “The Anatomy of Disgust.” Pág. 62.4 “Ensaio Sobre a Cegueira”. Págs. 96-97.28 29<strong>de</strong>fecava”. A merda é um problema teológico mais difícil do que o mal.Deus ofereceu a liberda<strong>de</strong> ao homem e, portanto, po<strong>de</strong> admitir-se queele não é responsável pelos crimes da humanida<strong>de</strong>. Mas a responsabilida<strong>de</strong>pela existência da merda incumbe inteiramente àquele que criouo homem, e só a ele.» 5 O que é bem verda<strong>de</strong>: é que a primeiracoisa que se <strong>de</strong>senvolve no embrião humano, pelo processoiniciático conhecido por gastrulação, é o ânus!...O regresso do rei Após a queda <strong>das</strong> Twin Towersdo World Tra<strong>de</strong> Center, em 2001, não po<strong>de</strong>mos ler certaspassagens <strong>de</strong> O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s sem sentir um calafrio na espinha;com honestida<strong>de</strong>, o calafrio já lá estava, enrolando-secomo uma serpente, mas as imagens pós-11 <strong>de</strong> Setembrooferecem-nos ícones certeiros para dar substância a <strong>de</strong>termina<strong>das</strong>frases que, sem esse suporte visual, po<strong>de</strong>riam seranedia<strong>das</strong> pela negação da imaginação. Quando lemos sobreos indivíduos cegos que se suicidam na primeira partedo romance, atirando-se <strong>das</strong> janelas, não são os cidadãos aprecipitar-se no asfalto <strong>de</strong> Manhattan, para fugir ao incêndioque <strong>de</strong>strói os escritórios, aqueles em que pensamos? «By thewindow he paused. With one hand he felt his position very carefully.Then he put both arms around her, holding her to him. “Too won<strong>de</strong>rfulto last, perhaps”, he said softly. “I love you, my sweet, I love you sovery, very much”. She tilted her lips up to him to be kissed. As helifted her he turned, and stepped out of the window.» 6 No livro <strong>de</strong>Saramago, as imagens que vêm à memória são as que construímoscom base no que vimos sobre os campos <strong>de</strong> concentraçãodos diversos regimes totalitários do século XX; oque não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> alçar interrogações interessantes: se, 1) aocontrário do livro <strong>de</strong> Wyndham, a cegueira colectiva está, <strong>de</strong>início, localizada numa pequena amostra <strong>de</strong> indivíduos, então2) qual é a lógica do “governo” [sic] montar um onerosoaparato pseudo-nazi (ou pseudo-estalinista), com a ajuda doexército, para <strong>de</strong>ixar meia-dúzia <strong>de</strong> cegos a morrer à míngua?De facto, não é <strong>de</strong>scrita nenhuma tentativa por parte<strong>das</strong> autorida<strong>de</strong>s em compreen<strong>de</strong>ros sintomas dacegueira ou como se po<strong>de</strong>riaachar uma vacina. Aacção <strong>de</strong>liberada é, apenas,o isolamento dos doentes,em condições que não garantemnenhuma forma<strong>de</strong> evitar que a cegueirase espalhe fora <strong>de</strong> portas.As intenções do autor são,neste sentido, <strong>de</strong>masiadoevi<strong>de</strong>ntes para que surtam“Coisas que metem nojoporque falham em seencaixar nas nossasexpectativas.”um efeito genuíno: ou o leitor aceita ser manipulado e avançana leitura ou não aceita e fecha o livro. Não existe mesmoum meio-termo. O mesmo tipo <strong>de</strong> artifício está presenteno livro Ensaio Sobre a Luci<strong>de</strong>z (Editorial Caminho, 2004),que possui muitos pontos em comum com Ensaio Sobre aCegueira (tantos que po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado uma sequela), masenquanto este se aproxima da ficção-científica, o outro temuma tonalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> romance policial: a segunda meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>Ensaio Sobre a Luci<strong>de</strong>z lê-se como uma novela <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectives.Ambos os títulos contêm i<strong>de</strong>ias que, à partida, oferecemoportunida<strong>de</strong>s excelentes para se escrever ensaios interessantessobre relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a fragilida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>mocracia5 “A Insustentável Leveza do Ser” (RBA Editores, 1994. Pág. 260).e o que significa ser-se humano em condições <strong>de</strong>sumanas:convido-vos a ler os livros para concluírem sobre o sucesso<strong>de</strong>sses empreendimentos, já que a este texto apenas competeuma leitura paralela entre Ensaio Sobre a Cegueira e O <strong>Dia</strong><strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s, sem incorrer num <strong>de</strong>svio para à análise crítica;que vise, ou não, olhar para o conjunto formado pelas obrasdos dois autores.Em O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s po<strong>de</strong>-se ler o seguinte: «”Make arule for yourself not to speak to anyone, and nobody’s going to guessyou can see. It was only being quite unprepared that lan<strong>de</strong>d you in thatmess before. In the country of the blind the one-eyed man is king.”“Oh yes – Wells said that, didn’t he? Only in the story it turned outnot to be true.” “The crux of the difference lies in what you mean bythe word ‘country’ – patria in the original,” I said. “Caecorum inpatria luscus rex imperat omnis – a classical gentleman calledFullonius said that: it’s all anyone seems to remember about him. Butthere’s no organized patria, no state, here – only chaos. Wells imagineda people who had adapted themselves to blindness. I don’t thinkthat is going to happen here – I don’t see how it can.”» 7 Wyndhamrefere-se à história The Country of the Blind <strong>de</strong> H. G. Wells,publicada na revista The Strand, em 1904.O conto <strong>de</strong> Wells fala sobre um alpinista chamado Nunezque, por aci<strong>de</strong>nte, encontra uma al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> indígenas cegos;o recém-chegado <strong>de</strong>pressa compreen<strong>de</strong> que a cegueiraé congénita e pensa em tornar-se lí<strong>de</strong>r da comunida<strong>de</strong>: emterra <strong>de</strong> cegos quem tem um olho é rei, pensa. Contudo, adaptadosa uma vida inteira sem o sentido da visão, os al<strong>de</strong>ões nãocompreen<strong>de</strong>m as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> Nunez, nementen<strong>de</strong>m o conceito <strong>de</strong> ver; tomando-o porum louco inofensivo, <strong>de</strong>ixam-no à sua sorte.Mais tar<strong>de</strong>, o alpinista enamora-se por umaíndia chamada Medina-Saroté; para casarcom ela, concorda em que lhe sejam furadosos olhos, <strong>de</strong>vido à suspeita partilhada pelosrestantes que a tal visão seja, afinal <strong>de</strong> contas,uma doença perigosa. Todavia, na noiteanterior à cerimónia, Nunez foge, <strong>de</strong>cididoa encontrar o caminho <strong>de</strong> regresso à civilização;apesar <strong>de</strong> conseguir sair do vale perdido,morre, <strong>de</strong>sorientado, nas montanhas. A máxima<strong>de</strong> Fellonius entrou no léxico oci<strong>de</strong>ntal pela mão <strong>de</strong>Erasmus <strong>de</strong> Roterdão, que a compilou no volume Adagia(1500); o conto <strong>de</strong> Wells mostra que, por vezes, possuir umavantagem po<strong>de</strong> tornar-se em <strong>de</strong>svantagem.O tema da Inconformida<strong>de</strong> está presente em outrasobras literárias bastante conheci<strong>das</strong>, como A Peste <strong>de</strong> AlbertCamus (1947), A Metamorfose <strong>de</strong> Franz Kafka (1915) e Os Filhosdo Homem <strong>de</strong> P. D. James (1992); um exemplo muitíssimocurioso é uma peça teatral <strong>de</strong> Eugène Ionesco chamada Rhinocéros(1959), na qual a Inconformida<strong>de</strong> advém da transformaçãoem rinocerontes <strong>de</strong> todos os habitantes <strong>de</strong> uma vilafrancesa. Recupero aqui aquilo que escrevi sobre a temática6 “The Day of the Triffi ds” (Mo<strong>de</strong>rn Library, 2003. Pág. 68).

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!