alguém no mundo capaz <strong>de</strong> possuir esse manuscrito e <strong>de</strong>tentar <strong>de</strong>cifrá-lo, seria sem dúvida o profundo erudito JohnDee, matemático, astrólogo, criptógrafo e mágico, que aindapor cima tem sobre os restantes candidatos a vantagem<strong>de</strong> ter mantido longas e sugestivas conversações com seressupraterrestres (anjos?) numa linguagem alegadamenteceleste, a Língua Enochiana. O conhecido autor americano<strong>de</strong> FC&F, Lin Carter (1930-1988), <strong>de</strong>clarou que John Deeseria o único capaz <strong>de</strong> traduzir o Necronomicon, caso este livrorealmente existisse, e não esteve com meias medi<strong>das</strong>:após ter «<strong>de</strong>scoberto» essa tradução <strong>de</strong> Dee — publicou-ana íntegra! (Não me surpreen<strong>de</strong>, Lin Carter era capaz <strong>de</strong>tudo, até escreveu coisas com o tortuoso pseudónimo H. P.Lowcraft…) 7Tenho alguns dos livros escritos por John Dee, três dosquais em edições fac-simila<strong>das</strong> <strong>das</strong> edições do séc. XVI, eum dia talvez escreva um artigo totalmente <strong>de</strong>dicado a esteextraordinário personagem, que bem merece. Uma <strong>das</strong> suasobras, sobretudo, promete conhecimentos supranaturais aquem souber interpretá-la; foi editada em Londres em 1564e intitula-se Monas hieroglyphica: Mathematice, Magice, Cabalistice,Anagogiceque, explicata [«A Mónada Hieroglífica: ExplicadaMatematicamente, Magicamente, Cabalisticamente e Anagogicamente»].Estu<strong>de</strong>i os seus 24 Theoremae <strong>de</strong> trás paradiante e <strong>de</strong> diante para trás e confesso que não me sentiagraciado com um sensível acréscimo <strong>de</strong> iluminação, porquenão entendi nem oito por cento. Fracasso que se <strong>de</strong>vesem dúvida à minha notória incapacida<strong>de</strong> para penetrar taisarcanos. Mas quem conseguir entendê-lo, <strong>de</strong> acordo com aadvertência <strong>de</strong> Dee no frontispício, «Qui non intelligit, auttaceat, aut discat» 8 , <strong>de</strong>certo estará em condições <strong>de</strong> realizaros mais inacreditáveis prodígios.John Dee aos 67 anos. Retrato do séc. XVI,por artista <strong>de</strong>sconhecido.7Essa tradução tem por título “The Necronomicon: The Dee Translation Annotatedby Lin Carter”, e vem incluída, na íntegra, em: Robert M. Price (org.), TheNecronomicon: Selected Stories and Essays Concerning the Blasphemous Tomeof the Mad Arab. VvAa. A Chaosium Book, 1996; pp. 130-198.8«Quem não compreen<strong>de</strong>, ou se cale, ou aprenda».Glifo hermético <strong>de</strong> John Dee, interpretado cabalisticamente noseu tratado Monas hieroglyphica (1564).A forma como o Manuscrito Voynich chegou às mãos <strong>de</strong>Dee é nebulosa, e tem sido relatada <strong>de</strong> várias e diferentesmaneiras. Darei a seguir a versão que me parece mais plausível.Arthur Dee (1579-1651), filho <strong>de</strong> John Dee e médicodo rei Carlos I <strong>de</strong> Inglaterra, acompanhou o pai nas suas viagensatravés da Alemanha, Polónia e Boémia, escreveu umacolectânea <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> alquimia, Fasciculus chemicus (1629),e revelou que um manuscrito enigmático teria sido entregueao seu pai pelo primeiro duque <strong>de</strong> Northumberland,que saqueara um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> mosteiros e trouxerao manuscrito juntamente com uma vasta colheita <strong>de</strong> outraspreciosida<strong>de</strong>s. John Dee possuía a reputação <strong>de</strong> ser um coleccionadorentusiasta <strong>de</strong> livros estranhos e um criptógrafo<strong>de</strong> alto calibre, reputação — aliás merecidamente justificada— que levara o duque a procurá-lo para que <strong>de</strong>cifrasse o talescrito e <strong>de</strong>scobrisse os espantosos segredos que certamenteconteria.De que natureza seriam esses segredos não fazemosi<strong>de</strong>ia, mas a convidativa teoria da conspiração sopra-nos aoouvido que «alguém» se empenhou em travar as diligênciasque Dee empreen<strong>de</strong>u para os <strong>de</strong>scobrir. Basta pensarmosna catadupa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraças que sobre ele se abateu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> queiniciou a tarefa <strong>de</strong> tentar <strong>de</strong>scodificar o documento, a começarpor perseguições inexplicáveis e assaltos à sua casa emMortlake, visando preferencialmente a sua enorme biblioteca(mais <strong>de</strong> 3.000 volumes impressos e 3.000 manuscritos),<strong>de</strong>vastada por roubos e vandalizações que arruinaram todoo acervo <strong>de</strong> livros e manuscritos raros incluindo as suas preciosasanotações pessoais. Tudo isso <strong>de</strong>sapareceu e somenteresta uma escassa meia-dúzia <strong>de</strong> livros que se conserva naSt. John’s College Library (University of Cambridge) 9 . Paraculminar, registe-se o pormenor assaz suspeito <strong>de</strong> lhe terapa9 O último exemplar da perdida livraria <strong>de</strong> John Dee, e por sinal da autoria<strong>de</strong>ste, foi <strong>de</strong>scoberto e doado à St. John’s College Library em Junho <strong>de</strong>2009. Tem por título: General and rare Memorials pertayning to the PerfectArte of Navigation (London, 1577).66 67aparecido um persuasivo personagem que muito impressionouDee com as suas capacida<strong>de</strong>s supranaturais…Dee teve a infeliz i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> se associar com ele para progredirnas suas pesquisas — e esclareça-se, <strong>de</strong> imediato,que se tratava <strong>de</strong> um escroque chamado Edward Talbot(1555-1597), con<strong>de</strong>nado por vários crimes e que se intitulavaclarivi<strong>de</strong>nte e capaz <strong>de</strong> realizar as mais espectacularesproezas alquímicas, além <strong>de</strong> falar com espíritossuperiores e <strong>de</strong> visionar prodígios num cristal.Como todos os gran<strong>de</strong>s génios místicos, Dee eraum crédulo e confiava piamente na sincerida<strong>de</strong> <strong>das</strong>pessoas e, nem é preciso dizê-lo, foi enrolado por essealdrabilhas que mudou o nome para Edward Kelley eexplorou John Dee até on<strong>de</strong> pô<strong>de</strong>, acabando por <strong>de</strong>ixáloquase na miséria. Dee casara em segun<strong>das</strong> núpcias,aos 51 anos, com a jovem e apetecível Jane Fromond,que tinha então 23, e o ardiloso Kelley, após uma sessãomediúmnica na Boémia 8 , disse a Dee que o anjo Urielcom quem estivera em contacto <strong>de</strong>ra or<strong>de</strong>m para que osdois homens compartilhassem as respectivas esposas, oque certamente propinou uns bons momentos a Kelleye umas gran<strong>de</strong>s angústias a Dee, que, segundo parece,não duvidou da autenticida<strong>de</strong> da prescrição angélica econsentiu que o trato fosse levado por diante. Afortunadamenteos dois homens separaram-se pouco <strong>de</strong>pois,Kelley prosseguiu a sua carreira <strong>de</strong> alquimista mas nãoconseguiu produzir ouro para o imperador Rudolfo II,que o encarcerou na torre do Castelo Hnevin. Kelleyacabou por morrer estupidamente porque ao tentar fugirescorregando por uma corda, esta era curta <strong>de</strong> maise ele precipitou-se quando ainda se encontrava a meioda <strong>de</strong>scida da altíssima torre.John Dee por sua vez não conseguiu <strong>de</strong>cifrar o misteriosodocumento — «um livro contendo um texto incompreensível»,segundo testemunho do filho, ArthurDee. (Não conseguiu ou não o <strong>de</strong>ixaram?) Para repelir oespectro da miséria John Dee ven<strong>de</strong>u os poucos livrosque lhe restavam, incluindo o Manuscrito Voynich, que foicomprado pelo imperador Rudolfo II, como se disseatrás, por 600 ducados <strong>de</strong> ouro.Mas a história não acaba aqui. Das inúmeras tentativasque se conhecem para <strong>de</strong>cifrar o manuscrito, duas háque teriam estado muito perto da solução — a <strong>de</strong> JohnDee e a <strong>de</strong> um outro erudito, o prof. William Newbold,que veremos a seguir. Em ambos os casos, ambos osautores parecem ter sido «dissuadidos» <strong>de</strong> levar a tarefaa bom termo. William Romaine Newbold (1865-1926),antiquário, especialista em criptografia e professor <strong>de</strong> filosofiana Universida<strong>de</strong> da Pennsylvania, tornara-se conhecidopelas suas pesquisas e <strong>de</strong>scobertas no campo <strong>das</strong>antiguida<strong>de</strong>s e na <strong>de</strong>cifração <strong>de</strong> línguas antigas. Newbol<strong>de</strong>ntrou em contacto com o manuscrito em 1919, quandoeste se encontrava na posse <strong>de</strong> Wilfrid Voynich, e em1921 <strong>de</strong>clarou que <strong>de</strong>scobrira a chave que <strong>de</strong>scodificavao documento. Declaração obviamente sensacional, tantomais que Newbold começou a proferir uma série <strong>de</strong>conferências, em 1921 e 1922, explicando o seu métodobaseado numa hipótese singular: o texto visível não temem si nenhum significado, mas cada letra aparente nãopassa <strong>de</strong> um minucioso constructo <strong>de</strong> pequeníssimasmarcas apenas discerníveis sob potente ampliação. Estavaconvencido que o autor do texto teria sido Roger Bacon,o famoso monge inglês do séc. XIII que tem a seucrédito numerosas <strong>de</strong>scobertas científicas, e, segundoNewbold, muitas <strong>de</strong>las inéditas e somente acessíveis aséculos vindouros. É claro que a comunida<strong>de</strong> científica,sobretudo arqueólogos e paleógrafos, rejeitou o método<strong>de</strong> Newbold tal como rejeitou a sua peculiar visão <strong>das</strong>capacida<strong>de</strong>s inventivas <strong>de</strong> Bacon, que, se por um ladoadvogou e incentivou, nos seus trabalhos, a ciência experimental,por outro lado não po<strong>de</strong>ria, nem por sombras,ter sido o autor do manuscrito.Todavia, e durante os poucos anos <strong>de</strong> vida que restarama Newbold após as suas sensacionais revelações,houve cientistas que o levaram a sério, nomeadamenteos que tinham assento com ele em socieda<strong>de</strong>s académicasrespeitáveis como o Classical Club of Phila<strong>de</strong>lphia,a American Philosophical Society, a Society of BiblicalLiterature e a American Oriental Society. Mas <strong>de</strong> súbitotodos <strong>de</strong>ram o dito por não dito e o próprio Newboldinterrompeu a continuida<strong>de</strong> <strong>das</strong> investigações, até que asua morte em 1926 encerrou silenciosamente o assunto.Subsistem, em todo o caso, algumas perplexida<strong>de</strong>s poresclarecer, como certas frases «traduzi<strong>das</strong>» do ManuscritoVoynich e que Newbold ainda conseguiu publicar, porexemplo: «Vi num espelho côncavo uma estrela em forma<strong>de</strong> caracol. Encontra-se entre o umbigo <strong>de</strong> Pégaso,o busto <strong>de</strong> Andrómeda e a cabeça <strong>de</strong> Cassiopeia…», ouainda passagens que fazem alusão ao «segredo <strong>das</strong> estrelasnovas».Mesmo aceitando a teoria dos cépticos <strong>de</strong> que omanuscrito não passa <strong>de</strong> uma fraudulência do séc. XVIelaborada talvez por John Dee ou por um herbolário daBoémia, Jacobus Sinapius, contemporâneo <strong>de</strong> Dee, senele se revela o segredo energético <strong>das</strong> novae e dos qua-
sars, tal hipótese dá azo a perspectivas pouco risonhas,e, como observava o passarão do Jacques Bergier (malamadoda intelligentsia bem-pensante mas dotado <strong>de</strong> umirresistível sentido do humor), mais vale que o manuscritopermaneça in<strong>de</strong>cifrável antes que ponha ao alcance<strong>de</strong> qualquer curioso (leia-se: qualquer terrorista) umafonte <strong>de</strong> alta energia superior ao actual po<strong>de</strong>r nuclear.Suspeito em todo o caso que este receio seja infundado:felizmente, e apesar <strong>das</strong> fugas e ven<strong>das</strong> clan<strong>de</strong>stinas <strong>de</strong>material radioactivo da ex-União Soviética, ainda ninguémconseguiu — que eu saiba, se estiver enganadopor favor corrijam-me — fabricar uma bomba atómicano forno <strong>de</strong> microon<strong>das</strong> lá <strong>de</strong> casa.Por outro lado a referência a Andrómeda não <strong>de</strong>ixa<strong>de</strong> ser embaraçante: que espécie <strong>de</strong> aparelho seria otal «espelho côncavo» capaz <strong>de</strong> perscrutar os abismoscósmicos a ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir que a nebulosa <strong>de</strong> Andrómeda(hoje conhecida como galáxia <strong>de</strong> Andrómeda,ou M31, ou ainda NGC 224) tem forma <strong>de</strong> caracol(espiral) e se encontra precisamente no local indicadopelo estranho livro? Se é verda<strong>de</strong> que este corpo celestejá era conhecido dos antigos astrónomos persas que selhe referiam como uma «pequenina nuvem», somenteem 1887 é que o astrónomo Isaac Roberts <strong>de</strong>scobriua sua forma espiralada mediante fotografias <strong>de</strong> longaexposição.Folheando o livro, e através do exame <strong>das</strong> gravuras— já que pelo texto nada se fica a saber —, parecepo<strong>de</strong>r <strong>de</strong>duzir-se que o Manuscrito Voynich está divididoem secções específicas: herbolária e botânica, astronómica,cosmológica, farmacológica e uma colecção<strong>de</strong> receitas. Entre as muitas gravuras <strong>de</strong>ssas secções,po<strong>de</strong>mos ver por exemplo reproduções minuciosas epormenoriza<strong>das</strong> <strong>de</strong> plantas que não existem no nossoplaneta; mulheres nuas banhando-se em tinas ou talvezaquários, ou nadando através <strong>de</strong> estranhas tubagens assazelabora<strong>das</strong> e aparentemente orgânicas; diagramascosmográficos, alguns <strong>de</strong>senhados em cartas <strong>de</strong>sdobráveis,contendo símbolos astronómicos ora circularesora com outras formas, e esquemas com conjuntos <strong>de</strong>estrelas on<strong>de</strong> algumas constelações são reconhecíveismas outras parecem diferentes ou estranhamente distorci<strong>das</strong>.Assim sendo, vejo-me constrangido a corrigir a minhasuposição <strong>de</strong> há pouco, da proveniência extraterrestredo manuscrito: o mais certo é ter vindo, afinal,<strong>de</strong> uma outra dimensão, ou <strong>de</strong> um universo paralelo ligeiramente<strong>de</strong>sfasado em relação ao nosso. Ainda porcima, se alguém ou alguma coisa o conseguiu transportaraté cá, é <strong>de</strong> temer que o livro contenha a «receita» daconstrução da «porta» (a famosa porta Z!) que permitea passagem em ambos os sentidos… Deus nos <strong>de</strong>fenda<strong>de</strong> semelhante perigo! Já estou a transpirar.Se me dão licença sigo adiante, e como o tema dos«livros míticos» é pouco menos que inesgotável, reservareipara um próximo artigo, se ainda me restaremforças e alguma sabença, outros livros não menos esquisitose excitantes, como por exemplo os enigmáticose (talvez) inexistentes livros que são mencionadosem certas passagens da Bíblia, ou os chamados «falsosdocumentos», livros tão falsos, tão falsos, mas tão beminformados que parecem perturbadoramente verda<strong>de</strong>iros(sem dúvida associados à inevitável teoria da conspiração…)— vejam-se por exemplo os Monita Secreta[«Instruções Secretas dos Jesuítas para o Domínio doMundo»] (1614), os Protocolos dos Sábios <strong>de</strong> Sião [«InstruçõesSecretas dos Ju<strong>de</strong>us para o Domínio do Mundo»](1903), os Hitlers Tagebücher [«Diários <strong>de</strong> Hitler»] (supostamente<strong>de</strong>scobertos em 1945 e publicados em 1983),etc., etc.Mas não só. Outros há, ainda, que nos põem a imaginaçãonum fervedouro… mas <strong>de</strong>ixemo-los para o talpróximo capítulo que acima vos prometi. BANG!ANTÓNIO DE MACEDO é escritor, cineasta e prof. universitário, nasceu em Lisboaem 1931. Frequentou a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras da Universida<strong>de</strong> Clássica e aEscola Superior <strong>de</strong> BA <strong>de</strong> Lisboa, on<strong>de</strong> se formou em Arquitectura em 1958.Exerceu durante alguns anos a profi ssão <strong>de</strong> arquitecto que abandonou em1964 para se <strong>de</strong>dicar à activida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escritor, cineasta e professor. Inclui na suaextensa fi lmografi a <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> documentários, programas televisivos e fi lmes<strong>de</strong> intervenção, bem como onze longas-metragens <strong>de</strong> fi cção. Paralelamente,especializou-se na investigação e estudo <strong>das</strong> religiões compara<strong>das</strong>, <strong>de</strong> esoterologia,<strong>de</strong> história da fi losofi a e da estética audio-visual, e <strong>das</strong> formas literárias e fílmicas<strong>de</strong> «fi cção especulativa». Dirigiu a colecção Bibliotheca Phantastica, da editoraHugin, e foi um dos promotores dos Encontros Internacionais <strong>de</strong> Ficção Científi ca& Fantástico <strong>de</strong> Cascais, que se iniciaram em 1996. Tem leccionado em diversasinstituições <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1971, como o IADE, a Universida<strong>de</strong> Lusófona, a EscolaOfi cinactores, Universida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna e o ISER.Foi homenageado pelo 30.º Festival Internacional <strong>de</strong> Cinema da Figueira da Foz,em Setembro <strong>de</strong> 2001, pela relevância da sua carreira e pelo contributo prestado àcultura cinematográfi ca portuguesa.6869De A a BDOPINIÃOWATCHMEN - POR DETRÁS DA MÁSCARAAlan Moore <strong>de</strong>fine Watchmen comosendo, em muitos aspectos, uma meditaçãosobre o po<strong>de</strong>r nas suas várias vertentes.Gran<strong>de</strong> parte da sua narrativa exibeum tom <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança em relação aoexercício do po<strong>de</strong>r em si e da responsabilizaçãoque cada um atribui a si própriono uso do mesmo, o que torna a sérienum verda<strong>de</strong>iro produto da sua época.Essa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrença, alimentadapor déca<strong>das</strong> <strong>de</strong> tensão social e <strong>de</strong>silusõespolíticas (aborda<strong>das</strong> nada inocentementepor Moore sob a forma do assassinato<strong>de</strong> Kennedy, a Guerra do Vietnam,o uso <strong>de</strong> Nixon como ainda Presi<strong>de</strong>ntedos EUA), <strong>de</strong>morou a entrar no géneroliterário do super-herói americano, nessaaltura ainda preso à sua génese douradados anos 30 e 40. Nesses idos anos 80,o Sonho Americano sofria <strong>de</strong> uma espécie<strong>de</strong> morte lenta, mas nas páginas <strong>de</strong>um qualquer comicbook, lidava-se comcatástrofes espaciais e crime organizadoem tom <strong>de</strong> telenovela perpétua.Mesmo apesar <strong>de</strong> to<strong>das</strong> as tragédiase dilemas vividos, os escaparatesestavam repletos <strong>de</strong> cores primárias esorrisos amarelos embalados pela censurapromovida pelo Comics Co<strong>de</strong> Authority<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1954. A este propósito écurioso como no álbum Watchmen queaqui analisamos, Moore faça referência àpré-censura dos clássicos da EC Comicscom a história secundária, Tales of theBlack Freighter.O escritor britânico admite quequando entrou no mundo dos super-heróisse sentiu imediatamente atraído pelanatureza mitológica e moralmente ambíguado género, mas ficou também intrigadocom a ausência <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>steem questionar-se a si próprio acerca doseu real papel no mundo ao longo dotempo.Não que fosse inédita a incursão <strong>de</strong>super-heróis em temas actuais (veja-se otrabalho Dennis O’neill e Neal Adamsna dupla Green Arrow/Green Lanternnos anos 70), mas a maioria dos títulosda altura parecia viver numa realida<strong>de</strong>paralela, <strong>de</strong>sfasada do tempo real, imuneà influência dos avanços e recuos da socieda<strong>de</strong>que supostamente retratava. Aspersonagens não envelheciam, tinhamciclos <strong>de</strong> encontros com arqui-inimigos,e os seus problemas pessoais pareciamestar parados no tempo, não importavamas peripécias imagina<strong>das</strong> pelas equipaseditoriais envolvi<strong>das</strong>.“WHAT HAPPENS IN COMICS,STAYS IN COMICS.”É argumentável que essa seja uma <strong>das</strong>pedras base do género, a sacrossantaContinuida<strong>de</strong> em que tudo muda e tudofica na mesma, mas Moore, no meio <strong>de</strong>outros poucos autores da época, queriaalgo mais. Apostado em explorar a partemais humana dos super-heróis, o argumentistacomeçou por querer actualizarum grupo <strong>de</strong> super personagens familiaresmas secundárias, transpostas paraum contexto distante da candura da suaexistência até aí. O primeiro tratamentofoi aparentemente baseado numa equipachamada The Mighty Crusa<strong>de</strong>rs, já<strong>de</strong> si uma tentativa da Archie Comicspara capitalizar o sucesso conquistadopelas linhas <strong>de</strong> super-heróis da Marvel eda DC da altura. Quando o tratamentofoi proposto à DC, o “plot” foi transferidopara um catálogo <strong>de</strong> personagensque esta tinha adquirido recentementea outra editora, a Charlton Comics, masacabou por ser recusado nesses termos,dada a intenção <strong>de</strong> Moore em dar um finalpouco simpático a quase todo o rol<strong>de</strong> personagens.Como alternativa, foi-lhe sugeridoque criasse os seus próprios peões <strong>de</strong>xadrez, o que Moore fez, recorrendo aarquétipos do género super-heróico, mascolados aos nomes da Charlton que eleinicialmente trabalhara.Desta estranha adaptação saíramveículos sobre-humanos para históriaspessoais injecta<strong>das</strong> <strong>de</strong> uma auto consciênciaaté aí nunca vista numa personagemmascarada.No mundo criado por Moore, superseresquestionam-se, reflectem, enganam-se,cometem erros, arrepen<strong>de</strong>m-se,sofrem as consequências da sua naturezae enten<strong>de</strong>m o seu papel no esquema <strong>das</strong>coisas. Todos estão ligados entre si porpassado, presente e futuro, todos são influenciadose influenciam o mundo em| Ricardo Venânciovolta, seja através <strong>de</strong> um encontrosexual fortuito, ou ganhando uma guerraantes perdida, ou mesmo ameaçando omundo inteiro com a própria existência.Esta interligação tem um enormecontributo do ilustrador Dave Gibbons,através da reinvenção da clássica grelha <strong>de</strong>9 planos, que lhe dá um ritmo não muitofácil <strong>de</strong> seguir, mas completamente indicadopara o universo proposto por Moore.Com Watchmen, ambos ajudarama introduzir evolução e introspecção nouniverso do vigilante mascarado (patentesno <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong>gradação doconceito <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>ntro da história), <strong>de</strong>s<strong>de</strong>os super-heróis que escon<strong>de</strong>m os problemasatrás <strong>de</strong> máscaras, à nova geração queexibe os seus estigmas à superfície.Este comentário esten<strong>de</strong>-se aomundo em si, à evolução da socieda<strong>de</strong>humana e à consciência (ou falta <strong>de</strong>la)<strong>das</strong> vitórias e fracassos do nosso <strong>de</strong>senvolvimentocolectivo.Apesar <strong>de</strong> à época a Guerra Fria tersido aparentemente posta <strong>de</strong> parte e <strong>de</strong>Nixon estar morto e enterrado, os dilemase perigos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ilustrados nos 12números <strong>de</strong> Watchmen estavam, e parecemestar ainda, vivos e <strong>de</strong> boa saú<strong>de</strong>.Bob Dylan, na música que embalao genérico do filme, canta “The times,they are a-changin’...”; <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Watchmen,a vida não foi mais pintada a coresprimárias; passou a ser mais cinzenta,discordante e paranóica. E hoje já nãoexistem sorrisos amarelos sem pintas <strong>de</strong>sangue. BANG!Ricardo Venâncio é um ilustrador e autor <strong>de</strong> BD lisboetaa trabalhar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1999. Des<strong>de</strong> tenra ida<strong>de</strong> que foiencorajado a absorver histórias <strong>de</strong> fantasia, mitologia efi cção <strong>de</strong> todo o tipo, em especial através <strong>das</strong> BDs queo seu pai lhe comprava todos os Verões. Essa se<strong>de</strong> <strong>de</strong>se <strong>de</strong>slumbrar com outros mundos levou-o a algunstrabalhos conhecidos como a concepção visual doálbum Sound In Light dos Blasted Mechanism (2006),do vi<strong>de</strong>oclip “É Verda<strong>de</strong>?” dos Terrakota com o colectivoDroid_id (2007), e a sua série <strong>de</strong> BD “Defi er” (2009).Ricardo faz parte do The Lisbon Studio.