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O Dia das - Saída de Emergência

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livros MíticosQuando arranjo dinheiro compro livros.Se me sobra algum, compro comida.ERASMO DE ROTERDÃOSe há mistério que exerça um fascínio irresistível é o<strong>de</strong> existirem livros, tremenda invenção, para não dizeralucinação, <strong>de</strong> um improvável antepassado nosso quemercê <strong>de</strong> algum nebuloso trauma criou esse eficacíssimomeio <strong>de</strong> subverter a memória. Ou pelo menos <strong>de</strong>formá-laao ponto <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> assumir outros nomes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> investigaçãohistórica a fi cções, passando por ensaio científi co e por outras tantasfórmulas tão astuciosas quão sugestivamente enganadoras.Mistério maior que aquele, porém, é o <strong>de</strong> existirem livrosque não existem, e chegado a este ponto importa advertir-vosque o título supra, «livros míticos», talvez não transmita comjusteza o que pretendo aqui alinhavar. Essa expressão sugerereferência a mitos, ou então a livros que se tornaram «míticos»por esta ou aquela razão, mas eu estimaria ir um poucomais longe: alguns dos livros <strong>de</strong> que vou falar-vos não existem<strong>de</strong> todo em todo, outros existem mas são misteriosos ein<strong>de</strong>cifráveis, outros ainda… mas não antecipemos.Página do Necronomicon, com apropria<strong>das</strong>manchas <strong>de</strong> sangue…oua biblioteca(q uase)invisívelPor antónio <strong>de</strong> macedoA tentação <strong>de</strong> inventar livros que não existem é <strong>de</strong> todosos tempos, citemos ao acaso alguns dos milhentos autoresque se divertiram a inventar livros fictícios, H. P. Lovecrafte o seu intolerável e citadíssimo Necronomicon, Umberto Ecoque em O Nome da Rosa (1980) «<strong>de</strong>scobriu» o perdido segundovolume da Poética <strong>de</strong> Aristóteles, George MacDonald,Nelson S. Bond, Fritz Leiber, Kate Atkinson, Poul An<strong>de</strong>rson,Kenneth Bulmer, Michael En<strong>de</strong>, James Branch Cabell,Neil Gaiman, Terry Pratchett, Caitlin R. Kiernan, Tom DeHaven, Joanne K. Rowling… enfim, um nunca mais acabar<strong>de</strong> autores que criaram livros quiméricos com citações, comíndices, com resumos dos conteúdos, com pormenores <strong>de</strong>edição, e até, como Jorge Luis Borges, mestre exímio <strong>de</strong>ssastropelias, misturando referências <strong>de</strong> livros verda<strong>de</strong>iros comlivros imaginários para ser maior a in<strong>de</strong>strinça entre o real e ovirtual — <strong>de</strong> Borges, então, <strong>de</strong>ixam-me perfeitamente magnetizado<strong>de</strong>lírios como La Biblioteca <strong>de</strong> Babel, El libro <strong>de</strong> arena,Examen <strong>de</strong> la obra <strong>de</strong> Herbert Quain, Del libro <strong>de</strong> las 1001 noches,Tlön, Uqbar, Orbis tertius, El acercamiento a Almotásim, PierreMenard autor <strong>de</strong>l Quijote, etc., etc., e não posso seguir adiantesem citar os alucinatórios volumes da Biblioteca (2002) <strong>de</strong>Zoran Zivkovic, e até filmes contendo livros ora maliciososora imprevisíveis (nalguns casos, mesmo, con<strong>de</strong>náveis),como os livros perigosamente comportamentais d’A FamíliaAddams (The Addams Family, 1991) <strong>de</strong> Barry Sonnenfeld, ouos supermágicos Livros <strong>de</strong> Próspero (Prospero’s Books, 1991) <strong>de</strong>Peter Greenaway, ou ainda os tantíssimos volumes satânicosque povoam o universo audiovisual, como o diabólico livroseiscentista d’A Nona Porta (The Ninth Gate, 1999) <strong>de</strong> RomanPolanski, inspirado no recomplexo romance El club Dumas(1993) <strong>de</strong> Arturo Pérez-Reverte.Já agora terei <strong>de</strong> confessar, contrito, o in<strong>de</strong>coroso pecado<strong>de</strong> eu mesmo, com os meus mo<strong>de</strong>stos recursos, tãopoucoter sido imune à lúgubre tentação <strong>de</strong> inventar livros<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> livros, neste caso <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> algumas <strong>das</strong> minhasficções, e com bibliotecas e tudo — uma <strong>de</strong>las, <strong>de</strong> dimensõespouco mais ou menos infinitas, até ostentava a impenetráveltabuleta B.D.T.L.Q.N.E. (isto é, Biblioteca DeTodos os Livros Que Não Existem, mirífica biblioteca queseria o áureo sonho <strong>de</strong> qualquer bibliómano), e que precipitadamenteme limitei a compartimentar em duas secções:(1) A secção dos livros que não existem porque foram<strong>de</strong>struídos (por exemplo, os 700.000 manuscritos da famosabiblioteca <strong>de</strong> Alexandria — e que aparecem, comomilhões <strong>de</strong> outros, miraculosamente recuperados na talB.D.T.L.Q.N.E.);(2) A secção dos livros que não existem porque nuncachegaram a ser escritos.Escusado será dizer que esta última contém os livrosmais geniais <strong>de</strong> sempre. Mas faltava — pelo menos! — umaterceira secção, que na minha precipitação, para não dizeringenuida<strong>de</strong>, não me ocorreu contemplar. Descobri-o maistar<strong>de</strong> num encontro casual com a escritora Rita Ferro, por62 63ocasião do lançamento do livro <strong>de</strong> um amigo comum. Nofinal, por altura do beberete próprio <strong>de</strong>sses eventos, e enquantocavaqueávamos num pequeno grupo <strong>de</strong> outros literatosnossos conhecidos, a conversa resvalou naturalmentepara o escritor e pensador António Quadros, pai <strong>de</strong> Rita emeu amigo <strong>de</strong> longa data (que me lembre, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1957), e quetinha morrido algum tempo antes, em 1993. Aproveitei paramanifestar a minha pena pelo facto <strong>de</strong> António Quadros nãoter chegado a escrever e publicar o terceiro volume da suaobra Portugal Razão e Mistério, cujos dois primeiros tomos,abordando o Portugal Arquétipo, passando pelo País Templário,até ao Projecto Áureo ou Império do Espírito Santo,tinham saído <strong>de</strong> rajada em 1986 e 1987, enquanto o terceiro,que prometia tratar <strong>de</strong> coisas tão palpitantes como o Mito doV Império, a <strong>Dia</strong>léctica da Portugalida<strong>de</strong> ou ainda o enigmado Portugal Encoberto, tardava em vir a lume. Por mais <strong>de</strong>uma vez perguntei a António Quadros: quando tencionavapublicar o ansiosamente aguardado terceiro volume? — masele sempre se mostrou evasivo até que a inesperada morteem 1993 frustrou to<strong>das</strong> as expectativas. Quando a conversaaqui chegou, Rita Ferro <strong>de</strong>cidiu confi<strong>de</strong>nciar-nos o seguinte:também ela, em diversas ocasiões, perguntara ao pai pelomisterioso terceiro volume — estranha <strong>de</strong>mora, porque entretantoele não <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> publicar outros livros —, ao quefinalmente ele respon<strong>de</strong>u, quase em segredo:— Minha filha, nunca ouviste falar em livros que nãoquerem ser escritos? Este é um <strong>de</strong>les.Foi então que percebi qual era a secção que faltava naminha imaginária biblioteca:(3) A secção dos livros que não existem porque nãoquerem ser escritos.Aterradora perspectiva! Os livros pregam-nos cada partida…O astuto Umberto Eco já havia chamado a atençãopara o pormenor inquietante <strong>de</strong> os livros comunicarem misteriosamenteuns com os outros, «os livros falam sempre<strong>de</strong> outros livros, e qualquer história conta uma história jácontada». 1 Mas mais esquisito do que os livros dialogarementre si, sussurrando sem <strong>de</strong>scanso no silêncio <strong>das</strong> prateleiras<strong>das</strong> bibliotecas e citando-se reciprocamente ad infi nitum,como em to<strong>das</strong> as obras eruditas com abundantíssimas notas<strong>de</strong> rodapé remetendo dialogalmente para outras tantasobras, é o facto <strong>de</strong> haver livros com vonta<strong>de</strong> própria quechegam ao <strong>de</strong>scaramento <strong>de</strong> não existirem por não quereremser escritos…Quanto a mim, porém, mais grave que tudo isto é acircunstância <strong>de</strong> haver livros que existem mas não queremser lidos!!!Comecemos por referir um exemplo que veio a lumeno séc. XIX. O príncipe húngaro Gusztáv Batthyány (1803-1883) emigrou muito jovem para Inglaterra on<strong>de</strong> se tornouum conhecido criador e treinador <strong>de</strong> cavalos, tendo conseguidoque alguns dos seus exemplares fossem campiõesna Grã-Bretanha e na Irlanda durante vários anos seguidos.Entretanto, e em paralelo, Batthyány manteve na Hungriauma activa participação política no movimento nacionalMagiar, chegando a ser membro do Ministério HúngaroConstitucional <strong>de</strong> 1848. Antes disso, porém, em 1838, já haviaoferecido à Aca<strong>de</strong>mia Húngara <strong>de</strong> Ciências a sua preciosabiblioteca pessoal, completa, que se conservava na cida<strong>de</strong>(então) húngara <strong>de</strong> Rohonczi, e que actualmente faz parteda Áustria com o nome Rechnitz.1Umberto Eco, Porquê «O Nome da Rosa»? [Postile a «Il Nome <strong>de</strong>lla Rosa»,1984], Lisboa: Difel, 1984; pp. 20-21.E aqui começam os sarilhos! É que entre as preciosida<strong>de</strong>sbibliófilas da livraria <strong>de</strong> Batthyány encontrava-se um<strong>de</strong>nso códice <strong>de</strong> 448 páginas manuscritas em formato aproximado<strong>de</strong> 12cm x 10cm, <strong>de</strong> proveniência <strong>de</strong>sconhecida,que ficou catalogado com a cota K 114 sob o nome Co<strong>de</strong>xRohonczi — ignora-se o seu verda<strong>de</strong>iro nome, que talveznunca venha a ser revelado, e, pior!, to<strong>das</strong> as 448 páginas, exceptoas que apenas contêm misteriosos pictogramas (cerca<strong>de</strong> 87), estão grafa<strong>das</strong> num alfabeto <strong>de</strong>sconhecido e numalíngua ainda mais <strong>de</strong>sconhecida, escrita da direita para a esquerdacomo o árabe ou o hebraico, alfabeto e língua quetêm <strong>de</strong>safiado os cérebros mais científicos, mais argutos emais treinados em <strong>de</strong>scodificar cifras e códigos impenetráveis.Des<strong>de</strong> 1840 até finais do séc. XIX diversos especialistasestudaram o códice, os eruditos húngaros Ferenc Toldy ePál Hunfalvy, o paleógrafo austríaco Dr. Mahl, os professoresJosef Jirecek e Konstantin Jirecek da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Praga, o investigador alemão Bernhard Jülg da Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Innsbruck, e outros… Todos eles esquadrinharam o códicesem chegar a nenhuma conclusão.Co<strong>de</strong>x Rohonczi: págs. 51 e 51-A, com umapresumível imagem <strong>de</strong> Cristo crucifi cadoCo<strong>de</strong>x Rohonczi: págs. 99 e 99-A.A partir <strong>de</strong> princípios do séc. XX os académicos e peritoshúngaros assentaram, como hipótese mais provável, quese trataria <strong>de</strong> uma frau<strong>de</strong> forjada por um antiquário oriundoda Transilvânia (não andará por aqui a garra vampírica <strong>de</strong>Drácula?), Sámuel L. Nemes (1796-1842), conhecido autor<strong>de</strong> famigera<strong>das</strong> falsificações <strong>de</strong> manuscritos e livros rarosque chegaram a enganar os mais reputados especialistas daépoca. Nos anos ’70 do séc. XX ainda havia autores queadmitiam tal possibilida<strong>de</strong>, mas outros indícios vieram contrariaressa conclusão cómoda: o estudo pericial do papelapontou para um tipo <strong>de</strong> papel <strong>de</strong> fabrico veneziano do séc.XVI, conquanto possa ser cópia <strong>de</strong> um original mais antigo,

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