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O Dia das - Saída de Emergência

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— Parece que a sua simples presençadisciplina os rapazes.— Tem <strong>de</strong> ser assim — respon<strong>de</strong>u.— Não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> outra forma.Senão, não tinha mão neles.Após uns segundos, acrescentou:— Já li<strong>de</strong>i com todo o tipo <strong>de</strong> pessoas,incluindo loucos, doentes, assassinos,<strong>de</strong>sesperados… Mas nada exigiumais vigor da minha parte, até agora,do que esta centena e meia <strong>de</strong> rapazesque estão aqui. A força que há nestesrapazes pertence à Natureza, não acondições especiais <strong>de</strong> vida, a revoluçõesou guerras. É qualquer coisa <strong>de</strong>vulcânico que ameaça rebentar todosos limites, todos os constrangimentos.— Não acha que estes rapazesestão <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> condições especiais<strong>de</strong> vida? São órfãos…— Bem mais importante do queisso - interrompeu-me ele —, fazendosubmergir isso como um rio quesubmerge as margens, é o facto <strong>de</strong> elesserem uma força violenta da Natureza.Olhe à sua volta. O que é que vê?Olhei e vi to<strong>das</strong> aquelas cabeçasrapa<strong>das</strong> vira<strong>das</strong> para o prato.— Ninguém diria que há aquiqualquer coisa <strong>de</strong> muito violento, poisnão? — disse o padre, com um sorrisomaquinal. — To<strong>das</strong> as pessoasacham que a violência infantil, quandoexiste, é resposta à violência do meio,é um protesto, um pedido <strong>de</strong> socorroda criança… Nada disso. A violêncialatente que há aqui é algo <strong>de</strong> mais elementar,visceral mesmo, é uma possibilida<strong>de</strong>orgânica. Isso é o que encontramosem cada criança. Agora multipliqueisso por cem ou cento e cinquentaindivíduos e ficará com uma noção dopo<strong>de</strong>r com que nos confrontamos aqui.Enquanto o ouvia, incrédulo, euimaginava aqueles rapazinhos, assaltadospor um furor explosivo, a saltarpara cima <strong>das</strong> mesas, a atirar pratos ecomida para o ar, soltando urros e gritosinarticulados, agredindo-se entre si,partindo tudo.Tentando perceber melhor o seupensamento, perguntei:— Eles já fizeram coisas graves,como um motim, uma revolta?— Não, nunca — respon<strong>de</strong>u secamente.— Já houve algum tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m?— Nada por aí além — disse opadre, rapidamente, concentrando-seno manejo dos talheres.Depois, ao notar que me <strong>de</strong>ixavaum pouco <strong>de</strong>sconcertado com estasrespostas, que aparentemente contrariavamas suas i<strong>de</strong>ias, juntou:— A violência fundamental <strong>de</strong>que falo não tem <strong>de</strong> se manifestar emmotins ou em <strong>de</strong>sacatos rebel<strong>de</strong>s. Éalgo mais básico, arcaico… apetece-medizer: mitológico. Conhece com certezaos mitos antigos. Pois digo-lhe queisso o po<strong>de</strong> ajudar a compreen<strong>de</strong>r estascrianças. O conhecimento da infânciada Humanida<strong>de</strong> ajuda a conhecer ainfância dos homens.O padre falava num tom tão incisivoe autoritário que não encontreiensejo para lhe colocar mais questões.Surgia-me com outros aspectos quenão a objectivida<strong>de</strong> prática que eujulgava caracterizá-lo. Agora ele parecia-medado a especulações e elocubraçõesestranhas, às quais, no entanto,conferia o mesmo tom <strong>de</strong>terminado.Após uns minutos <strong>de</strong> silêncio, emque as palavras do padre pesavam nosmeus pensamentos, ele disse:— Eles eram uma horda primitivaque eu transformei num grupo civilizado.Mas não nos iludamos. É ténueo verniz da civilização! Por trás <strong>de</strong> todaa influência educativa permanece omagma palpitante, vulcânico, selvagem,intratável, que reclama os seus direitosorgânicos e po<strong>de</strong>, não se sabe quando,emergir, violando to<strong>das</strong> as regras etodos os códigos.— Vejo, então — disse eu — queas minhas aulas <strong>de</strong> Moral e CondutaCívica vão ter <strong>de</strong> me confrontar comesse adversário respeitável.Aqui o padre olhou para mim comtal intensida<strong>de</strong> que eu temi que não lheagra<strong>das</strong>se a minha tentativa <strong>de</strong> fazerespírito. Mas disse, com ardor, na primeiravez que o ouvi falar com algumardor:— E po<strong>de</strong>mos perguntar-nos sevalerá a pena. Valerá a pena enxertarnormas morais e cívicas, e outras, seelas não chegam a tocar nesse fundo<strong>de</strong> violência arcaica, hereditária, básica?Valerá a pena alguma outra coisa quandonos confrontamos com esta forçaimensa, que em si mesma é majestosa,magnífica?Por momentos pareceu-me que opadre estava fascinado com aquilo queme <strong>de</strong>screvia, como se para ele issofosse mais interessante do que os seusesforços educativos.Esta foi a minha primeira visitaao colégio. A minha segunda visita<strong>de</strong>stinava-se a apresentar-me formalmenteaos alunos e começar a trabalhar.Quando cheguei, vi um carro dapolícia junto ao portão. Entre o portãoe a porta <strong>de</strong> entrada estavam algumaspessoas que conversavam em vozbaixa, gravemente; reconheci algunsprofessores, os restantes eram agentespoliciais.Trocavam impressões enigmáticas,em surdina. Eu podia perceber quealguma coisa grave suce<strong>de</strong>ra. Pergunteion<strong>de</strong> estava o padre Sousa e disseram-meque morrera naquela manhã.O que me contaram então começoupor ser para mim tão chocantecomo foi para todos. Naquela manhã,estavam poucos funcionários no colégio.As duas cozinheirastinham ido ao mercado;o carpinteiro fora fazerumas encomen<strong>das</strong>; umdos contínuos ainda nãotinha chegado. O padreestava sozinho na cantinacom todos os rapazes, quetomavam o pequeno-almoço.No edifício do colégio só estavaa lava<strong>de</strong>ira e um contínuo a quemo padre encarregara <strong>de</strong> fazer umtrabalho administrativo no seu gabinete.A meio da manhã, este contínuofoi procurar o padre e estranhou queestivessem todos ainda na cantina.Mais estranho ainda: as duas portas dacantina estavam tranca<strong>das</strong>. Percebeuque eles ainda lá estavam porque osrapazes faziam barulho, o que nãoseria <strong>de</strong> esperar sabendo que o padreestava ali com eles. Falavam em vozalta, gritavam, riam. Havia ali rebuliço<strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras. Em si mesmo,este rebuliço não era anormal, apenasnão costumava existir na presença dopadre. O contínuo bateu várias vezesà porta, chamou, mas não obteve nenhumaresposta.Voltou ao gabinete por mais unsminutos, sem saber muito bem o quepensar daquilo. Tornou à cantina, masaí tudo continuava na mesma. Portastranca<strong>das</strong>, o rebuliço juvenil. Prestou“O que me contaram então começou por serpara mim tão chocante como foi para todos.”16 7mais atenção e julgou ouvir o barulho<strong>de</strong> apetrechos <strong>de</strong> cozinha, como sehouvesse activida<strong>de</strong> junto aos fornose fogões. Mas as cozinheiras ainda nãotinham voltado. Inquieto, o contínuoresolveu espreitar por uma janelinhaque havia junto ao tecto. Subiu porum escadote, espreitou e viu um cenárioinesperado. As mesas da cantinaestavam dispostas em círculo. Nocentro havia mais mesas, com tachos,panelas, pratos. Os rapazes circulavamalegremente por toda a parte ousentavam-se a comer. Não viuo padre, mas o ângulo <strong>de</strong>visão não lhe permitiaver todo oespaço dacantinanem acozinha adjacente.O contínuochamou pelopadre, mas nem este apareceunem os rapazes lhe ligaram.Chamou também por alguns<strong>de</strong>les, que estavam mais próximos dajanela, mas apenas lhe lançaram umolhar distraído e indiferente. O contínuo<strong>de</strong>sceu e foi bater vigorosamente naporta, não se cansando <strong>de</strong> chamar. Porfim a porta foi aberta, não pô<strong>de</strong> ver porquem. Entrou na cantina e logo se lheadiantou um dos rapazes, gritando:— Quem é que lhe abriu a porta?Ninguém se pronunciou. Houvegargalha<strong>das</strong>, pia<strong>das</strong> grita<strong>das</strong>. O contínuoavançou. De repente, formou-se umabarreira <strong>de</strong> rapazes à sua frente, commodos resolutos, intimando-o a retroce<strong>de</strong>r.A barreira a<strong>de</strong>nsou-se e cresceupara ele. Empunhavam facas e adagas, ehavia nos seus rostos uma tal resoluçãoque o contínuo recuou assustado e saiuda cantina. A porta fechou-se e foi novamentetrancada.Agora o funcionário tinha motivospara estar preocupado. O padre não respondia,os rapazes tinham-se barricadona cantina. Chamou a polícia. Quandoos agentes chegaram, explicou-lhes assuas apreensões. Não sabia o que aconteceraao padre, mas o facto <strong>de</strong> estaremperante uma revolta dos rapazes justificavaque arrombassem uma <strong>das</strong> portas.Desta vez, os rapazes não reagiram ànova intrusão. Já passava do meio-dia,estavam ali fechados há muitas horas.A turbulência foi-se acalmandoe dando lugar a um silêncio não menosestranho e inquietante. Foi-lhesperguntado on<strong>de</strong> estava o padre, oque é que eles estavam ali a fazer, porque razão se tinham fechado. Nãorespondiam. Reagiam comapatia a to<strong>das</strong>as interpelações,como se tivessem acabado<strong>de</strong> acordar <strong>de</strong> um transe.Olhando em volta era evi<strong>de</strong>nteque os rapazes, trancando-se na cantina,tinham-se entregue às <strong>de</strong>lícias <strong>de</strong>um festim feito só por eles, um banqueteprivado e ilegal on<strong>de</strong> nenhumestranho fora admitido.O contínuo foi à cozinha e <strong>de</strong>paroucom as roupas ensanguenta<strong>das</strong> dopadre. Chamou os polícias. Revistaramfornos, bal<strong>de</strong>s do lixo, e encontraramossos humanos meio <strong>de</strong>scarnados. Acabeça do padre estava intacta <strong>de</strong>ntrodo frigorífico. Um terror arcaico apo<strong>de</strong>rou-sedos adultos. Já não podiammais evitar os factos: o padre fora assassinado,esquartejado e comido pelosrapazes. Os adultos olhavam para eles,estupefactos. Os jovens estavam quietose calados, naquela estranha apatia.Entretanto foram chegando os outrosfuncionários do colégio.Quando eu cheguei os rapazesestavam ainda na cantina, mas agoracontidos aí pelos polícias. Foi perguntadoaos rapazes quem era o lí<strong>de</strong>r oulí<strong>de</strong>res, quem realmente matara, o queacontecera exactamente. Mas eles nãorespondiam a nada. O silêncio era amais tenaz e inviolável <strong>das</strong> suas <strong>de</strong>fesas.Ao saber do sucedido, e vencendoos primeiros momentos <strong>de</strong> incredulida<strong>de</strong>,recor<strong>de</strong>i a minha última conversacom o padre. Ele falara <strong>de</strong> uma forçainstintiva que nenhuma influênciaeducativa po<strong>de</strong>ria eliminar nos rapazes.Isto parecera-me uma elocubração fantasiosa,mas agora estávamos perantefactos concretos. A violência fundamentale visceral, que suspeitara nosrapazes, era qualquer coisa que teriaexpressão em cenários mitológicos.Passou-me pela cabeça se tudo aquilo nãoseria uma reencenação compulsiva <strong>de</strong> ummitoantigo, originário,que jaz nos fundamentosda nossa cultura e do nosso inconsciente.Eles mataram o Pai, pensei eu subitamente.Mataram-no e comeram-nonum banquete ritual, repetindo umanecessida<strong>de</strong> ancestral que persiste emestado latente e procura uma reactualização.Comeram o Pai admirado etemido para escapar ao seu po<strong>de</strong>r e,simultaneamente, absorver as suas qualida<strong>de</strong>s.A reemergência do mito, a suaurgência em ser repetido e vivido, surgiaclaramente aos meus olhos.Receei o esplendor terrível <strong>de</strong>stasuposição. Ocorreu-me se o padre,fascinado, não teria <strong>de</strong> alguma formaproporcionado o que acontecera. Senão teria ido ao encontro do seu própriofim, favorecendo o <strong>de</strong>senrolar dosacontecimentos. Para viver plenamentea situação mítica, para se tornar elepróprio mito.Perguntávamo-nos uns aos outroso que fazer dos rapazes. Sugeri quefossem separados em grupos tão restritosquanto possível e que estes fossemespalhados por diferentes colégios.O mito, apesar <strong>de</strong> manejar uma forçanatural, <strong>de</strong>via ser <strong>de</strong>masiado forte paraa consciência dos indivíduos. Seria melhorque eles fossem separados, paranunca terem <strong>de</strong> recordar, na presençauns dos outros, a perigosa atracção domito. BANG!Vasco Luís Curado nasceu em 1971.Publicou o livro <strong>de</strong> contos “A Casa daLoucura” (Ausência, 1999) e o romance“O Senhor Ambíguo” (Escritor, 2001).Colaborou com um conto intitulado “Ahora” na colectânea “A Sombra SobreLisboa” (Saída <strong>de</strong> Emergência, 2006)e alguns contos seus têm aparecido naBang! Psicólogo clínico, publicou uma tese<strong>de</strong> mestrado em Psicopatologia, “Sonho,Delírio e Linguagem” (Fim <strong>de</strong> Século,2000).

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