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O Dia das - Saída de Emergência

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Quereis primeiro criar um mundo tal que possais adorá-lo<strong>de</strong> joelhos; é a vossa última esperança, o vossosupremo êxtase.Os não-sábios, todavia, o povo, são semelhantes ao riopor on<strong>de</strong> avança um barquinho e no barco vão, solenese disfarçados, os juízos <strong>de</strong> valor.Pusestes a vossa vonta<strong>de</strong> e os vossos valores no rio doporvir; estas crenças do povo a respeito do bom e domau revelam uma muito antiga vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.Fostes vós sábios insignes, que instalastes esses passageirosno barquinho, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> os ter<strong>de</strong>s enfeitado comadornos e nomes sumptuosos – fostes vós e a vossavonta<strong>de</strong> dominadora (Nietzsche 2000: 138).Desta forma, uma outra implicação resi<strong>de</strong> no facto <strong>de</strong>não po<strong>de</strong>r existir uma verda<strong>de</strong> objectiva imutável, ainda quese tente alcançá-la exclusivamente pela Ciência, o que, porsua vez, implica que também não haja uma moral absoluta.Para Nietzsche, quer os cientistas, quer os moralistas procuramalgo que é impossível alcançar, o absoluto e imutável,factos absolutamente objectivos no caso dos primeiros emorais absolutas e imutáveis no caso dos segundos. Apesardisso, como Mary Warnock em Existentialism (1970) aponta,o filósofo alemão concedia que, apesar <strong>de</strong> os cientistas estaremerrados na sua busca pelo Absoluto, os moralistas ain<strong>das</strong>e encontram mais distantes.Para Nietzsche os conceitos <strong>de</strong> Bem e Mal não sãoinerentes a qualquer objecto e, numa perspectiva elitista,gran<strong>de</strong> parte dos valores são os valores do povo e não doindivíduo. Os moralistas encontrarão paradigmas largamenteaplicáveis à gran<strong>de</strong> generalida<strong>de</strong> da nossa realida<strong>de</strong>, aliássão esses paradigmas morais que permitem às nossas socieda<strong>de</strong>sfuncionar. Aquilo que não po<strong>de</strong>mos esperar é queesses paradigmas funcionem in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> qualquercondição e para sempre. Como o filósofo afirma: “Oscriadores <strong>de</strong> valores foram primeiro povos, e só mais tar<strong>de</strong>indivíduos; na verda<strong>de</strong>, o indivíduo foi a última criatura aaparecer” (Nietzsche 2000: 75).A liberda<strong>de</strong> que esta negação da moralida<strong>de</strong> absoluta einerente permite, po<strong>de</strong> cativar-nos, mas ao mesmo tempopo<strong>de</strong> aterrorizar-nos, tal como em Lovecraft a perspectiva<strong>de</strong> um Universo amoral e sem qualquer indício <strong>de</strong> teleologianos cativa nas suas infinitas possibilida<strong>de</strong>s e ausência <strong>de</strong>“amos” a quem <strong>de</strong>ver obediência. Ao mesmo tempo, estaperspectiva assusta-nos, ao relembrar-nos da nossa própriainsignificância face à vastidão e po<strong>de</strong>res que po<strong>de</strong>rão aindaestar ocultos <strong>de</strong> nós.Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser paradoxal que este questionar <strong>de</strong> umamoralida<strong>de</strong> estabelecida, convencional e presente na cosmovisãodo escritor em análise e na sua ficção, contraste comuma personalida<strong>de</strong> tão reconhecidamente conservadora,atraída até pelas convenções sociais do século XVIII emInglaterra. Esse apego po<strong>de</strong>rá ter a ver com uma atitu<strong>de</strong>romântica e saudosista do autor por um tempo <strong>de</strong> valoresmais autênticos, muito diferentes da sua socieda<strong>de</strong> industrial,her<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> um certo racionalismo sem imaginação doséculo XIX, logo, mais liberto <strong>de</strong>sses valores ancestrais. Sãofrequentes as vezes que Lovecraft advoga uma arte e ummodo <strong>de</strong> vida assentes na tradição, nomeadamente nestamissiva dirigida ao seu amigo e escritor Fritz Leiber:Aquele que <strong>de</strong>seja criar <strong>de</strong>ve viver no seio da paisagemque consi<strong>de</strong>ra verda<strong>de</strong>iramente sua, on<strong>de</strong> as suas raízesmergulham no passado. Mas a migração para as cida<strong>de</strong>se os progressos mecânicos arrancam a vida <strong>das</strong> pessoasà rotina natural santificada pelos actos e pensamentos<strong>das</strong> gerações sucessivas. As forças e símbolos familiares– as colinas, os bosques, as estações – interferem cadavez menos com a nossa vida quotidiana, tendo sidosubtituídos por horizontes em tijolo, por ruas sistematicamentevarri<strong>das</strong> e por aquecimentos centrais, e ospequenos carreiros e lugares <strong>de</strong> antigamente morrem<strong>de</strong> inanição, à medida que os meios <strong>de</strong> comunicaçãotransformam toda a paisagem numa só podridão estandardizada(Lovecraft 1991:20).Semelhante apelo é feito pelo filósofo alemão, <strong>de</strong>monstrandoum apego aos elementos mais primordiais da vidae que caíam em esquecimento. Através da figura <strong>de</strong> Zaratustraproclama:Foge, meu amigo, refugia-te na tua solidão! Vejo-teaturdido pelo barulho dos gran<strong>de</strong>s homens e apoquentadopelo aguilhão dos pequenos. Os penedos e as florestassaberão calar-se, gravemente, na tua companhia.Assemelha-te <strong>de</strong> novo à tua árvore querida, a árvore <strong>de</strong>ampla ramagem, que escuta silenciosa, suspensa sobreo mar. On<strong>de</strong> cessa a solidão começa a praça pública: eon<strong>de</strong> começa a praça pública começa também o ruídosdos gran<strong>de</strong>s actores e o zumbido <strong>das</strong> moscas venenosas(Nietzsche 2004: 68).O percurso <strong>de</strong> vida do escritor norte-americano pareceter-se coadunado com esta posição, uma vez que avivência <strong>de</strong> Lovecraft em gran<strong>de</strong>s centros, particularmenteem Nova Iorque, foi traumática, reflectindo-se numa escritamais violentamente crítica <strong>das</strong> minorias étnicas que jápovoavam a gran<strong>de</strong> metrópole. O regresso à “sua” NovaInglaterra irá restabelecer um equilíbrio emocional no autor,o que resultaria num dos períodos mais fecundos <strong>das</strong>ua produção escrita.Na concordância entre Lovecraft e Nietzsche noque à tradição e ao afastamento dos gran<strong>de</strong>s palcos daHumanida<strong>de</strong> diz respeito, há simultaneamente, uma contradiçãoaparente entre o apego <strong>de</strong> Lovecraft pela Ciência,o seu interesse pelas novas <strong>de</strong>scobertas científicas e a suaprofunda ligação à tradição e aos valores que a compõem,bem como aos <strong>de</strong>vaneios da imaginação inerentes ao modofantástico. Não seria <strong>de</strong> estranhar que fosse esta contradiçãoque fizesse Lovecraft olhar para si mesmo como um “pu-56 57ritano em <strong>de</strong>cadência”. É também esse conservadorismo ea fé na Razão e na Ciência que, apesar <strong>de</strong> tudo conservava,que o distingue <strong>de</strong> Nietzsche. Com efeito, o filósofo germânicoprivilegiava os impulsos dionisíacos em <strong>de</strong>trimentoda contenção e da razão apolínea, embora conce<strong>de</strong>ndo anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um relativo equilíbrio entre ambas as forças,residindo aí, na sua opinião, o segredo do sucesso da civilizaçãogrega na Antiguida<strong>de</strong> Clássica.Não encontramos em Lovecraft uma <strong>de</strong>fesa exacerbadados impulsos mais obscurosda mente humana, mas encontramosum profundo <strong>de</strong>sejo<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>r, atravésda imaginação, as amarras queprendiam o autor à sua difícilrealida<strong>de</strong>, sendo a escrita capaz<strong>de</strong> produzir sentimentos no autore no leitor, que se aproximame, por vezes, se confun<strong>de</strong>m comaqueles que a religião provoca.Também por estes motivos, não épor acaso que irá escolher o “weirdtale”, como seu veículo preferencial<strong>de</strong> expressão. É este o modo que melhorexprimirá o seu universo interior,as suas angústias e a sua cosmovisão.Não teremos problemas <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong>na sua escrita, pois a mesma éclaramente um reflexo <strong>de</strong> si mesmo, doseu próprio “Eu”. Lovecraft <strong>de</strong>monstrahonestida<strong>de</strong>, não percepciona um mundocor-<strong>de</strong>-rosa e, como tal, também não oreflecte na sua obra.A autenticida<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrada liga-sedirectamente à perspectiva que o autor temdo “weird tale”: este <strong>de</strong>ve abster-se <strong>de</strong> provi<strong>de</strong>nciar umaleitura moralizante, ou provi<strong>de</strong>nciar uma explicação dosacontecimentos que se enquadre na normalida<strong>de</strong>, tal comopo<strong>de</strong>mos encontrar em antecessores como Ann Radcliffe eCharles Brock<strong>de</strong>n Brown.Como já vimos, partindo do princípio <strong>de</strong> ausência<strong>de</strong> uma teleologia, para Lovecraft o homem está sozinho ecompletamente exposto às forças exteriores. Longe <strong>de</strong> umaliberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> acção com um carácter positivo, essa mesmapossibilida<strong>de</strong> surge como uma nuvem negra perante os protagonistas,ao percebermos que, não obstante todo o po<strong>de</strong>rda Ciência e supremacia que a Humanida<strong>de</strong> julga possuir, ascapacida<strong>de</strong>s humanas são insignificantes perante a ameaçaexterior.Não po<strong>de</strong>remos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> estabelecer um paralelo entrea própria vida <strong>de</strong> Lovecraft e a sua obra. Vindo do ambienteseguro <strong>de</strong> uma família semi-aristocrática, que iria conhecerum lento e doloroso <strong>de</strong>clínio económico, Lovecraft sentiuna pele a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que as regras e princípios, que regiamuma vida protegida pelo nome e dinheiro, não se aplicavamno mundo competitivo e hostil ao qual foi lançado epara o qual não estava preparado. Não é <strong>de</strong> admirar queas suas personagens sejam quase sempre pacatos estudiososda área <strong>das</strong> letras ou <strong>das</strong> ciências exactas, claramenteevocando o próprio autor. A recorrência da ameaça exterior,na sua ficção, acaba por ser reflexo <strong>das</strong> frequentesameaças <strong>de</strong> um mundo contra o qual não tinha as armasa<strong>de</strong>qua<strong>das</strong> para lutar. Não será <strong>de</strong> admirar que escolhessecomo referência estética, política e social o século XVIIIinglês, embora esta também fosse uma visão romântica ei<strong>de</strong>alizada <strong>de</strong>ssa época.Howard Phillips Lovecraft nasceuem Provi<strong>de</strong>nce, Rho<strong>de</strong> Island, a 20<strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1890. A carreira <strong>de</strong>Lovecraft como escritor profi ssional foilargamente comprimida num período<strong>de</strong> <strong>de</strong>zasseis anos. Permaneceuvirtualmente <strong>de</strong>sconhecido exceptopara as pequenas audiências <strong>de</strong>pulp magazines como a Weird Taleson<strong>de</strong> o seu trabalho foi publicado.Os magros rendimentos da escritanão chegavam para reforçar osrendimentos <strong>de</strong> uma empobrecidaherança, e ele continuou a escreveranonimamente para outrosautores. Ao mesmo tempo animouum pouco a sua monótonaexistência com uma extensatroca <strong>de</strong> correspondência comoutros escritores e leitores<strong>de</strong> fi cção fantástica. Quandouma combinação <strong>de</strong> cancro enefrite reclamou a sua vidaaos quarenta e seis anos <strong>de</strong>vida, a perda foi sentida portodos os amigos, muitosconhecendo-o apenascomo correspon<strong>de</strong>ntes.Desta forma, po<strong>de</strong>mos ver que, numa perspectiva existencialista,há uma preocupação com a autenticida<strong>de</strong> da escrita,existindo em Lovecraft uma verda<strong>de</strong>ira consciência dopapel do escritor e da sua condição humana. Uma <strong>das</strong> suasoriginalida<strong>de</strong>s resi<strong>de</strong> no facto <strong>de</strong> que o processo <strong>de</strong> catarse,que normalmente surge associado à escrita e, particularmente,à escrita gótica, revela não tanto os recantos maisobscuros da mente humana, como é particularmente patenteem Poe, mas sim a angústia e precarida<strong>de</strong> da existênciahumana face ao Universo indiferente ou hostil. Esse processocatártico po<strong>de</strong>rá exercer aqui uma função <strong>de</strong> aceitação dacondição humana, tal como ela é, insignificante, mesquinhae transitória, mas também mais verda<strong>de</strong>ira ao aceitarmo-lae tendo consciência da sua real natureza. Esta sua atitu<strong>de</strong>,em relação à existência, seria mantida ao longo <strong>de</strong> toda asua vida, inclusivamente nos seus últimos momentos. Numasua carta, escrita em 1936, respon<strong>de</strong> acerca do que faria setivesse apenas uma hora <strong>de</strong> vida. O que nela <strong>de</strong>clara viria arevelar-se profético:As for the general i<strong>de</strong>a of what one would do if certainof <strong>de</strong>ath in an hour – I fancy most persons in normalhealth tend to sentimentalise and romanticise a bitabout it. For my part – as a realist beyond the age oftheatricalism and naive beliefs – I feel quite certain thatmy own known last hour would be spent quite prosaicallyin writing instructions for the disposition of certainbooks, manuscripts, heirlooms, and other posses-

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