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O Dia das - Saída de Emergência

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à polícia. Vi-me forçado a dar-lhe razão. Sem saber o quefazer, olhei-o, tentando pensar em alguma coisa. Foi quandoo ouvi dizer-me que teríamos <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a hipótese <strong>de</strong> asua história ser verda<strong>de</strong>ira. Ri-me, sem achar qualquer graça.Apenas por reflexo. O psicólogo não se riu. Discutimos oassunto e acabou por me convencer a contactar alguém queconhecia, um especialista naqueles assuntos menos claros.Chamou-lhe “investigador paranormal” e <strong>de</strong>u-me o mesmocartão que agora tinha sobre a secretária.Contactei o Sr. Salcedo, por intermédio do seu assistente,e prontificou-se a ajudar. Marcámos encontro na casada mulher e, por insistência sua, também estive presente.Passeou-se pela casa <strong>de</strong> mão dada com a mulher, erguendodiante <strong>de</strong> si uma espécie <strong>de</strong> can<strong>de</strong>ia fedorenta. Com o pequenoapartamento cheio <strong>de</strong> fumo, disse-nos que se tratava<strong>de</strong> um íncubo, um <strong>de</strong>mónio libidinoso que atormentava osono <strong>de</strong> mulheres e, em casos extremos, podia possuí-lasfisicamente. Explicou que era urgente fazer um exorcismo.Não consigo <strong>de</strong>screver o ritual. Foi apenas uma sucessão<strong>de</strong> gestos e actos aparentemente banais e a falta <strong>de</strong> espectacularida<strong>de</strong>contribuiu para agravar ainda mais o meucepticismo. Mas não tardaram a suce<strong>de</strong>r coisas que prefironão lembrar em pormenor, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> as ter conseguido remeterpara o recanto menos visitado da memória. Bastarádizer que a mulher ficou satisfeita e pagou ao assistente doSr. Salcedo a quantia registada na conta que lhe apresentaram,elevada mas sem exageros. Depois disso, soube queacabou por ser internada numa clínica psiquiátrica e que seenforcou com um lençol. A minha primeira impressão estavacerta. Era realmente maluca. Mas isso não apagaria o quevi durante o exorcismo.Peguei no telefone e marquei o número.Acúrcio, o assistente, <strong>de</strong>u-me a morada e pus-me a caminho.Era um prédio em plena avenida, la<strong>de</strong>ado por mamarrachosmulticoloridos e com marquises espelha<strong>das</strong>. Nãoconseguia disfarçar os anos. Da última vez que a fachadafora pintada, talvez uns cinquenta anos antes, teria ficadocom aspecto quase encantador, com as suas janelas estreitase varan<strong>das</strong> pequenas e elegantes. Todo o prédio, aliás, eraestreito e, quem o olhasse do lado oposto da avenida, quaseacreditaria que era espalmado pelos prédios mais mo<strong>de</strong>rnos<strong>de</strong> ambos os lados, como se estes preten<strong>de</strong>ssem fazê-lo <strong>de</strong>saparecer.A cor fora-se há muito, substituída por um cinzentoenegrecido, aplicado década após década pelos escapesdos muitos carros que ali passavam. No alto, um frontãoque a <strong>de</strong>gradação progressiva fizera parecer mordido porum gigante <strong>de</strong>vorador <strong>de</strong> tijolo, pedra e cimento. Ao centrodo que restava do frontão, via-se ainda a maior parte <strong>de</strong> umpainel <strong>de</strong> azulejos representando motivos florais. Faltava jáa maior parte dos azulejos que formavam uma moldura emtorno do motivo central.Bati à porta. A meu lado, reparei num botão branco ro<strong>de</strong>adopor um rectângulo <strong>de</strong> metal escuro com cantos arredondados.Pressionei-o e ouvi o zumbido eléctrico no interior.Momentos <strong>de</strong>pois, uma sombra mostrou-se pelo vidrofosco da porta. Ouvi a chave rodar na fechadura e duastrancas serem corri<strong>das</strong>. O homem que me surgiu diante dosolhos não mudara nada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a última vez que o vira. Se amemória não me falhava, até a camisa branca e as calças pretasvinca<strong>das</strong> eram idênticas. Cabelo castanho-escuro penteadocom risco ao meio, nariz gran<strong>de</strong> e torto, olhos <strong>de</strong>masiadojuntos, lábios grossos. Tive <strong>de</strong> inclinar a cabeça para cimapara lhe ver os traços da cara. A mulher que tinham libertadodo seu violador invisível comentou quando ficámos sozinhosapós o exorcismo, que Acúrcio tinha a constituiçãofísica <strong>de</strong> uma pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> betão e o temperamento <strong>de</strong> umajaula <strong>de</strong> leões famintos à espera que alguém se esquecesse <strong>de</strong>fechar a porta. Era precisamente isso. Pobre coitada. Talveza capacida<strong>de</strong> para fazer comparações inspira<strong>das</strong> fosse umdos primeiros sintomas da loucura.Acenou com a cabeça em reconhecimento do nossoencontro anterior e pôs-se <strong>de</strong> lado para me <strong>de</strong>ixar entrar.Chamava-lhe “assistente”, mas não compreendia realmentequal o papel que <strong>de</strong>sempenhava. Podia ser um secretário,um guarda-costas, um mordomo. Ou talvez um pouco <strong>de</strong>tudo isso. Não me interessava o suficiente para pedir esclarecimentose arriscar levar um sopapo que me partisseo nariz.No interior, esperava-me um pequeno vestíbulo. Um cilindro<strong>de</strong> latão on<strong>de</strong> se viam alguns guarda-chuvas e bengalas<strong>de</strong> castão simples. Na pare<strong>de</strong> oposta, uma pequena mesa<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira dourada e, na pare<strong>de</strong>, um espelho <strong>de</strong> tal formamanchado pelo tempo que há muito <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> reflectir oque fosse. Sobre a mesinha, uma vela alta, estreita e branca,com um círculo <strong>de</strong> ervas murchas entrança<strong>das</strong> ro<strong>de</strong>ando-lheo castiçal. Erguia-se um fio <strong>de</strong> fumo do pavio. Acúrcio fechoua porta, trancou-a e voltou a acen<strong>de</strong>r a vela com umisqueiro <strong>de</strong>scartável que retirou do bolso. A seguir, indicou-meos reposteiros que velavam a passagem ao corredor.— Faça favor — disse.Não havia perfumes sinistros no ar. Apenas o cheiro dacera da vela e uma sugestão <strong>de</strong> bolor. Nada <strong>de</strong> corujas empalha<strong>das</strong>em pose sinistra ou caveiras humanas. Nem umaestatueta representando uma divinda<strong>de</strong> esquecida pelos milénios.À esquerda, a escada para o piso superior. E, à frente,um corredor não muito largo revestido com papel <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>florido e <strong>de</strong> cor esbatida. Sob a escada, à esquerda, via-seuma porta baixa. To<strong>das</strong> as outras se abriam na pare<strong>de</strong> direita,incluindo o arco que permitia a entrada na sala. Acúrcioseguia à frente, com o peso dos passos abafado pela passa<strong>de</strong>iragrossa. Segui-o, admirando os quadros pendurados àaltura dos olhos, representando paisagens bucólicas que, àprimeira vista, pouco pareciam diferenciar-se umas <strong>das</strong> outras.Entrámos pela porta ao fundo do corredor.Se esperara ser recebido na câmara <strong>de</strong> um praticante<strong>de</strong> artes mágicas, <strong>de</strong> imediato me <strong>de</strong>siludi. Era a cozinha.Pequena para o tamanho da casa e revestida com azulejosbrancos que contrastavam com o amarelo em que se transformarao branco original da parte superior <strong>das</strong> pare<strong>de</strong>s. Oúnico elemento <strong>de</strong> cor era assegurado pela lagosta <strong>de</strong> louçavidrada disposta sobre um prato <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> couve do mesmomaterial e pendurada no exterior da chaminé.— Inspector Men<strong>de</strong>s, que sauda<strong>de</strong>s! — disse o homem olhando-me e esboçando um sorriso <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes amarelos e<strong>de</strong> pé junto à bancada.As “sauda<strong>de</strong>s” eram absur<strong>das</strong> vin<strong>das</strong> <strong>de</strong> alguém quesalientes. Os óculos <strong>de</strong>lentes grossas tornavam-lhe osolhosminúsculos s e os aros apertavam o nariz arredondado. do. —conhecera durante tão pouco tempo e numa situação tãoÉ servido? — perguntou, vendo as chamas esgotarem-seformal, mas o pouco tempo que convivemos foio suficientee enchendo ndo um copo com o vinho brancono interior dapara me fazer perceber que o Sr. Salcedo era alguémmui-garrafa a ver<strong>de</strong>.eto… sui generis. .Àfalta <strong>de</strong> melhor expressão. sãNão percebi sefalava do vinho, do chouriço ou <strong>de</strong> am-— Chame-me Baltazar, por favor. Ou só Men<strong>de</strong>s — re-bos. De qualquer forma, a minha resposta teria sido a mestorqui.— «Inspector Men<strong>de</strong>s» es» »pparece personagem em <strong>de</strong> umahistória má.ma:— Não, obrigado.— O amigo é que sabe — disse. «Amigo.»Outro ab-Passou uochouriço para outro prato com a ajuda <strong>de</strong> umsurdo. Vestia calças risca<strong>das</strong> curtas quelheexpunhamasgarfo,retirou um naco <strong>de</strong> pão saloio <strong>de</strong> uma caixa <strong>de</strong> latapeúgas brancas até acima do tornozelo. o o Para compensar aaocanto da bancada e fez-me sinal para seguir à sua frente,falta <strong>de</strong> comprimento em baixo, chegavam-lhe quase a meio <strong>de</strong> volta aocorredor, enquanto pegava também mno copo.<strong>das</strong> costas em cima. Por baixo dos suspensórios,uma camisolaFomos para a a sala. Acúrcio estava sentado numa poltronainterior branca encardida e com um buraco no ombro.junto à janela, aproveitando aluzque permeava as cortinasO cabelo continuava grisalho, escasso, oleoso e penteadobrancas para ler. O Sr. Salcedo colocou ouo repasto sobre umasobre a testa <strong>de</strong>masiado alta. — Deixe-me e só acabar estemesa redonda (notei que tinha quatro pernas; a predilecçãoservicinho e já conversamos — acrescentou.dos praticantes <strong>de</strong> artes sobrenaturais pelas mesas <strong>de</strong>pé galoQualquer u que fosse a natureza do “servicinho”, achei era mais um estereótipo eótipo que tombava após confirmação).que haveria locais mais a<strong>de</strong>quados do que a cozinha. Havia Pairava na sala o mesmo moodor ligeiro a bolor que existia nolouça asecar e tudo indicava que também se cozinhava ali. resto da casa, agora misturado com o cheiro do chouriçooNenhum dos resi<strong>de</strong>ntes se importaria <strong>de</strong> comer alimentoassado. O papel <strong>de</strong> pare<strong>de</strong> e era também florido, mas com coresconfeccionado no mesmo sítio on<strong>de</strong> se faziam “serviços”e padrão diferentes do que revestia o corredor. Os mó-<strong>de</strong> natureza indigesta? Ou estaria a ser <strong>de</strong>masiado susceptível?veis eram antiquados e não parecendo ter valor. Sobre umapequena lareira, o elemento <strong>de</strong>corativo mais invulgar: umO Sr. Salcedo terminou <strong>de</strong> colocar parte do conteúdoquadro <strong>de</strong> papel escuro (ou talvez fosse pergaminho) on<strong>de</strong><strong>de</strong> um frasco <strong>de</strong> vidro transparente sem rótulo num prato <strong>de</strong> fora pintado um brasão <strong>de</strong> fundo cinzento com uma árvorebarro, cobriu-o com a tampa e colocou-o <strong>de</strong>lado. A seguir,ver<strong>de</strong> sobreposta. Sobre o tronco <strong>de</strong>sta, um escudo amarelo aergueu uma garrafa <strong>de</strong> vidro ver<strong>de</strong>, igualmente sem rótulo, com cinco pequenos elementos ver<strong>de</strong>s dispostos sem cruz,abriu-a e verteu algumas gotas <strong>de</strong> líquido para o prato. Pousoucuja natureza era impossível <strong>de</strong> <strong>de</strong>scortinar doponto on<strong>de</strong>também a garrafa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> a fechar e, com minúcia, me encontrava. a. Por baixo do brasão, uma faixa a amarela semergueu ligeiramente o prato acima do mármore da bancadaqualquer inscrição. Por cima, o mesmo pentagrama que3637e moveu-o emcírculos cuidadosos para misturar os dois ingredientes.adornava aocartão <strong>de</strong> visita.Pensei se <strong>de</strong>veria aguardar ali ou retirar-me. Era — Peço-lhe que me <strong>de</strong>sculpe, mas estive ocupado atépossível que me arrepen<strong>de</strong>sse do que veria a seguir. Acúrcio agora enão pu<strong>de</strong> parar para o almocinho. Estava cá comvoltara a sair da cozinha pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> entrar, <strong>de</strong>ixando-meuma fraqueza… — Começou a comer, mor<strong>de</strong>ndo o pão esozinho com o seu patrão. Deveria procurá-lo? o chouriço espetado no garfo. A fome era óbvia. Ou talvezO prato foi pousado eo Sr. Salcedo retirou uma caixa comesse sempre como se não visse alimento àfrente há<strong>de</strong> fósforos <strong>de</strong> um suporte ao lado do fogão. Deu dois pas-várias semanas. A única pausa a serviupara esvaziar o coposos empantufados até ao frigorífico, abriu-o e retirou um <strong>de</strong> uma assentada.volume <strong>de</strong> papel vegetal manchado <strong>de</strong> vermelho. Abriu-o Limpou a boca à mangada camisola interior e ergueuusobre a bancada, cortou ouum pedaço com uma faca simples os olhos do prato.<strong>de</strong> cozinha e colocou-o ono interior do prato com o líquido.— Queira então <strong>de</strong>screver r o problema — disse-me.seDepois, riscou umfósforo fe aproximou-o do prato. As Acúrcio ergueu-se, e, pegou no prato e no copo o esaiu comchamas azula<strong>das</strong> envolveram <strong>de</strong> imediato a substância aocentro.eles.Contei-lhe o que vira em casa <strong>de</strong> Luís Espanhol, tentan-tan-— O chouricinho fica sempre melhor se usarmos do não esquecer pormenores ore que pu<strong>de</strong>ssem em ser importan-álcool etílico com umas gotas <strong>de</strong> vinho branco — disse, tes. A seguir, passei às mortes <strong>de</strong> todos os que tinhamentradona casa, com três excepções, incluindo o<strong>de</strong>sgraçadoRaimundo que dificilmente se po<strong>de</strong>ria consi<strong>de</strong>rar realmentevivo.— E o que o preocupa? — perguntou. — Seja sincero.Acúrcio regressou, trazendo um roupão <strong>de</strong> veludo vermelho<strong>de</strong> aspecto pesado. O Sr. Salcedo pôs-se <strong>de</strong> pé e enfiouos braços nas mangas enquanto o seu assistente segura-va a vestimenta. Voltou a sentar-se <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dar um nó nocordão à cintura e Acúrcio regressou à poltrona e ao livro.Fui sincero, como pediu.— Não conseguimos explicar a morte dos assassinos <strong>de</strong>Luís Torres — disse. — A opinião oficial refere queforammortos por elementos que se puseram em fuga sem <strong>de</strong>ixarvestígios no local, oque dificulta a sua i<strong>de</strong>ntificação e loca-

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