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O Dia das - Saída de Emergência

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tempo com o assunto até a casa ser virada do avesso à procura<strong>de</strong> impressões digitais e <strong>de</strong> outros indícios invisíveis aolho nu. Despedi-me e saí.Não perdi muito tempo a pensar na morte <strong>de</strong> LuísEspanhol. A explicação oficial (homicídio motivado poractivida<strong>de</strong> criminosa e retaliação por autor <strong>de</strong>sconhecido)tinha alguns buracos incontornáveis, mas ninguém mostravagran<strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> em preenchê-los e nenhuma <strong>das</strong> vítimasmerecia o esforço. Fechei os olhos às incoerências, arquiveio assunto na categoria mental <strong>de</strong> “casos passados” e seguiem frente. Um mês <strong>de</strong>pois, o caso acabou por me cair novamenteem cima.Passei por um corredor <strong>de</strong>corado com fotografias <strong>de</strong>operacionais mortos em serviço, uma coisa longa e <strong>de</strong>primentea que chamava “alameda dos coitadinhos” sem partilhara graça com ninguém. Não podia evitar passar por aliporque era a única forma <strong>de</strong> alcançar a “área <strong>de</strong> lazer”, <strong>de</strong>signaçãocriativa para uma sala acanhada contendo um sofáencardido, um cesto com revistas e jornais pré-históricos,uma máquina <strong>de</strong> café e outra <strong>de</strong> doces e aperitivos. Quasejunto à porta, dois patrulheiros olhavam uma fotografiaque nunca vira antes. Passei por eles, sem interrompera conversa que <strong>de</strong>corria em tom sóbrio, olhei brevementea fotografia, avancei dois passos e voltei atrás para vermelhor. Reconheci Anjos, um dos agentes que me receberaem casa <strong>de</strong> Luís Espanhol. Com farda <strong>de</strong> gala e exibindo osorriso pateta que tanto me irritara, agora eternizado emmonumento fúnebre. Os dois patrulheiros continuaram afalar, virando-se para me acolher na conversa sem qualquerestranheza.— O mais esquisito é terem morrido os dois no mesmodia em sítios diferentes — disse um. — Foi quase como seestivesse <strong>de</strong>stinado.Ai.— Juntos em patrulha, juntos na eternida<strong>de</strong> — comentouo outro, beberricando café do pequeno copo <strong>de</strong> plásticobranco que segurava numa mão.— O Marques também morreu? — A pergunta saltou-medos lábios antes que tivesse tempo <strong>de</strong> pensar no quedizia. Respon<strong>de</strong>ram-me com acenos <strong>de</strong> cabeça pesarosos.— On<strong>de</strong> está a fotografia?— Caiu da varanda <strong>de</strong> casa — explicou o outro. — Nãoestava <strong>de</strong> serviço. Diz-se muita coisa, mas a mulher estava lácom os filhos e jura que parecia normal.Aparentemente, havia mortes mais dignas <strong>de</strong> enfeitarpare<strong>de</strong>s do que outras.— Como foi? — perguntei, apontando a fotografia <strong>de</strong>Anjos.— Atravessou-se na estrada a correr. Há quem diga quecorria atrás <strong>de</strong> um carteirista, mas não há certezas — respon<strong>de</strong>uo do café. — Não viu o eléctrico. Há exactamentequinze dias. No mesmo dia e quase à mesma hora. Até custaa crer.Custava, realmente.— E o Raimundo — disse o outro. Esperei que elaborasse.Não me <strong>de</strong>siludiu. — O Jorge Raimundo da científica.Teve um aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> mota no fim-<strong>de</strong>-semana. Só respirapela máquina. Morte cerebral. Os médicos esperam autorizaçãoda família para <strong>de</strong>sligar o interruptor.Senti um tilintar incómodo na nuca. Com o passar dosanos, fui-me convencendo <strong>de</strong> que era fisicamente alérgico asarilhos. Agoniavam-me e tentava evitá-los sempre que possível.Mas, daquela vez, não conseguiria escapar. Jorge Raimundo.Para os dois patrulheiros que miravam a fotografia,o <strong>de</strong>stacamento tinha perdido três agentes no mesmo mês.Era uma coincidência trágica. Para mim, havia algo mais.Fora Raimundo a varrer a casa <strong>de</strong> Luís Espanhol à procura<strong>de</strong> indícios. Três dos polícias enviados ao local mortos. Sefosse só uma coincidência, óptimo. Se, por um acaso, fossealgo mais, o quarto elemento não esperaria calmamente asua vez.Reli o relatório que escrevera à pressa. Não era uma <strong>das</strong>minhas produções literárias mais inspira<strong>das</strong>, mas continhaa informação que procurava. O <strong>de</strong>partamento não enviaramais ninguém ao local do crime. Além dos polícias, apenasmais dois elementos tinham entrado na casa: dois técnicosda Medicina Legal, encarregados <strong>de</strong> atestar as três mortes(convenhamos que não lhes <strong>de</strong>u muito trabalho) e <strong>de</strong> removeros cadáveres para autópsia (o que foi bastante maiscomplicado). Contactei os serviços do instituto e pergunteipor eles. Um estava fora em serviço. O outro gozava umasférias mereci<strong>das</strong> na Polinésia, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> regressaria com forçasredobra<strong>das</strong> e com um sorriso que levaria meses a esbater.Claro que não. Esta resposta facilitar-me-ia muito a vidae pouparia horas <strong>de</strong> sono preciosas, mas não teria essa sorte.Estava morto. Encontraram-no numa casa <strong>de</strong> banho do instituto.Escorregou no chão ainda molhado <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> umalimpeza, caiu mal e partiu o pescoço. Havia uma hipóteseem mil <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r acontecer. Um verda<strong>de</strong>iro felizardo o nossohomem. Pedi os relatórios <strong>de</strong> autópsia dos dois políciasmortos e a secretária com que falei prometeu enviar-mospor email. Ao abrigo do protocolo entre os serviços <strong>de</strong> investigaçãoe a Medicina Legal, os inspectores estavam autorizadosa solicitar relatórios <strong>de</strong> autópsia e estes <strong>de</strong>veriam serfornecidos sem perguntas. Claro que esta directiva <strong>de</strong>veriaaplicar-se apenas aos relatórios <strong>de</strong> autópsia relevantes paraas investigações, mas alguém se esquecera <strong>de</strong> incluir essaressalva e tornara-se habitual pedir relatórios <strong>de</strong> autópsiasaleatórias apenas como material <strong>de</strong> leitura. Ninguém estranhava.Ninguém queria saber. Não pedi também o relatóriodo homem que lhes morrera para não <strong>de</strong>spertar atençõesin<strong>de</strong>seja<strong>das</strong> e porque aqueles bastariam para confirmar ounegar a teoria que começava a afligir-me o cerebelo com<strong>de</strong>masiada insistência.Chegaram em formato digitalizado uns minutos <strong>de</strong>pois.Pensei se o instituto teria gente cuja única função fosse enviarrelatórios à polícia ou se seria um dia <strong>de</strong> pouco movimento.As duas mortes estavam classifica<strong>das</strong> como aci<strong>de</strong>ntais,não havendo indícios que sugerissem o contrário.O corpo <strong>de</strong> Marques apresentava fracturas múltiplas provoca<strong>das</strong>pela queda <strong>de</strong> um oitavo andar e o relatório incluíaum parágrafo longo <strong>de</strong> palavreado médico que dizia, basicamente,que a maior parte dos seus órgãos internos tinhamficado reduzidos a puré. Não tinha outras marcas no corpoalém <strong>das</strong> que resultavam da queda. O relatório da autópsia<strong>de</strong> Anjos era muito mais curto. O que sobrara do seu infelizencontro com o eléctrico não chegava para motivar dissertaçõesteóricas.Recor<strong>de</strong>i os objectos que Luís Espanhol tinha sobre amesa quando foi encontrado. O livro. A vela negra. O cálice<strong>de</strong> prata. Afastei o pensamento que me assaltou mais umavez. Ainda era cedo. Antes <strong>de</strong> começar a pon<strong>de</strong>rar seriamenteessa possibilida<strong>de</strong>, precisava <strong>de</strong> mais uma confirmação.Não queria voltar a vê-lo se não fosse absolutamente necessário.A última vez continuava a alimentar-me pesa<strong>de</strong>los,anos <strong>de</strong>pois.34 35Voltei à rua on<strong>de</strong> tudo começara. A casa <strong>de</strong> Luís Espanholtinha uma placa numa <strong>das</strong> janelas, dizendo: “VEN-DE-SE”. Seria capaz <strong>de</strong> apostar que nenhum agente imobiliáriopartilharia a peculiar história recente da moradia comeventuais interessados na compra. Um passado envolvendohomicídios violentos e inexplicáveis não era consi<strong>de</strong>radoelemento valorizador do imóvel.A morada da vizinha fora anotada pela letra <strong>de</strong> Anjosou <strong>de</strong> Marques numa folha <strong>de</strong> papel agrafada por mim aorelatório do caso. Vivia no prédio baixo situado imediatamenteao lado da casa on<strong>de</strong> tinham ocorrido as mortes. Batià única porta do rés-do-chão. A mulher que abriu estava adéca<strong>das</strong> <strong>de</strong> ter os oitenta e dois anos da testemunha. Apresentei-me,mostrei o crachá e expus ao que vinha.— Chamo-me Baltazar Men<strong>de</strong>s e sou inspector da investigaçãocriminal. Gostaria <strong>de</strong> falar com a Dona IsauraMachado, se fosse possível.A mulher franziu o sobrolho e não fez qualquer esforçopara escon<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>sagrado. Não respon<strong>de</strong>u.Estava ali por motivos muito pouco ortodoxos e nãotinha maneira <strong>de</strong> forçar a colaboração. Por mais que me apetecesserespon<strong>de</strong>r à bruta.— A Dona Isaura foi registada como testemunha numcaso que investigamos. Tem a ver com a morte do proprietárioda casa aqui ao lado. Posso falar com ela? Prometo serrápido.A nesga que mantinha aberta estreitou-se ainda mais.— Agra<strong>de</strong>ço que não me meta em confusões. Não sei<strong>de</strong> nada.— É a filha?Não respon<strong>de</strong>u, mas percebi pela expressão que sim.— Já disse que não sei <strong>de</strong> nada. Não me meta em confusões,por favor — voltou a pedir.Tive <strong>de</strong> encostar a mão à porta para impedir que a fechasse.Mas sem forçar. Isso po<strong>de</strong>ria meter-me a mim emconfusões sérias, se lhe passasse pela cabeça apresentarqueixa.— A Dona Isaura po<strong>de</strong> ter informações essenciais àinvestigação. Ela não está?A porta abriu-se e a expressão da mulher mudou.— A sério que não sabe?Aquela frase costumava antece<strong>de</strong>r a martelada.— Não. Não sei.— A minha mãe morreu. Fez agora quinze dias.Engoli um pedregulho.— Como?Vi passar-lhe pelo olhar algo que me arrepiaria, se fossedado a arrepios. Baixou a cabeça e tornou a erguê-la antes<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r.— Abriu a garganta com uma faca <strong>de</strong> amanhar peixe.Não sei como nem porquê.Outro pedregulho. Se continuasse assim, ia precisar <strong>de</strong>um digestivo. Precisava <strong>de</strong> uns minutos para conseguir dizer-lhealguma coisa. Felizmente, a mulher continuou.— Levaram-me para a esquadra e passaram uma noiteinteira a chatear-me a cabeça. Fartei-me <strong>de</strong> lhes dizer que aminha mãe já estava na cama quando me fui <strong>de</strong>itar e que aencontrei <strong>de</strong> manhã naquele estado. Só quando fizeram aautópsia é que me <strong>de</strong>ixaram ir.Consegui dizer-lhe qualquer coisa, mas não sei o quefoi. Quando <strong>de</strong>i por mim, a porta esta fechada e eu continuavaali, a olhar as lascas <strong>de</strong> tinta que se soltavam da ma<strong>de</strong>irae a pensar que não podia adiar mais o inevitável.Arrastei-me <strong>de</strong> volta ao comissariado, sentei-me à secretáriae abri a gaveta que abria com menos frequência. Aofundo, por baixo <strong>de</strong> uma pilha <strong>de</strong> agen<strong>das</strong> <strong>de</strong> anos passados,encontrei o cartão, escurecido e com um canto dobrado.Pousei-o sobre a secretária e olhei-o durante um longo momento.Não que o conteúdo justificasse exame tão <strong>de</strong>morado.Tinha apenas um nome, “Sr. Salcedo”, sobre um número<strong>de</strong> telefone fixo. Por cima do nome, um pentagramaencaixado num círculo. Pelo menos, não estava <strong>de</strong> pernaspara o ar. Ou <strong>de</strong> vértices para o ar. Todos sabem que ospentagramas invertidos são coisas terríveis. Mas, orientadoscom o vértice certo para cima, muda tudo. Ou, em alternativa,não passava <strong>de</strong> um disparate pseudo-místico alimentadopor gente com imaginação a mais e inteligência a menos.Não me interpretem mal. Não sou um daqueles fundamentalistasracionais que remetem to<strong>das</strong> as questões supostamentesobrenaturais para as categorias <strong>de</strong> embuste,crendice ou doença mental. Ou melhor. Já não sou. Deixei<strong>de</strong> ser precisamente por culpa do Sr. Salcedo. Trato-o assimnão por especial <strong>de</strong>ferência mas porque nunca lhe soube oprimeiro nome e porque tratá-lo só pelo apelido po<strong>de</strong>riasugerir uma familiarida<strong>de</strong> que não <strong>de</strong>sejo.Aconteceu há oito anos, quando me aproximava do segundoaniversário <strong>de</strong> serviço. Numa noite <strong>de</strong> plantão, fuiacordado por uma mulher <strong>de</strong> uma reflexão profunda emque babava o tampo da secretária. Não era particularmentebonita, mas era suficientemente vistosa para preferir quenão me tivesse visto naquela figura. Disse que tinha faladocom alguém na recepção e que a tinham mandado ter comigo.Pedi-lhe que se sentasse e que me contasse qual era oproblema. Começou a chorar <strong>de</strong> imediato e lá me foi dizendoentre soluços que fora violada repeti<strong>das</strong> vezes e que nãoaguentava mais. Peguei numa ficha e comecei a pedir-lhe osdados do costume. Nome, ida<strong>de</strong>, morada, profissão, estadocivil. A seguir, passei aos dados relativos à queixa. Pergunteise conhecia o violador. Respon<strong>de</strong>u-me que não. Pergunteiquando acontecera pela última vez. Respon<strong>de</strong>u que fora nanoite anterior. Perguntei on<strong>de</strong> fora. Fora no quarto. Forasempre no seu quarto. Perguntei-lhe como entrava alguémque não conhecia no seu quarto repeti<strong>das</strong> vezes. Respon<strong>de</strong>uque não sabia. Perguntei porque não fizera queixa antes.Respon<strong>de</strong>u que tivera medo. Pedi-lhe uma <strong>de</strong>scrição do violadorem traços gerais. Respon<strong>de</strong>u que era invisível.Obviamente, fiz o que qualquer pessoa sensata faria eman<strong>de</strong>i-a embora. Voltou na semana seguinte, visivelmentemaltratada. Um olho negro, o lábio ferido. Arranhões e nódoasnegras na cara e nos braços. Disse que tinha acontecidomais uma vez e que tentara resistir, sem sucesso. A questãoagravou-se. Não era apenas o <strong>de</strong>lírio inofensivo <strong>de</strong> umadoida e tinha <strong>de</strong> tomar medi<strong>das</strong> para evitar que a mulhervoltasse a fazer aquilo a si própria. Se a man<strong>das</strong>se embora,não po<strong>de</strong>ria prever o que faria a seguir para provar que diziaa verda<strong>de</strong>. Encaminhei-a para o psicólogo que fazia acompanhamentoàs vítimas <strong>de</strong> crime violento. Recebeu-a e veiover-me poucos dias <strong>de</strong>pois. Disse que pedira à mulher umexame médico para averiguar a extensão dos estragos. Osresultados provavam que as feri<strong>das</strong> não tinham sido provoca<strong>das</strong>pela própria e, além disso, mostravam que tinha sidoviolada, tal como dizia. A avaliação psicológica não revelavanada além da profunda fragilida<strong>de</strong> emocional provocadapelo choque. Sugeri que a mulher po<strong>de</strong>ria estar a protegera i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do violador e o psicólogo discordou, dizendoque, se fosse essa a intenção, não fazia sentido pedir ajuda

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