11.07.2015 Views

5 A presente obra respeita as regras do Novo Acordo Ortográfico.

5 A presente obra respeita as regras do Novo Acordo Ortográfico.

5 A presente obra respeita as regras do Novo Acordo Ortográfico.

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

A <strong>presente</strong> <strong>obra</strong> <strong>respeita</strong> <strong>as</strong> regr<strong>as</strong><strong>do</strong> <strong>Novo</strong> Acor<strong>do</strong> Ortográfico.5


n<strong>as</strong> que atravessavam o Mar Branco, nome que os turcos davam ao Mediterrâneo.Provinha da Ordem de S. João, um pequeno ban<strong>do</strong> de cavaleiroscristãos que travava uma incansável guerra sem quartel contra to<strong>do</strong>s os queseguiam os ensinamentos de Maomé. Aqueles cavaleiros eram tu<strong>do</strong> o querestava d<strong>as</strong> grandes ordens religios<strong>as</strong> que em tempos tinham <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> aTerra Santa, até serem expuls<strong>as</strong> por Saladino. A Ordem estava agora instaladanum roche<strong>do</strong> inóspito, a ilha de Malta, que lhes fora ofereci<strong>do</strong> pelorei de Espanha. A partir dali, os cavaleiros e <strong>as</strong> su<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> aventuravam-semar adentro para atacar os muçulmanos onde quer que os encontr<strong>as</strong>sem. Eera <strong>as</strong>sim que, naquela noite sem luar, uma d<strong>as</strong> embarcações de combate daOrdem se estava a preparar para atacar a grande nave mercante ancoradaali tão perto.— O saque será rico… — adiantara Thom<strong>as</strong>.— É bem verdade, m<strong>as</strong> estamos aqui para, antes de mais, fazer o trabalhode Deus — relembrara-lhe o capitão, em tom austero. — Tu<strong>do</strong> o queconseguirmos será bem empregue para prosseguir o combate aos que seguema falsa fé.— Sim, senhor. Sei-o bem — retorquira Thom<strong>as</strong>, apazigua<strong>do</strong>r e envergonha<strong>do</strong>pela ideia de que o cavaleiro mais velho pudesse ter pensa<strong>do</strong> queera o saque que lhe interessava.La Valette soltara uma risada.— Tende calma, Thom<strong>as</strong>. Já vos conheço bem. Não sois menos devoto<strong>do</strong> que eu ou outro qualquer membro da Ordem, e, como guerreiro, sois deigual calibre. A seu tempo ser-vos-á atribuí<strong>do</strong> o coman<strong>do</strong> de uma galera. Equan<strong>do</strong> chegar esse dia, nunca vos esqueceis <strong>do</strong> que um navio de combateé verdadeiramente: uma espada na mão direita de Deus. A ele pertencemos despojos.Thom<strong>as</strong> <strong>as</strong>sentira, e La Valette saíra pela portinhola na amurada e descerapara se juntar aos quatro homens no bote que subia e descia junto àproa da galera. O capitão soltara uma breve ordem, e os marinheiros tinhamcomeça<strong>do</strong> a remar, fazen<strong>do</strong> o bote avançar. Depressa tinham si<strong>do</strong>engoli<strong>do</strong>s pela escuridão, sob o olhar atento de Thom<strong>as</strong>.Agora, hor<strong>as</strong> depois — dem<strong>as</strong>iad<strong>as</strong> hor<strong>as</strong>, <strong>as</strong>sim lhe parecia —, a cabeçade Thom<strong>as</strong> estava cheia de receios pela sorte <strong>do</strong> capitão. Havia já muitotempo que La Valette saíra. A alvorada aproximava-se e, a menos que ocapitão regress<strong>as</strong>se em breve, tornar-se-ia impossível aproveitar a coberturada escuridão para lançar o ataque contra os turcos. E se La Valette e os seushomens tivessem si<strong>do</strong> captura<strong>do</strong>s? A ideia súbita provocou-lhe um calafrioque lhe arrefeceu o coração. Os turcos tinham particular deleite em torturarlentamente e prolongar o estertor de qualquer cavaleiro da Ordem quelhes caísse n<strong>as</strong> mãos. Logo outro pensamento alarmante lhe tomou conta12


da mente. Se La Valette tivesse si<strong>do</strong> aprisiona<strong>do</strong>, o peso <strong>do</strong> coman<strong>do</strong> cairi<strong>as</strong>obre os seus ombros; e nesse momento preciso tomou consciência de quenão estava ainda prepara<strong>do</strong> para capitanear uma galera.Adivinhou um movimento n<strong>as</strong> su<strong>as</strong> cost<strong>as</strong> e espreitou sobre o ombro;um vulto alto subia <strong>as</strong> curt<strong>as</strong> escad<strong>as</strong> que levavam ao pequeno c<strong>as</strong>telo daproa. O homem vinha de cabeça descoberta, m<strong>as</strong> tinha o tronco protegi<strong>do</strong>por um gibão acolchoa<strong>do</strong>, por baixo de um c<strong>as</strong>aco escuro onde uma cruzbranca mal se via à luz d<strong>as</strong> estrel<strong>as</strong>. Oliver Stokely era um ano mais velho <strong>do</strong>que Thom<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> tinha-se junta<strong>do</strong> à Ordem mais recentemente, o que faziadele seu subordina<strong>do</strong> na hierarquia <strong>do</strong>s cavaleiros. Apesar disso, tinham-setorna<strong>do</strong> amigos.— Algum sinal <strong>do</strong> capitão?Thom<strong>as</strong> não pôde evitar um pequeno sorriso perante a questão desnecessária.Não era o único cujos nervos estavam a ser postos à prova poraquela longa espera.— Ainda não, Oliver — respondeu, tentan<strong>do</strong> aparentar despreocupação.— Se ele se demorar muito mais, teremos de desistir <strong>do</strong> ataque.— Duvi<strong>do</strong> que ele demore muito.— Achais? — Stokely fungou. — Sem o elemento da surpresa, arriscamo-nosa perder mais homens <strong>do</strong> que é aceitável.Era um ponto relevante, considerou Thom<strong>as</strong>. Havia menos de quinhentoscavaleiros ainda alista<strong>do</strong>s na Ordem, em Malta. A interminávelguerra contra os turcos c<strong>obra</strong>va um eleva<strong>do</strong> preço em sangue, e estava-sea tornar cada vez mais difícil preencher <strong>as</strong> fileir<strong>as</strong>. Os reinos europeusentretinham-se em guerr<strong>as</strong> entre si, e havia regr<strong>as</strong> estrit<strong>as</strong> para a entradana Ordem, o que fazia com que o número de jovens nobres a apresentarem-seà seleção diminuísse sem parar. No p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong>, um veterano comoLa Valette ter-se-ia feito ao mar com uma dúzia de jovens cavaleiros abor<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s eles desejosos de provar o seu valor. Naqueles tempos, tinhade se contentar com cinco, e desses só Thom<strong>as</strong> já tinha enfrenta<strong>do</strong> osturcos em combate.Apesar disso, Thom<strong>as</strong> conhecia o capitão suficientemente bem par<strong>as</strong>aber que ele não fugiria a uma batalha, a não ser que os números fossemextremamente desiguais. O coração de La Valette ardia de zelo religioso,ainda mais encarniça<strong>do</strong> pela sede de vingança que o possuía devi<strong>do</strong> ao sofrimentoque tinha suporta<strong>do</strong> havia muitos anos, quan<strong>do</strong> durante algumtempo não p<strong>as</strong>sara de um escravo agrilhoa<strong>do</strong> a um estreito banco de madeiranuma galera turca. La Valette tivera a boa fortuna de ter uma famíliacapaz de pagar o resgate e tirá-lo dessa situação. A maior parte <strong>do</strong>s queeram lança<strong>do</strong>s às galés eram força<strong>do</strong>s a trabalhar até à morte, atormenta-13


<strong>do</strong>s pela sede, pela fome e pela agonia d<strong>as</strong> ferid<strong>as</strong> provocad<strong>as</strong> pel<strong>as</strong> pesad<strong>as</strong>argol<strong>as</strong> de ferro que eram usad<strong>as</strong> para os manter presos nos seus lugares.E por isso, refletiu Thom<strong>as</strong>, La Valette combateria, mesmo que não conseguissesurpreender o inimigo.— E se lhe aconteceu alguma coisa? — Stokely olhou em re<strong>do</strong>r, para secertificar de que os homens no convés mais abaixo não o podiam escutar.— Se o capitão desaparecer, alguém terá de <strong>as</strong>sumir o coman<strong>do</strong>.Aí vem, pensou Thom<strong>as</strong>. Stokely preparava-se para proclamar o seudireito ao lugar. Tinha de se afirmar antes que o amigo o fizesse.— Sen<strong>do</strong> o seu lugar-tenente, eu tomarei o seu lugar, no c<strong>as</strong>o de morteou captura. Sabeis bem disso.— M<strong>as</strong> eu sou um cavaleiro há mais tempo <strong>do</strong> que vós — ripostouStokely, num murmúrio qu<strong>as</strong>e lamentoso. — Seria melhor se fosse eu a <strong>as</strong>sumiro posto de capitão. Os homens prefeririam ser comanda<strong>do</strong>s por alguémmais experiente. Meu amigo, apercebeis-vos disso, com toda a certeza?Fosse o que fosse que ia na cabeça de Stokely, a verdade era que a capacidadede combate patenteada por Thom<strong>as</strong> tinha si<strong>do</strong> notada pelos seussuperiores. Logo na sua primeira ação, tinha comanda<strong>do</strong> um ataque a umapovoação costeira perto de Argel, e capturara um galeão carrega<strong>do</strong> de especiari<strong>as</strong>.Depois disso fora destaca<strong>do</strong> para servir sob La Valette, o maisousa<strong>do</strong> e bem-sucedi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s capitães da Ordem, para fazer a guerra aos turcos.Aquela era a sua terceira campanha em mar alto, e tinha já forja<strong>do</strong> umaforte ligação com a tripulação e os solda<strong>do</strong>s que guarneciam a galera de LaValette. Não tinha qualquer dúvida de que to<strong>do</strong>s eles prefeririam vê-lo <strong>as</strong>sumiro coman<strong>do</strong>, em vez de um cavaleiro que se tinha junta<strong>do</strong> a eles haviamenos de um mês, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s escritórios onde eram trata<strong>do</strong>s os intrinca<strong>do</strong>sproblem<strong>as</strong> da logística da Ordem.— Seja como for — replicou Thom<strong>as</strong>, tentan<strong>do</strong> não ferir os sentimentos<strong>do</strong> amigo —, esse <strong>as</strong>sunto não tem de nos preocupar. O capitão há deregressar e daqui a pouco, não tenho qualquer dúvida.— E se isso não suceder?— Ele voltará — afirmou Thom<strong>as</strong> com firmeza. — E teremos de estarprontos para o combate no momento em que ele regressar. Dai ordenspara os rema<strong>do</strong>res serem amordaça<strong>do</strong>s. E os homens que preparem o armamento.Stokely hesitou brevemente antes de anuir com um gesto de cabeçae voltar a descer os degraus para o convés, o qual se estendia por uns cinquentap<strong>as</strong>sos ao longo da parte central da esguia galera, antes de dar lugara uma popa coberta, onde se situavam <strong>as</strong> acomodações de cavaleiros e oficiais.Acima <strong>do</strong> convés elevavam-se <strong>do</strong>is m<strong>as</strong>tros cuj<strong>as</strong> verg<strong>as</strong> se d<strong>obra</strong>vamsob o peso <strong>do</strong> pano recolhi<strong>do</strong> d<strong>as</strong> du<strong>as</strong> vel<strong>as</strong> géme<strong>as</strong>. Thom<strong>as</strong> ouviu <strong>as</strong> su<strong>as</strong>14


ordens a serem transmitid<strong>as</strong>, e um grupo de homens desceu ao diminutoporão para ir buscar os tampões de cortiça e <strong>as</strong> correi<strong>as</strong> guardad<strong>as</strong> numaarca. Pouco depois levantou-se um burburinho zanga<strong>do</strong> <strong>do</strong>s homens acorrenta<strong>do</strong>saos bancos. O protesto foi silencia<strong>do</strong> por uma ameaça rosnadapelo oficial encarrega<strong>do</strong> da coberta, e pelo estali<strong>do</strong> <strong>do</strong> cabedal seco na pelenua.Thom<strong>as</strong> entendia perfeitamente os sentimentos d<strong>as</strong> desafortunad<strong>as</strong>criatur<strong>as</strong> que manejavam os longos remos da galera. De forma a <strong>as</strong>segurarque nenhum deles lançava um grito de aviso ao inimigo quan<strong>do</strong> o navioaceler<strong>as</strong>se para se lançar contra uma presa, os capitães d<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> de ambosos la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> conflito tinham a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> o expediente de colocar uma rolhade cortiça na boca de cada homem, mantida no lugar por tir<strong>as</strong> de cabedalapertad<strong>as</strong> num anel de ferro. Era terrivelmente desconfortável e sufocante,especialmente quan<strong>do</strong> era exigi<strong>do</strong> aos homens que se esforç<strong>as</strong>sem aos remos.Thom<strong>as</strong> já vira homens sufocar e até morrer nalgum<strong>as</strong> d<strong>as</strong> batalh<strong>as</strong>em que entrara. Ainda <strong>as</strong>sim, considerou, era um mal necessário, naquelacruzada persistente contra os que seguiam uma falsa religião. Por cada homemque sufocava na sua mordaça, vid<strong>as</strong> cristãs eram salv<strong>as</strong> pela ausênciade aviso da<strong>do</strong> a um inimigo despreveni<strong>do</strong>. O outro único sinal da presençade uma galera era o fe<strong>do</strong>r a excrementos e urina, que se amontoavam sobos bancos e lá eram deixa<strong>do</strong>s a acumular-se até que o navio era tira<strong>do</strong> daágua ao fim de uma época de campanha. Se não fosse a brisa que sopravade terra, o terrível cheiro podia bem espalhar-se o suficiente para alertar oinimigo.No convés acima da coberta, os solda<strong>do</strong>s da Ordem — espanhóis, gregos,portugueses, venezianos e alguns franceses, to<strong>do</strong>s eles mercenários —levantaram-se. Envergaram a custo os seus uniformes acolchoa<strong>do</strong>s e apertaram<strong>as</strong> proteções que cobriam <strong>as</strong> articulações mais expost<strong>as</strong>.O equipamento era difícil de colocar, e <strong>as</strong>sim que o Sol se levant<strong>as</strong>se,tornar-se-ia um forno. Em condições normais, a ordem para se prepararemsó seria dada quan<strong>do</strong> a galera começ<strong>as</strong>se a aproximar-se da suapresa, m<strong>as</strong> Thom<strong>as</strong> apercebera-se da tensão que tomara conta <strong>do</strong>s homens,devi<strong>do</strong> àquela espera ansiosa, e considerara ser preferível dar-lhesalguma coisa com que se ocuparem enquanto aguardavam pelo regresso<strong>do</strong> capitão. Além disso, dera-lhe uma oportunidade para exercer a sua autoridadesobre Stokely, e relembrar-lhe a posição que ocupava na cadeiade coman<strong>do</strong>.Os ouvi<strong>do</strong>s de Thom<strong>as</strong> foram alerta<strong>do</strong>s pelo som de um chapinharque vinha da direção <strong>do</strong> promontório. De imediato to<strong>do</strong>s os outros pensamentosforam varri<strong>do</strong>s da sua mente, e ele esforçou os senti<strong>do</strong>s, perscrutan<strong>do</strong><strong>as</strong> sombr<strong>as</strong> negr<strong>as</strong> e ondulantes <strong>do</strong> mar, em busca de algum sinal de15


movimento. Avistou por fim a forma qu<strong>as</strong>e invisível de um pequeno bote,no qual homens se esforçavam aos remos. Um tremor de alívio p<strong>as</strong>sou-lhepelo coração quan<strong>do</strong> viu a pequena embarcação a aproximar-se da galera,ao sabor <strong>do</strong> movimento d<strong>as</strong> pás <strong>do</strong>s remos.— Parem… — ordenou La Valette em voz baixa, e no instante seguinteescutou-se um baque sur<strong>do</strong>, que marcou o choque <strong>do</strong> bote contra <strong>as</strong> sólid<strong>as</strong>madeir<strong>as</strong> <strong>do</strong> c<strong>as</strong>co. Uma corda serpenteou pelo ar e foi agarrada por um<strong>do</strong>s marinheiros. La Valette subiu rapidamente, enquanto Thom<strong>as</strong> descia<strong>do</strong> c<strong>as</strong>telo da proa para se encontrar com o capitão. Os outros cavaleiros eoficiais aglomeraram-se ao re<strong>do</strong>r.— O galeão ainda lá está, senhor? — indagou Stokely.— Está, sim. Os turcos <strong>do</strong>rmem como bebés — anunciou La Valette.— A tripulação <strong>do</strong> galeão não nos vai dar problem<strong>as</strong>.Stokely fechou <strong>as</strong> mãos, palma com palma.— Graç<strong>as</strong> a Deus.— De facto — <strong>as</strong>sentiu o capitão. — O Senhor abençoou-nos com umaexcelente oportunidade, e foi essa a razão por que me atr<strong>as</strong>ei a regressar…— La Valette fez uma pausa para se certificar de que to<strong>do</strong>s os seus segui<strong>do</strong>resestavam atentos ao que anunciava. — O galeão não será a única presaa pertencer-nos quan<strong>do</strong> este combate estiver termina<strong>do</strong>. Du<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> corsári<strong>as</strong>juntaram-se a ele. Estão ancorad<strong>as</strong> aqui perto. Meus senhores, temosuma rica recompensa à nossa espera.Fez-se um momento de silêncio enquanto os outros homens tomavamconsciência d<strong>as</strong> novidades. Thom<strong>as</strong> olhou em re<strong>do</strong>r para <strong>as</strong> faces <strong>do</strong>s companheiros,e reparou que alguns trocavam olhares nervosos. O mestre dagalera, responsável pelo velame, limpou a garganta e comentou:— Senhor, isso põe-nos numa desproporção de três para um.— Não. Dois para um. O galeão pouca importância tem ness<strong>as</strong> cont<strong>as</strong>.Depois de termos trata<strong>do</strong> da saúde às galer<strong>as</strong>, cairá n<strong>as</strong> noss<strong>as</strong> mãos semdificuldade.— Ainda <strong>as</strong>sim, seria temerário tentar um ataque — protestou outro.— Especialmente agora, que a aurora se aproxima velozmente. Teremos denos retirar.— Retirar? — La Valette soltou uma exclamação brusca. — Nunca.Qualquer homem ao serviço da Ordem vale pelo menos por uns cinco turcos.Além disso, Deus está connosco. Por isso, são os turcos que têm menosgente. M<strong>as</strong> não vamos exigir dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong> à providência divina, sim? Comodizeis, depressa a manhã se levanta. Portanto, senhores, temos muito poucotempo a perder. A galera está a postos?— Sim, senhor — respondeu o mestre, com um aceno.— E os homens?16


— Sim, senhor — esclareceu Thom<strong>as</strong>. — Já mandei que se prepar<strong>as</strong>sem.— Ótimo. — La Valette olhou em volta para os seus oficiais e ergueuum punho. — Vamos então fazer a <strong>obra</strong> <strong>do</strong> Senhor, e soltar a sua ira sobreo Turco infiel!Já se notava alguma claridade no horizonte oriental quan<strong>do</strong> o Corça Velozcomeçou a d<strong>obra</strong>r o promontório. Por trás da ponta rochosa, a baía abria-senum v<strong>as</strong>to crescente com mais de cinco quilómetros de largura. As silhuet<strong>as</strong><strong>do</strong> galeão e d<strong>as</strong> du<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> salientavam-se perfeitamente contra a faixapálida da areia da praia, sobre a qual se avistava um tími<strong>do</strong> brilho alaranja<strong>do</strong>,vin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s restos de uma fogueira que aquecia ainda os que a rodeavam.— Chegámos tarde de mais — comentou Stokely, ao la<strong>do</strong> de Thom<strong>as</strong>no convés. — O dia n<strong>as</strong>cerá muito antes de os alcançarmos. Os turcosver-nos-ão chegar, com toda a certeza.— Não. Vimos <strong>do</strong> poente, a escuridão ainda nos dará cobertura pormais algum tempo. — Thom<strong>as</strong> já vira La Valette utilizar aquela tática nosseus ataques ao inimigo, e era uma forma comprovada de disfarçar a suaaproximação até ao último momento.— Só se os turcos forem completamente cegos.Thom<strong>as</strong> engoliu a irritação que começava a sentir. Aquela era a primeira“caravana” de Stokely, como a Ordem chamava às campanh<strong>as</strong> no mar. Ojovem cavaleiro acabaria por aprender a confiar na experiência <strong>do</strong>s capitãesque combatiam os turcos havia muitos anos — desde que vivesse tempo suficientepara isso, refletiu. Havia muit<strong>as</strong> form<strong>as</strong> de um cavaleiro ao serviçoda Santa Fé partir ao encontro <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r. Combate, <strong>do</strong>ença, afogamento,to<strong>do</strong>s eles c<strong>obra</strong>vam a sua parte, sem cuidar de qual era a <strong>as</strong>cendência deum homem, se provinha de uma d<strong>as</strong> mais nobres famíli<strong>as</strong> da Europa ouse n<strong>as</strong>cera na sarjeta. O afogamento, em particular, era um perigo sempre<strong>presente</strong>. A armadura metálica que protegia um cavaleiro na batalha, bemcomo o resto <strong>do</strong> seu equipamento, era suficientemente pesada para o enviardiretamente para o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> oceano, se por ac<strong>as</strong>o tivesse o azar de cair paraa água.Thom<strong>as</strong> olhou ao longo da galera, notan<strong>do</strong> <strong>as</strong> posições <strong>do</strong>s gruposde solda<strong>do</strong>s, alguns <strong>do</strong>s quais equipa<strong>do</strong>s com best<strong>as</strong>, e avistou La Valetteà popa, apruma<strong>do</strong>, rígi<strong>do</strong>, ao la<strong>do</strong> da seca figura <strong>do</strong> mestre da galera. Nenhumhomem erguia a voz acima de um murmúrio, e o único som que seescutava era o d<strong>as</strong> ond<strong>as</strong> a desabarem sobre os pene<strong>do</strong>s na b<strong>as</strong>e <strong>do</strong> promontório,além <strong>do</strong> ranger ritma<strong>do</strong> <strong>do</strong>s remos e <strong>do</strong> mergulho d<strong>as</strong> pás naágua. Depois de a galera ter rodea<strong>do</strong> o promontório, o timoneiro dirigiuo Corça Veloz para a costa, apontan<strong>do</strong> à mais próxima d<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> inimi-17


g<strong>as</strong>. Thom<strong>as</strong> tinha-se acostuma<strong>do</strong> ao hábito <strong>do</strong> capitão, de guardar par<strong>as</strong>i mesmo os seus planos, m<strong>as</strong> ainda <strong>as</strong>sim adivinhava-lhe <strong>as</strong> intenções. LaValette queria eliminar primeiro a mais próxima d<strong>as</strong> galer<strong>as</strong>. Mesmo que ogaleão conseguisse levantar âncora e deixar a baía antes de <strong>as</strong> du<strong>as</strong> galer<strong>as</strong>serem <strong>do</strong>minad<strong>as</strong>, seria fácil para a ágil embarcação de combate da Ordempersegui-lo e capturá-lo.A leste, a luz era já mais forte, e a silhueta da ponta rochosa <strong>do</strong> outrola<strong>do</strong> da baía recortava-se com nitidez contra o céu. O o<strong>do</strong>r pestilento vin<strong>do</strong>d<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> inimig<strong>as</strong> chegou ao convés <strong>do</strong> Corça Veloz, juntan<strong>do</strong>-se ao nãomais agradável cheiro que <strong>do</strong>minava o navio cristão.A galera estava já a menos de meia milha <strong>do</strong> inimigo quan<strong>do</strong> soouum toque estridente, um claro sinal de alarme. Thom<strong>as</strong> sentiu na nuca umarrepio gela<strong>do</strong> de ansiedade, e agarrou com toda a força no pique que empunhava.Da ré da galera, a voz de La Valette soou com clareza, dirigin<strong>do</strong>-seaos homens.— Bate<strong>do</strong>r, velocidade de combate! Artilheiros, preparem os canhões!À medida que o tambor começava a marcar um ritmo persistente nacoberta, surgiu um brilho páli<strong>do</strong> na proa da galera: a luz de presença tinh<strong>as</strong>i<strong>do</strong> retirada <strong>do</strong> seu recipiente para fornecer lume aos mestres <strong>do</strong>s canhões,que logo se colocaram junto às su<strong>as</strong> arm<strong>as</strong>, à espera de ordem para fazer fogo.O coração de Thom<strong>as</strong> ia aceleran<strong>do</strong> em comp<strong>as</strong>so com o ritmo <strong>do</strong>tambor, e o convés estremecia debaixo <strong>do</strong>s seus pés a cada remada violenta.Olhan<strong>do</strong> para bombor<strong>do</strong>, avistava pequenos vultos a levantarem-se estremunha<strong>do</strong>sem re<strong>do</strong>r da fogueira na praia. Muitos ficavam atónitos a ver agalera avançar velozmente pela baía na sua direção. Outros apressavam-sea correr para a margem e a entrar na água, começan<strong>do</strong> a nadar na direção<strong>do</strong> galeão. Os que não sabiam nadar empurravam botes para <strong>as</strong> ond<strong>as</strong> eapinhavam-se a bor<strong>do</strong>. Na amurada da mais próxima d<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> inimig<strong>as</strong>começavam a alinhar-se figur<strong>as</strong> escur<strong>as</strong>. Muit<strong>as</strong> usavam turbantes e gesticulavamcontra a ameaça que se aproximava, enquanto pegavam n<strong>as</strong> arm<strong>as</strong>.Os gritos corriam livremente pelo espaço que separava os <strong>do</strong>is navios.Entretanto, nem um homem na galera cristã desperdiçava tempo a falar;os únicos sons a bor<strong>do</strong> eram o <strong>do</strong> tambor, o marulhar da água ao longo<strong>do</strong> c<strong>as</strong>co desenha<strong>do</strong> para a velocidade, e os grunhi<strong>do</strong>s abafa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s rema<strong>do</strong>res.Thom<strong>as</strong> voltou a olhar ao longo <strong>do</strong> convés, e conseguiu, à luz aindahesitante, divisar a expressão que preenchia o semblante <strong>do</strong> capitão. La Valettemantinha-se imóvel, a mão esquerda apoiada no punho da espada, orosto, envolto numa barba curta, sempre com ar sério e determina<strong>do</strong>. Er<strong>as</strong>eu costume conduzir os homens à batalha em silêncio, saben<strong>do</strong> perfeitamenteque essa atitude perturbava o inimigo. Só no último instante bradariamum formidável urro coletivo, antes de se lançarem sobre os oponentes.18


Um estron<strong>do</strong> soou de repente, e Thom<strong>as</strong> encolheu-se sem pensar, enquantoestilhaços saltavam pelo ar. Uma pequena nuvem de fumo sobre agalera inimiga denunciava o disparo de um arcabuz. O homem que atirarajá tinha entretanto apoia<strong>do</strong> a longa arma no convés e recarregava-a. Thom<strong>as</strong>olhou para os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s, para verificar se alguém tinha nota<strong>do</strong> a suareação, m<strong>as</strong> os homens à sua volta mantinham o olhar fixo em frente, e oslábios de Stokely moviam-se em silêncio, enquanto ele rezava para si mesmo.O olhar <strong>do</strong> outro cavaleiro cruzou-se com o de Thom<strong>as</strong>, e ele parou derezar e desviou a vista quan<strong>do</strong> se apercebeu de que estava a ser observa<strong>do</strong>.Viram-se mais penachos de fumo, a que se seguiu o zunir d<strong>as</strong> bal<strong>as</strong> dechumbo por cima d<strong>as</strong> cabeç<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> só um outro disparo atingiu a proa dagalera. Thom<strong>as</strong> forçou-se a manter-se imóvel enquanto via outros disparosa serem efetua<strong>do</strong>s, cada um deles marca<strong>do</strong> por um rápi<strong>do</strong> clarão avermelha<strong>do</strong>e uma nuvem de fumo que se desvanecia em poucos segun<strong>do</strong>s.— Besteiros! — gritou La Valette. — Prepara<strong>do</strong>s!Os solda<strong>do</strong>s da Ordem ainda usavam aquela arma obsoleta. Não possuíao alcance e o poder d<strong>as</strong> arm<strong>as</strong> de fogo empregues pelos turcos, m<strong>as</strong>era mais fácil de manejar e capaz de infligir ferid<strong>as</strong> terríveis quan<strong>do</strong> bem<strong>as</strong>sestada. Um pequeno grupo de homens avançou e ocupou posições emambos os la<strong>do</strong>s da amurada à proa. Usan<strong>do</strong> a engrenagem localizada nab<strong>as</strong>e da arma, puxaram <strong>as</strong> cord<strong>as</strong> atrás antes de colocarem os projéteis nosulco que corria ao longo da sua parte superior.— Disparem à vontade! — veio a clara ordem da popa da galera. Osestalos <strong>do</strong>s arcabuzes inimigos foram respondi<strong>do</strong>s com os sur<strong>do</strong>s baquesd<strong>as</strong> cord<strong>as</strong> libertad<strong>as</strong> de repente da tensão acumulada, levan<strong>do</strong> os dar<strong>do</strong>s adescreverem arcos pouco pronuncia<strong>do</strong>s sobre <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> até desaparecerempelo meio <strong>do</strong>s homens que ocupavam o convés <strong>do</strong> navio corsário.Já não havia mais <strong>do</strong> que uma centena de p<strong>as</strong>sos a separar <strong>as</strong> du<strong>as</strong> naves,calculou Thom<strong>as</strong>. Na amurada inimiga estavam dezen<strong>as</strong> de homens deturbante, soltan<strong>do</strong> desafios aos cristãos e brandin<strong>do</strong> cimitarr<strong>as</strong> e piques. Ameio <strong>do</strong> c<strong>as</strong>co já começavam a sair os primeiros remos, enquanto a tripulaçãotentava desesperadamente colocar o navio em movimento. Thom<strong>as</strong>preparou-se para a ordem de dar fogo aos canhões da galera, e viu um <strong>do</strong>smestres a olhar sobre o ombro.— Vá lá, vá lá — resmungava o homem.La Valette aguar<strong>do</strong>u ainda mais um momento, e só então levou <strong>as</strong> mãosem concha à boca e soltou a ordem.— Fogo!19


2De imediato, os mestres d<strong>as</strong> equipagens <strong>do</strong>s canhões levaram <strong>as</strong> pont<strong>as</strong>incandescentes d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> acendalh<strong>as</strong> aos cones de papel rechea<strong>do</strong>s depólvora negra que estavam aplica<strong>do</strong>s aos cimos <strong>do</strong>s canos. Ao deflagrar,a pólvora soltou um <strong>as</strong>sobio característico que foi imediatamente segui<strong>do</strong>por um ribombar qu<strong>as</strong>e capaz de estourar os tímpanos e um salto, quan<strong>do</strong>um jato de fogo e labared<strong>as</strong> saltou da boca de cada canhão. O recuod<strong>as</strong> peç<strong>as</strong> provocou um estremeção no convés, e Thom<strong>as</strong> cambaleou paraa frente, antes de recuperar o equilíbrio. Cada um <strong>do</strong>s canhões tinha si<strong>do</strong>cuida<strong>do</strong>samente carrega<strong>do</strong> com uma mistura de grandes pregos, correntese metralha de chumbo, capturada a um navio inimigo havia alguns meses.Havia uma satisfação especial ao utilizar contra o inimigo munições que elepróprio empregava, considerou Thom<strong>as</strong>. O cone letal de fragmentos metálicosatingiu o flanco <strong>do</strong> navio corsário. Estilhaços de madeira saltaram emtod<strong>as</strong> <strong>as</strong> direções quan<strong>do</strong> a amurada foi destruída em <strong>do</strong>is pontos distintos.Por trás dela, os guerreiros de turbante foram derruba<strong>do</strong>s como se fossembonecos, acumulan<strong>do</strong>-se em pilh<strong>as</strong> ensanguentad<strong>as</strong> no convés.— Por Deus e por S. João! — incentivou La Valette, e os seus homensfizeram eco <strong>do</strong> grito, lançan<strong>do</strong> um urro coletivo que arranhou gargant<strong>as</strong>,escancarou boc<strong>as</strong> e arregalou os olhos, tornan<strong>do</strong>-os pres<strong>as</strong> de uma excitaçãoqu<strong>as</strong>e fanática.— Por Deus e por S. João! — gritaram uma e outra vez, à medida quea galera deslizava a toda a velocidade, embalada contra o c<strong>as</strong>co <strong>do</strong> navioinimigo.— Aguentem-se! — avisou La Valette, a sua voz de trovão qu<strong>as</strong>e inaudívelsobre o clamor <strong>do</strong>s homens. Thom<strong>as</strong> manteve a boca fechada e cerrouos dentes enquanto se agachava, se agarrava à amurada com uma mão eplantava firmemente os pés, af<strong>as</strong>ta<strong>do</strong>s um <strong>do</strong> outro. Os que o rodeavam,pelo menos os que ainda mantinham a calma suficiente para se aperceberem<strong>do</strong> que se ia p<strong>as</strong>sar, seguiram-lhe o exemplo e esperaram pelo impacto.O convés pareceu dar um salto sob o seu corpo, e o solda<strong>do</strong> mais próximofoi projeta<strong>do</strong> contra o seu ombro antes de cair desampara<strong>do</strong> no convés, noque foi imita<strong>do</strong> por muitos outros. O m<strong>as</strong>tro de vante rangeu em protes-20


to, e ouviu-se um estalo quan<strong>do</strong> uma d<strong>as</strong> enxárci<strong>as</strong> se partiu. Da cobertaveio um coro abafa<strong>do</strong> de gritos, lança<strong>do</strong>s pelos aterra<strong>do</strong>s rema<strong>do</strong>res, quetinham si<strong>do</strong> projeta<strong>do</strong>s para fora <strong>do</strong>s seus bancos m<strong>as</strong> trava<strong>do</strong>s <strong>do</strong>lorosamentepel<strong>as</strong> grilhet<strong>as</strong> que os prendiam. A proa <strong>do</strong> Corça Veloz tinha si<strong>do</strong>fortemente reforçada para aguentar o tremen<strong>do</strong> impacto de uma colisãoprovocada, e agora erguia-se no ar enquanto desfazia, ao som de estilhaçare ranger, o c<strong>as</strong>co da galera <strong>do</strong>s corsários, que a<strong>do</strong>rnara com o choque. Osgritos de terror <strong>do</strong> inimigo justificavam-se pela quantidade de gente que tinhaescorrega<strong>do</strong> pelo convés inclina<strong>do</strong>, empilhan<strong>do</strong>-se em desalinho juntoà amurada. Alguns não tinham consegui<strong>do</strong> interromper a queda, e tinhammesmo tomba<strong>do</strong> para a água.— Jesus! — murmurou Stokely enquanto se punha de pé ao la<strong>do</strong> deThom<strong>as</strong>.O Corça Veloz tinha-se por fim deti<strong>do</strong>, e deu-se um curto momentode calma enquanto <strong>as</strong> ator<strong>do</strong>ad<strong>as</strong> tripulações rec<strong>obra</strong>vam os espíritos. Depressaporém se voltou a ouvir o vozeirão de La Valette a cortar o ar frio daalvorada.— Ganchos de abordagem! Apontem para o outro bor<strong>do</strong>, e não falhem!— Vinde daí. — Thom<strong>as</strong> baixou a ponta <strong>do</strong> pique e fez um gesto aStokely, incitan<strong>do</strong>-o a segui-lo enquanto corria para a proa e pegava num<strong>do</strong>s pesa<strong>do</strong>s ganchos de ferro, preso a um baraço de corda. Soltou um pequenocomprimento, fez rodar o gancho e lançou-o sobre a cabeça, antes dedeixar correr a corda. O gancho descreveu um arco sobre o convés inimigoe desapareceu por cima da amurada no bor<strong>do</strong> oposto. De imediato, Thom<strong>as</strong>pegou na corda e puxou com tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> forç<strong>as</strong>. Enquanto se debruçavapara prender a corda num cunho, outros ganchos sobrevoaram o navio inimigoe prenderam-se ao c<strong>as</strong>co.— Recuar! — ordenou La Valette. — Depressa. Mestre, use o chicote!Os rema<strong>do</strong>res regressaram penosamente aos seus estreitos bancos epegaram nos cabos <strong>do</strong>s remos, de superfícies polid<strong>as</strong> por anos de manuseamentopor turnos e turnos de desgraça<strong>do</strong>s como eles. A ordem para ciarfoi dada antes que to<strong>do</strong>s os rema<strong>do</strong>res estivessem prontos, e <strong>as</strong> pás chapinharaminconsequentemente e em desalinho. Depois de prenderem <strong>as</strong>su<strong>as</strong> cord<strong>as</strong>, Thom<strong>as</strong> e Oliver regressaram à sua posição, à cabeça <strong>do</strong> ban<strong>do</strong>de homens arma<strong>do</strong>s no convés. Durante um momento, o Corça Veloz nãose mexeu, e a proa continuou a pressionar o c<strong>as</strong>co <strong>do</strong> navio corsário. Porfim, com um ligeiro estremeção, começou a recuar, e <strong>as</strong> cord<strong>as</strong> <strong>do</strong>s ganchosretesaram-se e ficaram em tensão, atravessan<strong>do</strong> o convés inimigo. Ouviu-seum grito de alarme vin<strong>do</strong> da popa, quan<strong>do</strong> o capitão <strong>do</strong>s corsários se apercebeu<strong>do</strong> perigo. Alguns <strong>do</strong>s seus homens começaram a tentar cortar <strong>as</strong>21


cord<strong>as</strong> que se estendiam por cima deles, m<strong>as</strong> com o convés tão inclina<strong>do</strong>como estava, só os que tinham consegui<strong>do</strong> trepar até ao bor<strong>do</strong> af<strong>as</strong>ta<strong>do</strong>conseguiam atacar <strong>as</strong> cord<strong>as</strong>.M<strong>as</strong> já era dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong> tarde. O Corça Veloz começava a recuar, fazen<strong>do</strong>a<strong>do</strong>rnar o outro navio, preso por to<strong>do</strong>s os ganchos crava<strong>do</strong>s no c<strong>as</strong>co. Obor<strong>do</strong> mais próximo mergulhou sob a água e rapidamente, num movimentoqu<strong>as</strong>e gracioso, a galera virou-se por completo, lançan<strong>do</strong> a tripulaçãoe o equipamento solto à água. Thom<strong>as</strong> apanhou num relance, através d<strong>as</strong>grelh<strong>as</strong> de ventilação da coberta, <strong>as</strong> expressões horrorizad<strong>as</strong> <strong>do</strong>s rema<strong>do</strong>res<strong>do</strong> navio corsário; os homens continuavam acorrenta<strong>do</strong>s aos bancos. Depressadesapareceram, traga<strong>do</strong>s pelo mar, e só o c<strong>as</strong>co da galera, revesti<strong>do</strong>de crac<strong>as</strong>, ficou à vista n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> agitad<strong>as</strong>, resplandecen<strong>do</strong> sob o Sol. Oscabos <strong>do</strong>s ganchos foram corta<strong>do</strong>s, fazen<strong>do</strong> <strong>as</strong> cord<strong>as</strong> cair para o mar. Emtorno <strong>do</strong> c<strong>as</strong>co, dúzi<strong>as</strong> de homens lutavam para tentar manter-se à tona.Os que sabiam nadar tentavam alcançar a praia, que ficava a uma distânciarelativamente curta. Outros agarravam-se a quaisquer destroços flutuantesque conseguissem encontrar, ou tentavam trepar para o c<strong>as</strong>co.Uma aclamação soltou-se <strong>do</strong>s homens na galera cristã, m<strong>as</strong> Thom<strong>as</strong>não se sentia com ânimo para se juntar a eles. Não conseguia libertar o espíritoda imagem <strong>do</strong>s rostos <strong>do</strong>s rema<strong>do</strong>res quan<strong>do</strong> a embarcação inimig<strong>as</strong>e tinha vira<strong>do</strong>. A maior parte daqueles homens eram cristãos como ele,feitos prisioneiros e condena<strong>do</strong>s às galés, apen<strong>as</strong> para morrerem, lamentavelmente,às mãos de outros homens que partilhavam a sua fé. Naqueleinstante conseguia ainda imaginá-los presos sob a água, a debaterem-se nofrio e na escuridão, presos pel<strong>as</strong> correntes e destina<strong>do</strong>s a um lento afogamento.Sentiu-se agonia<strong>do</strong> perante tais pensamentos.Uma mão bateu-lhe no ombro. Olhou em volta e descobriu Stokely, desorriso aberto, até que se apercebeu <strong>do</strong> ar sombrio de Thom<strong>as</strong> e franziu osobrolho.— Thom<strong>as</strong>, que se p<strong>as</strong>sa?Tentou responder, m<strong>as</strong> não tinha palavr<strong>as</strong> para descrever o horror quelhe arrefecia o coração. Tentou libertar-se daqueles sentimentos, e abanoua cabeça.— Nada.— Então juntai-vos a nós. — Stokely apontou para os outros homensno convés, que continuavam a celebrar vibrantemente.Thom<strong>as</strong> observou-os com brevidade e virou a atenção para a outra galerainimiga, a menos de um quarto de milha de distância. Os corsários tinhamcorta<strong>do</strong> o cabo da âncora e vira<strong>do</strong> o navio, de forma a apontar diretamenteao Corça Veloz. Thom<strong>as</strong> acenou com a cabeça na direção <strong>do</strong> inimigo.— Não vamos ter hipótese de surpreender aqueles da mesma maneira.22


Um movimento atraiu-lhe o olhar, pelo que se virou; avistou a tripulação<strong>do</strong> galeão a trepar pelo cordame e a espalhar-se pel<strong>as</strong> verg<strong>as</strong>, preparan<strong>do</strong>-separa soltar tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> vel<strong>as</strong>. Depressa se colocariam em movimento,m<strong>as</strong> perante a fraquíssima brisa que soprava, dificilmente conseguiriamsair da baía antes <strong>do</strong> fim da contenda entre <strong>as</strong> du<strong>as</strong> galer<strong>as</strong>. Haveria tempopara se ocuparem daquela presa depois, decidiu Thom<strong>as</strong> enquanto voltavaa dar atenção à galera corsária.Depois de o Corça Veloz se libertar da sua primeira vítima, La Valettedeu ordens para avançar, e os rema<strong>do</strong>res voltaram a esforçar-se para impelira galera. Devagar a princípio, m<strong>as</strong> aumentan<strong>do</strong> de velocidade a cada remada,a esguia embarcação progrediu. Ouviu-se um breve e estridente grito deterror quan<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s corsários ainda na água percebeu que se encontravano caminho <strong>do</strong>s remos, m<strong>as</strong> logo uma pá de grandes dimensões se abateusobre o crânio <strong>do</strong> homem, fazen<strong>do</strong>-o imergir e calan<strong>do</strong>-o para sempre.No c<strong>as</strong>telo da proa, <strong>as</strong> equipagens de artilharia atarefavam-se a limparos canos <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is canhões e a recarregá-los, empurran<strong>do</strong> pelo tubo o sacoque continha a carga de pólvora, a que se seguia outro saco, este conten<strong>do</strong><strong>as</strong> peç<strong>as</strong> sortid<strong>as</strong> de metal que tanto estrago causavam quan<strong>do</strong> disparad<strong>as</strong> acurta distância. No convés, junto às du<strong>as</strong> amurad<strong>as</strong>, os besteiros retesavam<strong>as</strong> cord<strong>as</strong> d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> arm<strong>as</strong>, preparan<strong>do</strong> uma nova descarga de dar<strong>do</strong>s letais.Thom<strong>as</strong> avistava os turbantes <strong>do</strong>s combatentes inimigos por sobre a proada galera corsária, que se aproximava velozmente; preparavam os arcabuzespara o combate. Por baixo deles, sobressain<strong>do</strong> d<strong>as</strong> portinhol<strong>as</strong> aos <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>sda proa, viam-se os canos de <strong>do</strong>is canhões, <strong>as</strong> su<strong>as</strong> boc<strong>as</strong> escur<strong>as</strong> como<strong>do</strong>is olhos negros que fitavam sem remorso a sua presa.— Vai ser um combate sangrento — sussurrou um <strong>do</strong>s homens atrásde Thom<strong>as</strong>.— Sim — respondeu-lhe um camarada. — Que o Senhor tenha piedadede nós.Stokely virou-se para eles, furioso.— Bico cala<strong>do</strong>! O Senhor está connosco. A nossa causa é justa. São osinfiéis que devem pedir piedade.Os homens calaram-se ao sentirem o olhar feroz <strong>do</strong> cavaleiro, que sevirou e se empertigou para confrontar o inimigo. Thom<strong>as</strong> aproximou-se efalou-lhe em surdina.— Ainda não descobri nenhuma prece capaz de nos proteger de umabala inimiga, ou da metralha <strong>do</strong>s seus canhões. Se fosse a vós, lembrar-me-iadisso quan<strong>do</strong> eles abrirem fogo.— Isso é uma profanidade.— Nada disso, é apen<strong>as</strong> experiência, e bem amarga. Guardai <strong>as</strong> voss<strong>as</strong>orações, e preparai a mente para a dura tarefa de matar ou ser morto.23


Stokely pareceu preparar-se para responder, m<strong>as</strong> acabou por cerrar <strong>as</strong>mandíbul<strong>as</strong> e os lábios, optan<strong>do</strong> por contemplar a galera inimiga que vogavapel<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> calm<strong>as</strong>, aproximan<strong>do</strong>-se a cada segun<strong>do</strong>. O horizonte aleste parecia estar em fogo com o brilho líqui<strong>do</strong> <strong>do</strong> Sol, prestes a irromperpor trás da m<strong>as</strong>sa escura <strong>do</strong> promontório distante. No instante seguinte, osdetalhes <strong>do</strong>s corsários ficaram recorta<strong>do</strong>s de forma evidente quan<strong>do</strong> os primeirosraios de Sol se lançaram sobre o oceano, fazen<strong>do</strong> com que Thom<strong>as</strong>e os outros se vissem força<strong>do</strong>s a semicerrar a vista. O inimigo estava tãopróximo que o som d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> aclamações e o tilintar d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> espad<strong>as</strong> contra<strong>as</strong> orl<strong>as</strong> <strong>do</strong>s escu<strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>nda<strong>do</strong>s chegava com facilidade ao outro navio.O espaço entre <strong>as</strong> du<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> fechava-se rapidamente, e depressa Thom<strong>as</strong>ouviu os primeiros sons de disparos, quan<strong>do</strong> os mais impacientes <strong>do</strong>s arcabuzeirostentaram provocar estragos no navio cristão. Apesar da distância,que ainda era superior a duzentos p<strong>as</strong>sos, um <strong>do</strong>s artilheiros foi atingi<strong>do</strong> nacabeça; o crânio <strong>do</strong> homem explodiu, enquanto ele caía para trás, lançan<strong>do</strong>sobre os companheiros uma chuva de gotícul<strong>as</strong> de sangue, miolos e osso.— Porque é que La Valette não dá ordens para ripostar? — perguntouStokely.— O capitão sabe o que faz.Outro disparo teve êxito, atingin<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s no estômago,provocan<strong>do</strong> um som grave ao tresp<strong>as</strong>sar a placa peitoral e a proteção almofadadaque a envolvia por dentro. O homem largou o pique e caiu para oconvés a rebolar, gemen<strong>do</strong> em agonia.— Levem-no para baixo! — ordenou Thom<strong>as</strong>, e outro <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>spousou a arma e arr<strong>as</strong>tou o homem até à escotilha por trás <strong>do</strong> c<strong>as</strong>telo daproa, levan<strong>do</strong>-o pel<strong>as</strong> escad<strong>as</strong> abaixo até ao diminuto porão onde erammantid<strong>as</strong> <strong>as</strong> reserv<strong>as</strong> de comida e água. Ali ficaria até haver tempo para lhetratar <strong>do</strong> ferimento, depois <strong>do</strong> combate. Se os corsários triunf<strong>as</strong>sem, ali seafogaria ou seria morto, se o navio fosse saquea<strong>do</strong>.Quan<strong>do</strong> o solda<strong>do</strong> regressou ao seu posto, a distância entre os naviosestava reduzida a metade, m<strong>as</strong> os canhões ainda não tinham dispara<strong>do</strong>,apesar d<strong>as</strong> bal<strong>as</strong> que zuniam sobre <strong>as</strong> cabeç<strong>as</strong> ou se alojavam n<strong>as</strong> madeir<strong>as</strong><strong>do</strong> Corça Veloz. Thom<strong>as</strong> viu que o mestre artilheiro mais próximo se preparavapara levar a acendalha ao r<strong>as</strong>tilho de pólvora, e lançou um bra<strong>do</strong>imediato.— Esperai pela ordem!O outro olhou em volta com uma expressão amedrontada, no precisomomento em que se avistou um clarão na proa da galera inimiga. Nomomento seguinte, outro clarão. Logo o ar em re<strong>do</strong>r de Thom<strong>as</strong> se encheucom uma cacofonia de estalos, estron<strong>do</strong>s, e o retinir agreste de metal contrametal. Vários <strong>do</strong>s besteiros na proa foram derruba<strong>do</strong>s, bem como parte da24


equipagem de um <strong>do</strong>s canhões. Thom<strong>as</strong> foi sacudi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> algo fez ricochetecontra a sua armadura, e cambaleou para o la<strong>do</strong>, tentan<strong>do</strong> manter oequilíbrio. Depois de um momento de espera, rebentou no convés um corode gritos e gemi<strong>do</strong>s vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s. Thom<strong>as</strong> percorreu o corpo com oolhar, m<strong>as</strong> não viu sinais de qualquer ferida. Olhou em re<strong>do</strong>r e viu Stokelya levar uma mão à cara. O sangue golfava por baixo da manopla, e escorriapelo aço poli<strong>do</strong> da armadura.— Estou feri<strong>do</strong>… — disse, em choque. — Feri<strong>do</strong>.Thom<strong>as</strong> puxou-lhe a mão para trás e verificou que lhe tinha si<strong>do</strong> arranca<strong>do</strong>um pedaço de carne da maçã <strong>do</strong> rosto.— É uma ferida superficial. Haveis de sobreviver.Virou-se para avaliar o que se p<strong>as</strong>sava no convés, e notou que várioshomens, talvez uma dúzia, tinham si<strong>do</strong> abati<strong>do</strong>s. Nesse preciso momento,o mestre artilheiro sobrevivente levou a acendalha ao pavio da sua arma, ede imediato se viu o clarão repentino, a nuvem de fumo e o estron<strong>do</strong> que sepropagou pel<strong>as</strong> madeir<strong>as</strong> da galera e pelos corpos a bor<strong>do</strong>. Thom<strong>as</strong> avistoua outra acendalha ainda na mão sem vida <strong>do</strong> mestre abati<strong>do</strong> e correu paraa proa para a apanhar. Ajoelhou-se ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> canhão e esperou um momentoaté o fumo clarear e ele conseguir avistar o navio inimigo mesmo àsua frente. Mal teve tempo para se encolher e levar a chama ao pavio cheiode pólvora, e a arma de imediato saltou violentamente ao descarregar metalsobre o inimigo próximo.— Recolher remos! Leme to<strong>do</strong> para bombor<strong>do</strong>! — gritou La Valette,da popa.Os rema<strong>do</strong>res puseram o peso sobre os cabos para extrair <strong>as</strong> pás daágua e começaram a recolher os remos, ao mesmo tempo que o leme r<strong>as</strong>gavaa água e forçava a proa a rodar de forma a p<strong>as</strong>sar ao longo <strong>do</strong> c<strong>as</strong>co daembarcação inimiga. No momento seguinte sentiu-se um choque tremen<strong>do</strong>,segui<strong>do</strong> de um ranger profun<strong>do</strong> e dura<strong>do</strong>uro enquanto os <strong>do</strong>is c<strong>as</strong>cosdeslizavam um contra o outro. Alguns remos, tanto de um navio como deoutro, não tinham si<strong>do</strong> recolhi<strong>do</strong>s a tempo, e ouviu-se uma série de estali<strong>do</strong>sfortes quan<strong>do</strong> os longos cabos de madeira se estilhaçaram.Antes que o Corça Veloz se imobiliz<strong>as</strong>se, já La Valette, de espada namão, tinha desci<strong>do</strong> <strong>do</strong> c<strong>as</strong>telo da popa e corri<strong>do</strong> para se juntar ao grupo desolda<strong>do</strong>s que Thom<strong>as</strong> e os outros cavaleiros lideravam. O capitão deitouuma olhadela em re<strong>do</strong>r para ter a certeza que os seus homens estavam apostos e por fim levantou a espada, apontan<strong>do</strong>-a sobre a amurada, na direção<strong>do</strong> inimigo.— Por Deus e por S. João!25


3La Valette trepou para a amurada e saltou sobre o estreito espaço vazioentre os c<strong>as</strong>cos, aterran<strong>do</strong> no convés <strong>do</strong> barco inimigo. Alguns membrosda tripulação já tinham começa<strong>do</strong> a lançar ganchos de abordagem e aforçar a aproximação d<strong>as</strong> du<strong>as</strong> galer<strong>as</strong>.Thom<strong>as</strong> respirou fun<strong>do</strong>, firmou a mão na pega <strong>do</strong> pique e repetiu ogrito que o seu comandante soltara.— Por Deus e por S. João!Imitou então também o gesto e saltou para a outra embarcação. O veteranocavaleiro já se tinha encaminha<strong>do</strong> para o centro <strong>do</strong> convés <strong>do</strong> naviocorsário, fazen<strong>do</strong> rodar a longa lâmina da sua espada num arco letal à suafrente, para forçar o inimigo a recuar e abrir espaço para os homens que oseguiam. Soaram disparos vin<strong>do</strong>s de ambos os la<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> os arcabuzeirosdescarregaram <strong>as</strong> arm<strong>as</strong> e <strong>as</strong> largaram de imediato, pegan<strong>do</strong> então n<strong>as</strong>cimitarr<strong>as</strong> e avançan<strong>do</strong> para a refrega. Thom<strong>as</strong> firmou os pés no convése olhou em re<strong>do</strong>r rapidamente, escolhen<strong>do</strong> enfrentar a ameaça mais próxima,um homem de grande envergadura e turbante na cabeça, e de peleescura como o carvão, cujos olhos rebrilhavam sobre a barba espessa. Empunhavauma pesada cimitarra numa mão, e um escu<strong>do</strong> re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> na outra.Correu pelo convés na direção de Thom<strong>as</strong>, giran<strong>do</strong> a lâmina para a desviar<strong>do</strong> pique <strong>do</strong> adversário. M<strong>as</strong> Thom<strong>as</strong> deixou a ponta descer e p<strong>as</strong>sar sob aespada <strong>do</strong> corsário, antes de a fazer subir e apontar às vestes que cobriam opeito <strong>do</strong> outro.Por instinto, o corsário lançou o escu<strong>do</strong> contra o cabo <strong>do</strong> pique, af<strong>as</strong>tan<strong>do</strong>-ode forma a falhar o alvo e se limitar a r<strong>as</strong>gar <strong>as</strong> roup<strong>as</strong>. Thom<strong>as</strong>recolheu o pique e voltou a ameaçar o inimigo, fazen<strong>do</strong> sucessiv<strong>as</strong> fint<strong>as</strong>para o manter à distância. Na periferia <strong>do</strong> seu campo de visão reparou queLa Valette estraçalhava um crânio com um potente golpe, fazen<strong>do</strong> jorraruma fonte de sangue. Do outro la<strong>do</strong>, Stokely conduzia um pequeno grupode homens numa carga ao longo da amurada. Abriu-se um espaço entreThom<strong>as</strong> e o corsário negro, como se tivessem um palco para o seu duelopriva<strong>do</strong>.O homem soltou um berro súbito, provavelmente algum insulto, e26


avançou, atacan<strong>do</strong> o pique e fazen<strong>do</strong> a ponta tombar. Prosseguiu no avanço,lançan<strong>do</strong> o escu<strong>do</strong> contra a placa peitoral de Thom<strong>as</strong>. O impacto foiabsorvi<strong>do</strong> pelo revestimento interno da armadura, e o inglês soltou a mãodireita, cerrou-a num punho e enviou-a com toda a força contra o rosto <strong>do</strong>oponente. As proteções articulad<strong>as</strong> <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s, de metal, r<strong>as</strong>garam a pele<strong>do</strong> corsário, e escutou-se um som de esmagamento quan<strong>do</strong> os ossos <strong>do</strong>nariz cederam. O homem soltou um rugi<strong>do</strong> animal de <strong>do</strong>r e fúria, e voltoua lançar o escu<strong>do</strong> contra Thom<strong>as</strong>, forçan<strong>do</strong>-o a recuar, aproveitan<strong>do</strong> logo oespaço ganho para man<strong>obra</strong>r a cimitarra num arco aponta<strong>do</strong> à cabeça <strong>do</strong>cavaleiro.Thom<strong>as</strong> apercebeu-se <strong>do</strong> movimento, um arco metálico a reluzir à luz<strong>do</strong> Sol n<strong>as</strong>cente, e saltou para o la<strong>do</strong>. A cimitarra <strong>as</strong>sobiou-lhe aos ouvi<strong>do</strong>se abateu-se sobre <strong>as</strong> tábu<strong>as</strong> <strong>do</strong> convés com estron<strong>do</strong>, arrancan<strong>do</strong> estilhaços.Antes que o corsário se pudesse endireitar, Thom<strong>as</strong> ro<strong>do</strong>u o pique e lançouuma estocada decidida. A ponta apanhou o outro no ombro e derrubou-ode imediato. Caiu pesadamente de cost<strong>as</strong>, e Thom<strong>as</strong> aproveitou para novogolpe, desta vez ao cimo <strong>do</strong> peito, por baixo da clavícula. A ponta aceradaatravessou o corpete branco, r<strong>as</strong>gou carne e esmagou ossos ao penetrarprofundamente no corpo <strong>do</strong> corsário. O rosto deste contorceu-se, os olhose a boca cerra<strong>do</strong>s num esgar de <strong>do</strong>r, de tal forma que fazia lembrar umpedaço de madeira carbonizada. Por fim rolou sobre o convés, <strong>as</strong> mãos aapertarem a ferida de onde o sangue jorrava e se espalhava pel<strong>as</strong> vestes ondulantesque lhe cobriam o corpo.Thom<strong>as</strong> colocou a bota sobre o peito <strong>do</strong> inimigo e extraiu a ponta daarma. Olhou em re<strong>do</strong>r, pronto a enfrentar nova ameaça. La Valette e umgrupo de homens avançavam para a popa a golpes de espada; era onde ocapitão corsário e os seus homens o aguardavam, determina<strong>do</strong>s a defendera sua posição. Na direção oposta, Stokely e o seu grupo tinham consegui<strong>do</strong>chegar ao c<strong>as</strong>telo da proa e entretinham-se a m<strong>as</strong>sacrar <strong>as</strong> equipagens <strong>do</strong>scanhões. M<strong>as</strong> to<strong>do</strong> o convés era um campo de batalha caótico. As armadur<strong>as</strong><strong>do</strong>s cavaleiros e <strong>do</strong>s mercenários que os acompanhavam davam-lhesuma clara vantagem. A fé fanática que os inimigos punham nos ensinamentos<strong>do</strong> seu profeta proporcionava-lhes uma coragem tremenda, m<strong>as</strong>que de pouco servia. As su<strong>as</strong> cimitarr<strong>as</strong> deslizavam sobre <strong>as</strong> armadur<strong>as</strong>, e sóum golpe afortuna<strong>do</strong> às junt<strong>as</strong>, ou uma estocada à face, podiam provocarferid<strong>as</strong> importantes aos cristãos. Um punha<strong>do</strong> <strong>do</strong>s camarad<strong>as</strong> de Thom<strong>as</strong>tinha caí<strong>do</strong>, m<strong>as</strong> os outros avançavam sem cessar, diziman<strong>do</strong> <strong>as</strong> fileir<strong>as</strong> <strong>do</strong>scorsários.Ainda <strong>as</strong>sim, alguns <strong>do</strong>s combatentes inimigos ofereciam desafiosformidáveis. Thom<strong>as</strong> escolheu um combatente alto e magro, bem equipa<strong>do</strong>,com um escu<strong>do</strong> de grandes dimensões e uma cimitarra finamente27


decorada, que parecia estar de guarda a uma escotilha que dava acesso aoporão da galera. Aos seus pés jazia um corpo, e a cruz branca sobre o fun<strong>do</strong>vermelho <strong>do</strong> colete revelava que se tratava de um cavaleiro da Ordem.O corsário sorriu e levantou a espada, de forma a que Thom<strong>as</strong> se pudesseaperceber <strong>do</strong> gume ainda húmi<strong>do</strong> e vermelho. Ignorou o óbvio desafio. Ooutro tinha pele clara, talvez fosse um <strong>do</strong>s que, rapta<strong>do</strong>s em criança nosBalcãs, eram educa<strong>do</strong>s como muçulmanos, como os infames janízarosque constituíam o corpo de elite <strong>do</strong> exército <strong>do</strong> sultão. Na ponta <strong>do</strong> elmoesvoaçava uma pluma de crina de cavalo negra, e o elmo era negro também,reluzin<strong>do</strong> como se fosse coberto por verniz, tal como sucedia com<strong>as</strong> plac<strong>as</strong> de metal que tinham si<strong>do</strong> cosid<strong>as</strong> no gibão que usava. Uma cicatrizlívida na face revelava que se tratava de um combatente experiente,m<strong>as</strong> também que em tempos um adversário qualquer o tinha feri<strong>do</strong> comgravidade, notou Thom<strong>as</strong>.Apresentou-lhe a ponta <strong>do</strong> pique e, quan<strong>do</strong> ele se aproximou, fez umaimediata finta como se fosse tentar atingir-lhe o rosto. O outro nem piscouos olhos, limitan<strong>do</strong>-se a abanar a cabeça, como se lament<strong>as</strong>se a sorte <strong>do</strong>fraco adversário que tinha pela frente.— Muito bem então — rosnou Thom<strong>as</strong> por entre os dentes. — Experimentalá esta!Colocou o peso por trás da estocada e saltou para a frente. O corsáriodesviou-se para o la<strong>do</strong> sem esforço e lançou a sua fina lâmina contra a cabeçade Thom<strong>as</strong>. Este esquivou-se, e o gume afia<strong>do</strong> limitou-se a escorregar aolongo <strong>do</strong> aço <strong>do</strong> elmo, embora o impacto o deix<strong>as</strong>se ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong> por algunsmomentos. Deu um p<strong>as</strong>so atrás e abanou a cabeça, enquanto manejava opique de forma a manter o adversário à distância. O outro sorriu, m<strong>as</strong> depressacerrou os lábios numa máscara de determinação e avançou, a lâminaa voltear qu<strong>as</strong>e dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong> depressa para permitir que a visão a acompanh<strong>as</strong>se.Thom<strong>as</strong> ignorou o movimento e alterou repentinamente a pega <strong>do</strong>pique, p<strong>as</strong>san<strong>do</strong> a utilizá-lo como um bordão, como fizera tant<strong>as</strong> vezes n<strong>as</strong>ua meninice em Inglaterra. Era forte e poderoso, como qualquer homemeduca<strong>do</strong> para se tornar um cavaleiro, e tinha resolvi<strong>do</strong> p<strong>as</strong>sar à ofensiva.A tática ousada e simples apanhou despreveni<strong>do</strong> o corsário, que nãoconseguiu mover-se com a presteza suficiente para se af<strong>as</strong>tar <strong>do</strong> caminhoda longa h<strong>as</strong>te <strong>do</strong> pique. Thom<strong>as</strong> chocou contra ele, empurran<strong>do</strong>-o paratrás e fazen<strong>do</strong>-o tropeçar, obrigan<strong>do</strong>-o a concentrar-se em tentar manter-sede pé. M<strong>as</strong> acabou por embater na amurada, com tanta força que o ar quese soltou <strong>do</strong>s seus pulmões embateu contra Thom<strong>as</strong>, forçan<strong>do</strong>-o a piscar osolhos ao ver-se atingi<strong>do</strong> pelo o<strong>do</strong>r da refeição matinal <strong>do</strong> homem. O corsáriosoltou a espada e o escu<strong>do</strong> e deixou-os cair, tentan<strong>do</strong> apanhar o cabo <strong>do</strong>pique e empurrá-lo para trás. Thom<strong>as</strong> enfrentou-o, e, com cada músculo e28


tendão <strong>do</strong>s seus braços, continuou a pressionar, obrigan<strong>do</strong>-o a agachar-see cair para o convés. A h<strong>as</strong>te encostou-se ao cimo <strong>do</strong> peito <strong>do</strong> homem, eThom<strong>as</strong> empurrou-a para cima, por baixo <strong>do</strong> queixo, contra a garganta.As mandíbul<strong>as</strong> <strong>do</strong> corsário abriram-se e o homem contorceu-se enquantotentava desesperadamente impedir que o adversário o sufoc<strong>as</strong>se.— Maldito… sej<strong>as</strong>… cristão — pronunciou, num francês com fortesotaque. — Que ard<strong>as</strong>… no Inferno!A face de Thom<strong>as</strong> estava a curtos centímetros da <strong>do</strong> corsário, pelo queconseguia ver to<strong>do</strong>s os detalhes d<strong>as</strong> feições <strong>do</strong> outro, e o suor que lhe brotavada testa enquanto lutava pela vida. A respiração <strong>do</strong> homem já era difícile os olhos rebolavam-lhe, e por fim algo cedeu na garganta, produzin<strong>do</strong> umsom abafa<strong>do</strong>. O corsário teve um esp<strong>as</strong>mo, os olhos esbugalharam-se, ferozese enormes, e a boca produziu uma série de estali<strong>do</strong>s e suspiros. Thom<strong>as</strong>sentia a força <strong>do</strong> outro a diminuir, m<strong>as</strong> continuou a fazer pressão no pique,até que a cabeça <strong>do</strong> adversário rolou para o convés, <strong>as</strong> mão largaram o caboe ele ficou ali, a contemplar sem ver o céu rosa<strong>do</strong>, com a ponta da língua airromper por entre os dentes.Thom<strong>as</strong> rebolou para o la<strong>do</strong>, o pique a postos para o c<strong>as</strong>o de haver porali outro inimigo prestes a atacá-lo, m<strong>as</strong> só os mortos e moribun<strong>do</strong>s lhefaziam companhia próxima. O combate pela posse <strong>do</strong> navio estava praticamentetermina<strong>do</strong>. Stokely e os seus homens tinham limpo a proa, enquantoLa Valette e os outros solda<strong>do</strong>s continuavam a avançar para a popa dagalera. O capitão inimigo e um punha<strong>do</strong> <strong>do</strong>s seus homens lutavam aindano espaço confina<strong>do</strong>, golpean<strong>do</strong> selvaticamente os homens de armaduraque os pressionavam. Enquanto Thom<strong>as</strong> observava, La Valette levantou <strong>as</strong>ua espada sobre a cabeça e desferiu um poderoso golpe na diagonal. Ocavaleiro era um homem de constituição poderosa, e a tentativa <strong>do</strong> capitãoinimigo de aparar o golpe nada pôde para alterar o curso da lâmina. Nomomento seguinte, o aço afia<strong>do</strong> r<strong>as</strong>gou o turbante e cravou-se no crânio <strong>do</strong>homem, penetran<strong>do</strong> até ao queixo.Quan<strong>do</strong> os corsários em re<strong>do</strong>r se aperceberam de que o seu capitãoestava mortalmente feri<strong>do</strong>, lançaram <strong>as</strong> arm<strong>as</strong> pelo solo e arrojaram-sede joelhos, pedin<strong>do</strong> clemência. Espad<strong>as</strong> e piques cortaram-nos e esfacelaram-nospor ainda mais alguns momentos, até que a refrega amainou. LaValette soltou a espada, limpou-a n<strong>as</strong> vestes <strong>do</strong> corsário e embainhou-a,antes de se virar para contemplar a carnificina que ocorrera no convés dagalera. Avistou Thom<strong>as</strong>.— Sir Thom<strong>as</strong>! Vinde.Thom<strong>as</strong> apressou-se a abrir caminho na direção da ré da embarcação,p<strong>as</strong>san<strong>do</strong> por entre os cadáveres amontoa<strong>do</strong>s no convés ensanguenta<strong>do</strong>.Parou na b<strong>as</strong>e d<strong>as</strong> curt<strong>as</strong> escad<strong>as</strong> que levavam à popa soerguida e olhou29


para o seu comandante. La Valette tinha si<strong>do</strong> atingi<strong>do</strong> na cabeça, e o seuelmo apresentava uma mossa profunda, m<strong>as</strong> não havia sinais de que estivesseferi<strong>do</strong> ou sequer ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong>, e contemplou calmamente o subordina<strong>do</strong>.— Ides tomar o coman<strong>do</strong> aqui.— Coman<strong>do</strong>? Sim, senhor.— Eu vou regressar ao Corça Veloz e perseguir o galeão. — Fez umgesto com a mão e Thom<strong>as</strong> olhou em re<strong>do</strong>r, reparan<strong>do</strong> então que <strong>as</strong> vel<strong>as</strong>da grande embarcação de carga se tinham enfuna<strong>do</strong> com a brisa matinal, eque ela estava prestes a sair da baía. Se conseguisse alcançar o mar alto, a suamelhor resposta ao vento poderia permitir-lhe escapar, especialmente se aondulação se intensific<strong>as</strong>se à medida que o vento aumentava.— Deixo-vos Sir Oliver e mais vinte homens — continuou La Valette.— Libertai os cristãos que encontrardes entre os rema<strong>do</strong>res. M<strong>as</strong> tomaiatenção. Não quero ver nenhum maometano a fingir que é um <strong>do</strong>s nossos.— Sim, senhor.— Acorrentai os novos prisioneiros aos bancos. Depois procedei às reparaçõesque sejam necessári<strong>as</strong>, livrai-vos <strong>do</strong>s cadáveres e regressai a Malta.— Malta? — Thom<strong>as</strong> franziu o sobrolho. Ainda faltava muito tempopara o fim da época de campanha. Não fazia senti<strong>do</strong> regressar de imediatoà sede da Ordem. M<strong>as</strong> a decisão fora tomada pelo capitão, e Thom<strong>as</strong> nãotinha qualquer direito de a contestar. Endireitou <strong>as</strong> cost<strong>as</strong>, e inclinou levementea cabeça. — Será feito como dizeis, senhor.— Isso mesmo. — La Valette deitou-lhe um olhar severo por momentos,antes de afrouxar o tom e prosseguir numa voz baixa, de forma a queapen<strong>as</strong> o jovem cavaleiro o pudesse escutar. — Thom<strong>as</strong>, afundámos umaembarcação inimiga e capturámos outra. Daqui a pouco tempo, espero, tomaremostambém aquele galeão. É forçoso conduzir <strong>as</strong> noss<strong>as</strong> pres<strong>as</strong> paraMalta, onde ficarão segur<strong>as</strong>, e reab<strong>as</strong>tecer o Corça Veloz antes de prosseguirna missão. Pelo meio-dia teremos três navios, e qu<strong>as</strong>e nenhuns homenspara os tripularem. Não podemos arriscar-nos a novos confrontos até pormos<strong>as</strong> noss<strong>as</strong> pres<strong>as</strong> a salvo em Malta. Percebeis?— Sim, senhor — retorquiu Thom<strong>as</strong>, sem emoção.— Somos já muito poucos. Há na Europa quem pense que a Ordemé a vanguarda <strong>do</strong> combate que a Igreja trava contra o Turco. A verdade éque somos, sim, a retaguarda. Nunca vos esqueçais disso. De cada vez queperdemos um homem, o inimigo fica um p<strong>as</strong>so mais perto da vitória. — Osolhos <strong>do</strong> homem pareciam tresp<strong>as</strong>sar Thom<strong>as</strong>. — A seu tempo, se viverdeso suficiente, ser-vos-á confia<strong>do</strong> o coman<strong>do</strong> de uma galera, e sereis então oresponsável pel<strong>as</strong> vid<strong>as</strong> <strong>do</strong>s homens que vos servirem. Não é algo que sepossa <strong>as</strong>sumir sem muito refletir.30


Thom<strong>as</strong> anuiu.— Senhor, compreen<strong>do</strong>.— Tratai de o garantir. — La Valette recuou um p<strong>as</strong>so e contemplou oshomens espalha<strong>do</strong>s pelo convés. — Sargento Men<strong>do</strong>za! — chamou.Um vulto pesa<strong>do</strong> correu para ele e fez uma continência rápida.— Senhor?— Tu e os teus homens ficam a bor<strong>do</strong>, sob o coman<strong>do</strong> de Sir Thom<strong>as</strong>.Os outros, de volta ao Corça Veloz, e depressa.Os homens designa<strong>do</strong>s para acompanharem o capitão atravessaramrapidamente o convés até alcançarem o ponto onde a proa <strong>do</strong> seu navio estavaencostada à galera corsária, graç<strong>as</strong> aos inúmeros ganchos que tinhamsi<strong>do</strong> lança<strong>do</strong>s. Treparam para a amurada e atravessaram para a outra galera.Assim que o último <strong>do</strong>s homens deixou a embarcação conquistada,Thom<strong>as</strong> deu ordens para que fossem afrouxa<strong>do</strong>s os cabos <strong>do</strong>s ganchos, deforma a poderem soltar-se <strong>as</strong> pont<strong>as</strong> e serem devolvid<strong>as</strong> ao convés <strong>do</strong> CorçaVeloz. Abriu-se um espaço entre <strong>as</strong> du<strong>as</strong> galer<strong>as</strong>, e La Valette soltou a ordempara lançar os remos e fazer recuar o navio até poderem rodar a proa eaproar ao galeão que se escapulia. Por fim os remos, num ritmo constante,começaram a impulsionar a esguia galera na direção da sua presa. Thom<strong>as</strong>contemplou <strong>as</strong> man<strong>obra</strong>s por mais alguns momentos e focou-se então noseu coman<strong>do</strong> temporário.31


4Aprimeira coisa a fazer era tratar <strong>do</strong>s homens aprisiona<strong>do</strong>s na coberta.Virou-se para o sargento.— Venha comigo, com mais <strong>do</strong>is homens. Os outros que tratem <strong>do</strong>scadáveres. Separem os nossos homens, para lhes darmos um funeral decente.Dirigiu-se com Men<strong>do</strong>za para a grade que fechava a p<strong>as</strong>sagem para acoberta. Ao aproximar-se, ouviu o clamor que se erguia lá de baixo, segui<strong>do</strong>de um grito de terror que foi rapidamente silencia<strong>do</strong>. Havia um parafusoa prender a grade, e Thom<strong>as</strong> ajoelhou-se para o soltar, enquanto notava ocuida<strong>do</strong> <strong>do</strong>s corsários, que acorrentavam os rema<strong>do</strong>res aos bancos e depoisainda tinham a preocupação de trancar o acesso à coberta.— Ajude-me aqui com a grade.Os <strong>do</strong>is homens levantaram a grade e lançaram-na para o convés.Thom<strong>as</strong> espreitou pela abertura e recuou de imediato, atingi<strong>do</strong> por umjorro de ar quente impregna<strong>do</strong> com o mais pestilento o<strong>do</strong>r que algumavez encontrara. Havia movimentos lá em baixo, e <strong>as</strong> correntes tilintavamquan<strong>do</strong> quem <strong>as</strong> usava se movia. Avistou por fim rostos que se viravampara a luz pálida que entrava pela escotilha. Caracóis imun<strong>do</strong>s e desgrenha<strong>do</strong>se barb<strong>as</strong> enormes cobriam <strong>as</strong> feições emaciad<strong>as</strong> <strong>do</strong>s prisioneiros.A maior parte deles era branca de pele, m<strong>as</strong> também se avistavam algunshomens com pele mais escura, embora não fosse fácil perceber o tom porbaixo da camada de sujidade que a to<strong>do</strong>s cobria. Havia uma escada quedescia até ao p<strong>as</strong>sadiço estreito que se estendia entre <strong>as</strong> fil<strong>as</strong> de bancos alinha<strong>do</strong>snos <strong>do</strong>is bor<strong>do</strong>s da galera. Desceu e avistou à vante um vulto quesegurava um pequeno chicote, perto <strong>do</strong> bate<strong>do</strong>r, também ele agrilhoa<strong>do</strong>junto ao tambor. Thom<strong>as</strong> e os seus homens viram-se obriga<strong>do</strong>s a curvaros pescoços enquanto avançavam, observa<strong>do</strong>s por olhos esperançosos deambos os la<strong>do</strong>s.— O Senhor seja louva<strong>do</strong>… — soltou uma voz sumida. — São cristãos…Cristãos! Vamos ser liberta<strong>do</strong>s!As palavr<strong>as</strong> tiveram efeito em muitos <strong>do</strong>s seus camarad<strong>as</strong>, que levantaram<strong>as</strong> mãos na direção <strong>do</strong>s seus salva<strong>do</strong>res, imploran<strong>do</strong> pela liberdade.32


Alguns limitaram-se a tombar e chorar sobre os remos, enquanto os ombroslhes eram sacudi<strong>do</strong>s por soluços incontroláveis.O encarrega<strong>do</strong> da coberta soltou o chicote ao ver Thom<strong>as</strong> a aproximar-se,e colocou <strong>as</strong> mãos junt<strong>as</strong> num pedi<strong>do</strong>, enquanto murmurava emfrancês.— Senhor, por favor… Por favor.— Onde fica o pino que fecha <strong>as</strong> correntes? — inquiriu Thom<strong>as</strong>.O outro espetou o de<strong>do</strong>, apontan<strong>do</strong> um aro crava<strong>do</strong> profundamentenuma trave <strong>do</strong> chão, logo atrás da posição <strong>do</strong> bate<strong>do</strong>r.— Ali.Thom<strong>as</strong> af<strong>as</strong>tou-o com a mão. Lutou contra a náusea provocada pelocheiro indescritível que vinha d<strong>as</strong> profundez<strong>as</strong> <strong>do</strong> porão. Como podia umhomem aguentar uma coisa daquel<strong>as</strong>?, perguntou-se. Encontrou o anelque fechava a corrente e localizou o pino que a fixava. Pegou na sua adagae começou a tentar soltá-lo. Ao fim de um momento, o pino saltou <strong>do</strong>seu encaixe, e Thom<strong>as</strong> pôde começar a fazer p<strong>as</strong>sar a corrente pelo anel,acumulan<strong>do</strong>-a ao pé <strong>do</strong> banco mais próximo. Olhou para os rostos <strong>do</strong>shomens que lá estavam senta<strong>do</strong>s.— Quem de entre vós é cristão?— Eu! — ripostou enfaticamente o homem mais próximo — Eu, senhor.Sou de Toulon.— Libertem-no — ordenou Thom<strong>as</strong>.— Eu também! — apressou-se a anunciar o vizinho <strong>do</strong> homem.— Mentiroso! — rosnou este. — És um mouro. Os corsários capturaram-teem Valência.— Sargento, liberte o francês. O outro fica acorrenta<strong>do</strong>. — O mouro,um descendente <strong>do</strong>s árabes que em tempos tinham governa<strong>do</strong> a Espanha,abriu a boca num protesto, m<strong>as</strong> ao notar a expressão implacávelque Thom<strong>as</strong> ostentava, fechou-a e deixou pender a cabeça sobre o remo,resigna<strong>do</strong>. Thom<strong>as</strong> olhou em volta enquanto mais vozes se levantavam eproclamavam a sua fé. Se to<strong>do</strong>s diziam a verdade, não mais de um terço <strong>do</strong>shomens permaneceria aos remos, o que não seria suficiente para a viagemde regresso a Malta. À medida que o tumulto de vozes aumentava, resolveuinterrompê-lo. Respirou fun<strong>do</strong> e lançou um grito sobre toda a cena.— SILÊNCIO!Os rema<strong>do</strong>res, habitua<strong>do</strong>s ao regime duro imposto pelos encarrega<strong>do</strong>s,silenciaram de imediato os protestos. Thom<strong>as</strong> voltou-se de novo parao sargento.— Liberte os cristãos, m<strong>as</strong> só eles. To<strong>do</strong> e qualquer homem que se proclamecristão e que seja desm<strong>as</strong>cara<strong>do</strong> como mentiroso, será imediatamenteexecuta<strong>do</strong>.33


— Sim, senhor — respondeu o sargento, sem surpresa.— Prossiga. — Thom<strong>as</strong> já não conseguia aguentar o cheiro daquel<strong>as</strong>criatur<strong>as</strong> e <strong>do</strong> lugar que ocupavam. — Estarei lá em cima.— E quanto àquele? — Men<strong>do</strong>za apontou para o encarrega<strong>do</strong>, que aindatentava p<strong>as</strong>sar despercebi<strong>do</strong> junto à popa, sem se atrever a enfrentar oolhar <strong>do</strong>s homens que mantivera sob a lei <strong>do</strong> chicote. Thom<strong>as</strong> olhou-o pormomentos e reparou que o homem não tinha larga<strong>do</strong> o instrumento <strong>do</strong>seu poder.— Ele? Deixe que sejam os homens que libertar a decidir o seu destino.Virou-se e af<strong>as</strong>tou-se ao longo <strong>do</strong> p<strong>as</strong>sadiço a caminho da escada, lutan<strong>do</strong>contra o desejo de correr e sair daquele buraco infernal o mais depressapossível. Subiu para o convés, apressou-se a chegar-se à amurada,onde podia sentir o vento fresco na cara, e respirou profundamente paratentar expulsar os últimos resquícios <strong>do</strong> ar pestilento da coberta. Apesar desaber perfeitamente como se p<strong>as</strong>savam <strong>as</strong> cois<strong>as</strong> no interior de uma galera,só o tinha visto com os próprios olhos num par de oc<strong>as</strong>iões. O que viradeixara-o desgostoso, m<strong>as</strong> os homens que remavam n<strong>as</strong> embarcações daOrdem eram criminosos, pirat<strong>as</strong> e segui<strong>do</strong>res de fés fals<strong>as</strong>. E por muito másque fossem <strong>as</strong> condições n<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> cristãs, nunca tinha visto homens trata<strong>do</strong>sde uma forma tão vil como naquela galera de corsários. Sentiu umacólera profunda ao pensar no inimigo, e um desejo ardente de fazer a suaparte para varrer o Islão da face da Terra.Um repuxo na superfície <strong>do</strong> mar ali perto fê-lo olhar à volta; alguns<strong>do</strong>s seus homens lançavam os cadáveres pela borda fora. Os corpos tinhamsi<strong>do</strong> desarma<strong>do</strong>s e despoja<strong>do</strong>s de quaisquer peç<strong>as</strong> de roupa que pudessemvaler um preço decente nos merca<strong>do</strong>s de Malta. Dois outros homens vigiavamum punha<strong>do</strong> de prisioneiros feri<strong>do</strong>s, senta<strong>do</strong>s no convés junto à b<strong>as</strong>e<strong>do</strong> m<strong>as</strong>tro de ré. Ao contemplá-los, Thom<strong>as</strong> sentiu o coração endurecere tornar-se apen<strong>as</strong> uma pedra fria no seu peito. Af<strong>as</strong>tou-se da amurada edirigiu-se para junto deles, acenan<strong>do</strong> a outro grupo de solda<strong>do</strong>s para queo acompanh<strong>as</strong>sem. Ao chegar junto <strong>do</strong>s prisioneiros, parou e avaliou-os,sem esconder o ódio que sentia. Eram mais de vinte, e a maior parte aindaenvergava algum género de armadura, além d<strong>as</strong> bainh<strong>as</strong> vazi<strong>as</strong> que lhespendiam <strong>do</strong>s cintos. Qu<strong>as</strong>e to<strong>do</strong>s tinham ferid<strong>as</strong> tratad<strong>as</strong> sem grande cuida<strong>do</strong>,apen<strong>as</strong> embrulhad<strong>as</strong> em tir<strong>as</strong> de pano. Eram ferid<strong>as</strong> superficiais eto<strong>do</strong>s recuperariam, pelo menos o suficiente para ocuparem lugares nosbancos de rema<strong>do</strong>res daquela ou de outra galera.— Deixem aqui os oficiais. Os outros, lá para baixo, para os remos —ordenou, em tom firme. Os homens separaram os prisioneiros, levan<strong>do</strong> amaior parte a caminho da escotilha, enquanto um pequeno grupo ficava34


senta<strong>do</strong> no convés. Thom<strong>as</strong> contemplou-os por momentos antes de darnova ordem. — Matem-nos. Lancem os corpos borda fora.Um <strong>do</strong>s homens que tinham esta<strong>do</strong> a guardar os prisioneiros deitouum olhar a um companheiro, antes de reunir coragem para pigarrear e inquirir.— Senhor? Os oficiais valem bom dinheiro.Thom<strong>as</strong> sentiu a mão a tremer, e agarrou-a com firmeza.— Dei-te uma ordem. Mata-os! Fá-lo!Soaram p<strong>as</strong>sos n<strong>as</strong> su<strong>as</strong> cost<strong>as</strong>, e Stokely interpôs-se entre ele e os prisioneiros.— Não podeis <strong>as</strong>s<strong>as</strong>sinar os oficiais. São nossos prisioneiros.Thom<strong>as</strong> engoliu em seco e respondeu com azedume.— São o inimigo. São turcos, infiéis.— Não deixam de ser criatur<strong>as</strong> de Deus, mesmo que ainda não tenhamabraça<strong>do</strong> a verdadeira fé — ripostou Stokely. — Aceitámos a sua rendição.Não podemos chaciná-los <strong>as</strong>sim. Seria uma ofensa às tradições da cavalaria.— Cavalaria? — Thom<strong>as</strong> fez uma careta, que se transformou num sorriso.— Não há lugar para tais ideais na guerra contra o Turco. A morte é oque eles merecem.— Não podeis…Thom<strong>as</strong> silenciou-o com a mão erguida.— Estamos a perder tempo. Quero pôr-me a caminho o mais depressapossível. M<strong>as</strong> primeiro temos de nos livrar desta… praga.Empunhou a lâmina, e antes que alguém pudesse detê-lo, p<strong>as</strong>sou a fiode espada o mais próximo <strong>do</strong>s corsários, um jovem num corpete finamentedebrua<strong>do</strong>, ainda dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong> novo para ostentar uma barba. O corsáriosuspirou e tombou para o convés enquanto uma mancha escarlate se espalhavarapidamente pelo algodão branco d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> vestes. Com gestos fracos,tentou agarrar uma ponta <strong>do</strong> corpete para fazer pressão sobre a ferida eestancar o sangue que corria. Thom<strong>as</strong> avançou, cego a tu<strong>do</strong> pelo seu desejode sangue. Voltou a golpeá-lo, desta vez no pescoço, cortan<strong>do</strong> a espinha equ<strong>as</strong>e lhe decepan<strong>do</strong> a cabeça. Olhou em re<strong>do</strong>r, para os seus homens.— Agora tratem de cumprir <strong>as</strong> ordens que vos dei! Matem-nos a to<strong>do</strong>s.Tu, começa. — Apontou para um <strong>do</strong>s homens que tinham esta<strong>do</strong> a vigiaros prisioneiros.O solda<strong>do</strong> baixou o pique e cravou-o no peito <strong>do</strong> corsário mais próximo.Os outros começaram a gritar, pedin<strong>do</strong> clemência em francês e espanhol,bem como n<strong>as</strong> su<strong>as</strong> língu<strong>as</strong> nativ<strong>as</strong>. Depois de os <strong>do</strong>is primeirosserem executa<strong>do</strong>s, os outros solda<strong>do</strong>s juntaram-se à matança. Thom<strong>as</strong>af<strong>as</strong>tou-se e Stokely continuou a <strong>as</strong>sistir à cena com o horror e a relutânciabem expressos no trejeito <strong>do</strong>s lábios.35


— Isto está… erra<strong>do</strong>. — Abanou a cabeça. — Erra<strong>do</strong>.— Se <strong>as</strong>sim pensais, talvez seja melhor reconsiderardes a vossa pertençaà Ordem. — Thom<strong>as</strong> encolheu os ombros e virou-se, enquanto o último<strong>do</strong>s prisioneiros era abati<strong>do</strong>. — Vede se os corpos são atira<strong>do</strong>s fora comoindiquei.Enquanto caminhava para a proa, Thom<strong>as</strong> nada sentiu por momentos.Tinha espera<strong>do</strong> uma sensação de alívio, o vazar da tensão que se tinhaacumula<strong>do</strong> durante a batalha e depois na coberta. M<strong>as</strong> tu<strong>do</strong> o que sentiaera uma <strong>do</strong>rmência fria. O sangue que manchava o convés em re<strong>do</strong>r, <strong>as</strong> arm<strong>as</strong>aban<strong>do</strong>nad<strong>as</strong>, eram apen<strong>as</strong> detalhes, e <strong>as</strong> su<strong>as</strong> recordações <strong>do</strong> combateeram imagens solt<strong>as</strong> e fugazes, limp<strong>as</strong> de qualquer emoção, de remorso ouaté mesmo de qualquer sensação de triunfo. Tu<strong>do</strong> o que sabia era que aindaestava vivo, e que os seus camarad<strong>as</strong> tinham consegui<strong>do</strong> uma pequena vitória.Nada mais <strong>do</strong> que uma alfinetada na grande besta <strong>do</strong> poder turco queavançava sem cessar, fazen<strong>do</strong> daquele mar e d<strong>as</strong> terr<strong>as</strong> que o rodeavam o<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> Islão. O sangue continuaria a correr, os homens continuariama morrer pela espada ou pela exaustão e pela fome, agrilhoa<strong>do</strong>s aos remosd<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> que percorriam aquele mar atormenta<strong>do</strong>. Mulheres e crianç<strong>as</strong>continuariam a ser levad<strong>as</strong> como escrav<strong>as</strong> para se tornarem concubin<strong>as</strong> ouserem educad<strong>as</strong> por muçulmanos, para que um dia trav<strong>as</strong>sem a guerra contraaqueles que em tempos tinham visto como família. E pelo seu la<strong>do</strong>, oscavaleiros de S. João e to<strong>do</strong>s os que com eles partilhavam a causa lutariampela sobrevivência. E <strong>as</strong>sim tu<strong>do</strong> prosseguiria. Espada e cimitarra, pres<strong>as</strong>num duelo infindável e sangrento, cuja única recompensa era a miséria querecaía sobre <strong>as</strong> gentes de amb<strong>as</strong> <strong>as</strong> fações.Dirigiu-se à pequena escotilha sobre o porão de vante, onde matara ogigante negro. Deixou-se sentar pesadamente enquanto desapertava a armadura,tirava <strong>as</strong> manopl<strong>as</strong> e lutava com <strong>as</strong> fivel<strong>as</strong> que lhe apertavam oelmo. Ao fim de algum<strong>as</strong> tentativ<strong>as</strong>, lá conseguiu tirá-lo e colocá-lo sobre<strong>as</strong> tábu<strong>as</strong> <strong>do</strong> convés, a seu la<strong>do</strong>. O suor colava-lhe o cabelo ao escalpe, e abrisa matinal refrescava-lhe a pele agora exposta. Deixou-se recostar porum momento contra a amurada, até que uma sombra lhe caiu sobre o rosto.Piscou os olhos, abriu-os e avistou Stokely à sua frente.— Cumprimos <strong>as</strong> voss<strong>as</strong> ordens. E os cristãos foram liberta<strong>do</strong>s. —Fez um gesto para a parte tr<strong>as</strong>eira <strong>do</strong> convés, onde um<strong>as</strong> quarenta figur<strong>as</strong>esquelétic<strong>as</strong>, embrulhad<strong>as</strong> em trapos, se amontoavam em torno de cest<strong>as</strong>com pão, tentan<strong>do</strong> obter um pedaço a que arrancavam sofregamente nacosque m<strong>as</strong>tigavam com vigor. Stokely contemplou-os por momentos. — Estavamcom fome, m<strong>as</strong> ainda <strong>as</strong>sim tiveram tempo de primeiro fazer o encarrega<strong>do</strong>em pedaços. Não é que ele não merecesse.— Se o dizeis.36


Stokely espreitou para a escotilha.— Já fostes ver o que há aí em baixo?Thom<strong>as</strong> abanou a cabeça.— Talvez haja mais comida que possamos dar àquela gente.Thom<strong>as</strong> acenou com a mão na direção da estreita p<strong>as</strong>sagem.— Fazei como vos aprouver.Stokely meteu pela escada que levava ao diminuto compartimento.Um instante depois, Thom<strong>as</strong> ouviu-o soltar uma imprecação de surpresa,antes de o chamar.— Thom<strong>as</strong>!— Que se p<strong>as</strong>sa?— Chegai cá abaixo!A urgência na voz <strong>do</strong> amigo fez com que Thom<strong>as</strong> rod<strong>as</strong>se de forma <strong>as</strong>altar para o interior <strong>do</strong> porão.— Que é?Virou-se e avistou Stokely agacha<strong>do</strong> junto a um monte de trapos. Nãohavia espaço suficiente para se manter de pé, e Thom<strong>as</strong> avançou tambémagacha<strong>do</strong>. O monte de trapos mexeu-se e, graç<strong>as</strong> aos raios de luz que penetravampela grelha <strong>do</strong> porão, Thom<strong>as</strong> percebeu que se tratava de umamulher. Cobria-a um trapo reduzi<strong>do</strong> e imun<strong>do</strong>, e quan<strong>do</strong> ela se virou paraeles, o teci<strong>do</strong> escorregou e expôs <strong>as</strong> marc<strong>as</strong> em carne viva que lhe percorriamos ombros e <strong>as</strong> cost<strong>as</strong>. O cabelo era longo e escuro, e uma d<strong>as</strong> mãosestava presa a um aro de ferro na parede <strong>do</strong> porão. Olhou para os <strong>do</strong>is homens,os olhos cheios de desconfiança. A pele dela era pálida, e exibia umanó<strong>do</strong>a negra no rosto. Os lábios greta<strong>do</strong>s entreabriram-se e a língua tentouhumedecê-los antes de ela murmurar:— Quem sois?— Cristãos — retorquiu Sir Oliver. — Tomámos esta galera.— Cristãos — repetiu ela, enquanto examinava o <strong>as</strong>peto <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is homens.Fez-se um silêncio breve enquanto a mulher e os <strong>do</strong>is cavaleiros seavaliavam. Ao contemplá-la, Thom<strong>as</strong> percebeu que era muito bela, mesmonaquele esta<strong>do</strong>, espancada, magoada e acorrentada, a viver na sua própriaporcaria. Algo se alterou na profunda frieza que tomara conta <strong>do</strong> seucoração. Virou-se de forma a alcançar o aro e puxou da adaga. A mulherencolheu-se ao avistar a lâmina, e ele apressou-se a apontar para a peça queprendia <strong>as</strong> correntes ao anel crava<strong>do</strong> n<strong>as</strong> tábu<strong>as</strong> <strong>do</strong> c<strong>as</strong>co.— Vou tirar-vos daqui.Ela <strong>as</strong>sentiu, e Thom<strong>as</strong> inseriu a ponta da adaga e começou a tentarsoltar o pino. Fez uma breve pausa e olhou para ela.— Como vos chamais?37


Ela voltou a humedecer os lábios e respondeu com voz rouca:— Maria de Venici.Thom<strong>as</strong> <strong>as</strong>sentiu, e voltou a sentir o coração a palpitar quan<strong>do</strong> a contemplou.— Maria — repetiu devagar, saborean<strong>do</strong> cada sílaba <strong>do</strong> nome. — Maria.38


5Malta, <strong>do</strong>is meses depoisOcrescente lunar resplandecia sobre a ilha de Malta, risca<strong>do</strong> apen<strong>as</strong> porfin<strong>as</strong> nuvens pratead<strong>as</strong>. Uma faixa de brilho refleti<strong>do</strong> espalhava-se sobre<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> <strong>do</strong> porto, na direção da crista de Sciberr<strong>as</strong>, e o ar mantinha-sequente e para<strong>do</strong>. Thom<strong>as</strong> pouca atenção dava ao que o rodeava. Noutranoite qualquer, não deixaria de sentir o prazer sensual de uma noite de verãono Mediterrâneo, e teria feito uma pausa para melhor absorver a vista eos sons que embelezavam o momento.M<strong>as</strong> não naquela noite.O coração batia-lhe com impaciência e ansiedade, enquanto esperavaà sombra d<strong>as</strong> muralh<strong>as</strong> <strong>do</strong> forte de St. Ângelo, lar da Ordem, edifica<strong>do</strong>na ponta rochosa da península de Birgu. A fortificação guardava a entrada<strong>do</strong> porto e <strong>do</strong>minava a pequena povoação, cujos telha<strong>do</strong>s vermelhos pareciamcinzentos e desbota<strong>do</strong>s ao luar. Ao longo da b<strong>as</strong>e da muralha corriaum estreito caminho que levava ao cais na margem, onde Thom<strong>as</strong> aguardava.Deu um pulo quan<strong>do</strong> o sino da catedral bateu meia-hora depois dameia-noite. Maria já devia ter chega<strong>do</strong> há b<strong>as</strong>tante tempo. Af<strong>as</strong>tan<strong>do</strong>-seligeiramente d<strong>as</strong> roch<strong>as</strong> na b<strong>as</strong>e da muralha, esforçou a vista para espreitarao longo <strong>do</strong> caminho, m<strong>as</strong> nada se movia. Sentiu um súbito receio de queela pudesse ter muda<strong>do</strong> de idei<strong>as</strong> e tivesse decidi<strong>do</strong> que não devia correr orisco de se encontrar a sós com ele mais uma vez.Já tinham si<strong>do</strong> avisa<strong>do</strong>s para pôr um travão na sua relação. La Valettetinha puxa<strong>do</strong> Thom<strong>as</strong> para o la<strong>do</strong> durante uma d<strong>as</strong> sessões matinais detreino com arm<strong>as</strong>, para lhe dar um<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> sem alarde. Relembrara aojovem cavaleiro de que Maria de Venici esperava apen<strong>as</strong> pela chegada <strong>do</strong>irmão, com a recompensa que a Ordem aceitara pela sua salvação.Os lábios de Thom<strong>as</strong> tinham-se mexi<strong>do</strong>, diverti<strong>do</strong>s. A palavra maisadequada à situação era resgate. Claro que tal infeliz termo nunca encontraralugar n<strong>as</strong> mensagens trocad<strong>as</strong> entre a Ordem e a família Venici.— A vossa afeição mútua não p<strong>as</strong>sou despercebida — indicara La Valette.— E devo avisar-vos que ela não é aceitável, Thom<strong>as</strong>. Maria está prometidaa outro, e não há qualquer futuro para esta… amizade que cresceuentre vós.39


— Senhor, quem vos contou? — inquirira Thom<strong>as</strong>.Antes de poder evitá-lo, o olhar de La Valette dirigira-se qu<strong>as</strong>e que porinstinto para os outros jovens cavaleiros que praticavam movimentos deataque contra bonecos de madeira instala<strong>do</strong>s no pátio <strong>do</strong> forte de St. Ângelo.Thom<strong>as</strong> tinha espreita<strong>do</strong> por trás dele e avistara Oliver Stokely, queos observava. Quan<strong>do</strong> os seus olhares se tinham cruza<strong>do</strong>, Stokely voltara adar atenção ao boneco que tinha esta<strong>do</strong> a atacar, pinta<strong>do</strong> de forma a <strong>as</strong>semelhar-sea um turco, completo com uma face de traços cruéis, tez escurae olhos negros.O delator fora portanto aquele homem, que sempre considerara umamigo, concluíra Thom<strong>as</strong>. A surpresa não fora grande, ainda <strong>as</strong>sim. A amizadeentre os <strong>do</strong>is arrefecera n<strong>as</strong> seman<strong>as</strong> p<strong>as</strong>sad<strong>as</strong> desde o regresso da galeraa Malta, à medida que se tornara evidente que a mulher que tinham liberta<strong>do</strong>preferia a companhia de Thom<strong>as</strong>. Tinha-se mostra<strong>do</strong> sempre gratae amigável com Stokely, m<strong>as</strong> <strong>as</strong> su<strong>as</strong> feições iluminavam-se na presença deThom<strong>as</strong>, e fora a ele que pedira que a acompanh<strong>as</strong>se em p<strong>as</strong>seios, primeiropor Birgu e depois pelos campos em re<strong>do</strong>r.Fora aí que tu<strong>do</strong> se p<strong>as</strong>sara, recordara Thom<strong>as</strong>, enquanto o seu pulsoacelerara. À sombra de uma d<strong>as</strong> rar<strong>as</strong> árvores da ilha, no alto de Sta. Margarida,de onde se tinha uma bela vista sobre Birgu e o porto. Ao tropeçar,ela tinha-se encosta<strong>do</strong> a ele, e a testa dela r<strong>as</strong>para-lhe na face quan<strong>do</strong> elelhe segurara o braço, para impedir que ela caísse. Maria olhara para cima,sorrira, e tinham-se beija<strong>do</strong>. Fora um ato instintivo, e Thom<strong>as</strong> sentira-sechoca<strong>do</strong> perante aquele seu gesto impulsivo, até que ela pusera a mão portrás <strong>do</strong> pescoço <strong>do</strong> jovem e o puxara para ela, para um novo beijo. Tinhamprocura<strong>do</strong> um canto escondi<strong>do</strong> no meio d<strong>as</strong> muralh<strong>as</strong>, onde Thom<strong>as</strong> lançaraa sua capa pelo solo, e ali tinham p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> o resto da tarde, antes deregressarem a Birgu ainda afoguea<strong>do</strong>s de paixão e trepidantes. Era uma ligaçãoperigosa, e ambos o sabiam. M<strong>as</strong> nada podiam e nada fariam paracontrariar o calor que lhes corria pel<strong>as</strong> vei<strong>as</strong>.Isso sucedera vários di<strong>as</strong> antes <strong>do</strong> aviso de La Valette. Di<strong>as</strong> em queThom<strong>as</strong> sofrera <strong>as</strong> pen<strong>as</strong> <strong>do</strong>s seus deveres quotidianos como se fossemuma eternidade no purgatório. Depois corria para se encontrar com elano local combina<strong>do</strong>, um pequeno jardim junto aos portões da cidade.Fora em tempos pertença de um merca<strong>do</strong>r veneziano, que o legara aosilhéus. O jardim fornecia aos visitantes sombr<strong>as</strong> e a <strong>do</strong>ce fragrância d<strong>as</strong>flores e d<strong>as</strong> erv<strong>as</strong>. Não havia em toda a ilha local mais propício para umencontro de amantes. E era lá que estavam, à sombra de uns arbustos,quan<strong>do</strong> Stokely surgira e parara a pé firme no caminho, sob o brilho inclemente<strong>do</strong> Sol. Fitara-os em silêncio enquanto os <strong>do</strong>is se af<strong>as</strong>tavam um<strong>do</strong> outro, surpresos. A cicatriz no rosto de Stokely ainda estava lívida,40


e a pele esticada ao canto da boca desenhava-lhe um ar de permanenteescárnio.— Oliver. — Maria sorrira. — Assust<strong>as</strong>tes-nos.— Isso vejo eu — ripostara ele, friamente. — É portanto para aqui quetendes fugi<strong>do</strong> a correr, Thom<strong>as</strong>.Thom<strong>as</strong> levantara-se <strong>do</strong> banco que tinha partilha<strong>do</strong> com Maria.— Escutai, este é o nosso segre<strong>do</strong>. Gostaria de vos pedir que não ocontásseis a ninguém.— Pedi à vontade, maldito — retorquira Stokely, furibun<strong>do</strong>. — Isto nãoestá certo. Thom<strong>as</strong>, fizestes um voto de c<strong>as</strong>tidade. Como to<strong>do</strong>s os cavaleiros.Thom<strong>as</strong> fungara com desprezo.— Esse voto não tem senti<strong>do</strong>. Mais atenção lhe é dada na fuga <strong>do</strong> quena obrigação, como bem sabeis. O Grão-Mestre d’Omedes não se importanada de fechar os olhos, quan<strong>do</strong> lhe convém.— Ainda <strong>as</strong>sim, é um voto. O meu dever é relatar isto.Os <strong>do</strong>is tinham-se confronta<strong>do</strong>, e Thom<strong>as</strong> ficara espanta<strong>do</strong> ao descobrira cólera e mesmo o ódio que ardia nos olhos <strong>do</strong> amigo.— Oliver, não podeis fazer isso. Se não pela nossa amizade, então porcavalheirismo para com Maria.— Não me dais lições de cavalheirismo! — cuspira Stokely. Thom<strong>as</strong>rangera os dentes e cerrara os lábios, enquanto <strong>as</strong> mãos se tinham fecha<strong>do</strong>em punhos. M<strong>as</strong> antes que o confronto se tivesse torna<strong>do</strong> mais sério, sentiraque Maria lhe puxava gentilmente o braço. Ela colocara-se entre os <strong>do</strong>ise sorrira nervosamente a Stokely.— Não há necessidade disto. Sobretu<strong>do</strong> entre amigos.— Não vejo aqui quaisquer amigos meus — respondera Stokely, numavoz esforçada.Maria franzira o sobrolho.— Oliver, considero-vos um amigo, e tereis para sempre a minha sinceragratidão por me salvardes <strong>do</strong>s turcos, tal como sucede com o Thom<strong>as</strong>.— E é <strong>as</strong>sim que um amigo mostra a sua gratidão?— Não vos zangueis comigo. — Ela tentara pegar-lhe na mão, m<strong>as</strong>Stokely dera um brusco p<strong>as</strong>so atrás. Maria soltara um pequeno grito. —Oliver… É <strong>do</strong> mais fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu coração que vos falo quan<strong>do</strong> vos chamomeu amigo. Meu queri<strong>do</strong> amigo.— Então porque traís desta forma a minha amizade? Como fazeis os<strong>do</strong>is, aliás.— De que forma vos traí? Alguma vez vos menti? — lançara ela.Quan<strong>do</strong> ele não respondera, ela baixara a cabeça, contristada.— Considerava-vos meu benfeitor e amigo, como considero o Tho-41


m<strong>as</strong>. E agora, mesmo que ele seja mais que meu amigo, isso não vos tornamenos <strong>do</strong> que isso. Queri<strong>do</strong> Oliver, compreendei por favor.— Não me chameis tal coisa! A menos que lhe deis o mesmo significa<strong>do</strong>que eu desejo que tenha.— Tendes a minha afeição. Peço-vos que não abuseis dela.Stokely resmungara qualquer coisa inaudível, deitara um último olharfuribun<strong>do</strong> a Thom<strong>as</strong> e rodara sobre os calcanhares, af<strong>as</strong>tan<strong>do</strong>-se a p<strong>as</strong>soslargos pelo jardim. Thom<strong>as</strong> ficara a vê-lo af<strong>as</strong>tar-se, acaban<strong>do</strong> por soltar umsuspiro.— Vamos ter problem<strong>as</strong>. Lembra-te <strong>do</strong> que te digo.Maria abanara a cabeça.— Oliver é um bom amigo, e uma pessoa de bem. Depressa acalmará.Thom<strong>as</strong> pensara por momentos e encolhera os ombros.— Espero que tenh<strong>as</strong> razão, meu amor.Assim que proferira tais palavr<strong>as</strong>, sentira o coração dar um pulo, e lançaraum olhar rápi<strong>do</strong> a Maria. Ela estava a sorrir-lhe, deliciada, e responderanum sussurro: — E agora sim, sei-o com toda a certeza…— Thom<strong>as</strong>, escutais-me?A mente de Thom<strong>as</strong> esforçara-se por relembrar o que o seu superiortinha acaba<strong>do</strong> de lhe dizer, m<strong>as</strong> sem resulta<strong>do</strong>s. Abrira a boca, m<strong>as</strong> nãoconseguira encontrar palavr<strong>as</strong> para responder. La Valette soltara um silvoex<strong>as</strong>pera<strong>do</strong> e p<strong>as</strong>sara a mão pelo espesso cabelo escuro. Debruçara-se parao jovem.— Mantende-vos longe daquela mulher. Se não o fizerdes, o infortúnioacabará por cair sobre ambos. Grande infortúnio. Percebeis?— Sim, senhor.— Podia pedir-vos que me désseis a vossa palavra em como não voltareisa vê-la, m<strong>as</strong> não desejo colocar-vos numa posição em que a vossaprópria alma ficaria em risco por causa <strong>do</strong>s mais básicos <strong>do</strong>s instintos animaisque a to<strong>do</strong>s atormentam. — Thom<strong>as</strong> sentira um momento de fúria aoouvir caracterizar daquela forma os seus sentimentos. — Portanto, estoua ordenar-vos que vos af<strong>as</strong>teis de Maria de Venici até que o irmão a levedesta ilha — prosseguira La Valette. — Está entendi<strong>do</strong>? Não vos aproximeissequer da c<strong>as</strong>a onde ela está instalada.— Compreen<strong>do</strong>.— Ainda bem. — La Valette empertigara-se e soltara um sorriso. —Comunicar-lhe-ei o que foi decidi<strong>do</strong>. E que seja este o fim desta história.Porque é que ela ainda não veio? Thom<strong>as</strong> espumava. Ela tinha recebi<strong>do</strong>a sua mensagem, e respondera que se encontraria com ele, apesar <strong>do</strong> avisode La Valette. Portanto, o que poderia tê-la feito demorar-se daquela forma?42


Uma mudança de idei<strong>as</strong>, ou outra causa? Deus meu, que tenha si<strong>do</strong> outroo motivo, pediu Thom<strong>as</strong> em silêncio, antes de se sentir envergonha<strong>do</strong> porestar a solicitar a intervenção divina para um propósito que sabia ser considera<strong>do</strong>ignóbil por muitos outros.Decidiu esperar até que o sino marc<strong>as</strong>se a primeira hora da madrugada.Se Maria não tivesse chega<strong>do</strong> até essa altura, depreenderia que elanão viria de to<strong>do</strong>, e que aquele amor, o primeiro da sua vida, estava condena<strong>do</strong>.A noite alongou-se e quan<strong>do</strong> surgiu por fim o grave som <strong>do</strong> sino, o cavaleirosoltou um lamento profun<strong>do</strong> e encetou o caminho de regresso. Foinesse momento que ela emergiu da escuridão e se lançou a correr para ele;sem palavr<strong>as</strong>, abraçaram-se e trocaram um longo beijo, e to<strong>do</strong>s os receios<strong>do</strong> jovem se desvaneceram.— O que é que te atr<strong>as</strong>ou? — perguntou por fim.— Peço-te desculpa, meu amor. A mulher <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>r em cuja c<strong>as</strong>afui acomodada é uma bruxa desconfiada, e vigia-me como um falcão.— E com bo<strong>as</strong> razões. — Thom<strong>as</strong> riu.Maria deu-lhe um empurrão no peito.— Não zombes. Tive de esperar até ter a certeza que já não havia movimentona c<strong>as</strong>a antes de me atrever a sair. Vim <strong>as</strong>sim que pude. Não temosmuito tempo. Tenho de estar no meu quarto antes que os cria<strong>do</strong>s despertem,pela alvorada.Beijou-o de novo, m<strong>as</strong> Thom<strong>as</strong> sentiu nela alguma tensão, pelo querecuou.— O que se p<strong>as</strong>sa? — indagou.A pele da jovem estava pálida sob o luar quan<strong>do</strong> ela o encarou, e sentiu-aestremecer.— Thom<strong>as</strong>, o que nos vai acontecer? Estamos em peca<strong>do</strong>, não há outraforma de o descrever. Vou c<strong>as</strong>ar-me com outro homem, m<strong>as</strong> ofereci-te omeu coração e o meu corpo. Para que serve tu<strong>do</strong> isto? O meu irmão chegaráa qualquer momento. E depois disso nunca mais nos veremos.— Devemos portanto aproveitar ao máximo o tempo de que ainda dispomos.— Já o fizemos, mais <strong>do</strong> que a prudência aconselharia — lembrou ela,nervosa.— Ao demónio com a prudência. Há que seguir a nossa natureza, osnossos corações.Ela abanou a cabeça e falou em tom suave.— Tolo. A<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> tolo. Não somos mais <strong>do</strong> que pequen<strong>as</strong> peç<strong>as</strong> nummecanismo intrinca<strong>do</strong>. Só podemos obedecer aos caprichos de outr<strong>as</strong> forç<strong>as</strong>,muito mais poderos<strong>as</strong>. Nada podemos para <strong>as</strong> contrariar.43


— Podemos, sim — respondeu Thom<strong>as</strong>, empolga<strong>do</strong>. — Podíamos deixarMalta. Vem comigo para Inglaterra, para a minha c<strong>as</strong>a.— Deixar Malta? Como? Ach<strong>as</strong> que conseguiri<strong>as</strong> roubar um barcocom a mesma facilidade com que me roub<strong>as</strong>te o coração?— Que me lembre, não foi rouba<strong>do</strong>, e sim entregue com toda a liberdade.— Thom<strong>as</strong> esfregou o queixo, enquanto imaginava possibilidades.— Podíamos esconder-nos a bor<strong>do</strong> de um navio mercante. Desembarcávamosem França e prosseguíamos a partir daí. — Falava sem grande ponderação,e até a si mesmo <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> que proferia soavam tol<strong>as</strong> e vãs. Afalta de Maria seria imediatamente notada, e quan<strong>do</strong> se descobrisse quetambém ele tinha desapareci<strong>do</strong>, não era difícil imaginar <strong>as</strong> consequênci<strong>as</strong>.Maria estava à guarda da Ordem. Esta não poderia dar a impressão de terfalha<strong>do</strong> nesse dever. Uma galera veloz seria enviada em perseguição dequalquer embarcação que tivesse deixa<strong>do</strong> a ilha. Seriam alcança<strong>do</strong>s antes<strong>do</strong> fim <strong>do</strong> primeiro dia de viagem, e trazi<strong>do</strong>s de volta para enfrentarem aira <strong>do</strong> Grão-Mestre. Sabia-o perfeitamente, m<strong>as</strong> o coração exigia-lhe queplane<strong>as</strong>se a fuga com Maria.— O que podemos fazer? — lançou, ira<strong>do</strong>. — Não posso desistir de ti!— Podeis, sim. — Uma voz falou no seio d<strong>as</strong> sombr<strong>as</strong> que <strong>do</strong>minavamo caminho. — Mais depressa <strong>do</strong> que julgais.Viraram-se para a origem <strong>do</strong> som e Thom<strong>as</strong> avistou um vulto queemergia para o luar mortiço. Um homem, com a mão sobre o punho daespada. Outros homens surgiram por trás dele.— Oliver… — sussurrou Maria.Thom<strong>as</strong> engoliu em seco e tentou soar calmo quan<strong>do</strong> se dirigiu ao seuantigo amigo.— O que fazeis aqui?— Thom<strong>as</strong>, não há necessidade de vos fazerdes p<strong>as</strong>sar por parvo, aindamais <strong>do</strong> que tendes feito até aqui — ripostou Stokely. — Sabeis perfeitamentequal a razão da minha presença. — Virou-se e fez um gesto aos homensque o acompanhavam. — Prendam-nos a ambos. Levem a senhorade volta às su<strong>as</strong> acomodações.Dois homens aproximaram-se, e Thom<strong>as</strong> avançou, interpon<strong>do</strong>-se entreeles e Maria, enquanto erguia os punhos.— Thom<strong>as</strong>, não! — pediu ela, com urgência na voz. — É tarde. Dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong>tarde para nós.— A Maria tem razão — interveio Stokely. — É dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong> tarde. Estátu<strong>do</strong> acaba<strong>do</strong> entre vós. É tempo de conduzir a senhora de volta a quem aalberga…Thom<strong>as</strong> não se mexeu, e Maria rodeou-o, pegan<strong>do</strong>-lhe na mão e apertan<strong>do</strong>-arapidamente, antes de serem separa<strong>do</strong>s. Thom<strong>as</strong> observou com44


desespero e angústia enquanto <strong>as</strong> três figur<strong>as</strong> se af<strong>as</strong>tavam pelo caminhona direção de Birgu. Só então Stokely emitiu uma ordem curta que fez comque os solda<strong>do</strong>s avanç<strong>as</strong>sem e prendessem os braços de Thom<strong>as</strong> por trásd<strong>as</strong> cost<strong>as</strong>. Stokely avançou um p<strong>as</strong>so e abanou a cabeça com ar de gozo.— Meu caro Thom<strong>as</strong>, o que será de vós agora?45


6Aexpressão no rosto <strong>do</strong> Grão-Mestre, Jean D’Omedes, foi-se tornan<strong>do</strong>cada vez mais sombria enquanto escutava Stokely. Fora acorda<strong>do</strong> poucodepois da segunda hora da noite, e tinha-se ex<strong>as</strong>pera<strong>do</strong> com o seu cria<strong>do</strong>até que a causa para tão inopina<strong>do</strong> despertar tinha acaba<strong>do</strong> por se imporà sua mente estremunhada. Tinha-se então vesti<strong>do</strong> à pressa e convoca<strong>do</strong>Romeg<strong>as</strong>, o mais antigo <strong>do</strong>s seus capitães de galer<strong>as</strong>, e Jean de La Valette,para se reunirem a ele na sala <strong>do</strong> conselho da Ordem, no coração <strong>do</strong> fortede St. Ângelo.A improvisada audiência era iluminada apen<strong>as</strong> por algum<strong>as</strong> vel<strong>as</strong> deluz trémula. Thom<strong>as</strong> estava de pé entre <strong>do</strong>is guard<strong>as</strong> arma<strong>do</strong>s, perante ostrês homens que se sentavam por trás de uma longa mesa. Stokely tomarauma posição lateral, e de lá expusera a sua acusação. Quan<strong>do</strong> terminou,instalou-se um silêncio tenso, até que o Grão-Mestre pigarreou e encarouThom<strong>as</strong> com ar severo.— Tendes alguma ideia <strong>do</strong> mal que fizestes à Ordem? Quan<strong>do</strong> souber<strong>do</strong> sucedi<strong>do</strong>, a família Venici nunca nos per<strong>do</strong>ará. Muito menos oduque da Sardenha, a cujo filho estava prometida Maria. A nossa posiçãojá é b<strong>as</strong>tante precária, e a última coisa de que precisamos é de fazer novosinimigos.Romeg<strong>as</strong>, furioso, lembrou mais pormenores.— Se nos for negada permissão para reab<strong>as</strong>tecer os navios no portode Nápoles ou na Sardenha, a nossa capacidade de atacar os corsários e osturcos será fortemente afetada, senhor.O Grão-Mestre inspirou, indeciso.— O que vamos nós fazer?— Senhor, creio que não tenhamos grande escolha — ripostou Romeg<strong>as</strong>.— Teremos de punir Sir Thom<strong>as</strong>, e de forma exemplar. A família Venicinão aceitará nada menos <strong>do</strong> que isso.— Esperai. — La Valette ro<strong>do</strong>u ligeiramente no <strong>as</strong>sento, para se dirigiraos outros homens senta<strong>do</strong>s à mesa. — Não há necessidade de tomardecisões drástic<strong>as</strong>. Ainda há tempo para ocultar este c<strong>as</strong>o a olhos exteriores.46


— Pergunto-me se será esse o c<strong>as</strong>o — ponderou o Grão-Mestre, antesde lançar um olhar arguto a Thom<strong>as</strong>. — Ainda vamos a tempo? Sir Thom<strong>as</strong>,a honra da senhora está ainda intacta?Thom<strong>as</strong> corou, e o olhar de desafio que tinha manti<strong>do</strong> desmoronou-se,levan<strong>do</strong>-o a contemplar o chão pedregoso em frente à mesa.— Estou a ver — concluiu d’Omedes, sem mais. — Teremos então deseguir o que propõe Romeg<strong>as</strong>. A punição deve ser rápida e severa. É precisoque to<strong>do</strong>s vejam que a Ordem agiu com decisão contra este apóstata.— Ele violou um juramento sagra<strong>do</strong> — lembrou Romeg<strong>as</strong>. — E traiu ahonra da Sagrada Igreja. Os Venici hão de exigir a sua cabeça. E desconfioque nada mais será capaz de aplacar a sua ira.La Valette fungou em sinal de desdém.— Não estais a sugerir seriamente que executemos Sir Thom<strong>as</strong>?Romeg<strong>as</strong> anuiu.— É precisamente isso que estou a sugerir.— Por que razão? Por ter sucumbi<strong>do</strong> à fraqueza da carne? Não é razãopara enforcar um homem. Por Deus, se <strong>as</strong>sim fosse, mais de metade <strong>do</strong>scavaleiros da Ordem já deviam estar pendura<strong>do</strong>s, por manterem amantesou por violarem <strong>as</strong> mulheres <strong>do</strong> inimigo.O Grão-Mestre ergueu uma mão.— Peço-vos que vos acalmeis. Não estamos aqui para julgar os outroscavaleiros. Somente Sir Thom<strong>as</strong>.— Se não formos capazes de seguir o mesmo padrão em to<strong>do</strong>s os c<strong>as</strong>os,quer-me parecer, senhor, que o nosso código de honra não tem qualquervalor.O sobrolho <strong>do</strong> Grão-Mestre franziu-se, revelan<strong>do</strong> a sua ira.— La Valette, exagerais.— Não, senhor. Sois vós que avançais para lá <strong>do</strong> aceitável. — La Valetteapontou para Thom<strong>as</strong>. — Conheço bem este cavaleiro. Combateu aomeu la<strong>do</strong> nestes <strong>do</strong>is últimos anos. Nunca vi igual devoção ou coragem aoserviço da Ordem. Sir Thom<strong>as</strong> é um <strong>do</strong>s mais promissores cavaleiros d<strong>as</strong>ua geração. Seria pouco ajuiza<strong>do</strong> erradicar tamanho talento precisamentequan<strong>do</strong> temos tanta falta de combatentes váli<strong>do</strong>s. Puni-lo, sim. Talvez umaflagelação pública. Deverá ser o suficiente para lembrar a to<strong>do</strong>s os homensque se devem comportar com honra e dentro d<strong>as</strong> regr<strong>as</strong> da cavalaria. E issoé tu<strong>do</strong> o que é necessário.— Não chega — ripostou Romeg<strong>as</strong>. — Se fizermos apen<strong>as</strong> isso e permitirmosque Sir Thom<strong>as</strong> permaneça no seio da Ordem, ele tornar-se-áuma permanente lembrança da nossa vergonha e, pior ainda, da nossa leniênciae indulgência para com a falta de disciplina e moralidade desregrada.Os nossos jovens cavaleiros precisam de uma lição. Têm de ser recorda<strong>do</strong>s47


da solenidade e importância <strong>do</strong> juramento que mantém a coesão da Ordem.Que a morte de Sir Thom<strong>as</strong> sirva para reafirmar os laços que nosunem. Senhor, insto-vos a decretar a sua execução.La Valette abanou a cabeça.— Matá-lo será correr o risco de desencorajar outros jovens de valora juntarem-se à Ordem. O crime de Sir Thom<strong>as</strong> é apen<strong>as</strong> o de ser um jovem,e to<strong>do</strong>s conhecemos perfeitamente os poderosos desejos e necessidadesque em tempos também nos <strong>as</strong>saltaram. Se ele for executa<strong>do</strong> porum temporário lapso na sua capacidade de julgamento, então homens <strong>do</strong>seu calibre, homens de que tanto precisamos, recusarão juntar-se a nós. Hámelhores maneir<strong>as</strong> de o punir — continuou La Valette. — Form<strong>as</strong> que demonstrarãoclaramente que não toleraremos indiscrições deste género. Eudigo que devemos expulsar Sir Thom<strong>as</strong> da Ordem.— Expulsá-lo? — O Grão-Mestre fez uma careta. — Que punição vema ser essa?— Não existe outra mais vergonhosa. — La Valette virou-se para Thom<strong>as</strong>.— Creio ter avalia<strong>do</strong> corretamente este homem. Para ele, ser membroda Ordem é a maior honra a que um homem pode <strong>as</strong>pirar nesta vida. É aOrdem que dá forma e valor à sua existência. Tirem-lhe isso e a sua vid<strong>as</strong>eguirá em vergonha, consciente <strong>do</strong> tremen<strong>do</strong> peso da sua perda em cadaum <strong>do</strong>s di<strong>as</strong> da sua existência. É essa a punição que lhe deve ser imposta.Além disso, viven<strong>do</strong>, poderá continuar a colocar o seu talento para a guerraao serviço da cristandade, algures que não aqui.Thom<strong>as</strong> sentiu-se grato pela intervenção de La Valette. Talvez lhe salv<strong>as</strong>sea vida. M<strong>as</strong> <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> <strong>do</strong> seu mentor encerravam uma profunda verdade.Na sua mente não havia maior desonra <strong>do</strong> que ser expulso da Ordem.O que faria depois? A sua honra pouca valor teria aos olhos de to<strong>do</strong>s os queviessem a saber da sua história.O Grão-Mestre manteve-se em silêncio enquanto pesava o destino adar ao jovem cavaleiro. Por fim respirou fun<strong>do</strong> e pronunciou-se.— Tomei uma decisão. Sir Thom<strong>as</strong> Barrett será despoja<strong>do</strong> da suapatente e de to<strong>do</strong>s os privilégios que lhe cabiam enquanto membro daOrdem. O seu br<strong>as</strong>ão será retira<strong>do</strong> <strong>do</strong>s alojamentos <strong>do</strong>s cavaleiros ingleses,e ele será expulso da ilha <strong>as</strong>sim que se puder arranjar-lhe lugar numnavio. Não poderá jamais regressar, sob pena de morte, e à exceção deuma permissão expressa da Ordem. Será portanto exila<strong>do</strong>, e nessa condiçãopermanecerá até que a morte o reclame ou até que, por vontade<strong>do</strong> Grão-Mestre e n<strong>as</strong> condições a determinar no momento próprio, talpena seja revogada. — Bateu com os nós <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s no tampo da mesa. —Levem o prisioneiro.— Não! — gritou Thom<strong>as</strong>. — Deixem-me ver Maria uma última vez.48


— Como vos atreveis? — lançou Romeg<strong>as</strong>, furibun<strong>do</strong>. — Levai daquiesse suíno insolente! Imediatamente.Thom<strong>as</strong> sentiu os guard<strong>as</strong> que o ladeavam a pegarem-lhe nos braços.Lutou enquanto eles o arr<strong>as</strong>tavam para a porta.— Deixai-me vê-la! Uma última vez. Tenho de a ver. Por piedade!— Levai-o daqui! — instou d’Omedes.Thom<strong>as</strong> continuou a contorcer-se, m<strong>as</strong> os guard<strong>as</strong> agarravam-no comforça e forçavam-no a aproximar-se da porta.— O que vai ser dela? O que ides fazer-lhe?— A vez dela chegará — afirmou o Grão-Mestre. — Também ela serájulgada e punida de acor<strong>do</strong> com a sua falta. Disso podeis ter a certeza.Thom<strong>as</strong> sentiu o coração dilacera<strong>do</strong>, e lançou um olhar de súplica aStokely enquanto era puxa<strong>do</strong> pelos guard<strong>as</strong>.— Oliver, pela amizade que em tempos nos uniu, peço-vos que tomeisconta dela. Sou eu o merece<strong>do</strong>r da vossa ira, não ela, não Maria. Ela estáinocente. Prometei-me que a protegereis!Stokely manteve-se firme e silencioso, e apen<strong>as</strong> um leve sorriso de satisfaçãotraiu o que sentia ao ver Thom<strong>as</strong> ser leva<strong>do</strong> da sala e a porta fechadaatrás dele.49


7Barrett Hall, Hertfordshire13 de dezembro de 1564, Dia de Sta. LuziaAprimeira mensagem chegou ao entardecer, num dia frio e cinzento.Thom<strong>as</strong> estava senta<strong>do</strong> à secretária, numa velha cadeira de madeiraesculpida, a contemplar a paisagem através d<strong>as</strong> pesad<strong>as</strong> vidraç<strong>as</strong>. O campoque se estendia à frente <strong>do</strong> solar estava coberto por um manto de neve. Osreflexos distorci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> fogo que morria na lareira refulgiam em tons devermelho e <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> nos vidros da janela. Lá fora imperava uma luz fria eazulada, desconfortável, e ele mirava <strong>as</strong> su<strong>as</strong> profundez<strong>as</strong> sem se mexer oudar sequer qualquer sinal de vida. Era como se o seu coração estivesse tãofrio e imóvel como o mun<strong>do</strong> exterior, envolto num lençol branco, à esperade um reavivar de cor e crescimento quan<strong>do</strong> a estação mud<strong>as</strong>se. A primaveraregressaria, tão certo como o quotidiano n<strong>as</strong>cer e pôr <strong>do</strong> sol, m<strong>as</strong> talperspetiva pouco conforto lhe oferecia. Os anos tinham p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> como umteci<strong>do</strong> que se tornava g<strong>as</strong>to e antigo, e pouca atenção lhes dera. O seu espíritohá muito que se transformara em pedra — duro, rígi<strong>do</strong>, insensível. M<strong>as</strong>apesar de o coração se lhe ter seca<strong>do</strong> e mirra<strong>do</strong>, ainda se preocupava com oseu bem-estar físico, pelo que comia de forma regrada e praticava exercícioto<strong>do</strong>s os di<strong>as</strong>, fosse qual fosse o tempo ou o seu esta<strong>do</strong> de saúde. Era umacriatura de hábitos.Ao longo <strong>do</strong>s anos que tinham decorri<strong>do</strong> desde que fora bani<strong>do</strong> daOrdem de S. João, Thom<strong>as</strong> mantivera-se em plena condição física, e tinhaposto <strong>as</strong> su<strong>as</strong> consideráveis capacidades guerreir<strong>as</strong> a bom uso. Muito dessetempo p<strong>as</strong>sara-o como mercenário, a combater nalguma d<strong>as</strong> intermináveisguerr<strong>as</strong> que <strong>as</strong>solavam a Europa. A morte, fosse por <strong>do</strong>ença, pela fomeou em consequência de uma batalha, tinha-o acompanha<strong>do</strong> de perto, m<strong>as</strong>sempre o poupara, apesar <strong>do</strong>s oc<strong>as</strong>ionais ferimentos que recebera. Alémdisso, o estu<strong>do</strong> e a leitura constantes tinham-lhe manti<strong>do</strong> a mente tambémágil. Estava decidi<strong>do</strong> a não sucumbir ao mar<strong>as</strong>mo que parecia tomar contada nobreza inglesa, que nada mais fazia <strong>do</strong> que vegetar in<strong>do</strong>lentemente nosseus jardins ornamentais e nos seus grandes solares. Designavam-se porlordes e cavaleiros, m<strong>as</strong> nem um em dez seria capaz de <strong>as</strong>sumir a posiçãoque lhe corresponderia na frente de uma batalha.Aos quarenta e cinco anos, Thom<strong>as</strong> ainda se movia com facilidade e50


leveza. Tinha já alguns traços de cinzento n<strong>as</strong> têmpor<strong>as</strong> e na barba, e o rostocurti<strong>do</strong> começava a enrugar-se, m<strong>as</strong> a maior parte d<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> apercebia-sepor instinto de que ele não era um homem com quem se pudesse gozar.Havia oc<strong>as</strong>iões, que se iam tornan<strong>do</strong> cada vez mais rar<strong>as</strong>, em que ia <strong>as</strong>sistira algum evento na corte e acabava por atrair a indesejada atenção de algumbêba<strong>do</strong> emproa<strong>do</strong>, que ouvira uma qualquer história acerca de Sir Thom<strong>as</strong>e resolvera testar o calmo e discreto cavaleiro. Porém, há muito que Thom<strong>as</strong>tinha <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> a arte de af<strong>as</strong>tar os tolos de uma forma polida e sem atrairmais atenções. Era bem melhor exibir uma tolerância madura <strong>do</strong> que alinharnuma confrontação que terminaria inevitavelmente numa humilhaçãopública de um homem muito mais jovem. Thom<strong>as</strong> experimentara porsi o fel e a vergonha desse género de humilhação na juventude, e aprenderabem o valor da ponderação. Fora uma lição que lhe valera muit<strong>as</strong> hor<strong>as</strong> <strong>as</strong>ós, na escuridão, de rosto enfia<strong>do</strong> numa almofada grosseira, a esconder <strong>as</strong>ua miséria <strong>do</strong>s olhares <strong>do</strong>s outros. Não tinha qualquer desejo de fazer novosinimigos, pelo que permitia que a truculência destes jovens aristocrat<strong>as</strong>ingleses lhe p<strong>as</strong>s<strong>as</strong>se por cima sem mácula, e fazia tu<strong>do</strong> para a ignorar.Numa única oc<strong>as</strong>ião tinha-se visto força<strong>do</strong> a ferir outrem para se defender.Fora havia mais de dez anos, numa festa em honra <strong>do</strong> Lorde Mayorde Londres. Thom<strong>as</strong> vira-se confronta<strong>do</strong> por um jovem vistoso, alto e corpulento,e dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong> cheio <strong>do</strong> que julgava serem <strong>as</strong> su<strong>as</strong> capacidades marciais.Ainda <strong>as</strong>sim, não escondera o nervosismo ao confrontar Thom<strong>as</strong>. Osolhos jovens estavam alerta e escancara<strong>do</strong>s, a mão tremia-lhe ligeiramenteao deslizar para o punho da espada. Antes que a lâmina subisse mais <strong>do</strong> queuns centímetros na sua finamente decorada bainha, já a mão de Thom<strong>as</strong>se tinha cerra<strong>do</strong> como uma grilheta de ferro em torno <strong>do</strong> pulso <strong>do</strong> jovem,enquanto abanava a cabeça com um sorriso gentil de aviso, antes de se virare se af<strong>as</strong>tar. M<strong>as</strong> o idiota tinha solta<strong>do</strong> um grito de afronta e prosseguira omovimento para desembainhar a espada. Thom<strong>as</strong> ro<strong>do</strong>piara e prendera <strong>obra</strong>ço <strong>do</strong> jovem à perna com um golpe rápi<strong>do</strong> de uma adaga que parecer<strong>as</strong>urgir <strong>do</strong> nada, tal a velocidade empregue. O jovem caíra para o solo.Thom<strong>as</strong> recuperara a lâmina e tratara da ferida antes de apresentar <strong>as</strong> su<strong>as</strong>desculp<strong>as</strong> ao anfitrião e deixar a festa.Abanou a cabeça perante tal recordação, ainda furioso consigo mesmopor não ter li<strong>do</strong> corretamente a expressão <strong>do</strong> jovem, a tempo de evitaro incidente. Tinha já dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong> sangue n<strong>as</strong> mãos, e não queria provocarmais sofrimento a quem já tanto mal fizera, fossem cristãos ou infiéis. Amemória <strong>do</strong>s seus atos atormentava-o desde que regressara a Inglaterra.Tornara-se por fim apen<strong>as</strong> outra cicatriz que se apagava com a idade e afamiliaridade.Apertou mais o c<strong>as</strong>aco junto aos ombros e ergueu-se <strong>do</strong> lugar junto à51


janela, dirigin<strong>do</strong>-se à lareira onde colocou cuida<strong>do</strong>samente mais <strong>do</strong>is pedaçosde lenha. Contemplou-os por momentos, f<strong>as</strong>cina<strong>do</strong> com a forma comoo vapor se escapava a <strong>as</strong>sobiar pel<strong>as</strong> fend<strong>as</strong> da madeira, até que um estalosúbito e uma chuva de fagulh<strong>as</strong> anunciou a aparição de uma chama brilhantee amarelada no seio d<strong>as</strong> br<strong>as</strong><strong>as</strong> que rebrilhavam por baixo da madeira.Voltou ao lugar e sentou-se de novo, dirigin<strong>do</strong> o olhar para <strong>as</strong> sombr<strong>as</strong>que cresciam no exterior.Por cima <strong>do</strong>s estalos da lenha, ouviu sons que denunciavam algumacomoção na entrada, e a sua curiosidade foi despertada. Havia apen<strong>as</strong> umpunha<strong>do</strong> de servos a viverem na mansão. Não tinha necessidade de maisgente. Seguramente não precisava d<strong>as</strong> dúzi<strong>as</strong> de cria<strong>do</strong>s que tinham cuida<strong>do</strong><strong>do</strong>s seus pais e irmãos havia muito tempo, na sua infância, ainda antesde o pai lhe ter arranja<strong>do</strong> um lugar na Ordem. Os seus pais tinham faleci<strong>do</strong>pouco tempo depois de Thom<strong>as</strong> deixar a Inglaterra, e sobre isso receberaapen<strong>as</strong> uma carta escrita em tom austero <strong>do</strong> seu irmão mais velho, Edward,que o informara da <strong>do</strong>ença que os levara a ambos num intervalo de poucosdi<strong>as</strong>. Depois fora Edward a sucumbir num acidente de caça e, no anoseguinte, o jovem Robert morrera no mar, ao serviço de um corsário cujaúnica presa fora a disenteria que varrera a tripulação, deixan<strong>do</strong> a bor<strong>do</strong>apen<strong>as</strong> uma meia dúzia de figur<strong>as</strong> esquelétic<strong>as</strong> que mal tinham consegui<strong>do</strong>regressar a Dartmouth alguns meses depois. Ao regressar a c<strong>as</strong>a, Thom<strong>as</strong>escutara a história da boca da criada que fora a ama de Robert. Robert tinh<strong>as</strong>empre si<strong>do</strong> o favorito da família, de cabelo claro e sempre bem-disposto,com um gosto pela aventura, muito ao contrário de Thom<strong>as</strong>, cala<strong>do</strong> e sempreencafua<strong>do</strong> em si mesmo. M<strong>as</strong> Thom<strong>as</strong> nunca tivera inveja <strong>do</strong> irmão,nem alguma vez desejara alcançar a sua popularidade. Ao invés, limitara-sea amá-lo como to<strong>do</strong>s os outros.E agora era o único que restava. Vivia sozinho, à parte o cria<strong>do</strong>, John,uma i<strong>do</strong>sa criada, Hannah, e um jovem que cuidava <strong>do</strong> estábulo e <strong>do</strong>s seiscavalos que lhe restavam, bem como <strong>do</strong> picadeiro por trás da mansão. Stephenraramente falava com os outros, e era mais cavalo <strong>do</strong> que homem, acrer em Hannah. Além destes, o único outro servo da família era o responsávelpela propriedade, que vivia em Bishops Stortford e supervisionava osrendeiros que trabalhavam a terra, recolhen<strong>do</strong> <strong>as</strong> rend<strong>as</strong> e entregan<strong>do</strong>-<strong>as</strong>no banco em nome <strong>do</strong> seu senhor, a quem enviava um relatório sobre osnegócios du<strong>as</strong> vezes por ano.A mansão de Hertfordshire era pertença da família desde havia oitogerações. Thom<strong>as</strong> era o último na linhagem da família. Nunca se c<strong>as</strong>ara, enão tinha herdeiros. Quan<strong>do</strong> morresse, a propriedade p<strong>as</strong>saria para a possede um primo distante, um homem que Thom<strong>as</strong> nunca conhecera e porquem nada sentia.52


De tempos a tempos alguns amigos <strong>do</strong> pai tinham tenta<strong>do</strong> arranjar-lheum c<strong>as</strong>amento. Tinha, educada m<strong>as</strong> insistentemente, declina<strong>do</strong> tod<strong>as</strong> <strong>as</strong>perspetiv<strong>as</strong> que lhe eram oferecid<strong>as</strong>. Algum<strong>as</strong> dess<strong>as</strong> mulheres vinham debo<strong>as</strong> famíli<strong>as</strong>, eram atraentes e até mesmo inteligentes. M<strong>as</strong> nenhuma puder<strong>as</strong>uperar o mais ínfimo termo de comparação com Maria, e só serviampara lhe lembrar tu<strong>do</strong> o que perdera e que nunca poderia recuperar naquelavida. E a natureza da sua separação fora tal que pouca esperança haviade que qualquer poder divino lhes permitisse voltarem a reunir-se na vidaeterna. Era no espírito dessa perda perpétua que Thom<strong>as</strong> vivia a sua vida.Depois de Maria nada mais existia, apen<strong>as</strong> o excruciante lembrar <strong>do</strong> toque,<strong>do</strong> gesto, <strong>do</strong> sorriso, da expressão, <strong>do</strong>s fragmentos de momentos em quetinham esta<strong>do</strong> nos braços um <strong>do</strong> outro.Durante momentos <strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> <strong>as</strong>saltaram-no sem quartel, e Thom<strong>as</strong>viu-se obriga<strong>do</strong> a abanar a cabeça, furioso, enquanto apertava os punhose olhava pela janela, sem ver a serenidade silenciosa que se estendia àsua frente. Por fim o momento p<strong>as</strong>sou e ele suspirou, a exalação aliviada dealguém que acaba de p<strong>as</strong>sar pel<strong>as</strong> mãos e faca <strong>do</strong> cirurgião.Escutou-se um bater à porta <strong>do</strong> estúdio, e Thom<strong>as</strong> af<strong>as</strong>tou o olhar dajanela.— Sim?A tranca subiu e a escura e pesada porta de carvalho abriu-se para ointerior, deixan<strong>do</strong> p<strong>as</strong>sar John. Este acenou-lhe e fez um gesto na direção<strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r escureci<strong>do</strong> que levava ao estúdio.— Senhor, chegou um mensageiro.— Mensageiro? — Thom<strong>as</strong> franziu o sobrolho. — Quem é ele?— Um estrangeiro, senhor — respondeu John, semicerran<strong>do</strong> os olhospara mostrar a desconfiança que sentia. — Disse que se chamava Philippede Nanterre.Thom<strong>as</strong> manteve-se cala<strong>do</strong> por momentos.— Não reconheço esse nome. Disse quem o enviou, ou que tipo demensagem traz?— Afirmou que a mensagem era destinada apen<strong>as</strong> aos vossos ouvi<strong>do</strong>s,senhor.Thom<strong>as</strong> sentiu um toque de ansiedade. O que estaria um francês a fazerem Inglaterra, na sua c<strong>as</strong>a, se não fosse para relembrar algum <strong>as</strong>peto deuma vida p<strong>as</strong>sada, já há muito posta de parte?— Onde está ele? — perguntou, enquanto franzia <strong>as</strong> s<strong>obra</strong>ncelh<strong>as</strong>.— Na entrada, senhor. — John encolheu os ombros — Pareceu-me omelhor.— Pede-lhe que entre e deixa que se aqueça ao fogo <strong>do</strong> salão. É um atocristão oferecer-lhe hospitalidade, especialmente nesta altura <strong>do</strong> ano.53


Não apreciava aquela intrusão. Nos anos mais recentes, poucos o tinhami<strong>do</strong> visitar por razões sociais, e menos ainda o tinham convida<strong>do</strong>para alguma festa ou banquete. Normalmente, tratava os visitantes inespera<strong>do</strong>scomo uma fonte de irritação, um <strong>as</strong>sunto que podia despacharrapidamente e depois ignorar. Sentia uma tremenda l<strong>as</strong>situde nos ossos, epouco lhe agradava ver-se força<strong>do</strong> a aban<strong>do</strong>nar o lugar junto ao fogo ondeplaneava p<strong>as</strong>sar a noite. Se aquele homem, Philippe de Nanterre, lhe tinhai<strong>do</strong> apresentar alguma oferta para prestar serviço militar, partiria desaponta<strong>do</strong>.Thom<strong>as</strong> já fizera a sua paz com o mun<strong>do</strong>, e com os seus inimigos, esó queria que o deix<strong>as</strong>sem também em paz. Afagou a barba bem aparada eolhou para o cria<strong>do</strong>.— Conseguiste adivinhar de que <strong>as</strong>sunto se trata?— Consegui, de facto. — John sorriu. — Traz-vos uma carta, senhor.Avistei-a na sacola enquanto levava o cavalo para o estábulo. Já lhe foi devolvidacom toda a discrição e segurança.Thom<strong>as</strong> não evitou sorrir por sua vez.— Calculo que a sacola estava entreaberta, por singular ac<strong>as</strong>o.— Senhor, não me podem ser <strong>as</strong>sacad<strong>as</strong> responsabilidades por a fivelaestar mal apertada. Preocupei-me apen<strong>as</strong> em trazer-vos alguma informação.— E bem o fizeste. E de que trata a carta que por ac<strong>as</strong>o tiveste n<strong>as</strong>mãos?— É um pergaminho, d<strong>obra</strong><strong>do</strong> e sela<strong>do</strong>. No exterior não havia qualquerindicação <strong>do</strong> remetente.— Por ac<strong>as</strong>o reconheceste o selo?— Não, senhor.— Descreve-mo, então.— Uma cruz, senhor. Uma cruz com uma dentada em cada ponta.Thom<strong>as</strong> sentiu uma espécie de tontura e fechou brevemente os olhos,lutan<strong>do</strong> contra a maré de memóri<strong>as</strong> e imagens inesperad<strong>as</strong> e indesejad<strong>as</strong>que ameaçavam subjugá-lo. Ao mesmo tempo havia uma esperança an<strong>as</strong>cer-lhe no peito, alimentada pela curiosidade. Respirou profundamenteantes de voltar a abrir os olhos e contemplar o cria<strong>do</strong>.— Leva-o para a cozinha e dá-lhe de comer.— Senhor? — John arregalou os olhos. — M<strong>as</strong> trata-se de um estrangeiro.Não podemos confiar nele. Mandá-lo-ia embora sem delong<strong>as</strong>, sefosse a vós, senhor.— Ainda bem que não és, então. Depressa reinará a escuridão, e a estradapara Bishops Stortford deve estar gelada e escorregadia. Não seriaaceitável enxotá-lo. Nem seguro. Se <strong>as</strong>sim o pretender, diz-lhe que podep<strong>as</strong>sar aqui a noite. Dá-lhe comida e um leito. E diz-lhe que gostaria de falarcom ele, daqui a pouco.54


John resmungou, m<strong>as</strong> sabia perfeitamente que não devia contrariar oseu senhor. Thom<strong>as</strong> sorriu levemente.— Deve ter feito uma longa jornada para me encontrar. O mínimo quepodemos fazer é oferecer-lhe a hospitalidade desta c<strong>as</strong>a. Agora vai, e trata<strong>do</strong> homem.John baixou a cabeça e deixou o estúdio, fechan<strong>do</strong> a porta atrás de si.Enquanto os seus p<strong>as</strong>sos ecoavam pelo salão revesti<strong>do</strong> a painéis de carvalho,Thom<strong>as</strong> cofiou a barba, pensativo. Reconhecera perfeitamente a descriçãoque John fizera <strong>do</strong> selo. Era o emblema <strong>do</strong>s Cavaleiros Hospitalários.Ao fim de tantos anos de espera, a Ordem quebrava por fim o seu silêncio.Assim que abriu a porta da cozinha e entrou, percebeu que a rotina e isolamentoque tinham caracteriza<strong>do</strong> a sua vida nos anos mais recentes estavamtermina<strong>do</strong>s. Com <strong>as</strong> cost<strong>as</strong> para o fogo, o mensageiro estava debruça<strong>do</strong> sobreuma malga fumegante. Os olhos levantaram-se, curiosos, ao sentir aentrada <strong>do</strong> senhor da c<strong>as</strong>a, e levantou-se de imediato, enquanto limpava oslábios às cost<strong>as</strong> da mão. Era um sujeito entronca<strong>do</strong>, e uma cicatriz esbranquiçadacruzava-lhe a testa. O rosto era curti<strong>do</strong>, e a expressão firme m<strong>as</strong>educada; ainda <strong>as</strong>sim, Thom<strong>as</strong> percebeu que se tratava de um jovem, poucoalém <strong>do</strong>s vinte anos de idade. Um solda<strong>do</strong>, envelheci<strong>do</strong> antes de tempo,como sucedia com to<strong>do</strong>s os noviços que conseguiam sobreviver aos seusprimeiros anos na Ordem. Ainda envergava um manto pesa<strong>do</strong> e escuro,próprio de quem cavalgava pela noite. No ombro notava-se uma cruz branca,suja e manchada, cujos braços se alargavam antes de se dividirem emdu<strong>as</strong> pont<strong>as</strong>, uma por cada língua falada na Ordem.— Sir Thom<strong>as</strong> Barrett? Tenho uma mensagem para vós. Do Grão-Mestre.— O inglês era bom, embora com um sotaque carrega<strong>do</strong>, <strong>do</strong> Sul deFrança, calculou. Thom<strong>as</strong> anuiu e fez um gesto ao visitante, indican<strong>do</strong>-lheque se sent<strong>as</strong>se.Falou em francês.— Se não vos importardes, usaremos a língua mais comum na Ordem.— Com agra<strong>do</strong> o faço — retorquiu o mensageiro também em francês.Thom<strong>as</strong> acenou na direção <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is servos.— Eles pouco sabem da minha vida p<strong>as</strong>sada. Não gostaria que fossemespalhar boatos na aldeia. As cois<strong>as</strong> já são difíceis para os que se mantêmfiéis à Igreja de Roma.— Compreen<strong>do</strong>.Thom<strong>as</strong> virou-se para John.— Podes deixar-nos. E tu também, Hannah.Quan<strong>do</strong> a porta se cerrou, Thom<strong>as</strong>, de pé junto à ponta da mesa, encarouo mensageiro.55


— Então?— O Grão-Mestre…— Quem é ele? — interrompeu Thom<strong>as</strong>.— Quem?O homem mais jovem fora apanha<strong>do</strong> de surpresa.— Peço desculpa — explicou Thom<strong>as</strong>. — Há já algum tempo que nãoestou envolvi<strong>do</strong> nos <strong>as</strong>suntos da Ordem. Não faço ideia de quem a comandaneste momento.— Oh… — O mensageiro não escondeu a surpresa. — Eu sirvo oGrão-Mestre Jean de La Valette.— La Valette — <strong>as</strong>sentiu Thom<strong>as</strong>. — Lembro-me bem dele… Deveestar um velho.O mensageiro contemplou-o, perplexo, e Thom<strong>as</strong> sorriu.— Sempre teve um ar envelheci<strong>do</strong>. E sempre foi o homem mais duroque alguma vez conheci. Dizei-me, ainda é ele quem lidera a primeira marchaforçada <strong>do</strong>s noviços?O mensageiro não reprimiu uma careta.— Oh, sim. E continua a deixar to<strong>do</strong>s de r<strong>as</strong>tos.Riram os <strong>do</strong>is, o que aliviou a tensão que se mantivera até ali. Thom<strong>as</strong>puxou um banco de debaixo da mesa e sentou-se, enquanto sorria perantea lembrança de um homem de quarenta e tal anos, ágil e magro, a avançar ap<strong>as</strong>so largo à cabeça de uma coluna desfeita de jovens a arfar para se manterema par <strong>do</strong> veterano cavaleiro. M<strong>as</strong> o sorriso apagou-se quan<strong>do</strong> o olharse lhe prendeu na cruz impressa na capa <strong>do</strong> mensageiro.— Irmão, de onde vindes?— A minha família tem uma propriedade perto de Nîmes.— Ah, bem me parecia que reconhecia o vosso sotaque, Philippe deNanterre. Tendes portanto uma mensagem para mim.— Sim, senhor.Thom<strong>as</strong> sentiu o coração a acelerar no peito.— Tomaram finalmente uma decisão. Pergunto-me se continuarei excluí<strong>do</strong>da Ordem, ou se finalmente vou ser chama<strong>do</strong> ao seu seio.— Senhor, não vos compreen<strong>do</strong>.Thom<strong>as</strong> encarou-o, tentan<strong>do</strong> discernir se o jovem era tolo a ponto dese atrever a troçar dele. M<strong>as</strong> a confusão <strong>do</strong> mensageiro parecia genuína, eThom<strong>as</strong> af<strong>as</strong>tou o <strong>as</strong>sunto com um gesto rápi<strong>do</strong> da mão.— Não importa. Dai-me então a mensagem.— Sim, senhor. — O jovem lançou a mão à pequena sacola de cabedalque estava sobre <strong>as</strong> lajes junto às su<strong>as</strong> bot<strong>as</strong>. Pousou-a sobre <strong>as</strong> g<strong>as</strong>t<strong>as</strong> tábu<strong>as</strong>da mesa e deteve-se, enquanto examinava desconfia<strong>do</strong> a fivela que fechavaa sacola. Deitou o olhar à porta da cozinha e abanou a cabeça antes de56


abrir o fecho. Procurou no interior até extrair um pergaminho d<strong>obra</strong><strong>do</strong> efecha<strong>do</strong> com um selo de cera. P<strong>as</strong>sou-o a Thom<strong>as</strong>, que o recebeu com umapequena hesitação. Levou-o até junto <strong>do</strong>s olhos e virou-se de forma a queo fogo da cozinha ilumin<strong>as</strong>se o selo da Ordem e <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> inscrit<strong>as</strong> juntoa ele. Para Sir Thom<strong>as</strong> Barrett, Cavaleiro da Ordem de S. João. O coraçãoacelerou-lhe quan<strong>do</strong> leu uma segunda vez a parte final <strong>do</strong> destinatário.— Como é que me haveis encontra<strong>do</strong>?— Sir Oliver Stokely deu-me tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> indicações, senhor.— Sir Oliver. Por esta altura já deve ocupar uma posição de relevo. Supon<strong>do</strong>que ainda é o mesmo homem que conheci em tempos.Philippe anuiu e respondeu à pergunta implícita.— Sir Oliver é o secretário <strong>do</strong> Grão-Mestre.— Ora bem, subiu até ao topo. — Thom<strong>as</strong> riu. — Para um inglês, queroeu dizer.— Senhor?— Não é nada. Acabai de comer. — Thom<strong>as</strong> voltou a atenção para opergaminho. Meteu um de<strong>do</strong> por baixo da d<strong>obra</strong> e quebrou o selo. O <strong>do</strong>cumentoestalou enquanto ele o desd<strong>obra</strong>va e alisava sobre a mesa. Começoupor fim a ler.57


8abertura da mensagem era clara, e o desdém e desprezo de Sir OliverA Stokely eram evidentes desde <strong>as</strong> primeir<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>.Sir Thom<strong>as</strong>,Escrevo esta mensagem por solicitação expressa <strong>do</strong>Grão-Mestre, Jean Parisot de La Valette, uma vez que usamosa mesma língua. Tal como eu, deveis estar conscientede que, em circunstânci<strong>as</strong> normais, a vossa suspensão daOrdem não poderia ser revogada. Dada a natureza danosada vossa conduta no episódio ocorri<strong>do</strong> há cerca de vinteanos, foi sempre minha opinião que a exclusão da Ordemera a mais leve penalidade que vos podia ser imposta. A correntecrise exige, porém, que o Grão-Mestre ponha fim aovosso exílio. Desta forma, e no respeito <strong>do</strong> juramento quepor vós foi presta<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> vos junt<strong>as</strong>tes à Ordem, é-vosordena<strong>do</strong> que vos dirijais a Malta da forma mais expeditaque vos for possível, sob pena de eterna desgraça aos olhos<strong>do</strong>s vossos pares e de Deus.Creio que não se torna necessário relembrar-vos a profundavergonha que haveis causa<strong>do</strong> aos vossos pares ingleses. A ameaçaque pende correntemente sobre a Ordem e sobre toda aCristandade oferece-vos uma oportunidade para a redenção,não apen<strong>as</strong> a vós m<strong>as</strong> a to<strong>do</strong>s os da mesma nacionalidade.Ten<strong>do</strong> ti<strong>do</strong> alguma proximidade convosco, não espero quesejais capaz de honrar o vosso compromisso com a Ordem,e considero que, em qualquer c<strong>as</strong>o, a vossa eventual contribuiçãopara a nossa defesa seria de somenos importância.Contu<strong>do</strong>, <strong>as</strong> instruções <strong>do</strong> Grão-Mestre não me deixam alternativaque não seja transmitir-vos esta convocatória, e <strong>as</strong>sim ofaço em respeito ao seu desejo.O homem que vos leva esta mensagem dar-vos-á mais informaçõessobre a <strong>presente</strong> situação aqui em Malta. Podereis soli-58


citar-lhe detalhes que a prudência me aconselha a não colocarpor escrito.Vosso,Sir Oliver Stokely, Cavaleiro de Justiça da Ordem Hospitaláriade S. João, neste dia de 6 de novembro.Thom<strong>as</strong> levantou o olhar para interpelar o mensageiro.— Esta carta foi escrita em novembro. Haveis feito uma viagem veloz.Philippe encolheu os ombros.— O tempo é um luxo a que a Ordem não se pode permitir.— Assim parece. Conheceis o conteú<strong>do</strong> desta missiva?— Não, senhor. Os mensageiros foram alerta<strong>do</strong>s para os perigos quepoderiam encontrar e receberam cart<strong>as</strong> para distribuir pelos nossos irmãoscavaleiros. Na minha lista, sois o quinto. E ainda tenho mais <strong>do</strong>is a contactar.Um em York, e o último na Dinamarca. Se Deus o permitir, regressareia Malta antes da chegada <strong>do</strong> inimigo.— Compreen<strong>do</strong>. Quantos cavaleiros estão a ser convoca<strong>do</strong>s?Philippe olhou-o por momentos, e o desespero tomou conta <strong>do</strong> seusemblante, antes de responder.— To<strong>do</strong>s.Thom<strong>as</strong> riu.— To<strong>do</strong>s? Vá lá, meu caro jovem, não brinqueis comigo.— Sir Thom<strong>as</strong>, como já vos disse, não temos tempo a perder. Daqui <strong>as</strong>eis meses, um ano no máximo, a Ordem pode já ter si<strong>do</strong> apagada da faceda Terra pelo infiel.Thom<strong>as</strong> estava mais <strong>do</strong> que habitua<strong>do</strong> a jovens com tendência paraflorea<strong>do</strong>s retóricos, m<strong>as</strong> resolveu manter a sua opinião para si mesmo, porrespeito ao seu convida<strong>do</strong>.— Diz a carta que me podeis relatar to<strong>do</strong>s os detalhes. Portanto, desembuchai.Philippe af<strong>as</strong>tou a malga de sopa.— Em outubro p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong>, os nossos espiões informaram que o sultãoSolimão tinha convoca<strong>do</strong> uma reunião <strong>do</strong>s seus conselheiros para discutira estratégia a empregar na campanha próxima. Embora nenhum espiãotenha consegui<strong>do</strong> estar na reunião, não deixaram de <strong>as</strong>sinalar o eleva<strong>do</strong>número de vizires, almirantes e generais que se apresentaram no palácio.Vinham de to<strong>do</strong>s os cantos <strong>do</strong> Império Otomano. Havia até envia<strong>do</strong>s deDragut, e <strong>do</strong>s outros corsários, e <strong>do</strong>s pirat<strong>as</strong> da Costa da Barbária. Era evidenteque os Turcos estavam a planear algo em grande escala para este ano.Pouco depois começámos a receber relatórios de outros agentes, que mencionavamgrandes depósitos de arm<strong>as</strong>, pólvora, e de ab<strong>as</strong>tecimentos como59


cereais e carne salgada. Dezen<strong>as</strong> e dezen<strong>as</strong> de nov<strong>as</strong> peç<strong>as</strong> de artilharia foramproduzid<strong>as</strong> n<strong>as</strong> fundições <strong>do</strong> sultão, e os melhores artilheiros e engenheiros<strong>do</strong> Império foram também convoca<strong>do</strong>s a Constantinopla. Depoischegaram notíci<strong>as</strong> de que se estava a proceder a concentrações maciç<strong>as</strong> denavios nos portos <strong>do</strong> Egeu, e que estavam a chegar colun<strong>as</strong> de solda<strong>do</strong>sa acampamentos próximos. — Philippe debruçou-se ligeiramente sobre amesa. — É bem evidente. Planeiam atacar a Ordem. Aniquilar-nos.Thom<strong>as</strong> sorriu.— Sim, é evidente que tencionam atacar alguém. M<strong>as</strong> porquê Malta?Porquê agora? Decerto que o Solimão tem problem<strong>as</strong> mais prementes noutr<strong>as</strong>áre<strong>as</strong>. Temo que o nosso amigo Grão-Mestre se esteja a precipitar umtanto.— Não. — Philippe bateu com a mão na mesa. — Como vos atreveis apôr em dúvida a sua palavra?Thom<strong>as</strong> encarou-o e falou em tom baixo.— Cuida<strong>do</strong>, rapaz. Não tolero que me falem <strong>as</strong>sim, muito menos naminha própria c<strong>as</strong>a.Por momentos, o mensageiro manteve o olhar aceso, em claro desafio aThom<strong>as</strong>. M<strong>as</strong> depressa notou o brilho frio e impie<strong>do</strong>so nos olhos <strong>do</strong> homemmais velho, e recor<strong>do</strong>u o pouco que ouvira em Malta sobre a reputação deSir Thom<strong>as</strong>. Vacilou, e acabou por baixar o olhar para o tampo da mesa.— Senhor, peço-vos desculpa. Foi uma longa viagem, e o cansaçoafeta-me o julgamento. Não quis de mo<strong>do</strong> algum des<strong>respeita</strong>r-vos. O meuúnico propósito era defender a honra <strong>do</strong> Grão-Mestre… e a vossa.Thom<strong>as</strong> <strong>as</strong>sentiu.— Compreen<strong>do</strong>-vos perfeitamente. Agrada-me verificar que La Valetteainda tem o poder de inspirar uma tão feroz devoção nos seus homens.M<strong>as</strong> porque está ele tão certo de que Solimão vai desferir um golpe contra aOrdem? E porquê agora, quan<strong>do</strong> está em posição de se lançar sobre a Cristandadeem toda a região <strong>do</strong>s Balcãs? — Franziu o sobrolho. — Não vejoqualquer senso nessa decisão de atacar Malta.— Senhor, é claro. Desde o começo <strong>do</strong> seu reina<strong>do</strong>, há mais de quarentaanos, que Solimão reclama os títulos de “Rei <strong>do</strong>s reis” e “Senhor supremoda Europa e da Ásia”. Sempre teve em mente subjugar to<strong>do</strong>s os reinos daCristandade, e impor o Islão a to<strong>do</strong>s os seus súbditos. Agora sente-se a envelhecer,e teme morrer antes de cumprir a sua ambição.Thom<strong>as</strong> sorriu.— Uma bela fant<strong>as</strong>ia. Luto há tempo suficiente para compreender queum plano dessa envergadura não está ao alcance de ninguém, nem sequer<strong>do</strong> sultão.— Fant<strong>as</strong>ia ou não, senhor, é esse o seu plano. Os espiões <strong>do</strong> Grão-Mes-60


tre ouviram-no <strong>do</strong>s lábios <strong>do</strong> próprio Solimão. Malta é o primeiro p<strong>as</strong>so, ea nossa Ordem o primeiro alvo. Temos si<strong>do</strong> um espinho crava<strong>do</strong> na suacarne, e agora parece ter resolvi<strong>do</strong> destruir-nos. — O jovem cavaleiro reordenouos pensamentos e prosseguiu. — A causa imediata da decisão <strong>do</strong>sultão em tomar Malta tem a ver com o facto de termos aprisiona<strong>do</strong> noverão p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> uma d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> mais querid<strong>as</strong> naus de comércio. O comandanteRomeg<strong>as</strong> tomou o navio junto à costa <strong>do</strong> Egito. Levava a bor<strong>do</strong> um<strong>as</strong>enhora de alta estirpe, e o governa<strong>do</strong>r turco de Alexandria. No porão seguiauma fortuna em seda e metais preciosos. O valor foi estima<strong>do</strong> como oequivalente a oitenta mil duca<strong>do</strong>s…Thom<strong>as</strong> abanou a cabeça perante a incrível possibilidade de encerrarnum navio, por grande que fosse, um tamanho tesouro.Philippe sorriu brevemente.— Foi também essa precisamente a minha reação, senhor. E podemosimaginar a reação <strong>do</strong> sultão ao saber d<strong>as</strong> novidades. Há décad<strong>as</strong> que a Ordemperturba os negócios de Solimão. Temo-nos torna<strong>do</strong> cada dia maisousa<strong>do</strong>s, e ele resolveu por fim destruir-nos.— Por vingança? — Thom<strong>as</strong> arregalou um olho. — O Solimão de queme lembro nunca permitiria que o coração lhe comand<strong>as</strong>se a mente.— Tal não é o c<strong>as</strong>o — afiançou Philippe. — Não é apen<strong>as</strong> por vingançaque ele almeja juntar Malta ao seu v<strong>as</strong>to império. Depois de Malta cair, aSicília não tardará. E da Sicília poderá atacar a Itália e conquistar Roma, ocoração da nossa fé. Mesmo isso não satisfará o seu apetite. Não antes decruzar os Alpes e conseguir matar ou escravizar até ao último <strong>do</strong>s cristãos.— Philippe voltou a debruçar-se e bateu com um de<strong>do</strong> no tampo da mesa.— Achais por ac<strong>as</strong>o que esta ilha, por longínqua que seja, está a salvo d<strong>as</strong>mandíbul<strong>as</strong> tritura<strong>do</strong>r<strong>as</strong> da sua ambição?Thom<strong>as</strong> gargalhou.— Bel<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>. Creio distinguir nel<strong>as</strong> a voz de Sir Oliver.Philippe recostou-se, com um sorriso.— Bem, eu tentei. Sois realmente tão <strong>as</strong>tuto como a raposa, como mediziam.— Diziam?— Os irmãos que se recordam de vós, ao tempo em que servíeis naOrdem.— Já não deve haver muitos — comentou Thom<strong>as</strong>.— Não, de facto.— E aqueles que se recordam de mim hão de também lembrar a formacomo deixei a Ordem.— É bem verdade, senhor. M<strong>as</strong> velh<strong>as</strong> disput<strong>as</strong> devem ser post<strong>as</strong> dela<strong>do</strong> nesta altura.61


Thom<strong>as</strong> agitou um de<strong>do</strong> em frente ao mensageiro.— É evidente que não compreendeis realmente <strong>as</strong> divisões que existementre <strong>as</strong> diferentes nacionalidades na Ordem. No meu tempo, discutíamosentre nós qu<strong>as</strong>e com tanta ferocidade como aquela com que nos lançávamossobre os infiéis.— Nesse c<strong>as</strong>o, senhor, creio que não encontrareis grandes mudanç<strong>as</strong>quan<strong>do</strong> chegardes a Malta.— Chegar a Malta? — Thom<strong>as</strong> olhou-o com intensidade. — Rapaz,não tenteis presumir aquilo de que nada sabeis. O que vos faz pensar queirei a correr pôr-me ao serviço daqueles que me exilaram? Se foram honestosconvosco, Philippe, deveis estar ao corrente d<strong>as</strong> circunstânci<strong>as</strong> quelevaram à minha saída de Malta.Philippe abanou a cabeça.— Tu<strong>do</strong> o que ouvi foi que em tempos haveis esta<strong>do</strong> envolvi<strong>do</strong> numqualquer escândalo. Nada mais me disseram.— Nesse c<strong>as</strong>o, continuam rígi<strong>do</strong>s e convenci<strong>do</strong>s como sempre. Nadalhes devo.— Proferistes um juramento. Desse juramento não há forma de sair,senhor… A não ser pela morte.Thom<strong>as</strong> olhou para <strong>as</strong> sombr<strong>as</strong> no canto da cozinha, e lançou um sorrisoamargo.— Dá-me ideia que to<strong>do</strong>s os membros da Ordem se verão dessa formalivres <strong>do</strong> seu juramento, muito em breve.— Não estaremos sozinhos, senhor. O Grão-Mestre apelou ao auxíliode to<strong>do</strong>s os reinos cristãos. Se responderem, por certo triunfaremos sobreos infiéis.A fé pouco sofisticada <strong>do</strong> jovem encheu de tristeza o veterano cavaleiro.Philippe, e centen<strong>as</strong> como ele, enfrentariam a morte agarra<strong>do</strong>s àquel<strong>as</strong>noções idealist<strong>as</strong>, como se fossem relíqui<strong>as</strong> sagrad<strong>as</strong> pel<strong>as</strong> quais combater emorrer. Thom<strong>as</strong> tinha alimenta<strong>do</strong> a esperança de nunca mais se ver arr<strong>as</strong>ta<strong>do</strong>para tamanha tolice, e tentou explicar, pela compaixão que sentia peloseu hóspede.— Dizei-me, Philippe, desde que haveis deixa<strong>do</strong> Malta para vir atéaqui, não haveis por ac<strong>as</strong>o p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> por algum reino cristão envolvi<strong>do</strong> numaqualquer espécie de conflito com o seu vizinho? Não conheceis a sorte quemilhares de católicos sofreram neste país? Enquanto nós, cristãos, estivermostão empenha<strong>do</strong>s em nos destruirmos uns aos outros, que hipóteseshá de nos juntarmos para resistir ao avanço <strong>do</strong>s infiéis? Não haverá maiscruzad<strong>as</strong>. Esquecemos a única e verdadeira Igreja <strong>do</strong> Senhor, e Solimão é onosso c<strong>as</strong>tigo. O nosso julgamento.Philippe abriu a boca para protestar, m<strong>as</strong> Thom<strong>as</strong> ergueu uma mão62


para o silenciar, e depois de uma breve pausa prosseguiu em tom calmo eresigna<strong>do</strong>.— Voltai para junto <strong>do</strong> Grão-Mestre, e dizei-lhe que eu irei. Não paramorrer por aqueles que me exilaram. Não para morrer pela fé. M<strong>as</strong> irei,por razões que só a mim dizem respeito. — Levantou-se — Agora, voudeitar-me. O meu servo dar-vos-á acomodações para a noite. Calculo quequeirais partir para York logo pela alvorada.Philippe <strong>as</strong>sentiu, e quan<strong>do</strong> Thom<strong>as</strong> se dirigiu para a porta, o jovemmensageiro fez menção de falar.— Sir Thom<strong>as</strong>. Tendes a minha gratidão, e a de to<strong>do</strong>s os nossos irmãosem Malta.Thom<strong>as</strong> deteve-se à porta, m<strong>as</strong> não se voltou. Ao invés, os ombros descaíram-lhe,e lançou um profun<strong>do</strong> suspiro.— Gratidão? Nada tenho aqui que me prenda, e gostaria de rever Maltaantes de partir. É tu<strong>do</strong>.Saiu da cozinha e viu John a levantar-se de um banco no corre<strong>do</strong>r. Fezum gesto na direção da cozinha ao p<strong>as</strong>sar pelo cria<strong>do</strong>.— Trata dele. Tenciona partir antes de eu me levantar amanhã de manhã.— Sim, senhor.Thom<strong>as</strong> foi-se deitar de imediato, enquanto <strong>as</strong> memóri<strong>as</strong>, reavivad<strong>as</strong>pelo mensageiro, ro<strong>do</strong>piavam na sua mente. Hannah tinha coloca<strong>do</strong>uma tábua aquecida entre <strong>as</strong> mant<strong>as</strong>, m<strong>as</strong>, mesmo com essa ajuda, nãoconseguiu acomodar-se, e o sono não veio, afugenta<strong>do</strong> que era por um<strong>as</strong>ucessão de imagens e emoções que não se deixavam banir da cabeça. Porfim desistiu, e ficou a contemplar o teto <strong>do</strong> quarto, e a escutar o gemer <strong>do</strong>vento na lareira. A perspetiva de um regresso a Malta era agri<strong>do</strong>ce. Era olocal onde em tempos estivera certo de pertencer. Era lá que tinha ama<strong>do</strong>Maria. Talvez até, por alguma espécie de milagre, ela vivesse ainda, ealberg<strong>as</strong>se aquele mesmo amor que nunca o deixara em to<strong>do</strong>s os anosde separação. Amaldiçoou-se por ser um velho tonto, virou-se de la<strong>do</strong> econseguiu por fim a<strong>do</strong>rmecer.Quan<strong>do</strong> acor<strong>do</strong>u, o vento tinha morri<strong>do</strong> e um sol radioso inundava-lheo quarto por uma fresta n<strong>as</strong> cortin<strong>as</strong>. O lume na fogueira tinha-se apaga<strong>do</strong>também, havia muit<strong>as</strong> hor<strong>as</strong>, e nos vidros d<strong>as</strong> janel<strong>as</strong> tinha-se acumula<strong>do</strong>gelo. Ergueu-se rigidamente e sentou-se na borda da cama por momentos,enquanto relembrava os acontecimentos da noite anterior. Estava convenci<strong>do</strong>da justeza da sua decisão. De qualquer forma, àquela hora o mensageirojá teria parti<strong>do</strong>, e levaria a sua resposta até Malta. Era dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong> tardepara mudar de idei<strong>as</strong>. Teria portanto de se preparar mais uma vez para aguerra. Com essa ideia em mente, vestiu-se e dirigiu-se ao estúdio, onde63


John lhe levaria o pequeno-almoço <strong>as</strong>sim que escut<strong>as</strong>se o som <strong>do</strong>s pesa<strong>do</strong>sp<strong>as</strong>sos <strong>do</strong> seu senhor a descer <strong>as</strong> escad<strong>as</strong>.John confirmou-lhe que o jovem cavaleiro tinha parti<strong>do</strong> à primeira luz<strong>do</strong> dia, com um pequeno cesto de p<strong>as</strong>téis e queijo que lhe dariam para o diade viagem.Depois de uma malga de papa, Thom<strong>as</strong> envergou uma espessa capacom capuz e dirigiu-se a pé pelos campos até à quinta de um <strong>do</strong>s seus arrendatários.Havia árvores a abater num <strong>do</strong>s bosques que cresciam na propriedade,e tinha combina<strong>do</strong> juntar-se ao camponês e aos seus filhos para<strong>as</strong> derrubar. Era trabalho pesa<strong>do</strong>, que podia perfeitamente ter evita<strong>do</strong>, m<strong>as</strong>ele apreciava o exercício e a sensação agradável de satisfação que sentiu foiimensa quan<strong>do</strong>, por volta <strong>do</strong> meio-dia, contemplou a pilha de lenha quetinha si<strong>do</strong> reunida. Depois de se despedir <strong>do</strong>s outros, Thom<strong>as</strong> regressou aosolar, livre <strong>do</strong>s pensamentos que lhe tinham perturba<strong>do</strong> a noite. Decidiuque partiria para Malta dentro de uma semana.Foi nesse momento que chegou o segun<strong>do</strong> mensageiro.O cavaleiro atravessava o arco da entrada no preciso instante em queThom<strong>as</strong> sacudia a neve d<strong>as</strong> bot<strong>as</strong> junto à entrada principal <strong>do</strong> solar. O som<strong>do</strong>s c<strong>as</strong>cos da montada era abafa<strong>do</strong> pela neve, de forma que qu<strong>as</strong>e não houveaviso da sua chegada. Thom<strong>as</strong> levantou a vista ao pressentir movimento,e viu o homem a puxar pel<strong>as</strong> réde<strong>as</strong> para levar o cavalo a atravessar o pátioe ir ter com ele. Envergava um manto azul, e o género de calções que setinham torna<strong>do</strong> moda em Londres. O azul <strong>do</strong> uniforme indicava que eraum servi<strong>do</strong>r de uma c<strong>as</strong>a poderosa. Ao aproximar-se, ergueu uma mão enluvadae apontou para Thom<strong>as</strong>.— Tu aí! Uma palavra.Thom<strong>as</strong> endireitou-se e cruzou os braços, enquanto o cavalo atravessavao pátio a trote, lançan<strong>do</strong> para o ar uma pequena chuva de cristais brancosde neve a cada p<strong>as</strong>sada. Deteve-se a uma dúzia de metros de Thom<strong>as</strong>, eplum<strong>as</strong> de vapor saíram d<strong>as</strong> narin<strong>as</strong> <strong>do</strong> animal.— Podes dizer-me se isto é Barrett Hall?— É.O homem suspirou, alivia<strong>do</strong>, e saltou da sela, aterran<strong>do</strong> sobre a nevesem alarde, ainda com <strong>as</strong> réde<strong>as</strong> na mão. Lançou um sorriso ao interlocutor.— Saí de Londres pela madrugada. O dia to<strong>do</strong> a cavalgar. Depois deBishops Stortford meti-me por um caminho esqueci<strong>do</strong>. Levei hor<strong>as</strong> a darcom isto. Qu<strong>as</strong>e ninguém com quem me cruzei sabia sequer que isto existia.— Gostamos de nos manter longe da confusão — admitiu Thom<strong>as</strong>. —Quanto menos visitantes, melhor. — Não empregou um tom hostil, m<strong>as</strong> osemblante <strong>do</strong> cavaleiro endureceu ao presumir que estava de alguma formaa ser menospreza<strong>do</strong>, e quan<strong>do</strong> voltou a falar, foi em tom arrogante.64


— Homem, o teu senhor está? Avisaram-me que ele raramente se af<strong>as</strong>tada c<strong>as</strong>a nos últimos anos.— É verdade — concor<strong>do</strong>u Thom<strong>as</strong>.— E está em c<strong>as</strong>a? — indagou o homem, apressa<strong>do</strong>. — Não tenho tempopara jogos. Tenho de regressar a Londres <strong>as</strong>sim que tiver cumpri<strong>do</strong> oque me foi ordena<strong>do</strong>.— O senhor ainda não entrou. O que desejais dele?— Algo que lhe devo dizer em pessoa, que não pode ser transmiti<strong>do</strong>por um cria<strong>do</strong>.— Então dizei-o.A expressão de irritação <strong>do</strong> outro aumentou por um instante, até quese apercebeu <strong>do</strong> que tinha ouvi<strong>do</strong>, e mu<strong>do</strong>u instantaneamente de atitude,baixan<strong>do</strong> a cabeça.— Senhor, <strong>as</strong> minh<strong>as</strong> desculp<strong>as</strong>. Não fazia ideia.— Nesse c<strong>as</strong>o, porque é que partistes <strong>do</strong> princípio de que vos dirigíeisa alguém de estatuto inferior?O homem levantou a cabeça e fez um gesto vago.— Senhor, <strong>as</strong> voss<strong>as</strong> vestes não são <strong>as</strong> típic<strong>as</strong> de um cavalheiro. Pensei…— Pens<strong>as</strong>tes? Presumistes? Julgais sempre um homem pela sua aparência?— Senhor, eu… eu… eu posso apen<strong>as</strong> pedir-vos desculpa.Thom<strong>as</strong> olhou-o com intensidade, até que o outro baixou a vista para ochão. O homem tinha cometi<strong>do</strong> um erro honesto, e sem má vontade, m<strong>as</strong>ainda <strong>as</strong>sim havia algo que irritava Thom<strong>as</strong>. Era um exemplo típico da sociedadeque girava em torno da corte real e da gente menor que se agarravaà periferia desse círculo. A aparência era tu<strong>do</strong>, e a substância <strong>do</strong> caráter decada um podia ser ignorada. Thom<strong>as</strong> sentia tu<strong>do</strong> aquilo como uma ofensaao seu mo<strong>do</strong> de ver os homens e o mun<strong>do</strong>, e a isso juntava-se um ressentimentoamargo por ter visto a sua privacidade invadida nada menos de du<strong>as</strong>vezes em menos de um dia.— Muito bem, que nov<strong>as</strong> me trazeis?— Uma convocatória, senhor, de facto. — O homem voltou a levantara vista, e usou um tom respeitoso. — Do meu amo, Sir Robert Cecil. Desejaque o visiteis na sua c<strong>as</strong>a, em Drury Lane, em Londres, amanhã, às seishor<strong>as</strong> em ponto.— Deseja? E se eu disser que não?O queixo <strong>do</strong> homem descaiu, como se não tivesse compreendi<strong>do</strong>,como se não pudesse sequer ser considerada a possibilidade de algo quenão fosse a imediata aquiescência à vontade <strong>do</strong> seu senhor. Engoliu nervosamenteantes de responder.65


— Não me foram dad<strong>as</strong> quaisquer instruções para a eventualidade davossa recusa, senhor.— Uma pena. — Thom<strong>as</strong> encolheu os ombros. — Nesse c<strong>as</strong>o, o que metrazeis é uma ordem. E, nesse c<strong>as</strong>o, sou obriga<strong>do</strong> a comparecer. Muito bem,dizei ao vosso amo que lá estarei à hora marcada.— Sim, senhor.Thom<strong>as</strong> contemplou-o por momentos. O homem tinha p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> maisde metade <strong>do</strong> dia na sela, e não conseguiria regressar a Londres antes deescurecer. Os portões da cidade já estariam fecha<strong>do</strong>s, e o mais provável seriaver-se obriga<strong>do</strong> a procurar um alojamento para a noite no exterior d<strong>as</strong>muralh<strong>as</strong>. Seria um gesto cari<strong>do</strong>so oferecer-lhe descanso e alimento antesde ele partir, como fizera com o francês. Por outro la<strong>do</strong>, o seu hóspede anteriornão tinha si<strong>do</strong> tão impertinente. Por isso, resolveu não se mexer dafrente da porta.— Já tenho a vossa mensagem, podeis deixar-me.— Sim, senhor. — O cria<strong>do</strong> <strong>as</strong>sentiu, claramente feliz por o deixar.Apoiou uma mão na sela e colocou um pé no estribo. Tentou subir, m<strong>as</strong> ofrio tinha-lhe afeta<strong>do</strong> <strong>as</strong> articulações, e voltou a escorregar para o solo. Comum grunhi<strong>do</strong> de irritação, Thom<strong>as</strong> avançou e aju<strong>do</strong>u o homem a subir paraa sela.— Obriga<strong>do</strong>, senhor.Thom<strong>as</strong> acenou, e o homem pegou n<strong>as</strong> réde<strong>as</strong> e fez a montada rodar,colocan<strong>do</strong>-a depois a trote enquanto atravessava o pátio e saía pelo arcoda entrada, o som <strong>do</strong>s c<strong>as</strong>cos a desvanecer-se rapidamente. Thom<strong>as</strong> ficoua olhar para o arco por momentos, até que se voltou e entrou em c<strong>as</strong>a, enquantochamava.— John! John! Caramba, homem! Onde é que te meteste?— Aqui estou, senhor! — veio a resposta da cozinha. A porta abriu-see o velho servi<strong>do</strong>r surgiu, ainda a recolher migalh<strong>as</strong> <strong>do</strong> queixo.— Amanhã, vou precisar d<strong>as</strong> sacol<strong>as</strong>, <strong>do</strong> manto, bot<strong>as</strong> e espada. Tratade os limpar e prepara-os para eu os pôr logo pela manhã. Vou a Londres.— Sim, senhor. — John inclinou ligeiramente a cabeça. — Posso perguntar-vosquanto tempo estareis longe?— Quem sabe? — Thom<strong>as</strong> sorriu sem vontade. — Ao que parece, poucoterei a dizer sobre a data <strong>do</strong> meu regresso.66


9LondresAescuridão crescia à medida que Thom<strong>as</strong> se aproximava da capital, queà distância de alguns quilómetros fazia lembrar uma nó<strong>do</strong>a escura aestender-se pela paisagem. O piso da Grande Estrada <strong>do</strong> Norte tinha congela<strong>do</strong>,e os profun<strong>do</strong>s sulcos que a cruzavam tinham obriga<strong>do</strong> Thom<strong>as</strong> <strong>as</strong>eguir a p<strong>as</strong>so no seu cavalo, atrás <strong>do</strong> carro de um merca<strong>do</strong>r de lãs, e meti<strong>do</strong>numa longa fila de vagões, cavaleiros e peões que se dirigiam a Londresantes que os portões da cidade se encerr<strong>as</strong>sem por aquela noite. Thom<strong>as</strong>deixara-se ir tranquilamente ao p<strong>as</strong>so da coluna, ao contrário <strong>do</strong>s correiosmonta<strong>do</strong>s que tinham p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> por ele durante o dia. De ambos os la<strong>do</strong>s daneve espezinhada e <strong>do</strong>s traços de terra congelada que marcavam a estrada,estendia-se sobre campos e bosques um manto branco. O céu estava carrega<strong>do</strong>,e desde o meio-dia que esvoaçavam de vez em quan<strong>do</strong> alguns flocos;a queda de um nevão parecia iminente. D<strong>as</strong> chaminés de quint<strong>as</strong> isolad<strong>as</strong> ede aldeol<strong>as</strong> que se espalhavam pela paisagem subiam finos rolos de fumo.Aqui e além, avistava-se, através de uma janela, o brilho rosa<strong>do</strong> de um fogo,que não deixava de criar em to<strong>do</strong>s os viajantes o desejo de encontrar o confortode uma lareira quente.Apesar <strong>do</strong> longo dia de viagem e <strong>do</strong> frio que se lhe entranhara na carneaté o fazer encolher-se sob o pesa<strong>do</strong> manto, os pensamentos de Thom<strong>as</strong>estavam bem longe dali. Dedicava ao que o rodeava uma pequena parcelade atenção, não mais <strong>do</strong> que a necessária para guiar a montada e estar consciente<strong>do</strong> que se p<strong>as</strong>sava em seu re<strong>do</strong>r. O que o preocupava realmente era arazão para a convocatória que recebera, para uma visita à c<strong>as</strong>a de Sir RobertCecil, o secretário de Esta<strong>do</strong> da rainha. Thom<strong>as</strong> sabia perfeitamente queCecil fora um firme apoiante de Isabel nos difíceis anos que esta p<strong>as</strong>saraantes de subir ao trono. Era, como ela, um devoto protestante, e a principalforça por trás <strong>do</strong>s esforços para suprimir a influência <strong>do</strong>s Católicos em Inglaterra.Detinha um enorme poder e era o mais importante estadista nopaís, pelo que se punha a questão: o que quereria ele de um obscuro cavaleiroque não tinha posto o pé em Londres nos últimos três anos?Desde que regressara d<strong>as</strong> guerr<strong>as</strong> na Europa, Thom<strong>as</strong> optara por permanecerna sua pequena propriedade, a supervisionar <strong>as</strong> cultur<strong>as</strong> e o cres-67


cimento <strong>do</strong>s seus rebanhos, e a tratar de <strong>as</strong>segurar condições de vida dign<strong>as</strong>para os seus arrendatários. N<strong>as</strong> rar<strong>as</strong> visit<strong>as</strong> que fizera a Londres tinha-seapresenta<strong>do</strong> na corte em muito pouc<strong>as</strong> oc<strong>as</strong>iões, e sempre tivera o cuida<strong>do</strong>de não chamar a atenção sobre si mesmo, com uma exceção, ocorrida aindadurante o reina<strong>do</strong> de Maria, a rainha católica. Mesmo nessa oc<strong>as</strong>ião, emque derramara algum sangue, a que corresponderia o c<strong>as</strong>tigo de amputaçãode uma mão, não tinha tenta<strong>do</strong> diminuir a severidade da punição chaman<strong>do</strong>ao c<strong>as</strong>o a sua filiação religiosa. Em to<strong>do</strong> o c<strong>as</strong>o, acabara por ter apen<strong>as</strong> depagar uma pequena multa, o que alguns poderiam ter atribuí<strong>do</strong> a algumaleniência de Maria para com um correligionário católico. Custava-lhe a crerque esta chamada, tantos anos depois, pudesse ter algo a ver com uma novaapreciação de tão velho <strong>as</strong>sunto.Não se tinha junta<strong>do</strong> à causa <strong>do</strong>s que advogavam os direitos <strong>do</strong>s Católicosem público, nem <strong>do</strong>s que conspiravam em priva<strong>do</strong>. Era um jogomuito perigoso. Os espiões de Sir Robert Cecil eram numerosos, e <strong>as</strong> recompens<strong>as</strong>para quem denunci<strong>as</strong>se católicos eram tenta<strong>do</strong>r<strong>as</strong> para quemquisesse ajustar velh<strong>as</strong> cont<strong>as</strong> ou para quem se deix<strong>as</strong>se levar pela ganância.Havia alguns c<strong>as</strong>os de aristocrat<strong>as</strong> cuja fé fora usada como pretexto para oconfisco d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> propriedades, e até para a sua condenação como trai<strong>do</strong>res.Muitos homens tinham consegui<strong>do</strong> grandes fortun<strong>as</strong> por perseguiremcatólicos, tal como muitos tinham fica<strong>do</strong> ricos nos tempos da dissolução<strong>do</strong>s mosteiros pelo rei Henrique. To<strong>do</strong>s esses homens apoiavam agoraIsabel, pelo menos enquanto ela lhes garantisse os direitos sobre <strong>as</strong> su<strong>as</strong>recém-adquirid<strong>as</strong> fortun<strong>as</strong>.Era-lhe difícil imaginar que <strong>as</strong> su<strong>as</strong> modest<strong>as</strong> posses pudessem teratraí<strong>do</strong> a atenção de Cecil ou de algum <strong>do</strong>s da sua fação. O único motivoque Robert Cecil podia ter para solicitar a sua presença em Londres sópodia estar relaciona<strong>do</strong> com a visita daquele jovem cavaleiro da Ordem.Thom<strong>as</strong> sentiu um arrepio a percorrer-lhe a espinha. Se fosse essa a razão,tinha-se anda<strong>do</strong> a enganar a si mesmo ao pensar que a sua discreta permanêncianos confins da paisagem inglesa o tinha posto a coberto <strong>do</strong> escrutínio.Confirmava-se <strong>as</strong>sim que muito pouco escapava aos penetrantes olhosde Cecil e <strong>do</strong>s seus homens, refletiu com uma ponta de irritação, enquantomurmurava uma imprecação contra os cavaleiros que o tinham força<strong>do</strong> adeixar a Ordem. Muito depois de se ter resigna<strong>do</strong> a p<strong>as</strong>sar os di<strong>as</strong> que lherestavam numa vida calma, tinham-se da<strong>do</strong> ao trabalho de lhe pedir auxílio.E <strong>as</strong>sim que a crise tivesse p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> e se sentissem capazes de dispensaros seus serviços, voltariam sem dúvida a escorraçá-lo.O repicar de um sino distante, a anunciar a quarta hora da tarde, interrompeu-lheo curso <strong>do</strong> pensamento. Espreguiçou-se na sela e conduziuo cavalo para a berma da estrada para apreciar o caminho que ainda tinha68


a percorrer. A coluna desordenada de viajantes e vagões tinha acaba<strong>do</strong> dep<strong>as</strong>sar por uma crista de onde se conseguia avistar a capital sob o seu tapetede espesso fumo. Àquela distância, a neve acumulada nos telha<strong>do</strong>s já pareci<strong>as</strong>uja. A pouco menos de um quilómetro, via-se o grande merca<strong>do</strong> deSmithfield, para onde os merca<strong>do</strong>res de carne de to<strong>do</strong> o país conduziam osseus rebanhos, para venda e abate. A curta distância <strong>do</strong>s redis e fil<strong>as</strong> de estábulos,havia um espaço aberto, onde se avistavam vários postes de madeiraqueimada erguen<strong>do</strong>-se sobre pilh<strong>as</strong> de cinza fina. Um desses montes pareciafresco, já que ainda fumegava e derretia a neve que tombava sobre ele.Sabia perfeitamente que era ali que os hereges eram executa<strong>do</strong>s, queima<strong>do</strong>svivos. Havia cerca de dez anos, tinha esta<strong>do</strong> no meio de uma multidãoque testemunhara a execução de três sacer<strong>do</strong>tes protestantes que tinhamdesafia<strong>do</strong> os éditos da rainha Maria, ao pregarem em público depoisde <strong>as</strong> su<strong>as</strong> licenç<strong>as</strong> para tal terem si<strong>do</strong> revogad<strong>as</strong>. A rainha obrigara toda acorte a <strong>as</strong>sistir ao espetáculo, que apreciara com satisfação evidente sentadanum cadeirão almofada<strong>do</strong> e finamente decora<strong>do</strong>, coloca<strong>do</strong> num estra<strong>do</strong>erigi<strong>do</strong> para o evento. Thom<strong>as</strong> lembrava-se bem <strong>do</strong>s gritos lancinantes <strong>do</strong>shomens. Os prega<strong>do</strong>res tinham-se contorci<strong>do</strong> por entre <strong>as</strong> labared<strong>as</strong> quese tinham espalha<strong>do</strong> rapidamente pelos feixes de lenha acumula<strong>do</strong>s sobos pequenos apoios para os pés. Em poucos minutos os corpos tinham fica<strong>do</strong>envoltos num turbilhão de brilhantes cham<strong>as</strong> amarel<strong>as</strong> e vermelh<strong>as</strong>,que não os escondiam por completo — figur<strong>as</strong> enegrecid<strong>as</strong> ainda a debaterem-secontra <strong>as</strong> correntes que os prendiam, ao mesmo tempo que os seusgritos se ouviam por cima <strong>do</strong> crepitar da lenha. A lembrança, ainda bemviva, gelou-lhe o coração. Desviou o olhar <strong>do</strong>s postes e deu um estalo com alíngua para que o cavalo aceler<strong>as</strong>se o p<strong>as</strong>so, recomeçan<strong>do</strong> a trotar.Para lá de Smithfield avistava-se a muralha da cidade. Em tempos forauma formidável linha de defesa, m<strong>as</strong> também já havia muito que era negligenciada.Havia brech<strong>as</strong> onde secções inteir<strong>as</strong> tinham ruí<strong>do</strong>, e o fosso queem tempos rodeara toda a cidade estava cheio com montes de lixo e desperdíciohumano. Um fe<strong>do</strong>r intenso <strong>do</strong>minava o ar frio quan<strong>do</strong> Thom<strong>as</strong> p<strong>as</strong>sousob o amplo arco de Newgate e entrou em Londres. Os sons da grandecidade <strong>as</strong>saltaram-lhe imediatamente os ouvi<strong>do</strong>s, vin<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s.Gritos de vende<strong>do</strong>res ambulantes, choros de crianç<strong>as</strong>, berros daqueles quese esforçavam por se fazer ouvir sobre o ruí<strong>do</strong> ambiente, tu<strong>do</strong> o atingia,bem como o o<strong>do</strong>r <strong>do</strong> pão a cozer, de carne cozinhada e de carne rançosa,e o omni<strong>presente</strong> cheiro <strong>do</strong> esgoto. As principais vi<strong>as</strong> de Londres pareciamà beira <strong>do</strong> esmagamento pelos edifícios que se empilhavam n<strong>as</strong> su<strong>as</strong> margens,debruçan<strong>do</strong>-se sobre el<strong>as</strong>, já que cada andar se projetava sobre o quelhe ficava debaixo, deixan<strong>do</strong> <strong>as</strong> ru<strong>as</strong> envolt<strong>as</strong> numa penumbra que abatia oespírito de Thom<strong>as</strong>.69


Foi com algum alívio que, quan<strong>do</strong> a luz já morria por trás d<strong>as</strong> linh<strong>as</strong>abrupt<strong>as</strong> <strong>do</strong>s telha<strong>do</strong>s e mergulhava toda a cidade n<strong>as</strong> sombr<strong>as</strong>, virou parauma avenida larga em Holborn. Thom<strong>as</strong> fez por ignorar os vendilhões quecorriam ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> cavalo, tentan<strong>do</strong> interessá-lo em petiscos e lenços, m<strong>as</strong>manteve um olho atento sobre <strong>as</strong> sacol<strong>as</strong> que seguiam à garupa <strong>do</strong> cavalo,para garantir que nenhum meliante tentava aliviá-lo d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> posses. Porfim avistou a entrada para Drury Lane e conduziu a montada para uma ruamais calma. As loj<strong>as</strong> de ambos os la<strong>do</strong>s tinham bom <strong>as</strong>peto, e os letreirosbem cuida<strong>do</strong>s anunciavam uma variedade de bens de preço eleva<strong>do</strong>: teci<strong>do</strong>sfinos, vinhos e queijos, talheres e copos importa<strong>do</strong>s da Europa. Porentre <strong>as</strong> loj<strong>as</strong> viam-se grandes c<strong>as</strong><strong>as</strong>, cuja dimensão e opulência aumentavaà medida que a rua se aproximava de Aldwych e <strong>do</strong> Tamisa, que corria logoatrás.Quan<strong>do</strong> a última luz <strong>do</strong> dia se apagava, Thom<strong>as</strong> deteve um rapaz quecorria a cumprir um reca<strong>do</strong>, com um pequeno pacote firmemente presodebaixo <strong>do</strong> braço. Perguntou-lhe onde ficava a c<strong>as</strong>a de Cecil, e foi-lhe indicadauma propriedade imponente numa esquina onde Drury Lane cruzavaoutra rua. A fachada dava para Drury Lane e mostrava madeir<strong>as</strong> ricamentetrabalhad<strong>as</strong>, conjugad<strong>as</strong> com padrões geométricos desenha<strong>do</strong>s por tijolosde fino acabamento. Ao la<strong>do</strong>, um portão dava acesso a um pequeno pátio liga<strong>do</strong>aos estábulos, m<strong>as</strong> um par de cria<strong>do</strong>s de <strong>as</strong>peto poderoso impediu-lhea p<strong>as</strong>sagem até ele anunciar o encontro que tinha marca<strong>do</strong> com o <strong>do</strong>no dac<strong>as</strong>a, depois de desmontar e p<strong>as</strong>sar <strong>as</strong> réde<strong>as</strong> <strong>do</strong> cavalo a um pajem. Foiconduzi<strong>do</strong> por uma porta n<strong>as</strong> tr<strong>as</strong>eir<strong>as</strong> da c<strong>as</strong>a e entregue aos cuida<strong>do</strong>s deum <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s da c<strong>as</strong>a, que envergava um cuida<strong>do</strong> uniforme <strong>do</strong> mesmoazul que o mensageiro que o tinha visita<strong>do</strong> em c<strong>as</strong>a na véspera. Mais umavez, Thom<strong>as</strong> teve de explicar a razão da sua visita, e foi então conduzi<strong>do</strong> aoátrio da c<strong>as</strong>a, por um<strong>as</strong> escadari<strong>as</strong> acima e depois por um corre<strong>do</strong>r ilumina<strong>do</strong>por vel<strong>as</strong> que revelavam pintur<strong>as</strong> pendurad<strong>as</strong> n<strong>as</strong> paredes cobert<strong>as</strong>por painéis de madeira; qu<strong>as</strong>e tod<strong>as</strong> representavam cen<strong>as</strong> de caça ou algummembro da família ostentan<strong>do</strong> um ar severo. Um único quadro mostravauma cena religiosa, reparou Thom<strong>as</strong> antes de ser conduzi<strong>do</strong> a uma pequen<strong>as</strong>ala de espera com bancos de madeira encosta<strong>do</strong>s às paredes, iluminadae aquecida por uma lareira. Um jovem de <strong>as</strong>peto esguio ocupava-se a alimentaro fogo mortiço com alguns pedaços de lenha. Olhou por cima <strong>do</strong>ombro ao notar a chegada de Thom<strong>as</strong>. Tinha feições moren<strong>as</strong> e um <strong>as</strong>petodelica<strong>do</strong>; os olhos eram c<strong>as</strong>tanhos e davam-lhe ao semblante um <strong>as</strong>petopenetrante que Thom<strong>as</strong> achou um tanto perturba<strong>do</strong>r.— Informarei o secretário <strong>do</strong> amo da vossa chegada, senhor — anunciouo cria<strong>do</strong>. — Desejais algum tipo de refresco enquanto aguardais?— Apreciaria com gratidão uma taça de hidromel aqueci<strong>do</strong>.70


— Hidromel? — As s<strong>obra</strong>ncelh<strong>as</strong> <strong>do</strong> cria<strong>do</strong> subiram ligeiramente, eThom<strong>as</strong> não evitou algum gozo perante a incapacidade que o homem revelavaem colocá-lo nalgum <strong>do</strong>s nichos da hierarquia social vigente em Londres.As roup<strong>as</strong> que envergava eram de bom corte m<strong>as</strong> não tinham quaisquera<strong>do</strong>rnos, e o cabelo bem apara<strong>do</strong>, como a barba, não exibia qualquerpretensão de seguir o estilo <strong>do</strong>s cavalheiros mais atentos à moda. Thom<strong>as</strong>p<strong>as</strong>saria bem por um comerciante abona<strong>do</strong>, ou por um pequeno proprietáriorural, m<strong>as</strong> o facto de ter uma reunião agendada com Sir Robert Cecilapontava para um estatuto mais eleva<strong>do</strong>, pelo que o homem acabou porinclinar a cabeça. — Como pretendeis, senhor. Hidromel será.Fechou a porta ao sair, enquanto o homem junto à lareira observavaThom<strong>as</strong> com olhos que pareciam tu<strong>do</strong> perscrutar, antes de fazer um acenorespeitoso e voltar a concentrar-se no atiçar <strong>do</strong> lume. Quan<strong>do</strong> deu a tarefapor concluída, esfregou <strong>as</strong> mãos e sentou-se num banco próximo da lareira.Ao seu la<strong>do</strong> ficava a outra porta da sala. Thom<strong>as</strong> tirou o manto, <strong>as</strong> luv<strong>as</strong>e o chapéu, e pousou-os ao seu la<strong>do</strong> no banco onde se tinha senta<strong>do</strong>, <strong>do</strong>outro la<strong>do</strong> da sala. Por momentos limitou-se a gozar a atmosfera sossegadae deixou que o calor penetr<strong>as</strong>se gradualmente pel<strong>as</strong> roup<strong>as</strong>, até af<strong>as</strong>tar porcompleto o frio que o tinha <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>.Por fim levantou a vista para examinar o jovem que com ele partilhavao compartimento; foi com surpresa que percebeu que o outro tambémo contemplava com atenção. Longe de se sentir desconfortável ao perceberque tinha si<strong>do</strong> descoberto numa evidente análise e de baixar a vista, ojovem continuou a estudá-lo de uma forma que Thom<strong>as</strong> considerou umtanto grosseira.— Conheço-vos? — perguntou.— Não.— E vós a mim, conheceis-me?— É a primeira vez que vos vejo. — A voz era culta, m<strong>as</strong> Thom<strong>as</strong> nãoconseguia perceber de onde era aquele sotaque. M<strong>as</strong> antes que pudessecontinuar a conversa, a porta junto ao jovem abriu-se e um escrivão dear frágil numa farda azul entrou no compartimento. Limpou a garganta eolhou para Thom<strong>as</strong>.— Sir Thom<strong>as</strong> Barrett?— Sim.— O amo vai receber-vos agora.— Já? Não era suposto falarmos antes d<strong>as</strong> seis.— Ele está agora à vossa espera, senhor.— Muito bem. — Thom<strong>as</strong> levantou-se <strong>do</strong> banco e deitou uma últimaolhadela ao jovem, que em resposta se limitou a inclinar ligeiramente a cabeça.71


A porta abria-se para um pequeno quarto com uma janela que davapara o pátio tr<strong>as</strong>eiro da c<strong>as</strong>a. Por baixo dessa abertura estavam uma mesa eum banco, ladea<strong>do</strong>s por baús repletos de <strong>do</strong>cumentos. O secretário adiantou-sea Thom<strong>as</strong> e bateu levemente a uma porta na outra extremidade <strong>do</strong>escritório. Depois de uma breve pausa, levou a mão ao ferrolho e abriu aporta, dan<strong>do</strong> um p<strong>as</strong>so para o interior.— Senhor, Sir Thom<strong>as</strong>.— Fá-lo entrar, por obséquio — respondeu uma voz profunda.O homem recuou e fez um gesto a Thom<strong>as</strong>, indican<strong>do</strong>-lhe que entr<strong>as</strong>se.O gabinete da c<strong>as</strong>a <strong>do</strong> secretário de Esta<strong>do</strong> era proporcional à importância<strong>do</strong> seu proprietário. A sala estendia-se <strong>do</strong> pátio d<strong>as</strong> tr<strong>as</strong>eir<strong>as</strong> até àrua principal, para onde davam uma série de janel<strong>as</strong> vidrad<strong>as</strong>. N<strong>as</strong> paredesalinhavam-se estantes replet<strong>as</strong>, mais livros <strong>do</strong> que Thom<strong>as</strong> alguma vezvira juntos. Calculou que deviam estar ali uns quatrocentos a quinhentosexemplares. Uma biblioteca privada verdadeiramente esplêndida, concluiucom inveja mal escondida. Havia du<strong>as</strong> lareir<strong>as</strong>, uma a cada ponta da sala, ecadeir<strong>as</strong> espalhad<strong>as</strong> entre <strong>as</strong> estantes, <strong>as</strong> suficientes para acolher uns trinta aquarenta convida<strong>do</strong>s. Entre <strong>as</strong> du<strong>as</strong> lareir<strong>as</strong> estava posicionada uma grandesecretária, sobre a qual se via um tabuleiro de madeira que acolhia umapilha de <strong>do</strong>cumentos. Ao seu la<strong>do</strong>, cuida<strong>do</strong>samente dispostos, estavam <strong>do</strong>istinteiros e um punha<strong>do</strong> de pen<strong>as</strong>. Por trás da mesa sentava-se um homemencorpa<strong>do</strong>, com uma veste de seda. O cabelo era apara<strong>do</strong> de forma precisaem torno <strong>do</strong> escalpe, e a barba formava uma ponta declarada sobre umprincípio de duplo queixo. Aparentava ser alguns anos mais novo <strong>do</strong> queThom<strong>as</strong>. No compartimento só estava outra pessoa, um homem magro ede vestes negr<strong>as</strong> que chegavam qu<strong>as</strong>e ao chão. Estava de pé junto a um <strong>do</strong>sfogos, a aquecer <strong>as</strong> cost<strong>as</strong>. Os <strong>do</strong>is olharam para Thom<strong>as</strong> rapidamente, atéque o homem por trás da secretária lhe dirigiu um gesto impaciente.— Vinde, Sir Thom<strong>as</strong>, sentai-vos. Aqui. — Indicou uma d<strong>as</strong> cadeir<strong>as</strong>acolchoad<strong>as</strong> dispost<strong>as</strong> em arco <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da secretária. — Vós também,meu bom Francis.Thom<strong>as</strong> fez o que lhe era indica<strong>do</strong> e escolheu para se sentar uma cadeirano meio da sala, de forma a que o outro tivesse de se sentar noutro ponto,longe da posição que implicitamente indicava maior importância. Depoisde se acomodarem, Sir Robert debruçou-se para a frente e fixou um olharimperturbável em Thom<strong>as</strong>. O semblante indicava alguma boa disposição, eo tom de voz era agradável.— Espero que a vossa jornada de hoje não vos tenha causa<strong>do</strong> incómo<strong>do</strong>?— Correu tu<strong>do</strong> bem, senhor. As estrad<strong>as</strong> são segur<strong>as</strong>, e a neve era ligeira.Andei bem e depressa.72


— Ao que vejo. Cheg<strong>as</strong>tes a Londres mais depressa <strong>do</strong> que eu esperava.Thom<strong>as</strong> sorriu levemente.— Alguém que é convoca<strong>do</strong> pelo secretário de Esta<strong>do</strong> não fica a desperdiçartempo com inutilidades, Sir Robert. E portanto cá estou, ao vossointeiro dispor.— De facto <strong>as</strong>sim é, e até me atrevo a dizer que a razão por que vosmandei chamar aqui ocupa o lugar principal <strong>do</strong>s vossos pensamentos.— Claro que sim.— Deixai-me então informar-vos de que a vossa presença neste localse deve ao caráter delica<strong>do</strong> da tarefa que tenho ideia de vos confiar. Apesarde a nossa abençoada soberana estar no trono há cinco anos, existem aindamuitos que veem a sua <strong>as</strong>censão ao trono com evidente má vontade, e nãoapen<strong>as</strong> devi<strong>do</strong> ao seu comprometimento com a religião protestante. Suponhoque o nome de John Knox vos seja familiar?— Já o ouvi, sim.— E sabeis sem dúvida como ele vocifera contra o próprio princípiode uma mulher poder <strong>as</strong>cender ao trono. Talvez tenhais até li<strong>do</strong> algum <strong>do</strong>spanfletos que ele lançou acerca disso.— Teria de ser muito tolo para o fazer, Sir Robert. Esses panfletos forambani<strong>do</strong>s. Se bem me lembro, ser encontra<strong>do</strong> na posse de um deles éuma ofensa capital.— Assim é. M<strong>as</strong> estais com certeza familiariza<strong>do</strong> com <strong>as</strong> su<strong>as</strong> teori<strong>as</strong>.— Já ouvi falar del<strong>as</strong>, sim — retorquiu Thom<strong>as</strong> com to<strong>do</strong> o cuida<strong>do</strong>,consciente de que o outro homem na sala o observava, sem dúvida parapoder testemunhar futuramente. — Embora não me recorde quem é que<strong>as</strong> mencionou, para falar com franqueza.— Naturalmente. — Sir Robert sorriu. — E de pouco serviria que euvos pression<strong>as</strong>se quanto a este <strong>as</strong>sunto, e ainda menos utilidade teria sujeitar-vosa algum sofrimento para reavivar essa memória quanto aos nomesenvolvi<strong>do</strong>s nessa conversa. — Gargalhou levemente, como que par<strong>as</strong>ublinhar a irrelevância <strong>do</strong> comentário, m<strong>as</strong> Thom<strong>as</strong> compreendeu perfeitamentea velada ameaça de o submeter a tortura. Estava completamenteà mercê daquele homem, fossem quais fossem <strong>as</strong> su<strong>as</strong> opiniões acerca deKnox ou de outro qualquer <strong>do</strong>s que se opunham à rainha Isabel. Comocatólico, enfrentava uma dupla ameaça. Devolveu o olhar de Sir Robert semdemonstrar qualquer emoção. Instalou-se um silêncio desconfortável, atéque Sir Robert se recostou levemente e ergueu <strong>as</strong> mãos, como se se lembr<strong>as</strong>sede alguma coisa.— Ah! Perdão, esqueço <strong>as</strong> minh<strong>as</strong> maneir<strong>as</strong>. Devia ter-vos apresenta<strong>do</strong>um ao outro. Sir Thom<strong>as</strong>, é com prazer que vos apresento Sir FrancisWalsingham, meu companheiro em muit<strong>as</strong> d<strong>as</strong> taref<strong>as</strong> que desempenho ao73


serviço da nossa soberana. Confio inteiramente nele, sem qualquer reserva— acrescentou, com ênf<strong>as</strong>e.Thom<strong>as</strong> virou-se para o outro e <strong>as</strong>sentiu, à laia de cumprimento.— Walsingham.O homem encarou-o e respondeu com frieza.— É um prazer conhecer-vos, Sir Thom<strong>as</strong>.— Tendes de per<strong>do</strong>ar Sir Francis — lançou o anfitrião, com nova gargalhada.— Não tem qualquer amor pela Igreja de Roma, e por vezes issoleva-o a esquecer a etiqueta. M<strong>as</strong> deixemo-nos de dançar à volta da questão.Sir Thom<strong>as</strong>, <strong>as</strong>seguro-vos que não foi para vos acusar de heresia quevos pedi que aqui viésseis. Tenho uma missão para vos confiar. Que serátambém uma oportunidade para servirdes a vossa soberana e o vosso país,e que poderá desfazer qualquer dúvida que possa existir quanto à vossalealdade para com eles.— Não vejo como pode a minha lealdade a qualquer um deles estar emdúvida — contrariou Thom<strong>as</strong>, tentan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>tar uma fórmula concilia<strong>do</strong>ra.— Evidentemente que não. O vosso coração é leal, e eu não vos teriaconvoca<strong>do</strong> se tivesse alguma dúvida, por menor que fosse. Aceitemos entãoesse facto. Concordais? — Lançou um olhar de aviso a Walsingham. Esteanuiu.— Muito bem. O que nos leva à primeira questão que gostaria de vospôr, Sir Thom<strong>as</strong>. Creio bem que há du<strong>as</strong> noites fostes visita<strong>do</strong> por um cavaleirofrancês, um membro da mui seleta Ordem <strong>do</strong>s Cavaleiros Hospitaláriosde S. João. — Virou-se para Walsingham. — É esse o título queempregam, não é?— Mais ou menos.Os olhos de Cecil fixaram-se em Thom<strong>as</strong>, e <strong>as</strong> rug<strong>as</strong> de bom humorque se espalhavam a partir <strong>do</strong>s cantos <strong>do</strong>s olhos alisaram-se, deixan<strong>do</strong> apen<strong>as</strong>um olhar frio e insensível.— Quereis ter a bondade de nos informar da razão por que um cavaleirofrancês com laços a uma ordem militar católica se deu ao trabalho deatravessar toda a Europa para vos visitar, Sir Thom<strong>as</strong>?74


10Portanto, e tal como suspeitara já, era a visita de Philippe de Nanterrea razão de ter si<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> ali, pensou Thom<strong>as</strong>. Durante vinte anosfizera tu<strong>do</strong> o que pudera para evitar atenção ou af<strong>as</strong>tar qualquer suspeita,e agora tu<strong>do</strong> se esfumara, graç<strong>as</strong> ao jovem cavaleiro e aos seus superioresem Malta. O sentimento que o inundava era mais de ressentimento que dereceio, e respondeu a Cecil sem desviar o olhar.— Veio trazer-me uma carta.— Uma carta? — inquiriu Walsingham. — Onde está?— Na minha c<strong>as</strong>a. No meu estúdio.— E o que dizia ela?— A carta era-me dirigida a mim, Sir Francis. Não vejo razão parapartilhar convosco o seu conteú<strong>do</strong>.— Não? — Walsingham sorriu pela primeira vez, os finos lábios a separarem-seligeiramente para revelar dentes bem alinha<strong>do</strong>s m<strong>as</strong> escureci<strong>do</strong>s.— Pergunto-me o que tendes a esconder.— Nada.— Então dizei-nos.Thom<strong>as</strong> rangeu os dentes e sentiu a primeira vaga de ira a correr-lhepel<strong>as</strong> vei<strong>as</strong> enquanto fitava Welsingham. O homem era provavelmente unsdez anos mais novo <strong>do</strong> que ele, e estava portanto fisicamente no seu auge,m<strong>as</strong> tinha p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong> tempo em Londres, e a palidez da sua compleiçãodenunciava falta de força e vigor. Thom<strong>as</strong> tinha perfeita consciênciade que, num combate, facilmente o faria em pedaços, e o mero pensamentodessa possibilidade fez despertar nele uma ânsia pela violência que haviamuito mantinha subjugada. Era porém aí que residia o verdadeiro perigo,pelo que se obrigou a af<strong>as</strong>tar a tentação. Fechou os olhos por alguns instantese acalmou a respiração. Nada tinha a ganhar com uma confrontaçãodaquele género.— A carta foi-me enviada por Sir Oliver Stokely, de Malta — começou.— Solicita-me que honre o juramento que prestei à Ordem e que regressepara participar na defesa da ilha contra a hoste que o sultão <strong>do</strong>s Turcos estáa formar para lançar contra Malta. É essa a substância da missiva.75


— Sir Oliver Stokely — repetiu Cecil, com um ligeiro sorriso. — Porac<strong>as</strong>o ainda é meu primo, embora distante. Éramos chega<strong>do</strong>s em crianç<strong>as</strong>,até que ele permitiu que a sua fé o af<strong>as</strong>t<strong>as</strong>se. Para longe, como a sua presençaem Malta ilustra de forma eloquente. M<strong>as</strong> estou a af<strong>as</strong>tar-me <strong>do</strong> nosso<strong>as</strong>sunto. Calculo que o vosso visitante vos tenha pedi<strong>do</strong> uma resposta, antesde prosseguir n<strong>as</strong> su<strong>as</strong> viagens.— Assim foi.— E o que lhe respondestes?— Aceitei.Cecil and Walsingham trocaram um rápi<strong>do</strong> olhar, e Thom<strong>as</strong> julgouperceber alguma desilusão ao saberem da resposta. O primeiro voltou aencará-lo.— Porque aceit<strong>as</strong>tes?— Fiz em tempos um juramento que é ainda váli<strong>do</strong>. O Grão-Mestreconvocou-me, devo responder ao apelo.— Considerais-vos ainda preso a um juramento feito há tantos anos?— Um homem vale o que vale a sua palavra — retorquiu Thom<strong>as</strong>. —Ainda <strong>as</strong>sim, é verdade que já p<strong>as</strong>sou muito tempo desde que partilhei comentusi<strong>as</strong>mo os objetivos e <strong>as</strong> crenç<strong>as</strong> da Ordem.— Discordais então da ideia de defender a Cristandade contra os Turcos?— Não. Acredito na autodefesa. Vivi o suficiente e vi o b<strong>as</strong>tante par<strong>as</strong>aber que só um tolo oferece a outra face. O que mais desejo é que a paztriunfe entre os homens d<strong>as</strong> divers<strong>as</strong> fés. O que nos deu a guerra contrao Islão, para além <strong>do</strong> sangue derrama<strong>do</strong>, <strong>do</strong> sofrimento e da destruição?Sabeis há quantos anos está a Ordem em guerra contra este inimigo? Hámais de cinco séculos. — Por momentos Thom<strong>as</strong> sentiu o peso de tantotempo devota<strong>do</strong> a alimentar o ódio e a violência mais irracional. Geraçãoapós geração banhada no sangue <strong>do</strong>s inocentes. Abanou lentamente a cabeça.— Preferiria que a luta termin<strong>as</strong>se e que pudesse existir paz entre aCristandade e o sultão.— Paz com o sultão? — Walsingham soltou uma risada áspera. — Algumavez se ouviu ideia mais absurda?Thom<strong>as</strong> olhou para ele.— Se tiver de matar de novo, não será em nome da religião.— Todavia, nada vos custou abraçar a vida de mercenário e matar pordinheiro ao longo de muitos anos — desdenhou Walsingham, e preparava-separa prosseguir quan<strong>do</strong> o seu superior levantou uma mão e o deteve.Cecil cruzou <strong>as</strong> mãos e contemplou Thom<strong>as</strong> com ar pensativo.— Um sentimento admirável, Sir Thom<strong>as</strong>, em boa verdade. Nummun<strong>do</strong> melhor, partilharia por certo d<strong>as</strong> voss<strong>as</strong> convicções. Porém, este76


mun<strong>do</strong> está repleto de peca<strong>do</strong>res que não pensam senão em ações malévol<strong>as</strong>,e tu<strong>do</strong> temos de fazer para lhes vedar tal curso de ação. O sultão é umdeles, e tem de ser deti<strong>do</strong>. O vosso antigo camarada, Sir Oliver, tem todaa razão quan<strong>do</strong> vos confia que a Ordem está em perigo, lá em Malta. Asnoss<strong>as</strong> fontes disseram-nos exatamente a mesma coisa.Os olhos de Thom<strong>as</strong> semicerraram-se.— Per<strong>do</strong>ar-me-eis, Sir Robert, m<strong>as</strong> como podeis saber o que Sir Oliverme escreveu?— Ah. — Uma expressão pesarosa tomou conta <strong>do</strong> semblante de Cecil.— Esperava devolver-vos isto daqui a mais algum tempo. — Pôs uma mãono interior d<strong>as</strong> vestes e extraiu uma folha de papel d<strong>obra</strong>da com um selofamiliar, já quebra<strong>do</strong>, e empurrou-a pela mesa na direção de Thom<strong>as</strong>. Estecontemplou a carta que recebera, sem esconder a surpresa.— Como é que isto vos veio parar às mãos?— Imaginais que poderíamos permitir a um solda<strong>do</strong> estrangeiro quese p<strong>as</strong>se<strong>as</strong>se livremente por toda a Inglaterra sem que nos <strong>as</strong>segurássemosde que to<strong>do</strong>s os seus movimentos seriam vigia<strong>do</strong>s?— Foi segui<strong>do</strong> até à minha c<strong>as</strong>a?— É claro.Só então Thom<strong>as</strong> se apercebeu de tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> implicações.— M<strong>as</strong> esta carta estava no meu estúdio esta manhã. Eu mesmo a coloqueilá, sobre a secretária. Estou certo disso.— Sim, <strong>as</strong>sim foi. M<strong>as</strong> um <strong>do</strong>s meus agentes fez uma pequena visita àc<strong>as</strong>a depois da vossa partida. Conseguiu persuadir um <strong>do</strong>s vossos servi<strong>do</strong>resa fazer um relato <strong>do</strong> que se tinha p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong>, e revistar o vosso escritório foicoisa de minutos. A carta foi encontrada e foi-me trazida de imediato. Eu eSir Francis lemo-la mais de du<strong>as</strong> hor<strong>as</strong> antes da vossa chegada.— E o vosso homem magoou algum <strong>do</strong>s meus servi<strong>do</strong>res para obteressa informação? — inquiriu Thom<strong>as</strong>, aparentemente calmo.— Tal não foi necessário. — Cecil sorriu. — Os vossos servi<strong>do</strong>res sãocatólicos, como vós. Foi muito simples, b<strong>as</strong>tou lembrar-lhes o destino queespera quem é acusa<strong>do</strong> de heresia, e que <strong>as</strong> prov<strong>as</strong> necessári<strong>as</strong> para acusarum servo são b<strong>as</strong>tante menos complex<strong>as</strong> <strong>do</strong> que no c<strong>as</strong>o de um homemcom o vosso estatuto, Sir Thom<strong>as</strong>.— Embora também ess<strong>as</strong> se possam encontrar — acrescentou Walsinghamem tom de ameaça.— Sir Francis, por favor, não há qualquer necessidade de proferir ameaç<strong>as</strong>contra o nosso ilustre convida<strong>do</strong>. — Cecil voltou-se de novo para Thom<strong>as</strong>.— Aqui está, a carta é vossa. Guardai-a, por favor. Lamento ter si<strong>do</strong>obriga<strong>do</strong> a lê-la, m<strong>as</strong> na minha posição sou força<strong>do</strong> a precaver qualquerameaça a Sua Majestade. Deveis compreendê-lo.77


— Perfeitamente — retorquiu Thom<strong>as</strong>, enquanto pegava na carta, seguran<strong>do</strong>-acom <strong>as</strong> pont<strong>as</strong> <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s como se estivesse conspurcada. — Nãohá qualquer comportamento baixo ou abuso da lei que não sejais capaz deusar para forçar <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> a submeterem-se à vossa vontade.Cecil encolheu os ombros sem hesitar.— Faço o que tem de ser feito.— E era realmente necessário roubar esta carta? Porque é que foi precisoperguntar-me o propósito da missão de Sir Philippe, se, graç<strong>as</strong> à leiturada mensagem, já estáveis ambos ao corrente de tu<strong>do</strong>?— Tínhamos de saber se diríeis a verdade. Se não nos esconderíeis algumacoisa. A verdade é que haveis p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> o teste.— Fico muito satisfeito — replicou Thom<strong>as</strong>, com azedume. — Pensoque é chega<strong>do</strong> o momento de me explicardes a tarefa que foi mencionada.Embora deveis estar cientes de que jamais vos auxiliarei a perseguir osmeus irmãos de fé aqui em Inglaterra.— Não esperaria outra coisa de um homem com a vossa integridade,Sir Thom<strong>as</strong>. Pois muito bem, vamos lá ao que importa. Como sabeis, osTurcos estão a preparar-se para desferir um poderoso golpe contra um <strong>do</strong>spilares da influência cristã no Mediterrâneo. Se conseguirem tomar Malta,seguir-se-á a Sicília. E depois a Itália, e a própria Roma. Se Roma cair, será otoque a fina<strong>do</strong>s da nossa fé, tanto protestante como católica. Solimão nuncaescondeu o seu objetivo de se tornar senhor <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> e de imporo Islão a to<strong>do</strong>s os seus súbditos. Escolheu uma excelente oc<strong>as</strong>ião paralançar <strong>as</strong> su<strong>as</strong> forç<strong>as</strong> contra nós. A Europa está dividida por guerr<strong>as</strong> e façõesreligios<strong>as</strong>. A Espanha e a França estão pres<strong>as</strong> às goel<strong>as</strong> uma da outra, e agrande armada que Veneza estava a pensar em enviar contra os Turcos foidesmantelada depois da cobarde aliança que firmaram com Solimão, paraproteger os seus interesses. Como vedes, os vossos irmãos da Ordem nãopodem esperar grande auxílio exterior quan<strong>do</strong> enfrentarem os Turcos. Sóa Espanha prometeu enviar <strong>as</strong> forç<strong>as</strong> que puder dispensar. — Cecil fez umapausa para dar maior ênf<strong>as</strong>e às su<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> seguintes. — Se concordardesem regressar a Malta, estareis na vanguarda <strong>do</strong> combate para salvar a Europa<strong>do</strong> infiel. Salvai Malta, e to<strong>do</strong>s seremos salvos.Thom<strong>as</strong> não resistiu a lançar um sorriso cínico.— Fui portanto aqui chama<strong>do</strong> para ser convenci<strong>do</strong> a juntar-me à lutacontra o Islão.— Sim, m<strong>as</strong> também há outro propósito. — Cecil recostou-se e designouWalsingham com um de<strong>do</strong>. — Sir Francis, explicai-lhe.O outro homem ordenou os pensamentos antes de começar.— Uma vez que haveis decidi<strong>do</strong> regressar a Malta, tereis a oportunidadede servir os interesses de Inglaterra de uma forma mais direta. Há pouco78


haveis critica<strong>do</strong> Sir Robert e a mim próprio acerca d<strong>as</strong> medid<strong>as</strong> que nosvemos obriga<strong>do</strong>s a tomar de forma a preservar a ordem no país.— Ordem é uma palavra — contrariou Thom<strong>as</strong>. — Uma outra palavrapara descrever a situação é tirania.— Seja como for, <strong>as</strong> noss<strong>as</strong> ações previnem a ocorrência de um muitomaior mal, nomeadamente uma guerra civil. Desde que o rei Henrique negoua supremacia da Igreja de Roma, o nosso país tem si<strong>do</strong> dilacera<strong>do</strong> pel<strong>as</strong>tensões entre católicos e protestantes. É um verdadeiro milagre que a situaçãoainda não tenha degenera<strong>do</strong> num conflito civil aberto. Não preciso devos lembrar <strong>do</strong>s horrores que têm ocorri<strong>do</strong> nos Países Baixos e em França.John Knott tem-nos descrito por escrito de forma bem clara.— Talvez não devêsseis dar crédito a tu<strong>do</strong> o que podeis ler no Livro <strong>do</strong>sMártires — avisou Thom<strong>as</strong>.— Pode ser — concor<strong>do</strong>u Cecil. — M<strong>as</strong> não podeis negar que ocorreramb<strong>as</strong>tantes atrocidades. Afinal, deveis tê-l<strong>as</strong> visto com os vossos própriosolhos quan<strong>do</strong> haveis servi<strong>do</strong> por ess<strong>as</strong> paragens. Aceitan<strong>do</strong> que háuma nota de sensacionalismo em Knott, há ainda <strong>as</strong>sim suficiente verdaden<strong>as</strong> su<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> para nos permitir pintar o quadro <strong>do</strong> que sucederia aquiem Inglaterra se <strong>as</strong> diferenç<strong>as</strong> religios<strong>as</strong> se exprimissem através da violência.O sangue correria n<strong>as</strong> ru<strong>as</strong> d<strong>as</strong> noss<strong>as</strong> cidades. Até agora isso não aconteceuporque os Protestantes se têm de mo<strong>do</strong> geral manti<strong>do</strong> uni<strong>do</strong>s na suaoposição ao catolicismo. M<strong>as</strong> o que ocorreria se surgisse uma divisão entreos nobres e a rainha? Tal facto daria ânimo aos Católicos, e pouco temposeria necessário para estarmos em guerra aberta.— Talvez — refletiu Thom<strong>as</strong>. — M<strong>as</strong> o que poderia provocar tamanhadivisão?Cecil trocou um olhar com Walsingham antes de retomar a palavra.— Há um <strong>do</strong>cumento na posse <strong>do</strong>s cavaleiros de Malta que, se algumdia for torna<strong>do</strong> público, poderá dilacerar este país. Os aristocrat<strong>as</strong>virar-se-iam contra a rainha, a plebe contra os aristocrat<strong>as</strong>, e depois to<strong>do</strong>slutariam contra to<strong>do</strong>s. É essa possibilidade que tentamos evitar.— Haveis dito que poderá dilacerar este país. Porquê, pergunto eu?Acho difícil de acreditar que um simples <strong>do</strong>cumento possa provocar tamanh<strong>as</strong>convulsões. Além disso, o que tem esse <strong>do</strong>cumento a ver comigo oucom a Ordem?— O conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento é conheci<strong>do</strong> apen<strong>as</strong> por um grupo restritode homens. E é bem melhor que <strong>as</strong>sim continue a ser. É um conhecimentoperigoso. Posso dizer-vos que estava na posse de um cavaleiro inglêsda Ordem, há cerca de dezoito anos. Ele morreu em Malta antes de conseguirlevar o <strong>do</strong>cumento ao que seria o seu destino último. Tanto quantosabemos, ainda se encontra em Malta. A vós, b<strong>as</strong>ta-vos saber que o <strong>do</strong>cu-79


mento existe e que deve ser recupera<strong>do</strong> e trazi<strong>do</strong> até mim ou, se tal não forde to<strong>do</strong> possível, destruí<strong>do</strong>.— O que me impedirá de o ler, se o encontrar?— Está sela<strong>do</strong>. Se o selo for quebra<strong>do</strong>, saberei que alguém o leu. Contu<strong>do</strong>,não será vossa a tarefa de o encontrar. Para isso, temos outra pessoa.Seguireis para Malta com um escudeiro. O homem em questão é o nossoagente. Uma vez que estará lá para vos servir, a sua presença não atrairáatenções dem<strong>as</strong>iad<strong>as</strong>. A missão que lhe cabe é encontrar o <strong>do</strong>cumento. Sealgum <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is sobreviver ao cerco turco, deverá regressar a Inglaterra como <strong>do</strong>cumento. Se Malta for tomada, será dever <strong>do</strong> último <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is a sobreviverdestruí-lo, para evitar que caia n<strong>as</strong> mãos <strong>do</strong> inimigo. Sir Thom<strong>as</strong>, nãovou tentar disfarçar o imenso perigo que esta missão envolve — concluiuCecil. — M<strong>as</strong> este jogo tem apost<strong>as</strong> muito alt<strong>as</strong>, e isto representa uma hipótesede servirdes o vosso país, a vossa fé, e de salvardes inúmer<strong>as</strong> vid<strong>as</strong>.Agora, calculo que tendes algum<strong>as</strong> questões a colocar-nos.— Tenho de facto, Sir Robert — ripostou Thom<strong>as</strong>. — Primeiro, se esse<strong>do</strong>cumento é <strong>as</strong>sim tão importante, porque é que nunca foi revelada a suaexistência? A Ordem responde apen<strong>as</strong> ao rei de Espanha. Não posso acreditarque Filipe não o tivesse usa<strong>do</strong> se pudesse <strong>as</strong>sim prejudicar os interessesda Inglaterra, como afirmais.— Bem pensa<strong>do</strong> — notou Cecil. — Temos de <strong>as</strong>sumir que o <strong>do</strong>cumentonão foi utiliza<strong>do</strong> dessa forma porque a Ordem ignora o que tem emmãos.— Como pode isso ser?— O <strong>do</strong>cumento deixou Inglaterra n<strong>as</strong> mãos de um cavaleiro, Sir Peterde Launcey.Thom<strong>as</strong> franziu o sobrolho.— Lembro-me dele. Um bom homem.— Era-o, de facto. Poucos anos depois de terdes deixa<strong>do</strong> Malta, Sir Peterrecebeu autorização para visitar a família em Inglaterra, uma vez queo seu pai estava à beira da morte. Pouco depois de regressar a Malta, caiuao mar <strong>do</strong> convés de uma galera, e afogou-se. O que não é conheci<strong>do</strong> éque o rei Henrique lhe tinha confia<strong>do</strong> este <strong>do</strong>cumento, para que Sir Petero mantivesse em segurança. Henrique estava <strong>do</strong>ente na altura, e não sabi<strong>as</strong>e sobreviveria. No c<strong>as</strong>o de recuperar, Sir Peter devia trazer-lhe de novoo <strong>do</strong>cumento. Se Henrique falecesse, como veio a suceder, Sir Peter devialevar o <strong>do</strong>cumento a Roma e apresentá-lo ao Papa. M<strong>as</strong> Sir Peter morreuem Malta, e Henrique faleceu qu<strong>as</strong>e ao mesmo tempo. Só um punha<strong>do</strong> <strong>do</strong>sseus mais próximos conselheiros sabia <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento, e só o revelaram sobcoação.— Quereis dizer, sob tortura.80


— Sim — admitiu Cecil, sem hesitação. — E o <strong>do</strong>cumento permaneceem Malta, onde Sir Peter o deve ter escondi<strong>do</strong>. Tereis de o encontrar, se forpossível. Ou melhor, o nosso agente fá-lo-á. Mais pergunt<strong>as</strong>, Sir Thom<strong>as</strong>?— Sim. Pareceis certo de que vou aceitar esta missão. Porque não heide eu recusá-la?— Porque sois um cavaleiro, deste reino como da Ordem de S. João, eisso dá-vos cert<strong>as</strong> obrigações. Sois um homem de honra e de princípios. Sevos é apresentada a oportunidade de evitar a catástrofe que ameaça o vossopaís, aproveitá-la-eis, a menos que me tenha equivoca<strong>do</strong> grandemente naavaliação <strong>do</strong> vosso caráter. Além disso, sois um católico, e viveis sujeito àsdecisões de uma rainha protestante e <strong>do</strong>s seus ministros, <strong>do</strong>s quais eu sou omais poderoso. Não preciso de vos lembrar a delicadeza da vossa situação.B<strong>as</strong>ta dizer que tendes a minha palavra de que vos protegerei depois decompletada a missão. Se recusardes…Thom<strong>as</strong> abanou a cabeça.— Não preciso de ameaç<strong>as</strong>.— Talvez não, m<strong>as</strong> é bom que tenhais consciência de que não tendesrealmente opção neste c<strong>as</strong>o. Isso poderá confortar-vos nos tempos difíceisque se aproximam.— Fico muito grato pela vossa solicitude — ripostou Thom<strong>as</strong> em tomaze<strong>do</strong>. — Tenho ainda mais uma questão. Quem é esse vosso agente, o talque p<strong>as</strong>sará a ser o meu escudeiro? Presumo que seja o homem que esperana antecâmara.Cecil sorriu.— Vejo portanto que já vos haveis encontra<strong>do</strong>. O jovem Richard é um<strong>do</strong>s meus melhores homens. Atribuo tal facto ao tê-lo recolhi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong>ficou órfão. Nunca conheceu os pais, pelo que a sua lealdade é toda paracomigo. É muito promissor, e este será o primeiro verdadeiro teste às su<strong>as</strong>capacidades. Fala francês, espanhol e italiano como um nativo, e é fluenteem maltês.— Porém, não é totalmente inglês — comentou Thom<strong>as</strong>. — Tem sotaque,e tem um certo ar latino.— É tão inglês como qualquer um de nós, e tenho completa confiançanele. Como tereis de ter também, se quiserdes levar esta missão até ao fim.— A confiança tem de ser ganha, Sir Robert. Não é um bem que poss<strong>as</strong>er da<strong>do</strong> sem mais.— Nesse c<strong>as</strong>o, será melhor que traveis conhecimento com Richard omais depressa possível. Sir Francis, ide buscá-lo.Os olhos de Walsingham faiscaram de irritação perante o tom perentório<strong>do</strong> seu superior, m<strong>as</strong> ainda <strong>as</strong>sim levantou-se de imediato e atravessoua sala. Thom<strong>as</strong> observou-lhe a forma furtiva e o movimento subtil que lhe81


fez lembrar um gato, uma comparação indicada para um homem que perseguiae matava <strong>as</strong> su<strong>as</strong> pres<strong>as</strong> sem traço de compaixão.Quan<strong>do</strong> Welsingham desapareceu para lá da porta, instalou-se umsilêncio que Thom<strong>as</strong> rompeu com voz calma, depois de se inclinar ligeiramentepara a frente.— Não tenho qualquer necessidade de um escudeiro. Seria melhorconfiar-me a mim apen<strong>as</strong> a resolução deste <strong>as</strong>sunto. Se vos der a minhapalavra de que vos devolverei o <strong>do</strong>cumento sem o ler, o vosso espião poderáficar por cá, longe <strong>do</strong> perigo.Havia um ar diverti<strong>do</strong> na cara de Cecil quan<strong>do</strong> abanou a cabeça.— Uma oferta galante, m<strong>as</strong> se é verdade que podeis não ter qualquernecessidade de um escudeiro, a minha de ter olhos e ouvi<strong>do</strong>s no terreno emquem possa confiar plenamente é bem real. Tereis de levar Richard convosco,e não se discutirá mais o <strong>as</strong>sunto.Antes que Thom<strong>as</strong> pudesse responder, ouviu-se o som de p<strong>as</strong>sos, e logoa seguir Walsingham entrou, segui<strong>do</strong> pelo jovem que Thom<strong>as</strong> vira antes.Aproximaram-se da mesa e Walsingham retomou o seu lugar, enquanto oagente de Cecil se mantinha de pé.— Richard, ao que sei, já te cruz<strong>as</strong>te com o nosso convida<strong>do</strong> — começouCecil.— Trocámos apen<strong>as</strong> breves palavr<strong>as</strong>, senhor.— Então é o momento para uma apresentação formal. Sir Thom<strong>as</strong>, eisRichard Hughes, o vosso novo escudeiro.Thom<strong>as</strong> levantou-se e avançou até junto <strong>do</strong> jovem, paran<strong>do</strong> à distânciade um braço para o analisar com verdadeira atenção pela primeira vez.Hughes ara alto e de ombros largos. O gibão estava-lhe à medida, e não tinhaquaisquer a<strong>do</strong>rnos desnecessários n<strong>as</strong> mang<strong>as</strong>, nem colarinho de rend<strong>as</strong>; ocabelo estava bem corta<strong>do</strong>, e livre <strong>do</strong>s óleos e pomad<strong>as</strong> que estavam em vogaentre os jovens de certa posição social em Londres. Thom<strong>as</strong> aprovou a austeridade,e olhou diretamente para os olhos <strong>do</strong> outro. O olhar foi enfrenta<strong>do</strong>sem qualquer temor, m<strong>as</strong> havia nele qualquer outra coisa além da audácia,sentiu Thom<strong>as</strong>. Uma frieza, um toque de ressentimento lá bem no fun<strong>do</strong>.— Sejam quais forem <strong>as</strong> tu<strong>as</strong> ordens, serás, antes de tu<strong>do</strong> o resto, o meuescudeiro. Compreendi<strong>do</strong>?— Sim, senhor.— Quan<strong>do</strong> te der uma ordem, cumpri-la-ás sem a questionar, como éde se esperar de um escudeiro.— Sim, senhor. Desde que não contrarie <strong>as</strong> instruções que recebi deSir Robert.— Pouca ideia tenho dess<strong>as</strong> instruções, m<strong>as</strong> se queremos convencer oscavaleiros da Ordem de que somos quem pretendemos ser, obedecer-me82


terá de se tornar a tua segunda natureza. Imagino que já tenh<strong>as</strong> si<strong>do</strong> instruí<strong>do</strong>quanto aos deveres de um escudeiro?— Sim, senhor.Thom<strong>as</strong> arregalou uma s<strong>obra</strong>ncelha.— A sério? E quan<strong>do</strong> é que Sir Robert te informou da tua missão, exatamente?O olhar <strong>do</strong> jovem fraquejou, e ele espreitou sobre o ombro de Thom<strong>as</strong>,procuran<strong>do</strong> o apoio <strong>do</strong> seu patrono. Cecil acenou.— Diz a verdade.— Há <strong>do</strong>is di<strong>as</strong>, senhor.— Estou a ver. E neste tempo tão curto aprendeste to<strong>do</strong>s os requerimentosda tua nova posição?— Recebi ensinamentos muito completos <strong>do</strong> escudeiro <strong>do</strong> campeãoda rainha, senhor. O resto posso aprender a caminho de Malta. Se me quiserdesinstruir.Thom<strong>as</strong> abanou a cabeça e virou-se para os outros.— É uma loucura usar este homem.— Contu<strong>do</strong>, ele acompanhar-vos-á — ripostou Walsingham com firmeza.— Treiná-lo-eis em tu<strong>do</strong> o que ele tem de saber e fazer. Começo aficar farto da vossa truculência. Não se desse o c<strong>as</strong>o de serdes a única pessoaque pode de facto servir os nossos propósitos, depressa encontraria melhoraposta. Ireis para Malta, e Richard será o vosso escudeiro. Este <strong>as</strong>sunto estáencerra<strong>do</strong>.A ira inflamou-se no coração de Thom<strong>as</strong>, e por momentos sentiu-setenta<strong>do</strong> a confrontar Walsingham e a recusar a missão, fossem quais fossem<strong>as</strong> consequênci<strong>as</strong>. A satisfação de frustrar os seus intentos, a possibilidadede o desafiar a defender pela espada a arrogância com que se expressavaqu<strong>as</strong>e foram dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong> para Thom<strong>as</strong>.— Ele já concor<strong>do</strong>u com o nosso pedi<strong>do</strong> — interveio Cecil. — Nãohá nada mais a dizer. Acalmai-vos, estamos to<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mesmo la<strong>do</strong>. Não hánecessidade de deixar triunfar a fúria. Tu<strong>do</strong> o que é necessário é que SirThom<strong>as</strong> trate <strong>do</strong>s seus <strong>as</strong>suntos e arranje quem possa administrar a suapropriedade a contento durante a sua ausência. A natureza da sua missão éde molde a não lhe exigir muito tempo na preparação da bagagem necessáriaà participação na campanha que se avizinha.— Quanto tempo tenho para me preparar?— Dois di<strong>as</strong>. — Sir Francis sorriu. — Há um galeão dinamarquês acarregar em Greenwich. Zarpa para Espanha daqui a <strong>do</strong>is di<strong>as</strong>. Seguirãoambos a bor<strong>do</strong> desse navio.— Boa sorte — acrescentou Cecil, e depois, com algum zelo: — QueDeus vos acompanhe…83


11Bilbau, EspanhaVéspera de Ano <strong>Novo</strong>, 1565Thom<strong>as</strong> ficou a olhar, mal conten<strong>do</strong> a frustração, enquanto o seu escudeirose envolvia numa discussão com o capitão <strong>do</strong> porto. Já se tinhamp<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> muitos anos desde que falara aquela língua pela última vez; mesmonessa altura o seu conhecimento dela fora b<strong>as</strong>tante incompleto, e agora nãoconseguia mais <strong>do</strong> que apanhar algum<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> trocad<strong>as</strong> entre Richarde o oficial, sem conseguir apreender o que quer que fosse <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> daconversa. E entretanto ali ficara de pé sobre <strong>as</strong> reluzentes pedr<strong>as</strong> <strong>do</strong> cais,enquanto a chuva fina e persistente lhe decorava a capa com gotícul<strong>as</strong> fri<strong>as</strong>.Tinham desembarca<strong>do</strong> <strong>do</strong> navio dinamarquês por volta <strong>do</strong> meio-dia, e deimediato tinham si<strong>do</strong> interpela<strong>do</strong>s por uma patrulha. O sargento que comandavao grupo de solda<strong>do</strong>s espanhóis tinha queri<strong>do</strong> saber qual o propósitodaquela viagem, e recusara-lhes autorização para se movimentarematé lhe ser apresentada <strong>do</strong>cumentação que prov<strong>as</strong>se que Sir Thom<strong>as</strong> tinhap<strong>as</strong>sagem livre pelo território espanhol. À carta de Sir Oliver pouca consideraçãotinha si<strong>do</strong> dada, e fora envia<strong>do</strong> um homem para chamar o capitão<strong>do</strong> porto.Thom<strong>as</strong>, Richard e os solda<strong>do</strong>s que compunham a patrulha tinham-sevisto força<strong>do</strong>s a esperar ali, no meio <strong>do</strong> rebuliço <strong>do</strong> cais, enquanto n<strong>as</strong> su<strong>as</strong>cost<strong>as</strong> os barcos de pesca e os cargueiros dançavam ao sabor da ondulaçãocinzenta que entrava pelo porto, vinda <strong>do</strong> Golfo da Biscaia. Ao fim de algumtempo, o sargento tinha decidi<strong>do</strong> recolher-se numa taberna próxima,deixan<strong>do</strong> ordens para que os <strong>do</strong>is ingleses fossem manti<strong>do</strong>s sob vigilância,e para que ninguém saísse dali até se saber qual a decisão <strong>do</strong> capitão <strong>do</strong> porto.E <strong>as</strong>sim o grupo tinha-se resigna<strong>do</strong> a ficar à espera, Thom<strong>as</strong> e o escudeirosenta<strong>do</strong>s sobre os seus sacos de viagem e embrulha<strong>do</strong>s nos seus mantos,enquanto os solda<strong>do</strong>s espanhóis se apoiavam nos postes de atracação e achuva escorria sem cessar d<strong>as</strong> bord<strong>as</strong> <strong>do</strong>s seus capacetes pratea<strong>do</strong>s.Era inverno, e a atividade no porto era reduzida, pelo que a carga deartigos em vidro da Dinamarca e lã de Londres tinha si<strong>do</strong> rapidamente descarregadae levada para um armazém, antes de a tripulação se ter retira<strong>do</strong>para a coberta e para o relativo conforto d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> redes de <strong>do</strong>rmir. No caistu<strong>do</strong> se mostrava tranquilo, à exceção <strong>do</strong> som da chuva e <strong>do</strong> <strong>as</strong>sobio <strong>do</strong>84


vento que se levantava em rajad<strong>as</strong>. Alguns <strong>do</strong>s habitantes locais p<strong>as</strong>savam,deitan<strong>do</strong> olhares desconfia<strong>do</strong>s aos <strong>do</strong>is ingleses sob vigilância. Por seu la<strong>do</strong>,Thom<strong>as</strong> sentia-se bem feliz por estar de novo em terra firme. Nos anos quep<strong>as</strong>sara embarca<strong>do</strong> ao serviço da Ordem raramente tinha navega<strong>do</strong> empleno inverno, e nunca em águ<strong>as</strong> tão expost<strong>as</strong> à fúria própria da estação noOceano Atlântico.O galeão dinamarquês tinha deixa<strong>do</strong> a foz <strong>do</strong> Tamisa e atravessara oCanal da Mancha antes de seguir ao longo da costa francesa. Uma violentatempestade tinha-os empurra<strong>do</strong> para o mar alto, e nos cinco di<strong>as</strong> seguintespouco descanso houvera para a tripulação, que combatera o mar alteroso,ten<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> muito velame e madeir<strong>as</strong> na luta. A água gelada corria livrementepelo convés, empapan<strong>do</strong> <strong>as</strong> roup<strong>as</strong>, enquanto o navio estremecia erangia com o impacto de cada onda, empinan<strong>do</strong>-se e mergulhan<strong>do</strong> entreel<strong>as</strong>. O enjoo que sofrera fora o pior de que se recordava, e depois de ele eos outros p<strong>as</strong>sageiros — Richard e três padres que regressavam a Espanha,vin<strong>do</strong>s de Amesterdão — terem deita<strong>do</strong> fora os últimos pedaços sóli<strong>do</strong>sque os seus estômagos continham, tinham-se recolhi<strong>do</strong> à pequena cabinaque partilhavam. Thom<strong>as</strong> sentara-se com <strong>as</strong> cost<strong>as</strong> apoiad<strong>as</strong> numa d<strong>as</strong> espess<strong>as</strong>vig<strong>as</strong> e pusera os braços em torno <strong>do</strong>s joelhos para tentar aquecer-se.Richard fizera o mesmo, com a cabeça baixa, enquanto os padres tinhampega<strong>do</strong> nos terços e tinham-se posto a rezar, até <strong>as</strong> vozes lhes falharem e sevirem reduzi<strong>do</strong>s a pouco mais <strong>do</strong> que preces murmurad<strong>as</strong>, pedin<strong>do</strong> misericórdiaao Senhor.Fora nesse momento de maior vulnerabilidade que Thom<strong>as</strong> procederaa uma cuidada apreciação <strong>do</strong> seu companheiro, observan<strong>do</strong>-o comtoda a atenção enquanto ele se mantinha imóvel, de cabeça entre os braços.Apesar da juventude, que não devia ultrap<strong>as</strong>sar os vinte anos, pelo cálculode Thom<strong>as</strong>, parecia ostentar uma maturidade, uma evidente presença deespírito, que o levava a observar com atenção o que o rodeava e <strong>as</strong> gentesque com ele contactavam. Até ali pouco dissera a Thom<strong>as</strong>, para lá <strong>do</strong> absolutamentenecessário e próprio de gente educada. Só quan<strong>do</strong> o galeãoenfrentara <strong>as</strong> revolt<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> <strong>do</strong> Canal é que a máscara de imp<strong>as</strong>sibilidadeescorregara por um momento. Estavam no convés quan<strong>do</strong> uma vaga rebentar<strong>as</strong>obre a proa. Richard, apanha<strong>do</strong> de surpresa, vira-se derruba<strong>do</strong>e arr<strong>as</strong>ta<strong>do</strong>. Enquanto era leva<strong>do</strong> pela água ao longo <strong>do</strong> convés, tinha lança<strong>do</strong>um grito de alarme, e olhara para Thom<strong>as</strong> com um apelo mu<strong>do</strong> m<strong>as</strong>instintivo por auxílio. Thom<strong>as</strong> firmara-se, de pern<strong>as</strong> bem abert<strong>as</strong> para seequilibrar e uma mão bem agarrada a uma antepara, e com a outra mãoconseguira alcançar a mão <strong>do</strong> jovem e levantara-o <strong>do</strong> convés. Uma ondaque vinha na esteira da grande vaga fizera-os tropeçar e juntar-se como sefossem <strong>do</strong>is amigos num abraço. Richard respondera com um movimento85


ápi<strong>do</strong> que o af<strong>as</strong>tara, enquanto o semblante regressava à frieza habitual,os olhos escuros a semicerrarem-se enquanto acenava em gratidão, antesde descer à cabina para trocar <strong>as</strong> roup<strong>as</strong> encharcad<strong>as</strong>. Fora um momentoínfimo, m<strong>as</strong> tinha revela<strong>do</strong> um <strong>as</strong>peto mais humano <strong>do</strong> seu caráter, e naaltura Thom<strong>as</strong> não evitara um sorriso perante a vergonha <strong>do</strong> seu escudeiroao mostrar-se vulnerável.Assim que a tempestade amainara, o capitão rumara a terra, e tinhamaporta<strong>do</strong> em La Rochelle para reparações e descanso antes de prosseguiremviagem. O galeão retomara o curso ao longo da costa da Biscaia, e cruzaraa fronteira marítima entre França e Espanha num dia de Natal triste ecinzento. A intenção de Thom<strong>as</strong> era desembarcar em San Seb<strong>as</strong>tián, m<strong>as</strong> oporto estava cerca<strong>do</strong> pelos franceses, e o capitão tinha resolvi<strong>do</strong> seguir paraBilbau, apesar <strong>do</strong>s protestos <strong>do</strong>s padres, que tinham exigi<strong>do</strong> desembarcarali mesmo.Enquanto Thom<strong>as</strong> permanecia senta<strong>do</strong> no cais, a remoer os acontecimentosrecentes, o solda<strong>do</strong> regressou finalmente com o capitão <strong>do</strong> porto,que se lançou numa longa tirada <strong>as</strong>sim que Richard tentou explicar o propósitoda viagem <strong>do</strong>s ingleses. Entretanto, o sargento saiu discretamente databerna e juntou-se de novo aos seus homens, antes que fosse notada a suaausência. Thom<strong>as</strong> escutou a furiosa troca de palavr<strong>as</strong> durante mais algunsminutos, até que se fartou e se pôs de pé, ainda que a custo. O corpo já nãoera um instrumento bem afina<strong>do</strong>, e já não lhe respondia com a mesma vontade.Os músculos tremiam de frio e de humidade e estavam pesa<strong>do</strong>s enquantoavançava para se interpor entre os <strong>do</strong>is homens presos na discussão.— Qual é o problema com este nosso amigo?Richard só então reparou na sua aproximação.— Diz ele que to<strong>do</strong>s os portos de Espanha estão fecha<strong>do</strong>s a viajantesprovenientes de Inglaterra, por ordem <strong>do</strong> rei Filipe, em represália pela continuadaperseguição aos Católicos levada a cabo pela rainha.— A sério? Diz-lhe que eu próprio sou um católico.Richard traduziu, m<strong>as</strong> o outro ripostou de forma curta enquanto empinavao nariz.— Diz ele que ainda <strong>as</strong>sim sois um inglês.— É bem verdade, m<strong>as</strong> não é c<strong>as</strong>o para pedir desculpa. Diz-lhe que éele que nos deve desculp<strong>as</strong> por nos deter aqui desta forma.Richard hesitou.— Senhor, é suposto que tentemos p<strong>as</strong>sar por Espanha da forma maisdiscreta possível.— Discrição é uma coisa, humilhação é outra, muito diferente. Souum cavaleiro inglês, e viajo ao serviço da Ordem de S. João, para defendera Cristandade contra o Turco. Se este homem me nega a p<strong>as</strong>sagem, terá de86


esponder não apen<strong>as</strong> ao seu rei, m<strong>as</strong> também ao Deus que é dele e meu.— Enfiou a mão no interior <strong>do</strong> manto e extraiu o estojo de couro em quelevava a carta de Sir Oliver. Tirou-a e mostrou-a ao capitão <strong>do</strong> porto. — Eiso selo da Ordem, nesta carta que me convoca para a batalha. Diz-lhe.Richard anuiu e dirigiu-se ao oficial espanhol. A expressão deste alterou-seao inclinar-se para inspecionar o selo. Alarma<strong>do</strong>, af<strong>as</strong>tou o <strong>do</strong>cumentocom um gesto e começou a falar com irritação. Dobrou o pescoço nadireção de Thom<strong>as</strong>, lançou um aceno a Richard e virou-se para dar ordensao sargento que comandava a patrulha, antes de se af<strong>as</strong>tar para o interiorda cidade.Thom<strong>as</strong> recolheu a carta e guar<strong>do</strong>u-a cuida<strong>do</strong>samente, antes de voltara falar.— Então?— Disse que podíamos ficar aquartela<strong>do</strong>s nos aposentos <strong>do</strong>s oficiaisda alfândega. O sargento levar-nos-á lá. Disse ainda que nos vai prepararsalvo-condutos para atravessar a Espanha até Barcelona. É lá que está a serpreparada uma frota para ir combater os Turcos, sob <strong>as</strong> ordens de Don Garciade Tole<strong>do</strong>. Além disso, fornecer-nos-á <strong>do</strong>is cavalos para a viagem.Thom<strong>as</strong> lambeu os lábios, encanta<strong>do</strong> com <strong>as</strong> notíci<strong>as</strong>.— É fantástico o que pode ser consegui<strong>do</strong> de um destes oficiais subalternoscom a ameaça de uma pequena vingança divina.Os cantos da boca <strong>do</strong> escudeiro curvaram-se num sorriso breve.— Bem, confesso que enfeitei a história mais um bocadinho.— Oh?— Disse-lhe que a carta estava também <strong>as</strong>sinada pelo vice-rei da Catalunha.Foi a vez de Thom<strong>as</strong> sorrir.— Ah, foi portanto a autoridade terrena e não a divina que o fez mudarde idei<strong>as</strong>.— Como é frequente acontecer com oficiais subalternos.Entretanto, o sargento chamava-os e dava ordens a <strong>do</strong>is homens parapegarem n<strong>as</strong> bagagens. Por fim deixaram o cais varri<strong>do</strong> pela chuva e começarama subir uma rua estreita para o interior da cidade.O edifício da alfândega era quadra<strong>do</strong>; no piso térreo situavam-se os escritóriosaonde os merca<strong>do</strong>res levavam os seus manifestos de carga e pagavam<strong>as</strong> tax<strong>as</strong> correspondentes. Poucos navios se aventuravam no oceanodurante o inverno, pelo que o único funcionário já tinha encerra<strong>do</strong>o expediente e se dedicava à limpeza d<strong>as</strong> pen<strong>as</strong> de escrita com um trapovelho quan<strong>do</strong> chegaram os <strong>do</strong>is ingleses. Foram conduzi<strong>do</strong>s ao andar decima, a um quarto modesto com quatro cam<strong>as</strong> simples, algum<strong>as</strong> cadeir<strong>as</strong>87


e uma pequena lareira ladeada por uma pilha de combustível. O homemlevou-lhes uma candeia e algum pão e queijo, além de um jarro de vinho,antes de lhes desejar uma boa noite. Ouviram a porta <strong>do</strong> edifício a serfechada e aferrolhada.— E pronto, cá estamos. — Thom<strong>as</strong> soltou um suspiro enquanto p<strong>as</strong>seavao olhar pelo quarto. — Fico na cama mais próxima da lareira.— Como desejardes.Agora que estavam a sós, Thom<strong>as</strong> reparou que o seu companheiro tinhadeixa<strong>do</strong> de empregar a deferência que um escudeiro devia ao seu cavaleiro.— Podes acender o fogo antes de comermos. Temos de nos aquecer esecar <strong>as</strong> roup<strong>as</strong>.Richard fez uma careta, m<strong>as</strong> antes que ele abrisse a boca, Thom<strong>as</strong> levantouum de<strong>do</strong> num aviso claro.— Sei muito bem o que estás a pensar.— Nesse c<strong>as</strong>o, porque não mo dizeis?— Foste envia<strong>do</strong> numa missão a man<strong>do</strong> de Sir Robert Cecil, e não par<strong>as</strong>er realmente o meu escudeiro, e começ<strong>as</strong> a ficar farto disso.— Gostava de saber porque me sentiria <strong>as</strong>sim? Afinal, sou um homemeduca<strong>do</strong>. Estudei em Cambridge, falo vári<strong>as</strong> língu<strong>as</strong>, desempenhei vári<strong>as</strong>missões valios<strong>as</strong> para o secretário de Esta<strong>do</strong>. E tu<strong>do</strong> isso me preparou perfeitamentepara ser o capacho de um cavaleiro que há muito já p<strong>as</strong>sou o seuapogeu. — Fez uma pausa e rangeu os dentes, antes de concluir de formaapologética. — Peço o vosso perdão, estou gela<strong>do</strong>, e exausto. Falei sem pensar.Thom<strong>as</strong> riu e abanou a cabeça, <strong>as</strong>sombra<strong>do</strong>.— Foi o mais longo discurso que me dirigiste desde que deixámos Inglaterra.Dever<strong>as</strong>.Richard encolheu os ombros, abriu o fecho da capa e deixou-a cair nochão, ensopada.— Bem, é bom saber um pouco da tua história — prosseguiu Thom<strong>as</strong>em tom diverti<strong>do</strong>. — E que ach<strong>as</strong> que os meus melhores anos já estão nop<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> distante.— Peço desculpa.— Não é necessário. Tens razão, já não sou o guerreiro que fui na juventude.M<strong>as</strong> garanto-te que quan<strong>do</strong> tinha a tua idade, o meu corpo estavatão tonifica<strong>do</strong> como o teu. Talvez mais ainda. Se calhar até hoje, quem sabe?O jovem tinha removi<strong>do</strong> a veste de couro e tira<strong>do</strong> a camisa de lã antesde olhar para Thom<strong>as</strong> com uma expressão divertida.— Quereis experimentar a vossa força contra a minha?— Ach<strong>as</strong> que tenho algum receio de o fazer?88


— Não. Do que sei de vós, Sir Thom<strong>as</strong>, concluo que não. M<strong>as</strong> pensotambém que tal desafio seria imprudente da vossa parte.Thom<strong>as</strong> franziu uma s<strong>obra</strong>ncelha, m<strong>as</strong> manteve-se cala<strong>do</strong> enquantoremovia também <strong>as</strong> vestes encharcad<strong>as</strong>, até ficar de pé só em bot<strong>as</strong> e calções,e revelar o poderoso torso que ainda possuía. As marc<strong>as</strong> branc<strong>as</strong> eretorcid<strong>as</strong> na pele denunciavam antig<strong>as</strong> cicatrizes e eram claramente visíveisao brilho páli<strong>do</strong> da candeia; notou que Richard o contemplava comcuriosidade, antes de desviar o olhar, embaraça<strong>do</strong>.— Eu vou acender a lareira — anunciou Thom<strong>as</strong>. — Está ali outra candeia.Pega nela e vai ver se descobres mais cobertores por aí. Quero p<strong>as</strong>saruma última noite bem aqueci<strong>do</strong> antes de seguirmos viagem.Richard <strong>as</strong>sentiu. Aproveitou uma palha tirada de um <strong>do</strong>s colchõespara fazer uma acendalha e deu lume ao pavio da candeia antes de sair <strong>do</strong>quarto. A sós, Thom<strong>as</strong> agachou-se lentamente no chão ao la<strong>do</strong> da lareira.A pele húmida parecia ainda mais fria naquele ar gela<strong>do</strong>, e ele estremeceuenquanto preparava uma acendalha de pequenos paus sobre uma cama depalha, a que aplicou a chama. O fogo pegou de imediato e ele debruçou-se,sopran<strong>do</strong> gentilmente para ajudar a chama a crescer. Daí a pouco já se ouviao <strong>as</strong>sobio e o crepitar d<strong>as</strong> cham<strong>as</strong> que rodeavam o material na lareira.Quan<strong>do</strong> Richard regressou, já o quarto era ilumina<strong>do</strong> com o tom rosa<strong>do</strong> <strong>do</strong>fogo bem desenvolvi<strong>do</strong>, e <strong>as</strong> sombr<strong>as</strong> dançavam n<strong>as</strong> paredes.— Cá estão. — Richard trazia ao peito alguns cobertores, e p<strong>as</strong>sou-lheum. — Encontrei-os num armário. Almofad<strong>as</strong> também, se vos forem necessári<strong>as</strong>.— P<strong>as</strong>so bem sem el<strong>as</strong>. — Thom<strong>as</strong> acenou um agradecimento e pegouna manta, desd<strong>obra</strong>n<strong>do</strong>-a rapidamente e lançan<strong>do</strong>-a sobre os ombros, antesde colocar mais alguma lenha na lareira.Richard pegou também numa manta e sentou-se na borda da camaque Thom<strong>as</strong> escolhera, debruçan<strong>do</strong>-se ligeiramente para melhor receber ocalor <strong>do</strong> fogo. O silêncio instalou-se, até que ele decidiu falar.— Ess<strong>as</strong> cicatrizes. Foi ao serviço da Ordem que <strong>as</strong> conseguistes?— Algum<strong>as</strong>. Outr<strong>as</strong> foram obtid<strong>as</strong> noutr<strong>as</strong> paragens. — Thom<strong>as</strong>recostou-se de forma a ficar de frente para o jovem. Tocou no ombroesquer<strong>do</strong>. — Uma seta acertou-me aqui, na Flandres. Foi só músculo,m<strong>as</strong> sangrei como um porco, se bem me lembro. — Moveu a mão para opeito esquer<strong>do</strong>. — Aqui foi um golpe de adaga, profun<strong>do</strong>. Esta foi numaexpedição ao porto de Argel. La Valette não queria que <strong>as</strong> armadur<strong>as</strong> nosdificult<strong>as</strong>sem os movimentos. Houve uma escaramuça a bor<strong>do</strong> de um galeãoque atacámos, e um corsário saltou d<strong>as</strong> sombr<strong>as</strong> à minha frente edesferiu o golpe. A segunda estocada teria acaba<strong>do</strong> comigo, m<strong>as</strong> o capitãointerpôs-se e liqui<strong>do</strong>u-o. — Thom<strong>as</strong> olhou para o fogo, a testa franzida ao89


elembrar aquel<strong>as</strong> cen<strong>as</strong>. Mostrou o cotovelo esquer<strong>do</strong>. — Esta foi de umaqueimadura, quan<strong>do</strong> atacámos um forte de corsários ao pé de Tripoli. Oinimigo estava a empregar uns potes incendiários. Um rebentou na muralha,ao la<strong>do</strong> da escada por onde eu estava a trepar, e a nafta a arder p<strong>as</strong>soupela cota de malha e pelo gibão, e chegou-me à pele. — Estremeceuao lembrar a terrível e intensa <strong>do</strong>r que tinha suporta<strong>do</strong> durante a longanoite que durara o <strong>as</strong>salto ao forte.— E essa aí na vossa testa? — indagou Richard, em voz baixa.— Isto? — Thom<strong>as</strong> ergueu a mão e seguiu a fina cicatriz desenhadaalguns centímetros abaixo <strong>do</strong> cabelo. Manteve-se em silêncio por instantes,enquanto p<strong>as</strong>seava o de<strong>do</strong> para trás e para a frente, e Richard olhou-o, expectante,os olhos a rebrilhar com o reflexo <strong>do</strong> fogo que aquecia o quarto.Thom<strong>as</strong> pigarreou. — Esta, arranjei-a quan<strong>do</strong> escorreguei no chão gela<strong>do</strong> ebati com a cabeça na porta de uma estalagem.O queixo de Richard descaiu e o jovem acabou por soltar sonor<strong>as</strong> gargalhad<strong>as</strong>a que Thom<strong>as</strong> se juntou, enchen<strong>do</strong> o quarto de boa disposição.O riso prosseguiu para lá <strong>do</strong> que seria de esperar, traduzin<strong>do</strong> o amainarda tensão entre os <strong>do</strong>is homens, pela primeira vez desde que se tinhamencontra<strong>do</strong>. Por fim, enquanto o riso esmorecia, Richard pareceu rec<strong>obra</strong>ra noção da situação; levantou-se, pegou em du<strong>as</strong> cadeir<strong>as</strong> que levou parajunto <strong>do</strong> fogo e pendurou <strong>as</strong> roup<strong>as</strong> a secar; hesitou um momento, m<strong>as</strong>acabou por fazer o mesmo com a capa, c<strong>as</strong>aco e camisa de Thom<strong>as</strong>. Entretanto,Thom<strong>as</strong> pegara na pequena faca que levava sempre no cinto por trásd<strong>as</strong> cost<strong>as</strong> e cortava o pão em nacos e o queijo em fati<strong>as</strong>, oferecen<strong>do</strong> metadea Richard.— Obriga<strong>do</strong>. — O jovem levantou-se e apontou para a cama. — Creioque esta é a vossa.Thom<strong>as</strong> abanou a cabeça.— Podes ficar com ela. — Deu uma palmada no colchão onde se sentara.— Isto serve muito bem.Richard sentou-se e começaram a comer. Em muit<strong>as</strong> seman<strong>as</strong>, era aprimeira refeição que não incluía o sabor a maresia e que não era estragadapelo balançar enjoativo <strong>do</strong> galeão a avançar lentamente pel<strong>as</strong> ond<strong>as</strong> escur<strong>as</strong>debaixo de um céu cinzento. Em consequência, e apesar de não p<strong>as</strong>sar depão e queijo, o sabor parecia-lhe inigualável, e ao sentir o corpo aqueci<strong>do</strong>e o estômago cheio, Thom<strong>as</strong> não pôde deixar de se sentir satisfeito. Issodevia-se também à perspetiva de algum companheirismo onde antes nadamais existira <strong>do</strong> que uma tolerância azeda, entre ele e Richard. Thom<strong>as</strong>queria saber mais sobre o agente de Cecil, em parte porque queria descobrirtu<strong>do</strong> o que pudesse sobre o <strong>do</strong>cumento e a natureza precisa d<strong>as</strong> ordens queRichard recebera, m<strong>as</strong> também por simples curiosidade e um desejo de co-90


nhecer melhor o jovem. Sabia bem, porém, que querer saber tu<strong>do</strong> dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong>depressa poderia levar Richard a erguer de novo <strong>as</strong> su<strong>as</strong> defes<strong>as</strong>. Pegouno jarro de vinho e encheu uma taça para cada um. P<strong>as</strong>sou-a a Richard. Asroup<strong>as</strong> começavam a fumegar, enchen<strong>do</strong> o quarto de um aroma salga<strong>do</strong>.— Foste bem escolhi<strong>do</strong> para esta missão — considerou Thom<strong>as</strong>. — Sefalares tão bem <strong>as</strong> outr<strong>as</strong> língu<strong>as</strong> como fal<strong>as</strong> espanhol, serás por certo muitoútil.Richard lançou um sorriso.— Útil? Talvez um homem da minha condição social devesse consideraressa observação como um elogio.Thom<strong>as</strong> sentiu-se tenta<strong>do</strong> a lançar algum<strong>as</strong> pergunt<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> havia navoz <strong>do</strong> jovem um traço de cólera e de vergonha, e decidiu não insistir naquelemomento.— Desempenh<strong>as</strong>te bem o teu papel — prosseguiu Thom<strong>as</strong>. — M<strong>as</strong>teremos de ser tão bons como os melhores atores de Londres se quisermosconvencer os outros membros da Ordem quan<strong>do</strong> chegarmos a Malta.Não b<strong>as</strong>ta que te comportes como um escudeiro. Tens de começar a pensarcomo um. Tens de fazer o que te pedir sem hesitar e sem mostrar aqueleressentimento que por vezes deix<strong>as</strong> transparecer. Terás de tratar de mantera minha armadura, equipamento e roup<strong>as</strong> limpos. Terás de mostrar a cortesiadevida a quem encontrares, seja qual for a sua cl<strong>as</strong>se social. Terás de teportar em to<strong>do</strong>s os momentos como um cavalheiro que <strong>as</strong>pira a tornar-seum cavaleiro. E não um qualquer cavaleiro, m<strong>as</strong> um membro da Ordem. Seconseguires fazer isso, p<strong>as</strong>sarás facilmente por escudeiro.A expressão de Richard tornou-se amarga.— Nesse c<strong>as</strong>o, terei de p<strong>as</strong>sar por aquilo que nunca serei, muito menosum cavaleiro.— Porquê essa ideia?— A nobreza é um estatuto reserva<strong>do</strong> aos que nada têm a sujar-lheso p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong>. De pouco serve o valor de um homem se há no seu nome umanó<strong>do</strong>a que nada pode apagar.— M<strong>as</strong> tu és de n<strong>as</strong>cimento nobre — retorquiu Thom<strong>as</strong>. — Isso é bemevidente. És tanto um cavalheiro como eu, vejo-o claramente.— Exceto pelo facto de eu ter n<strong>as</strong>ci<strong>do</strong> <strong>do</strong> la<strong>do</strong> erra<strong>do</strong> da rua, Sir Thom<strong>as</strong>.E isso é algo que ninguém poderá alguma vez alterar. Sou um b<strong>as</strong>tar<strong>do</strong>,reconheci<strong>do</strong> por quem me educou. Foi por isso que escolhi esta vida. Eagora, se me per<strong>do</strong>ais, estou cansa<strong>do</strong> e gostaria de <strong>do</strong>rmir bem antes da jornadaque começaremos amanhã. — Esvaziou a taça e deitou-se, viran<strong>do</strong>-sede la<strong>do</strong>, de forma a oferecer <strong>as</strong> cost<strong>as</strong> a Thom<strong>as</strong> e ao lume.Thom<strong>as</strong> deixou-se ficar a contemplá-lo por algum tempo, tentan<strong>do</strong>imaginar <strong>as</strong> origens <strong>do</strong> jovem. Como seria carregar o peso de um tal es-91


tigma num mun<strong>do</strong> em que detalhes desse género tanta importância <strong>as</strong>sumiam,apesar da evidente malvadez e imoralidade de tantos que se intitulavamde nobres? O jovem tinha de facto bo<strong>as</strong> razões para o azedumeque mostrava. A natureza tinha-o prenda<strong>do</strong> com uma mente brilhante, umcorpo esbelto e uma constituição sólida. A sociedade, por seu turno, amaldiçoara-ocom uma etiqueta que o prejudicaria até ao dia em que morresse.Por momentos, Thom<strong>as</strong> viu-se a sentir pena <strong>do</strong> seu companheiro, m<strong>as</strong>deteve-se. Não havia qualquer necessidade de aumentar <strong>as</strong> dificuldades deRichard mostran<strong>do</strong>-lhe um sentimento tão desprezível.Suspirou e deitou mais alguma lenha no lume. Virou <strong>as</strong> roup<strong>as</strong> quesecavam sobre <strong>as</strong> cadeir<strong>as</strong>, colocou <strong>as</strong> bot<strong>as</strong> ao seu la<strong>do</strong> e subiu para a cama,onde se deixou ficar de cost<strong>as</strong> a contemplar o teto. O sono não lhe chegavacom a facilidade de outros tempos, e escutou o sino de uma igreja a bater ameia-noite antes de conseguir fechar os olhos e a<strong>do</strong>rmecer.92


12Ocaminho pelo Norte de Espanha p<strong>as</strong>sava pel<strong>as</strong> pedregos<strong>as</strong> terr<strong>as</strong> deNavarra e Aragão antes de alcançar a Catalunha. A chuva era frequente,e os altos colos entre <strong>as</strong> montanh<strong>as</strong> estavam repletos de chuva e geloque lhes retardavam a marcha. À noite, Thom<strong>as</strong> e Richard tentavam sempreparar em pequen<strong>as</strong> aldei<strong>as</strong> onde pagavam para <strong>do</strong>rmir em estábulossempre que não conseguiam alugar um quarto. Por du<strong>as</strong> vezes viram-seforça<strong>do</strong>s a pernoitar ao relento, deixan<strong>do</strong> os cavalos amarra<strong>do</strong>s a árvoresenquanto os <strong>do</strong>is se aninhavam em volta de uma fogueira abrigada por umpenh<strong>as</strong>co bem orienta<strong>do</strong>. Ness<strong>as</strong> oc<strong>as</strong>iões <strong>do</strong>rmiam por turnos, temen<strong>do</strong> oaparecimento de algum grupo de saltea<strong>do</strong>res dedica<strong>do</strong>s a roubar viajantesdespreveni<strong>do</strong>s. Certa vez foram segui<strong>do</strong>s durante metade <strong>do</strong> dia por umgrupo de homens monta<strong>do</strong>s em pequenos cavalos mal manti<strong>do</strong>s. Thom<strong>as</strong>e Richard fizeram uma pausa no avanço para porem <strong>as</strong> espad<strong>as</strong> ao cinto,fazen<strong>do</strong> questão de <strong>as</strong> evidenciar. Pouco depois, os persegui<strong>do</strong>res fizeramalto e ficaram a vê-los af<strong>as</strong>tar-se.Os <strong>do</strong>is ingleses atraíam a atenção em tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> povoações por ondep<strong>as</strong>savam. O rei e a Igreja não se tinham poupa<strong>do</strong> a esforços para se <strong>as</strong>seguraremde que o povo considerava a ilha governada por Isabel, a rainha protestante,um antro de maldade e depravação, esqueci<strong>do</strong> de Deus. E <strong>as</strong>sim ocavaleiro e o seu escudeiro provocavam suspeição e me<strong>do</strong>, e apesar de nuncaterem si<strong>do</strong> ameaça<strong>do</strong>s ou rechaça<strong>do</strong>s, graç<strong>as</strong> ao salvo-conduto emiti<strong>do</strong>pelo capitão <strong>do</strong> porto de Bilbau, não havia qualquer calor ou hospitalidadena forma como eram recebi<strong>do</strong>s.A conversa que tanto tinham aprecia<strong>do</strong> na primeira noite que tinhamp<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> em Espanha não teve continuidade; Richard tinha volta<strong>do</strong> a a<strong>do</strong>tarum comportamento sombrio e ligeiramente hostil, embora fizesse comoThom<strong>as</strong> lhe pedira e se <strong>as</strong>segur<strong>as</strong>se de que tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> taref<strong>as</strong> própri<strong>as</strong> de umescudeiro eram cumprid<strong>as</strong> sem falha. Depois de algum<strong>as</strong> tentativ<strong>as</strong> de recuperaro momento de companheirismo que tinham partilha<strong>do</strong>, Thom<strong>as</strong>tinha renuncia<strong>do</strong> à empresa e prosseguiram, trocan<strong>do</strong> curt<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> apen<strong>as</strong>quan<strong>do</strong> tal era absolutamente necessário e comen<strong>do</strong> em silêncio tod<strong>as</strong><strong>as</strong> noites à volta <strong>do</strong> fogo ou n<strong>as</strong> trev<strong>as</strong> de um estábulo diminuto.93


Cerca <strong>do</strong> meio-dia <strong>do</strong> quinto dia <strong>do</strong> novo ano, p<strong>as</strong>saram a última cristad<strong>as</strong> montanh<strong>as</strong> que <strong>do</strong>minavam a estreita planície onde Barcelona se banhavano Mediterrâneo. As nuvens tinham desapareci<strong>do</strong> ainda de manhã,e o Sol brilhava solitário no céu de um azul profun<strong>do</strong>. Apesar de estarem nopino <strong>do</strong> inverno, o oceano tinha forma de parecer brilhante e convidativo,e Thom<strong>as</strong> sentiu uma mágoa no coração ao lembrar a ilha no meio daquelemar, um lugar que em tempos acreditara que viria a ser a sua c<strong>as</strong>a durantetoda a vida, no seio de um ban<strong>do</strong> de irmãos de arm<strong>as</strong> que combatiam porDeus contra inimigos muito mais poderosos. Nessa altura tu<strong>do</strong> lhe pareceraclaro e nobre, até que Maria tinha irrompi<strong>do</strong> pela sua vida dentro e elecomeçara a compreender lentamente que pouca nobreza havia a conseguirnuma interminável guerra em que o progresso consistia apen<strong>as</strong> em infligirnovos horrores ao inimigo. Belo como era, aquele esplen<strong>do</strong>roso mar era narealidade um campo de batalha tão velho como a História. Muito antes <strong>do</strong>conflito em que estavam mergulha<strong>do</strong>s, o <strong>do</strong>mínio daquele mar tinha leva<strong>do</strong>romanos, egípcios, cartagineses, gregos e pers<strong>as</strong> a tremen<strong>do</strong>s combates.Quem saberia quant<strong>as</strong> naves de guerra jaziam no fun<strong>do</strong>, a desfazerem-se?Era um mar tempera<strong>do</strong> pel<strong>as</strong> lágrim<strong>as</strong> e pelo sangue de sucessiv<strong>as</strong> geraçõesde seres humanos, refletiu, com um estremeção.Deu um estalo com a língua e carregou com os calcanhares nos flancos<strong>do</strong> cavalo.— Vamos, não vale a pena ficarmos aqui para<strong>do</strong>s a apreciar a paisagem.Richard fez precisamente isso por mais uns momentos antes de o seguir,e foram percorren<strong>do</strong> o caminho que serpenteava pela colina abaixo.No sopé, a cidade de Barcelona estendia-se à sombra de uma cidadela fortificada.No porto avistavam-se um<strong>as</strong> trinta ou quarenta galer<strong>as</strong> ancorad<strong>as</strong>;outr<strong>as</strong> du<strong>as</strong> equilibravam-se em cima de espessos toros nos estaleiros reais,uma série de barracões compri<strong>do</strong>s com telha<strong>do</strong>s altos, que <strong>do</strong>minavam amargem. Na parada no exterior da fortaleza havia vári<strong>as</strong> companhi<strong>as</strong> de piqueirosa treinar sob <strong>as</strong> cores ondulantes <strong>do</strong>s seus estandartes. Era evidenteque decorriam preparativos para enfrentar a ameaça que se erguia na outraponta <strong>do</strong> Mediterrâneo. M<strong>as</strong> seriam suficientes?, questionou-se Thom<strong>as</strong>.Por experiência própria, sabia bem que os Turcos eram capazes de apresentarv<strong>as</strong>t<strong>as</strong> forç<strong>as</strong>, quer em homens quer em navios. Eram seus os melhoresartilheiros e engenheiros de cerco <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e o tamanho e capacidadedestrutiva <strong>do</strong>s seus canhões não tinham paralelo.Quan<strong>do</strong> se aproximaram d<strong>as</strong> muralh<strong>as</strong> da cidade, o trilho juntou-sea uma estrada que seguia a costa. Pouco adiante, os <strong>do</strong>is cavaleiros p<strong>as</strong>sarampor um lento comboio de vagões carrega<strong>do</strong>s de barris de pólvora emetralha metálica. Thom<strong>as</strong> espicaçou a montada, de forma a adiantar-se à94


coluna e chegar antes dela ao portão principal da cidade. Fez um gesto a Richardpara se colocar ao seu la<strong>do</strong> e pegou no salvo-conduto, que entregoua um <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s de plantão. O catalão ficou a olhar para o <strong>do</strong>cumentosem nada entender, até que lhes deu uma ríspida ordem para que aguard<strong>as</strong>seme foi em busca de um oficial à c<strong>as</strong>a da guarda. Thom<strong>as</strong> saltou da selae deixou-se escorregar para o solo com um grunhi<strong>do</strong> de cansaço. Richardimitou-o de imediato e pegou n<strong>as</strong> réde<strong>as</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is cavalos, como competiaa um escudeiro, reparou Thom<strong>as</strong> com satisfação.O guarda regressou pouco depois com um homem de porte altivo quelimpava a boca com uma mão enquanto contemplava o salvo-conduto quelevava na outra. Deitou um olhar minucioso aos <strong>do</strong>is ingleses antes de sedirigir a Thom<strong>as</strong>, que apontou para o escudeiro.— Richard, por favor.À medida que os <strong>do</strong>is conversavam, Thom<strong>as</strong> tentava seguir o que eradito, m<strong>as</strong> a língua catalã era-lhe estranha aos ouvi<strong>do</strong>s. A situação fazia-osentir-se desconfortável e até vulnerável; não tinha ainda total confiançano jovem cuja companhia lhe fora imposta por Cecil e Walsingham.Richard sabia mais <strong>do</strong> que ele sobre o propósito daquela missão e sobre anatureza <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento sensível que estava no seu âmago. Se o <strong>do</strong>cumentofosse localiza<strong>do</strong> e recupera<strong>do</strong>, quais seriam, perguntava-se Thom<strong>as</strong>, <strong>as</strong>ordens que o seu companheiro teria para depois? Ele não teria mais qualquerutilidade para Cecil; podia muito bem ser que <strong>as</strong> ordens de Richardincluíssem a eliminação discreta de um homem cujo conhecimento sobrea missão, embora limita<strong>do</strong>, poderia vir a revelar-se embaraçoso nummomento ulterior. Teria de se precaver contra tal possibilidade de traição,até mesmo quan<strong>do</strong> estivesse envolto numa batalha contra os Turcos. Opensamento fê-lo tornar-se amargo quanto a Richard e aos seus patronosem Londres.Richard interrompeu-lhe os pensamentos.— Senhor, expliquei ao capitão os motivos da nossa viagem. Diz eleque, uma vez que viajamos para Malta, seria melhor anunciar a nossa chegadana cidadela. Lá encontraremos Don Garcia de Tole<strong>do</strong>. O seu exércitoestá a aprontar-se para embarcar para a Sicília, e poderemos seguir com <strong>as</strong>ua esquadra.— Sicília?— É lá que o rei Filipe está a concentrar forç<strong>as</strong> para enfrentar os Turcos.Os Espanhóis serão reforça<strong>do</strong>s por mercenários de Itália, incluin<strong>do</strong> <strong>as</strong>galer<strong>as</strong> <strong>do</strong> clã Doria. Aqui o capitão diz que ouviu dizer que será o maiorexército jamais reuni<strong>do</strong> para combater em nome de Cristo. E Don Garcia éo melhor general de toda a Europa. Diz ele que os Turcos serão esmaga<strong>do</strong>sde vez.95


Thom<strong>as</strong> contemplou o oficial catalão, gor<strong>do</strong> e acostuma<strong>do</strong> a uma vidatranquila. Não duraria muito tempo numa campanha extenuante.— Diz-lhe que rezo a Deus para que tenha razão. Vamos então à cidadela.— Ele diz que os seus homens nos vão conduzir até lá. — Richard deitouum olhar desconfia<strong>do</strong> ao espanhol, antes de prosseguir. — Tem havi<strong>do</strong>rumores de que o inimigo tem espiões aqui em Barcelona. Parece-me queele não confia muito em nós.— Espiões? — Thom<strong>as</strong> soltou uma gargalhada. — Parecemos turcos,por ac<strong>as</strong>o?— Senhor, somos ingleses. E, ao que parece, há por aqui muito quempense que os seus inimigos podem fazer causa comum. O que é compreensível.Nunca per<strong>do</strong>aram aos Franceses por combaterem ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Turcoshá vinte anos.Thom<strong>as</strong> <strong>as</strong>sentiu com emoção. Fora uma aliança que escandalizara oresto da Cristandade, que a julgara pouco melhor <strong>do</strong> que um pacto com opróprio demónio. Tinha dura<strong>do</strong> pouco tempo. Os Franceses tinham fica<strong>do</strong>envergonha<strong>do</strong>s pelos m<strong>as</strong>sacres de cristãos que os seus novos alia<strong>do</strong>s tinhamcometi<strong>do</strong> ao longo d<strong>as</strong> cost<strong>as</strong> de Itália. Thom<strong>as</strong> conseguia facilmenteimaginar o horror que aquele gesto causara nos cavaleiros franceses da Ordem,especialmente em La Valette.— Muito bem, agradece então ao capitão por nos fornecer essa escolta.Enquadra<strong>do</strong>s por <strong>do</strong>is homens à sua frente e outros <strong>do</strong>is a segui-los,Thom<strong>as</strong> e o seu escudeiro levaram os cavalos a entrar na cidade protegidapor espess<strong>as</strong> muralh<strong>as</strong>, dan<strong>do</strong> logo para uma via larga. As torres da catedralde Santa Eulália erguiam-se sobre os telha<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s edifícios que seapinhavam aos la<strong>do</strong>s da rua. As chuv<strong>as</strong> recentes tinham lava<strong>do</strong> muita daporcaria que cobria normalmente <strong>as</strong> ru<strong>as</strong>, e os cheiros mais ofensivos quese desprendiam da cidade eram amenos quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong>s com o fe<strong>do</strong>romni<strong>presente</strong> em Londres. Tinham-se p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> muitos anos desde a últimavez que Thom<strong>as</strong> vira Barcelona, m<strong>as</strong> aquela era obviamente a primeira visitade Richard à cidade, a julgar pela franca curiosidade com que observavatu<strong>do</strong> à sua volta. Com o seu semblante moreno, poderia facilmente p<strong>as</strong>sarpor um nativo, se não fosse a sua pronúncia sem traço de catalão. Cecil eWalsingham tinham escolhi<strong>do</strong> muito bem o seu homem para aquela missão,concedeu Thom<strong>as</strong>.Ao entrarem na praça aberta em frente à catedral, a atenção de Thom<strong>as</strong>foi presa pela fachada ornamentada e pel<strong>as</strong> três torres construíd<strong>as</strong> de umentrelaça<strong>do</strong> de pedra. Imensamente diferente d<strong>as</strong> catedrais ingles<strong>as</strong>, lembrou-se.Lançou o pescoço para trás para poder vislumbrar <strong>as</strong> cruzes que seprojetavam lá no alto, para o azul <strong>do</strong> céu. Lá em cima circundavam ban<strong>do</strong>s96


de gaivot<strong>as</strong>, pontos negros contra o brilho <strong>do</strong> firmamento. Por momentossentiu o coração a elevar-se perante tão maravilhoso panorama, m<strong>as</strong>lembrou-se rapidamente de que <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> daquele mesmo mar, emConstantinopla, a grande cidade que os Turcos tinham rebatiza<strong>do</strong> comoIstambul, um homem como ele, um guerreiro, estaria por certo em frenteà Grande Mesquita, contemplan<strong>do</strong> enleva<strong>do</strong> um crescente <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> — umhomem que ele poderia enfrentar em combate dentro de pouco tempo. Aideia fez com que um arrepio lhe descesse pela espinha. Não era me<strong>do</strong>, apen<strong>as</strong>um pressentimento de que era seu destino ser consumi<strong>do</strong> no iminenteembate entre fés e impérios.O pequeno grupo atravessou a praça, e daí a pouco deixou para trás <strong>as</strong>estreit<strong>as</strong> ruel<strong>as</strong> da cidade e começou a subir a íngreme encosta que levavaà cidadela. Soprava uma fresca brisa marítima, que dava ao ar um cheirosalga<strong>do</strong>. Ao alcançarem a entrada da fortificação, tiveram de explicar maisuma vez o propósito da sua presença. A escolta foi enviada de volta à muralhada cidade, e o cavaleiro e o seu escudeiro foram admiti<strong>do</strong>s num pátioexterior onde puderam prender os cavalos e sentar-se num banco, à espera.Não os fizeram esperar muito. Um oficial vesti<strong>do</strong> de velu<strong>do</strong> vermelhodirigiu-se a eles, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s gabinetes <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r.— Sir Thom<strong>as</strong> Barrett? É uma honra conhecer-vos, senhor — anunciounum francês escorreito, antes de inclinar respeitosamente a cabeça.Thom<strong>as</strong> e Richard puseram-se de pé e retribuíram o gesto.— Se mo permitis, apresento-me. — Lançou um sorriso faiscante. —Sou Fadrique Garcia de Tole<strong>do</strong>, e estou ao vosso serviço, bem como ao <strong>do</strong>vosso escudeiro, Sir Thom<strong>as</strong>.O jovem parecia ter vinte e poucos anos, no máximo, e Thom<strong>as</strong> trocouum olhar de espanto com Richard antes de limpar a garganta e retorquirem francês.— Sois vós o comandante da força que o rei Filipe vai enviar contra osTurcos?— Eu? — As s<strong>obra</strong>ncelh<strong>as</strong> <strong>do</strong> espanhol arquearam-se, divertid<strong>as</strong>. —Decididamente não, senhor. Creio que vos referis ao meu pai. Enviei-lhenov<strong>as</strong> da vossa chegada. Ele terá to<strong>do</strong> o prazer em acolher outro membroda Ordem que responde ao apelo para pegar em arm<strong>as</strong>.— Tem havi<strong>do</strong> muitos de nós? — inquiriu Thom<strong>as</strong>.O sorriso de Fadrique desvaneceu-se.— Nem tantos têm p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> por Barcelona como esperávamos, senhor.Sois, de facto, apen<strong>as</strong> o quinto cavaleiro que vimos. Claro que haverá outrosque terão embarca<strong>do</strong> noutros portos. Estou certo de que nenhum membroda vossa Ordem negará a si mesmo a possibilidade de partilhar a gloriosavitória que em breve celebraremos sobre o Turco.97


— Esperemos que tenhais razão.— Senhor, estou certo disso. Esta será a grande batalha <strong>do</strong>s nossos tempos.O encontro decisivo entre a nossa fé e a falsa fé <strong>do</strong> Islão.Thom<strong>as</strong> mordeu os lábios, m<strong>as</strong> resolveu não contrariar a ideia <strong>do</strong> jovem.O espanhol fez um gesto para a entrada da cidadela.— Se me quiserdes seguir, oferecer-vos-ei algo que vos refresque enquantoaguardamos pelo meu pai.Thom<strong>as</strong> sorriu fugidiamente ao relembrar <strong>as</strong> impecáveis maneir<strong>as</strong> <strong>do</strong>sEspanhóis ao la<strong>do</strong> de quem combatera em tempos. Inclinou a cabeça.— Muito agradeci<strong>do</strong>s.No interior <strong>do</strong> edifício p<strong>as</strong>saram por um salão abobada<strong>do</strong> em cuj<strong>as</strong>paredes se abriam arcos que davam acesso a corre<strong>do</strong>res sombrios. Para láde um punha<strong>do</strong> de guard<strong>as</strong> de serviço, não havia sinais de muita atividade.Os p<strong>as</strong>sos <strong>do</strong>s três homens ecoavam n<strong>as</strong> paredes vazi<strong>as</strong>.— Tu<strong>do</strong> parece muito calmo — comentou Thom<strong>as</strong>. — Supunha que opessoal <strong>do</strong> vosso pai estivesse atarefa<strong>do</strong> a planear a campanha.— Está tu<strong>do</strong> a ser pensa<strong>do</strong>, <strong>as</strong>seguro-vos — retorquiu Fadrique, despreocupa<strong>do</strong>.— A maior parte <strong>do</strong>s oficiais está lá em baixo nos estaleiros, averificar o carregamento d<strong>as</strong> galer<strong>as</strong>. Zarpamos para a Sicília daqui a poucosdi<strong>as</strong>. E <strong>as</strong>sim que juntarmos <strong>as</strong> noss<strong>as</strong> forç<strong>as</strong> às <strong>do</strong>s nossos alia<strong>do</strong>s, confrontaremosos Turcos.Entraram numa câmara modesta, com uma comprida mesa ao centro.Aos la<strong>do</strong>s da mesa havia cadeir<strong>as</strong> confortáveis e <strong>do</strong>is cadeirões mais ornamenta<strong>do</strong>socupavam <strong>as</strong> cabeceir<strong>as</strong>. Fadrique indicou-lhes a mesa.— Sentai-vos, por favor. Dei ordens para que vos fossem trazid<strong>as</strong> comidae bebida. Agora tenho de me desculpar, m<strong>as</strong> tenho de ir ter com omeu pai, que depressa vos receberá. — Inclinou a cabeça mais uma vez edeixou-os. Depois de a porta se fechar, Richard deixou escapar um suspiro.— Cinco cavaleiros apen<strong>as</strong>… Devia haver mais homens a caminho deBarcelona. Muitos mais.— Ainda há tempo — contrariou Thom<strong>as</strong>. — E, tal como ele diz, podemter toma<strong>do</strong> outr<strong>as</strong> rot<strong>as</strong>.Richard olhou firmemente para ele.— Acreditais realmente nisso?Thom<strong>as</strong> encolheu os ombros.— Não faz mal nenhum esperar o melhor e aceitar o pior.— Essa é a filosofia de um tolo.Thom<strong>as</strong> não se deixou abater pelo comentário.— Quanto piores forem <strong>as</strong> hipóteses, maior quinhão de glória nos caberá.98


— Glória, pois, é para isso que vós, cavaleiros, viveis. Compreen<strong>do</strong> isso.M<strong>as</strong> enquanto os vossos feitos gloriosos vão ficar anota<strong>do</strong>s nos registoscom o vosso nome, isso não sucede com aqueles que labutam nos escalõesinferiores. Os nossos heróis nunca têm rosto. E pouco desejo tenho de contribuirpara esse obscuro registo, Sir Thom<strong>as</strong>.Foram interrompi<strong>do</strong>s por um servo, que entrou na sala com uma bandeja.Aproximou-se da mesa sem lhes enfrentar o olhar e pousou-a. Inclinoufortemente a cabeça, recuou alguns p<strong>as</strong>sos, virou-se e esgueirou-serapidamente.— Aí está — comentou Richard. — É <strong>as</strong>sim que se portam aqueles quenão têm lugar na História.Thom<strong>as</strong> não respondeu, ocupa<strong>do</strong> a tirar um prato da bandeja, a colocaro outro em frente ao companheiro e a encher <strong>do</strong>is copos de vinho.Olhou então para Richard e falou em tom calmo, qu<strong>as</strong>e fatiga<strong>do</strong>.— Nada posso fazer quanto à forma como a História marca a p<strong>as</strong>sagemda vida de um homem, Richard. E nada posso alterar quanto ao teun<strong>as</strong>cimento. Portanto, de nada serve apoquentar-me com <strong>as</strong> tu<strong>as</strong> queix<strong>as</strong>,de forma tão pouco graciosa. Tu<strong>do</strong> o que importa é que cumpramos o nossodever. Eu, o que me liga à Ordem que jurei defender com a vida. Tu, oque deves aos teus mandantes em Londres, ou seja, que cumpr<strong>as</strong> a tarefaque te colocaram em mãos. Tens de me auxiliar no cumprimento <strong>do</strong> meudever, tanto quanto poss<strong>as</strong>. Por mim, estaria em melhores condições de teauxiliar se soubesse mais sobre o teu propósito em Malta.Os escuros olhos de Richard contemplaram-no.— Não posso dizer mais <strong>do</strong> que já adiantei.— E o que sucede se algo de mal te acontecer?— Nesse c<strong>as</strong>o, atrevo-me a imaginar que Walsingham enviará outroagente para cumprir a missão.— Estou a ver. E o teu senhor tem ao seu dispor um leque de homensque <strong>do</strong>minem tant<strong>as</strong> língu<strong>as</strong> como tu?Richard baixou o olhar para o prato e entreteve-se a cortar um pedaçode costeleta de borrego. Deu uma dentada e começou a m<strong>as</strong>tigar.— Bem me parecia que não. — Thom<strong>as</strong> sorriu para si mesmo. — Portanto,se caíres, a missão termina. A não ser que me poss<strong>as</strong> dizer mais algumacoisa sobre o <strong>do</strong>cumento.Richard engoliu a comida.— Não.— Porque não? Com certeza que te apercebes de que é uma boaideia?— Tenho <strong>as</strong> minh<strong>as</strong> ordens.— Compreen<strong>do</strong>. M<strong>as</strong> se o que está em jogo é tão importante como Sir99


Robert adiantou, é por certo vital que um de nós consiga recuperar o <strong>do</strong>cumentoe regresse com ele a Inglaterra.— Partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> princípio de que um de nós sobreviverá ao ataque aMalta — ripostou Richard, desencanta<strong>do</strong>.Thom<strong>as</strong> mordeu os lábios.— Claro.— Perdão, senhor, m<strong>as</strong> <strong>as</strong> minh<strong>as</strong> ordens são clar<strong>as</strong>. Não vos possodizer nada sobre o <strong>as</strong>sunto.— Porque não?— Porque Walsingham não confia em vós.— Estou a ver. E quanto a Cecil?— Sir Robert <strong>respeita</strong> a opinião de Walsingham em qu<strong>as</strong>e to<strong>do</strong>s os<strong>as</strong>suntos.Thom<strong>as</strong> cruzou os de<strong>do</strong>s e apoiou-os no queixo, enquanto sentia a iraa crescer no seu íntimo. Era uma ferida na sua honra.— Adivinho que <strong>as</strong> desconfianç<strong>as</strong> deles provêm d<strong>as</strong> minh<strong>as</strong> convicçõesreligios<strong>as</strong>… porque eu sou católico. Há algum <strong>as</strong>peto <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentoque o tornaria ainda mais perigoso se eu tom<strong>as</strong>se conhecimento <strong>do</strong> seuconteú<strong>do</strong>?— Não posso dizer — respondeu Richard, antes de meter um novopedaço de carne na boca.— Não podes, ou não queres?— Já vos disse mais <strong>do</strong> que seria prudente. Se isto vos acalmar a mente,ficai consciente de que Cecil pensa que vos considerais primeiro um súbditoinglês, e só depois um católico. M<strong>as</strong> b<strong>as</strong>ta. Não falarei mais sobre este<strong>as</strong>sunto. Se <strong>as</strong>sim o desejais, falai de outro tema.— Muito bem. Diz-me então, és protestante, como os teus senhores, ousegues a Igreja de Roma?Richard parou de comer enquanto pesava a questão.— Seguramente que não tendes dúvid<strong>as</strong> sobre isso. Achais que Cecilalguma vez teria a seu serviço um católico? Nem se põe a questão.— E foste sempre um protestante? — persistiu Thom<strong>as</strong>.— Porque quereis saber?— Quero conhecer-te melhor. No conflito que nos aguarda, gostaria deter certez<strong>as</strong> sobre o tipo de homem que vai lutar ao meu la<strong>do</strong>.— E saber se em tempos fui católico fará alguma diferença? — Richardsorriu. — Seria bem melhor saber se alguma vez matei um homem.— E já o fizeste? — Thom<strong>as</strong> observou-o com toda a atenção.— Não. M<strong>as</strong> estou certo que o terei feito antes de regressar a Inglaterra.Antes que Thom<strong>as</strong> pudesse prosseguir o interrogatório, a porta da salaabriu-se de par em par para deixar p<strong>as</strong>sar um homem corpulento, de cin-100


quenta e muitos anos. O cabelo era grisalho e esc<strong>as</strong>so, e a barba bem aparad<strong>as</strong>eguia a linha de um queixo anafa<strong>do</strong>. Os olhos, porém, eram vivos ecuriosos, e rapidamente perscrutaram os <strong>do</strong>is ingleses que se erguiam <strong>do</strong>s<strong>as</strong>sentos. Fadrique entrou depois <strong>do</strong> pai e procedeu às apresentações.— Sua Excelência o Capitão-General <strong>do</strong> Oceano de Sua Majestade católica,o rei Filipe de Espanha, e Vice-Rei da Sicília, Don Garcia Alvarez deTole<strong>do</strong>.Don Garcia avançou para eles, paran<strong>do</strong> a curta distância enquantoThom<strong>as</strong> fazia uma vénia respeitosa.— É uma honra conhecer-vos, senhor. Sir Thom<strong>as</strong> Barrett e o seu escudeiroRichard Hughes, ao vosso serviço.— Disse-me o Fadrique que viajais para Malta. — Don Garcia tinhauma voz suave, com um ligeiro ciciar. — Em resposta ao apelo lança<strong>do</strong> porLa Valette.— Assim é — concor<strong>do</strong>u Thom<strong>as</strong>.— Nesse c<strong>as</strong>o, Sir Thom<strong>as</strong>, sois extremamente bem-vin<strong>do</strong>. Sobretu<strong>do</strong>ten<strong>do</strong> em conta a vossa reputação, conquistada com esforço nos campos debatalha de toda a Europa. — Don Garcia sorriu calorosamente.Thom<strong>as</strong> ficou surpreendi<strong>do</strong> por a sua reputação ter chega<strong>do</strong> a Barcelona.Sorriu modestamente.— Isso foi já há alguns anos.— Na arte da guerra, a experiência é tu<strong>do</strong>.— Qu<strong>as</strong>e. M<strong>as</strong> os números também desempenham o seu papel.Don Garcia deu-lhe um toque amigável no braço.— Espero que a vossa jornada tenha decorri<strong>do</strong> sem incidentes demaior.Lembranç<strong>as</strong> da tempestade que tinham enfrenta<strong>do</strong> na viagem até Espanhap<strong>as</strong>saram-lhe pela ideia, m<strong>as</strong> ignorou-<strong>as</strong>, e <strong>as</strong>sentiu.— Dada a altura <strong>do</strong> ano, fizemos boa viagem, senhor.Don Garcia olhou para ele sem se deixar iludir.— O Atlântico no inverno pode transformar-se num verdadeiromonstro. Terdes chega<strong>do</strong> até aqui já foi um feito. E ainda bem que aquiestais. Vamos precisar de to<strong>do</strong>s os homens para <strong>as</strong>segurar a defesa deMalta. M<strong>as</strong> per<strong>do</strong>ai-me, deveis estar fatiga<strong>do</strong>. — Fez um gesto a designar<strong>as</strong> cadeir<strong>as</strong>. — Sentai-vos, por favor. Não tinha intenção de interrompera vossa refeição.Quan<strong>do</strong> os quatro homens se sentaram, Thom<strong>as</strong> empurrou para longeo seu prato, com a comida ainda intocada. Indicou a Richard que o imit<strong>as</strong>se,já que não seria aceitável que o escudeiro se aliment<strong>as</strong>se sozinho à frente<strong>do</strong>s seus superiores.— Sir Thom<strong>as</strong>, per<strong>do</strong>ai-me se ponho de parte a habitual conversa cor-101


tês e vou direito ao <strong>as</strong>sunto. Tenho pouco tempo antes de zarpar para Malta.O que sabeis da situação?— Só aquilo que o cavaleiro que foi a Inglaterra levar-me a convocatóriame contou, senhor. Disse-me que o Grão-Mestre tinha informaçõessobre os planos <strong>do</strong> sultão, que eram de tomar Malta e erradicar a Ordem deS. João de uma vez por tod<strong>as</strong>.— Assim é — anuiu Don Garcia. — Para proteger <strong>as</strong> su<strong>as</strong> linh<strong>as</strong>, eletem de tomar Malta. E é lá que temos de o travar. Não tenho dúvid<strong>as</strong> sobrea estratégia de Solimão. Ele e os seus alia<strong>do</strong>s corsários têm vin<strong>do</strong> a estendera sua influência para o Mediterrâneo ocidental desde há muitos anos. Acada primavera temos vin<strong>do</strong> a observar o horizonte a leste, à espera <strong>do</strong> <strong>as</strong>salto,m<strong>as</strong> têm-se contenta<strong>do</strong> com breves ataques às cost<strong>as</strong> de Itália, Françae Espanha, apresan<strong>do</strong> navios, ou <strong>as</strong>saltan<strong>do</strong> povoações costeir<strong>as</strong> para conseguirescravos. E pouco temos podi<strong>do</strong> fazer para impedir essa atividade.Pela altura em que recebemos um relatório e despachamos uma força parao local <strong>do</strong> ataque, já o inimigo se escapuliu. Entretanto, tenho feito tu<strong>do</strong>o que posso para preparar <strong>as</strong> noss<strong>as</strong> defes<strong>as</strong> e ter tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> galer<strong>as</strong> a postospara quan<strong>do</strong> cheg<strong>as</strong>se o momento que considerava inevitável. E ele chegouagora. Não há qualquer dúvida. O nosso espião em Istambul viu com ospróprios olhos os preparativos <strong>do</strong> inimigo. Galer<strong>as</strong> e galeões têm si<strong>do</strong> reuni<strong>do</strong>sno Corno Doura<strong>do</strong>, e to<strong>do</strong>s os di<strong>as</strong> chegam à cidade caravan<strong>as</strong> devagões com pólvora, metralha, engenhos de cerco e rações. No exterior d<strong>as</strong>muralh<strong>as</strong>, dezen<strong>as</strong> de milhares de solda<strong>do</strong>s estão acampa<strong>do</strong>s à espera deordens para embarcar. — Recostou-se e colocou <strong>as</strong> mãos sobre os braços <strong>do</strong>cadeirão. — Não há dúvid<strong>as</strong>, os Turcos estão mesmo decidi<strong>do</strong>s a avançar.Chegou o momento que tanto temi. É este o ano em que a nossa fé terá detriunfar ou tombar sob a sombra <strong>do</strong> crescente.— Nesse c<strong>as</strong>o, lutaremos até ao fim — comentou Thom<strong>as</strong>, com firmeza.— E se a Ordem for varrida <strong>do</strong> mapa, a forma como enfrentarmos essadestruição terá de ser inspira<strong>do</strong>ra, para que o resto da Cristandade siga onosso exemplo de combate.— Peço a Deus que estejais certo, Sir Thom<strong>as</strong>. Se os governantes da Europanão se unirem e fizerem causa comum contra esta tremenda ameaça,estaremos perdi<strong>do</strong>s. O nosso povo será força<strong>do</strong> a ajoelhar-se e submeter-seà falsa religião. E pouco me consola saber que nenhum de nós senta<strong>do</strong>s aesta mesa viverá para ver esse dia. Juro-vos que morrerei de espada na mão,e com o abençoa<strong>do</strong> nome de Jesus nos meus lábios ensanguenta<strong>do</strong>s, antesde ser obriga<strong>do</strong> a beijar os pés a Solimão.— Assim o juramos to<strong>do</strong>s — replicou Thom<strong>as</strong>, enquanto se benzia.O silêncio imperou por momentos, até que Don Garcia prosseguiu.— Decidi concentrar <strong>as</strong> minh<strong>as</strong> forç<strong>as</strong> na Sicília. Sua Majestade infor-102


mou <strong>as</strong> outr<strong>as</strong> potênci<strong>as</strong> europei<strong>as</strong> de que, se querem aliar-se à nossa grandecausa, devem enviar os seus homens e navios para se reunirem a nósna Sicília. Se a fortuna estiver <strong>do</strong> nosso la<strong>do</strong>, terei suficientes navios paraenfrentar a frota de Solimão. E poderei zarpar para sul se ele resolver atacarMalta em primeiro lugar, ou para norte se ele se decidir pela Itália.— Um plano sábio, senhor — concor<strong>do</strong>u Thom<strong>as</strong>.— Sábio? Sim. — Don Garcia sorriu. — M<strong>as</strong>, se não receber tod<strong>as</strong> <strong>as</strong>forç<strong>as</strong> que me foram prometid<strong>as</strong>, pouc<strong>as</strong> esperanç<strong>as</strong> teremos de vitória.Fadrique pigarreou.— Por poucos que venhamos a ser, teremos Deus ao nosso la<strong>do</strong>. Nãopodemos ser derrota<strong>do</strong>s. O Nosso Senhor é omnipotente, e não o permitirá.O pai olhou-o com indulgência.— Claro, tens toda a razão. — Voltou-se de novo para Thom<strong>as</strong>. —Parto amanhã para a Sicília com seis galer<strong>as</strong> em escolta a quatro galeões,que levam os primeiros <strong>do</strong>is mil homens para estabelecer a minha b<strong>as</strong>ede operações. De lá seguirei para Malta, para conferenciar com La Valette.Tenho to<strong>do</strong> o prazer em vos oferecer, e ao vosso escudeiro, lugares no meunavio-almirante.— Senhor, aceitamos de bom gra<strong>do</strong> a vossa generosidade.— Nesse c<strong>as</strong>o, peço-vos para estardes a bor<strong>do</strong> pela alvorada. Partiremosde imediato. — Don Garcia levantou-se da cadeira, e os outros imitaram-no.— Por agora, tereis de me per<strong>do</strong>ar. Há ainda muitos detalhes a tratar.Fadrique tratará de vos arranjar aposentos adequa<strong>do</strong>s aqui na cidadela,e levará os vossos cavalos para os estábulos.— Não são meus, são propriedade real, foram-nos empresta<strong>do</strong>s pelocapitão <strong>do</strong> porto de Bilbau.— Nesse c<strong>as</strong>o, serão incorpora<strong>do</strong>s no meu exército. Por agora desejo-vosum bom dia, senhores. Façam-me o obséquio de concluir a vossarefeição e de descansarem. Fadrique, vem comigo!Apesar <strong>do</strong> seu volume, Don Garcia movia-se com grande energia, eaf<strong>as</strong>tou-se a p<strong>as</strong>sos largos, com o filho a apressar-se para o seguir. A portafechou-se n<strong>as</strong> cost<strong>as</strong> de ambos, e os p<strong>as</strong>sos desvaneceram-se à distância.Richard puxou o prato para si e recomeçou a comer imediatamente, antesde se interromper.— As noss<strong>as</strong> hipóteses não parecem propriamente agradáveis.Thom<strong>as</strong> encolheu os ombros.— Foi sempre <strong>as</strong>sim para a Ordem. Ao longo de toda a sua história.— O ideal heroico — considerou Richard. — Ou talvez apen<strong>as</strong> umaforma de adicionar uma <strong>do</strong>se de glória a uma compulsão suicida.— Cala a boca. Não sabes o que dizes. Os homens da Ordem juraram103


combater pela glória de Deus e por nenhuma outra razão. O suicídio é umpeca<strong>do</strong>, como muito bem sabes. — Thom<strong>as</strong> refreou a irritação, e prosseguiuem tom menos exalta<strong>do</strong>. — Além disso, como afiançou o filho de DonGarcia, Deus está <strong>do</strong> nosso la<strong>do</strong>.— Pois, uma mudança de idei<strong>as</strong> divina vinha a calhar. Ao que parece,não se lembrou disso quan<strong>do</strong> a Ordem foi expulsa de Rodes pelo mesmoSolimão. E onde estaria Ele quan<strong>do</strong> a Ordem qu<strong>as</strong>e foi dizimada na quedade Acre? O que vos faz pensar que Ele vos apoiará, nos apoiará, aliás, emMalta?— Não fará mal à nossa causa depositar fé em Deus — contrapôs Thom<strong>as</strong>,embora partilh<strong>as</strong>se d<strong>as</strong> dúvid<strong>as</strong> express<strong>as</strong> por Richard. Olhou para ele,e surpreendeu-o a contemplá-lo.— Pergunto-me uma coisa. Se a vontade de Deus é mesmo provocartanto sofrimento àqueles que O a<strong>do</strong>ram, qual será o Seu verdadeiro objetivo?— Cuida<strong>do</strong>, Richard. O que dizes é uma bl<strong>as</strong>fémia.— É apen<strong>as</strong> uma questão filosófica. O que eu discuto é que ambos osla<strong>do</strong>s deste conflito iminente combatem em nome d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> fés. Se os Turcostriunfarem, quererá isso dizer que Deus nos aban<strong>do</strong>nou, ou que era afé deles a mais fervorosa? Se a fé de ambos os conten<strong>do</strong>res for igualmentepoderosa, serão apen<strong>as</strong> os homens a decidir o resulta<strong>do</strong> da refrega.Thom<strong>as</strong> não podia discordar, m<strong>as</strong> se não se via a matar em nome deCristo, não deixaria de combater para evitar ser morto em nome de Alá.— Se forem os homens a decidir, pois que <strong>as</strong>sim seja. Estou pronto adesempenhar o meu papel. — Levantou-se. — Preciso de andar um boca<strong>do</strong>.— Quereis…— Não. Fica aqui. Acaba de comer, traz <strong>as</strong> noss<strong>as</strong> bagagens e descansa.Descansa tu<strong>do</strong> o que puderes. Depressa isso se vai tornar um luxo que almejaráscomo nenhum outro.— Menos o descanso eterno.Thom<strong>as</strong> ponderou <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> <strong>do</strong> jovem, e acabou por abanar a cabeça.— Até esse te poderá parecer bem apetecível antes de esta história terminar.104


13Aflotilha tinha deixa<strong>do</strong> o porto de Palma na ilha de Maiorca havia apen<strong>as</strong>uma dúzia de hor<strong>as</strong>, e Thom<strong>as</strong> e Richard aproveitavam a brisa frescada manhã, quan<strong>do</strong> foi avistada a primeira vela. Um marinheiro no cestoda gávea punha a mão em pala sobre os olhos enquanto esticava o braçopara apontar o horizonte a norte, na direção <strong>do</strong> vento que soprava d<strong>as</strong> cost<strong>as</strong>frances<strong>as</strong>.O capitão <strong>do</strong> navio-almirante dirigiu-se à amurada na popa e pôs amão em concha sobre a boca.— O que vês?Deu-se uma curta pausa enquanto o homem percorria o horizontecom o olhar, esforçan<strong>do</strong> a vista para recolher o máximo de detalhes. Noconvés principal da galera toda a gente ansiava por novidades.— Avisto du<strong>as</strong> vel<strong>as</strong> latin<strong>as</strong>, senhor.— Muito provavelmente é uma galera — afiançou Thom<strong>as</strong>.— Como podeis saber? — indagou Richard, enquanto esticava o pescoçoe tentava ver alguma coisa acima da ondulação. — Eu não consigo vernada.— E nada verás durante um bom boca<strong>do</strong> ainda. Na próxima hora oucoisa parecida não se conseguirá avistar o c<strong>as</strong>co.— O c<strong>as</strong>co?Thom<strong>as</strong> sorriu ao recordar que o escudeiro tinha p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong> a maior parteda viagem desde Londres na cabina <strong>do</strong> galeão, enrola<strong>do</strong> em si mesmo,em completa miséria.— Não tens grande conhecimento d<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> <strong>do</strong> mar.— Pois não, e não tenho qualquer intenção de voltar a por os pés numnavio <strong>as</strong>sim que esta história acabar — concor<strong>do</strong>u Richard com ênf<strong>as</strong>e.— Sen<strong>do</strong> um homem educa<strong>do</strong>, já deves ter ouvi<strong>do</strong> dizer que o mun<strong>do</strong>é re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>.Richard lançou-lhe um olhar irrita<strong>do</strong>.— É evidente.— Nesse c<strong>as</strong>o, deve ser-te óbvia a razão pela qual o velame de um navioé avista<strong>do</strong> antes <strong>do</strong> c<strong>as</strong>co, já que o horizonte curva.105


Richard rangeu os dentes.— Sim, eu sabia.— Ó <strong>do</strong> convés! — gritou o vigia. — Avisto mais vel<strong>as</strong>. Três… Não, sãocinco, ou mais. Parecem galer<strong>as</strong>… Sim, estou certo disso.— Vem. — Thom<strong>as</strong> puxou pela manga <strong>do</strong> escudeiro e juntos subiramuma pequena escada para se juntar ao grupo de oficiais que rodeava DonGarcia.O capitão tinha deixa<strong>do</strong> a amurada e dirigia-se ao comandante da frota.— Corsários, senhor.— É pouco provável — protestou Fadrique. — Se o fossem, porquese aproximariam vin<strong>do</strong>s de norte? Os covis dess<strong>as</strong> ignóbeis criatur<strong>as</strong> situam-sena costa africana, a sul.— Estão <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> vento, senhor — explicou o capitão. Em tempos,Thom<strong>as</strong> falara espanhol com fluência, e agora estava a recuperar rapidamenteo uso da língua; apercebeu-se de que conseguia seguir a troca deargumentos sem dificuldade. O capitão prosseguia. — Estão em vantagemsobre nós. Muito provavelmente seguem-nos já há vários di<strong>as</strong>, e rumarama norte para ganhar essa vantagem <strong>do</strong> vento. — Deu atenção a Don Garcia.— Meu senhor, quais são <strong>as</strong> voss<strong>as</strong> ordens?O comandante espanhol p<strong>as</strong>sou a vista pel<strong>as</strong> embarcações que compunhama sua flotilha. As galer<strong>as</strong> formavam um cordão disperso em torno<strong>do</strong>s galeões, que seguiam ao centro. Os grandes navios estavam apinha<strong>do</strong>sde solda<strong>do</strong>s com <strong>as</strong> su<strong>as</strong> arm<strong>as</strong> e outro equipamento. Seriam presa fácilpara qualquer galera corsária que conseguisse p<strong>as</strong>sar por entre os naviosde escolta.— Temos de proteger os galeões a to<strong>do</strong> o custo — anunciou Don Garcia—, partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> princípio de que são navios inimigos. Não quero correrquaisquer riscos. Capitão, dê ordens para que os homens ocupem os postosde combate, e transmita ess<strong>as</strong> ordens às outr<strong>as</strong> embarcações, por favor.— Sim, senhor.No instante seguinte o tambor que seguia no convés principal começoua fazer soar um ritmo frenético, e os solda<strong>do</strong>s apressaram-se a colocararmadur<strong>as</strong> e elmos e a preparar <strong>as</strong> arm<strong>as</strong>, enquanto os marinheiros trepavampelo cordame e se espalhavam pel<strong>as</strong> verg<strong>as</strong>, à espera da ordem pararecolher <strong>as</strong> vel<strong>as</strong>. Da coberta vinha o som <strong>do</strong> chicote a estalar e <strong>do</strong> gemerd<strong>as</strong> madeir<strong>as</strong> quan<strong>do</strong> os remos foram inseri<strong>do</strong>s n<strong>as</strong> su<strong>as</strong> abertur<strong>as</strong> e se projetaramnos flancos <strong>do</strong> navio de Don Garcia. Thom<strong>as</strong> sentiu o pulso a acelerarperante os sons e a movimentação, e até perante o o<strong>do</strong>r que vinha delá de baixo. Velh<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> e sensações foram despertad<strong>as</strong> no seu íntimo,enquanto a galera se preparava para a batalha. Virou-se para Richard.— Traz-me a couraça, o elmo e a espada. E equipa-te também. — Ri-106


chard <strong>as</strong>sentiu e apressou-se a descer ao porão, onde a bagagem tinha si<strong>do</strong>colocada durante a viagem.Entretanto fora iça<strong>do</strong> no m<strong>as</strong>tro um longo estandarte vermelho e <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>,que agora dançava ao vento. Pouco depois também <strong>as</strong> outr<strong>as</strong> galer<strong>as</strong>içavam <strong>as</strong> su<strong>as</strong> flâmul<strong>as</strong>, e o som de tambores espalhava-se sobre <strong>as</strong> vag<strong>as</strong>enquanto to<strong>do</strong>s se aprontavam para o combate.— Ó <strong>do</strong> convés!Os oficiais na ré olharam para cima ao escutarem o apelo, e notaramque agora o vigia apontava para o sul.— Mais vel<strong>as</strong>! Pelo menos um<strong>as</strong> cinco galer<strong>as</strong>.— Quantos navios a norte? — quis saber o capitão.O vigia ro<strong>do</strong>piou rapidamente e fixou o olhar antes de responder.— Seis, senhor! Já os avisto sem dificuldade. Vejo os c<strong>as</strong>cos.— Consegues distinguir que cores ostentam?— Ainda não, senhor.— Será que não são os nossos alia<strong>do</strong>s? — supôs Fadrique. — Genoveses,talvez?O pai abanou a cabeça.— Não aqui, tão a ocidente. O encontro está combina<strong>do</strong> na Sicília.Qu<strong>as</strong>e seguramente que se trata <strong>do</strong> inimigo. Corsários da costa da Barbária.— Concor<strong>do</strong> — disse Thom<strong>as</strong>. — É uma emboscada clássica, DonGarcia. Já vi este cenário muit<strong>as</strong> vezes.— Do ponto de vista <strong>do</strong> caça<strong>do</strong>r, calculo.— É verdade. Quan<strong>do</strong> <strong>as</strong> galer<strong>as</strong> da Ordem operavam em conjunto,era <strong>as</strong>sim que procediam. Suspeito que o inimigo aprendeu <strong>as</strong> noss<strong>as</strong> técnic<strong>as</strong>.Aliás, os corsários e os homens da Ordem são semelhantes em muit<strong>as</strong>cois<strong>as</strong>.— Exceto pelo facto de a Ordem ser abençoada pela Igreja de Roma.— Tal como os pirat<strong>as</strong> muçulmanos são abençoa<strong>do</strong>s pelos imãs da suafé, senhor. No fim de cont<strong>as</strong>, ou somos to<strong>do</strong>s guerreiros sagra<strong>do</strong>s, ou to<strong>do</strong>ssomos simples pirat<strong>as</strong>.Don Garcia franziu o cenho.— Uma opinião profundamente perturba<strong>do</strong>ra, Sir Thom<strong>as</strong>. Não meapetece pensar no inimigo, no inimigo <strong>do</strong> único Deus verdadeiro, de talforma. Gostaria que não voltásseis a usar tais termos na minha presença.— Assim será, Don Garcia.— Aquilo de que quero ouvir-vos falar é da tática que empregam. Tendesalguma experiência quanto a isso, bem mais <strong>do</strong> que eu. Como irão elestentar derrotar-nos?Thom<strong>as</strong> fez uma pausa para pensar, projetan<strong>do</strong> mentalmente <strong>as</strong> posiçõesd<strong>as</strong> três forç<strong>as</strong> e toman<strong>do</strong> em conta a direção <strong>do</strong> vento.107


— Os alvos deles serão os galeões. São <strong>as</strong> embarcações mais vulneráveis,senhor. Os corsários sabem perfeitamente que é lá que encontrarão acarga mais valiosa. Porém, depressa descobrirão que estão apinha<strong>do</strong>s detrop<strong>as</strong>. Logo, ou ficam a observar e tentam varrer o convés com metralhafina antes de ensaiarem a abordagem, ou tentam afundá-los, para matartantos <strong>do</strong>s nossos solda<strong>do</strong>s quantos conseguirem. O que lhes garantiriauma choruda recompensa <strong>do</strong> sultão.— Nesse c<strong>as</strong>o, como podemos agir de forma a fazer gorar esses planos?Será dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong> tarde para rumar de volta a Palma?— Deve ter si<strong>do</strong> isso que eles calcularam. Seguem rumos convergentes.Se for dada ordem para a nossa flotilha inverter o rumo, eles farão o mesmoe continuarão a aproximar-se de nós. Estaríamos envolvi<strong>do</strong>s em combatemuito antes de atingirmos a proteção <strong>do</strong>s canhões de Palma, senhor.— Nesse c<strong>as</strong>o, Sir Thom<strong>as</strong>, o que me aconselhais a fazer?— Manter <strong>as</strong> galer<strong>as</strong> o mais próximo possível <strong>do</strong>s galeões. Não podemospermitir que o inimigo quebre esse cordão protetor. Disponde umagalera à frente, uma atrás e du<strong>as</strong> de cada la<strong>do</strong> da formação. Os galeões terãode seguir a par, para <strong>as</strong>sistência mútua no c<strong>as</strong>o de o inimigo tentar abordá-los.O maior perigo virá quan<strong>do</strong> o inimigo tentar atrair <strong>as</strong> noss<strong>as</strong> galer<strong>as</strong>para longe d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> posições. Isso não poderá ser permiti<strong>do</strong>, senhor. Temosde manter a formação, aconteça o que acontecer. Da<strong>do</strong> que o número degaler<strong>as</strong> deles é o <strong>do</strong>bro <strong>do</strong> nosso, esta é a nossa única esperança.— Muito bem. — Don Garcia <strong>as</strong>sentiu. — Capitão, temos de nos aproximarde cada uma d<strong>as</strong> noss<strong>as</strong> embarcações à vez, para lhes darmos <strong>as</strong> ordens.Trate disso.— Sim, senhor — acedeu o capitão, antes de se chegar à amurada egritar ordens para que os remos fossem coloca<strong>do</strong>s na água.Richard regressou <strong>do</strong> porão carrega<strong>do</strong> com to<strong>do</strong> o equipamento e arm<strong>as</strong>de Thom<strong>as</strong>. Pousou o far<strong>do</strong> no convés e colocou-se por trás deste, parao ajudar na colocação d<strong>as</strong> plac<strong>as</strong> frontais e <strong>do</strong>rsais da armadura.À medida que a embarcação p<strong>as</strong>sava pelos outros navios na flotilha,o capitão usava um megafone para comunicar <strong>as</strong> ordens. Quan<strong>do</strong> por fimtod<strong>as</strong> <strong>as</strong> galer<strong>as</strong> tinham já recolhi<strong>do</strong> o pano, coloca<strong>do</strong> os remos na água eforma<strong>do</strong> um escu<strong>do</strong> de proteção, <strong>as</strong> vel<strong>as</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is grupos de navios corsáriosque se aproximavam vin<strong>do</strong>s de ambos os la<strong>do</strong>s já eram bem visíveis<strong>do</strong> convés. Pouco depois, o vigia confirmava sem margem para dúvid<strong>as</strong> aidentidade <strong>do</strong>s persegui<strong>do</strong>res.— Têm estandartes verdes.Richard aproximou-se de Thom<strong>as</strong> e murmurou uma pergunta:— Verdes?— A cor <strong>do</strong> Islão. — Thom<strong>as</strong> inspecionou o escudeiro, puxan<strong>do</strong> pelo108


elmo. Richard usava um modelo comum, com o visor levanta<strong>do</strong>, como faziaThom<strong>as</strong>. — Tens o elmo dem<strong>as</strong>ia<strong>do</strong> largo. Aperta a correia.— Se a aperto mais, acabo sufoca<strong>do</strong>.— E se o usares <strong>as</strong>sim largo, à primeira pancada ele roda na tua cabeçae deix<strong>as</strong> de ver. Tombarás às mãos <strong>do</strong> primeiro corsário suficientementerápi<strong>do</strong> para te apanhar pelo la<strong>do</strong> cego.A ranger os dentes, Richard desapertou a fivela e apertou mais a correia.— Assim está melhor — concor<strong>do</strong>u Thom<strong>as</strong>. Voltou a agarrar o elmoe a dar-lhe uma sacudidela. — E trata de usar manopl<strong>as</strong>, se queres manteros de<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s.— Sim, senhor. — Richard baixou a cabeça. — Como ordenais.Thom<strong>as</strong> virou-se para avaliar o progresso <strong>do</strong> inimigo. As du<strong>as</strong> formaçõesde galer<strong>as</strong> eram bem visíveis, a pouco mais de uma milha de ambosos la<strong>do</strong>s. Os seus estandartes verdes ondulavam como língu<strong>as</strong> de c<strong>obra</strong> aosabor <strong>do</strong> vento ligeiro que soprava sobre o oceano. Por entre os vultos distantesque ocupavam o convés d<strong>as</strong> galer<strong>as</strong>, cintilavam de vez em quan<strong>do</strong>reflexos da luz em metal poli<strong>do</strong>. Thom<strong>as</strong> sentiu algum alívio pela primeiravez desde que <strong>as</strong> embarcações tinham si<strong>do</strong> avistad<strong>as</strong>, já que notou que erammais pequen<strong>as</strong> que <strong>as</strong> galer<strong>as</strong> da flotilha de Don Garcia. Aqueles c<strong>as</strong>cos nãolevavam a bor<strong>do</strong> o mesmo poder de fogo, e não conseguiriam ímpeto suficientepara causar danos aos navios espanhóis em c<strong>as</strong>o de colisão. Ainda <strong>as</strong>sim,constituíam uma séria ameaça aos galeões, sobre os quais tinham umatremenda vantagem de velocidade e man<strong>obra</strong>bilidade. Seria uma competiçãoentre rapidez e poder puro, e Thom<strong>as</strong> lembrou-se <strong>do</strong>s combates deursos a que tinha <strong>as</strong>sisti<strong>do</strong> em Londres. Ali ao menos os ursos, emborapesa<strong>do</strong>s e lentos em comparação com os seus verdugos, não estavam acorrenta<strong>do</strong>s.— Aí vêm eles. — Anunciou o capitão.Uma nuvem de fumo surgiu e dispersou-se velozmente à proa da galeraque liderava o grupo a sul, e pouco depois o som de um disparo decanhão chegou aos ouvi<strong>do</strong>s de quem seguia na popa <strong>do</strong> navio-almirante. Ocorsário alterou o rumo, dirigin<strong>do</strong>-se diretamente para a flotilha espanhola,e <strong>as</strong> outr<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> imitaram-no. Quan<strong>do</strong> o som <strong>do</strong> sinal alcançou <strong>as</strong> galer<strong>as</strong>a norte, também el<strong>as</strong> aproaram à força comandada por Don Garcia. Esteobservou <strong>as</strong> man<strong>obra</strong>s inimig<strong>as</strong> e lançou uma pergunta a Thom<strong>as</strong>, sem escondera ansiedade que sentia.— O que é que eles tencionam fazer? Como agiríeis no lugar deles?Thom<strong>as</strong> cerrou os lábios e virou-se para avaliar mais uma vez a aproximação<strong>do</strong> inimigo. Estariam em cima <strong>do</strong>s navios espanhóis em menos demeia hora. Não havia tempo a perder. Não gostava de ter si<strong>do</strong> coloca<strong>do</strong> na-109


quela posição por Don Garcia, m<strong>as</strong> a verdade é que o espanhol tinha razão.Havia poucos cristãos em to<strong>do</strong> o Mediterrâneo que conhecessem melhor aforma de combater daquele inimigo <strong>do</strong> que os cavaleiros da Ordem. Avaliourapidamente os rumos convergentes e limpou a garganta.— Senhor, eles vão tentar forçar a formação. Se conseguirem atrair <strong>as</strong>galer<strong>as</strong> para fora d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> posições, poderão p<strong>as</strong>sar entre el<strong>as</strong> e causar grandedestruição nos galeões. Nesta formação em que estamos, cada uma d<strong>as</strong>noss<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> pode cobrir o espaço que lhe está à frente. Os corsários nãoconseguirão p<strong>as</strong>sar entre el<strong>as</strong> sem se colocarem ao alcance d<strong>as</strong> boc<strong>as</strong> defogo montad<strong>as</strong> n<strong>as</strong> pro<strong>as</strong> <strong>do</strong>s nossos navios. E os barcos deles são suficientementepequenos para poderem ser afunda<strong>do</strong>s por um tiro bem coloca<strong>do</strong>,ou pelo menos força<strong>do</strong>s a aban<strong>do</strong>nar o combate. A única posição que nãopodemos cobrir com <strong>as</strong> noss<strong>as</strong> arm<strong>as</strong> é a popa desta galera. M<strong>as</strong> enquantomantivermos a formação, poderemos oferecer proteção aos galeões.Don Garcia considerou <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> que escutara e <strong>as</strong>sentiu.— Estou a ver. Muito obriga<strong>do</strong>. Capitão!O comandante <strong>do</strong> navio virou-se de imediato para ele.— Senhor?— Ouviste o que disse Sir Thom<strong>as</strong>. Mantém o rumo e a posição. Avisa<strong>as</strong> equipagens <strong>do</strong>s canhões que têm permissão para disparar à vontade sobrequaisquer navios inimigos que se cruzem à nossa frente.— Sim, senhor.Don Garcia virou-se de novo para Thom<strong>as</strong>.— Agora resta-nos esperar e ver se tendes razão quanto às intenções<strong>do</strong> nosso inimigo.Os corsários ainda navegavam à vela, e a man<strong>obra</strong> era conduzida comsaber, de tal forma que à medida que convergiam para a força espanhola,também se lhe adiantavam. Quan<strong>do</strong> por fim já tinham um bom quarto demilha de avanço, viraram de bor<strong>do</strong>, apontan<strong>do</strong> à flotilha enquanto recolhiam<strong>as</strong> vel<strong>as</strong> e aprontavam os remos para a aproximação final, num rumoperpendicular ao que era segui<strong>do</strong> pelos navios de Don Garcia.— Chegou a hora de sermos testa<strong>do</strong>s — avisou Thom<strong>as</strong>, em tom calmo.Richard, a seu la<strong>do</strong>, lançou-lhe um olhar inquisi<strong>do</strong>r, e Thom<strong>as</strong> acenoucom a cabeça na direção <strong>do</strong> navio corsário mais próximo. — Olha para aproa.Richard reparou no longo cano e no orifício escuro na ponta <strong>do</strong> canhãosaliente da portinhola que se situava na proa da galera. Ten<strong>do</strong>-se coloca<strong>do</strong>à frente <strong>do</strong> comboio espanhol, os corsários aproximavam-se <strong>do</strong>snavios da frente a seu bel-prazer. Avistou-se um jato de cham<strong>as</strong> segui<strong>do</strong><strong>do</strong> elevar de uma pequena nuvem de fumo acinzenta<strong>do</strong> numa d<strong>as</strong> galer<strong>as</strong>,e Thom<strong>as</strong> avistou fragmentos de madeira a explodirem quan<strong>do</strong> a bola de110


ferro penetrou no c<strong>as</strong>co da galera espanhola mais adiantada. O estron<strong>do</strong> <strong>do</strong>disparo alcançou o navio no momento em que os outros corsários disparavamtambém, e atingiam a galera da frente com mais <strong>do</strong>is tiros, enquantooutra bala caía na água, levantan<strong>do</strong> um enorme repuxo. Um novo disparovin<strong>do</strong> de um canhão carrega<strong>do</strong> com pregos e correntes atingiu o convés dagalera, varren<strong>do</strong> os homens lá coloca<strong>do</strong>s como se tivessem si<strong>do</strong> atingi<strong>do</strong>spor uma mão gigante.— Mantém o rumo — sussurrou Thom<strong>as</strong> para si mesmo, enquantoobservava. — Aguenta.O comandante da galera manteve o mesmo rumo e absorveu o fogoinimigo, até deixar de estar na sua linha de fogo. Esse lugar foi ocupa<strong>do</strong> pel<strong>as</strong>du<strong>as</strong> galer<strong>as</strong> que ladeavam os galeões. Os corsários estavam agora maisperto, e até se preocuparam em recuar ligeiramente à força de remos, par<strong>as</strong>e manterem a uma distância que não permitisse aos arcabuzeiros espanhóisatingi-los. Thom<strong>as</strong> recor<strong>do</strong>u que, na última vez que tinha esta<strong>do</strong> envolvi<strong>do</strong>numa batalha naval, os solda<strong>do</strong>s da Ordem mal tinham começa<strong>do</strong>a empregar o arcabuz. Na altura, não tinha aprecia<strong>do</strong> a nova arma, já queera barulhenta, levava imenso tempo a carregar, muito mais <strong>do</strong> que umabesta, e era difícil de utilizar. M<strong>as</strong> tinha acaba<strong>do</strong> por prevalecer e se tornarfundamental.Apesar de os corsários se encontrarem a mais de trezentos p<strong>as</strong>sos d<strong>as</strong>galer<strong>as</strong> espanhol<strong>as</strong>, os solda<strong>do</strong>s não iam ficar à espera <strong>do</strong>s disparos inimigossem tentarem responder. Pequenos repuxos surgiram na superfície <strong>do</strong>mar à frente d<strong>as</strong> pro<strong>as</strong> inimig<strong>as</strong>, e alguns tiros obtiveram mesmo algum êxito,traduzi<strong>do</strong> na queda para o mar de uma figura <strong>do</strong> convés de um <strong>do</strong>s navios.A resposta foi consideravelmente mais letal, já que os disparos qu<strong>as</strong>esimultâneos <strong>do</strong>s corsários fizeram cair uma tempestade de metal cortantesobre os flancos <strong>do</strong>s navios espanhóis. Muitos homens foram derruba<strong>do</strong>s,e <strong>as</strong> vel<strong>as</strong> r<strong>as</strong>gad<strong>as</strong>, deixan<strong>do</strong> <strong>as</strong> pont<strong>as</strong> solt<strong>as</strong> a flutuar ao vento como serpentesenraivecid<strong>as</strong>: os estilhaços de madeira que voavam pelo ar fizeramainda mais estragos.A proa da galera mais à esquerda começou a mudar de direção, apontan<strong>do</strong>ao inimigo; a rotação acelerou quan<strong>do</strong> os remos de bombor<strong>do</strong> ficarampendura<strong>do</strong>s fora de água e o ímpeto que levava fez a galera rodar deforma a enfrentar os que a flagelavam.— Idiota! — soltou Thom<strong>as</strong>, enquanto os seus de<strong>do</strong>s se fechavamcomo garr<strong>as</strong> sobre a amurada. — O idiota.A galera disparou sobre os corsários <strong>as</strong>sim que os seus canhões na proativeram linha de fogo. Nem sequer houve qualquer tentativa de estabilizaro navio e procurar melhores condições para os disparos. Ainda <strong>as</strong>sim,uma d<strong>as</strong> bal<strong>as</strong> entrou precisamente pela portinhola <strong>do</strong> canhão sob o c<strong>as</strong>-111


telo de proa da galera inimiga mais próxima, e prosseguiu o seu caminhodestrui<strong>do</strong>r ao longo <strong>do</strong> comprimento da embarcação, matan<strong>do</strong> rema<strong>do</strong>res,destruin<strong>do</strong> bancos e estilhaçan<strong>do</strong> remos, que saltavam ao longo <strong>do</strong> c<strong>as</strong>co.O outro disparo tombou de forma inócua sobre o mar à frente da galera,lançan<strong>do</strong> sobre os corsários que brandiam <strong>as</strong> su<strong>as</strong> arm<strong>as</strong> na amurada nadamais <strong>do</strong> que alguns salpicos.Assim que a galera espanhola fizera menção de mudar de rumo, osoutros corsários tinham retoma<strong>do</strong> o avanço, p<strong>as</strong>san<strong>do</strong> de ambos os la<strong>do</strong>sda embarcação, de mo<strong>do</strong> a aproveitarem da melhor forma a brecha que seabrira na formação de proteção aos galeões. O navio corsário danifica<strong>do</strong>pelo disparo estava imobiliza<strong>do</strong>, já que era preciso limpar <strong>as</strong> baix<strong>as</strong> entre osrema<strong>do</strong>res, atirar os cadáveres para o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> porão, e redistribuir os sobreviventespelos remos ainda utilizáveis. Enquanto o navio oscilava na ondulação,a galera espanhola continuou a atacá-lo, derruban<strong>do</strong> o m<strong>as</strong>tro davante e transforman<strong>do</strong> a proa numa ruína de estilhaços e madeir<strong>as</strong> disformes.Thom<strong>as</strong> continuou a observar, toman<strong>do</strong> nota de que aquele corsáriojá não conseguiria envolver-se na batalha, e teria sorte se conseguisse evitaro afundamento. Pouco conforto lhe dava tal ideia, porém, já que <strong>as</strong> outr<strong>as</strong>cinco galer<strong>as</strong> inimig<strong>as</strong> tinham agora caminho livre para se lançarem sobreos galeões. Um coro de estali<strong>do</strong>s soou quan<strong>do</strong> os corsários trocaram salv<strong>as</strong>de fogo miú<strong>do</strong> com a tripulação de uma galera, segui<strong>do</strong> <strong>do</strong> estron<strong>do</strong> de umcanhão vin<strong>do</strong> da galera que seguia à frente e à esquerda <strong>do</strong> navio em queThom<strong>as</strong> se encontrava. O disparo atingiu a ré <strong>do</strong> corsário mais adianta<strong>do</strong>,derruban<strong>do</strong> os oficiais que lá se tinham junta<strong>do</strong>.— Senhor. — Thom<strong>as</strong> virou-se para Don Garcia. — Temos de impediros corsários de chegarem junto <strong>do</strong>s galeões.— Isso vejo eu, obriga<strong>do</strong>. Temos de nos aproximar mais deles.Thom<strong>as</strong> deitou outro longo olhar à cena até perceber que uma d<strong>as</strong> embarcaçõesinimig<strong>as</strong> ostentava uma flâmula de muito maiores dimensõesque <strong>as</strong> outr<strong>as</strong>. Apontou-a.— Aquele ali deve ser o navio <strong>do</strong> líder <strong>do</strong> grupo.Don Garcia seguiu a indicação com o olhar.— Se conseguirmos tomá-lo ou afundá-lo, os outros poderão ficar desencoraja<strong>do</strong>s,senhor.— E a formação? Se perseguirmos aquela embarcação, não poderemoscontinuar a cobrir a retaguarda d<strong>as</strong> outr<strong>as</strong> noss<strong>as</strong> galer<strong>as</strong>.— É tarde de mais para isso. A formação só serve enquanto to<strong>do</strong>s osnavios mantêm a posição. — Thom<strong>as</strong> fez um gesto na direção da galera quecontinuava a fustigar o navio corsário já sem m<strong>as</strong>tro, a afundar pela proa.— Agora, senhor, é cada navio por si mesmo.112

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!