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O Dia das - Saída de Emergência

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Caminho <strong>de</strong> um bordo a outro no convés <strong>de</strong>scoberto,inquieto, distribuindo or<strong>de</strong>ns aos subordinados. OVentos Uivantes já recolheu as espias <strong>de</strong> atracação eestá pronto para zarpar.Os tripulantes não me respeitam mais. Não possoculpá-los. Não <strong>de</strong>pois da experiência vergonhosa e traumáticaque me acometeu dias atrás naquele quarto do EstrelaAzul.O pior são as risotas dos subordinados. Os cutucõesmútuos junto à amurada do convés e as piadinhas murmura<strong>das</strong>proa afora, enquanto <strong>de</strong>slizo entre eles e finjo ignorarseus cochichos maldosos. Nunca alto o bastante para queeu os possa repreen<strong>de</strong>r por indisciplina e no entanto, perfeitamenteaudíveis. Aleijão! Pervertido! Não há o que fazer.Qualquer medida disciplinar terá a eficácia <strong>de</strong> um tiropela culatra e o opróbrio virá à baila outra vez.A agonia profunda aflora do meu âmago e me afligena região atingida. O formigamento me incomoda atéhoje. Dor surda; fantasma <strong>de</strong> um membro amputado.Não é mera questão <strong>de</strong> dor física. É dor moral. A dorda vergonha, da honra maculada. A nódoa que <strong>de</strong>vo carregarsobre os ombros <strong>de</strong> agora em diante.Em suas juras <strong>de</strong> amor, minha Tee’lak prometeu quejamais me traria dor; só o prazer inconcebível. Cumpriusua promessa. Também manifestou confiança em que eume tornasse um humano inteiro <strong>de</strong> novo. Esta esperançanão se concretizou.A ignorância mútua a respeito <strong>das</strong> incompatibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> nossas anatomias conduziram nosso relacionamento àruptura traumática.E eu, que nutrira tantos planos…Não sei quanto a Tee’lak, mas para mim restou apenaso sofrimento da <strong>de</strong>sonra e o escárnio dos amigos e conhecidos.E pensar que minha <strong>de</strong>sdita começou numa cálidanoite <strong>de</strong> folga no Estrela Azul…Muita gente finge ignorar a existência <strong>de</strong> estabelecimentoscomo o Estrela Azul. Contudo, o fato é que há um lugar<strong>de</strong>sse tipo na maioria <strong>das</strong> cida<strong>de</strong>s e vilas às margens do Rioda Névoa.Exemplar típico <strong>de</strong> sua classe, o Estrela Azul é aqueletipo <strong>de</strong> antro <strong>de</strong> prazeres escusos, que em geral consistenuma mistura mais ou menos harmônica <strong>de</strong> hospedariapara aliens, bar mal freqüentado, on<strong>de</strong> a nata da marginalida<strong>de</strong>do Vale da Neblina se reúne, e bor<strong>de</strong>l capaz <strong>de</strong> saciartodos os apetites variados — dos mais inocentes aos inconfessos,mesmo sob tortura — <strong>das</strong> tripulações dos mercantese <strong>das</strong> guarnições <strong>das</strong> belonaves que singram as águaspujantes do rio mais longo <strong>de</strong>ste lado <strong>das</strong> Cordilheiras.Uma espelunca como aquela não seleciona freguesia.Tanto é que costuma admitir até a presença <strong>de</strong> humanosentre os frequentadores. E é bom que o faça. Afinal, aocontrário do que dizem Vale a<strong>de</strong>ntro, não somos a escumalhado Hemisfério Oriental.E foi <strong>de</strong> uma mesa do Estrela Azul que vislumbrei osemblante luminoso <strong>de</strong> Tee’lak, em nossa segunda noiteem terra, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nossa primeira atracação no porto <strong>de</strong>Nebulosa, após vários anos <strong>de</strong> ausência.Os tripulantes do Ventos Uivantes ignoram o significado dapalavra “castida<strong>de</strong>”. Muito ao contrário, o sexo semprerolou solto a bordo, no porto e em viagem. O tempo todo.Nem po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> outro modo, com uma tripulação fixa<strong>de</strong> trinta e poucos machos e fêmeas humanos e quatroaliens, subindo e <strong>de</strong>scendo o Rio por anos a fio, da nascenteno equador, ao sopé oriental <strong>das</strong> Cordilheiras, até a foz,no Golfo Amaldiçoado, quase no círculo polar sul.Sexo rotineiro, no entanto. Sempre as mesmas velhascaras. As velhas genitálias <strong>de</strong> sempre. Os mesmos parceiros.E, ainda por cima, parceiros tão humanos quanto eu…Ora, eu tenho coisa melhor do que isto em casa.Sexo com nossos tripulantes aliens? Nem pensar!A bordo não havia como exercitar minha predileçãoparticular.Porque, além <strong>de</strong> anatomicamente incompatíveis conosco,nossos três tripulantes insecta e o pseudodino consi<strong>de</strong>ramo sexo uma necessida<strong>de</strong> fisiológica tão tediosa e insípidaquanto respirar. É claro que jamais consentiriam nacópula com humanos. A<strong>de</strong>mais, embora aliens, insecta epseudodinos não constituem exatamente meu tipo. Possogostar <strong>de</strong> aliens, mas não sou tão doente assim…A maioria dos tripulantes humanos, contudo, pareciasatisfeita com a rotina sexual reinante a bordo do VentosUivantes. Por isto, <strong>de</strong> toda a tripulação, apenas eu, Raddamesh,nascido em Ver<strong>de</strong>gris, uma vila nortenha da margemoeste do Rio, primeiro-oficial <strong>de</strong> convés <strong>de</strong>ssa veloz embarcaçãomercante, procurava a cada porto que atracávamosos prazeres proibidos da cópula com fêmeas aliens.A paga <strong>de</strong> oficial era boa. Isto, para não falar na participaçãonos lucros do transporte e da venda <strong>de</strong> mercadorias.Estamos no comércio <strong>de</strong> especiarias, on<strong>de</strong> as margens<strong>de</strong> ganho costumam ser vultuosas. É por este motivo que— mesmo com duas famílias para sustentar em dois trechosdistintos do Rio, e impostos a pagar nas duas cida<strong>de</strong>son<strong>de</strong> elas resi<strong>de</strong>m — em cada porto que atracávamos, eume concedia a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> procurar um estabelecimentocomo o Estrela Azul: um lugar discreto on<strong>de</strong>, com a leniência<strong>das</strong> autorida<strong>de</strong>s locais, um tripulante em trânsito podianegociar algumas horas <strong>de</strong> prazer alien com uma profissionalatraente.14 15Na primeira noite <strong>de</strong> folga em terra, permaneci no bardo Estrela Azul, encarrapitado num tamborete alto <strong>de</strong>maispara um humano. Não <strong>de</strong>scobri ninguém interessante. Nasegunda noite, sentado à mesa junto com outra tripulante edois aliens, vi Tee’lak ondular majestosa rampa abaixo numvestido longo, vinda do segundo andar do estabelecimento.Lorelei, a outra tripulante, apertou meu bíceps esquerdoe acenou com a cabeça em direção à alien que <strong>de</strong>scia a rampa.— Olha só, Radda. Acho que aquele pitéu é mais oumenos o teu tipo.Grunhi uma resposta ininteligível e engasguei com umgole da boa cerveja escura, fabricada a partir da fermentaçãocriteriosa <strong>das</strong> fezes dos insetói<strong>de</strong>s selvagens da Gran<strong>de</strong>Floresta.Ela era linda!Minha amiga estava certa. A belda<strong>de</strong> era o meu tipo:<strong>de</strong>finitivamente alien e, no entanto, muito, muito humanói<strong>de</strong>,se é que vocês enten<strong>de</strong>m o que eu quero dizer…A epi<strong>de</strong>rme era <strong>de</strong> uma tonalida<strong>de</strong> azul encantadora,que resplan<strong>de</strong>cia na penumbra do bar. Seus olhos negros,enormes e brilhantes, atraíram-me <strong>de</strong> imediato com fulgoresígneos insondáveis, como discos <strong>de</strong> acreção <strong>de</strong> doisburacos negros gêmeos… Dois pares <strong>de</strong> seios, cones protuberantesperfeitos, dispostos um par em cima e o outroembaixo, ao longo <strong>de</strong> seu tórax esbelto, fazendo-a parecermuito mais mamífera do que uma humana. Seriam glândulasmamárias, ou outro órgão qualquer?E os quadris? Meu Bom Espírito Galáctico, que quadris!Largos e redondos. Ancas <strong>de</strong> uma fêmea capaz <strong>de</strong>parir filhotes com crânios indubitavelmente maiores do queo <strong>de</strong> um recém-nascido humano…Inteiramente aparvalhado, só consegui balbuciar:— Quem… quem é ela?Os dois aliens <strong>de</strong> nossa mesa trocaram olhares e riramabertamente, antes <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r em seus próprios idiomas.Mesmo si<strong>de</strong>rado pelo álcool, consegui ler a tradução queseus emissores <strong>de</strong> símbolos projetaram sobre nossas cabeças.— Essa é Tee’lak, uma fêmea dos calífagos. — O comerciantereptiliano respon<strong>de</strong>u, erguendo a caneca alta <strong>de</strong> cervejaem direção à humanói<strong>de</strong> azulada, que retribuiu o cumprimentocom um sorriso <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes opalinos pontiagudos.— Uma autêntica <strong>de</strong>usa do prazer! — O emissor doamebói<strong>de</strong> disparou uma série <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ogramas holográficosmiúdos, característicos do tom <strong>de</strong> confidência. — Dizemque oferece o melhor estímulo oral <strong>de</strong>ste lado do Vale daNeblina… Não que eu possa confirmar pessoalmente, éclaro. Mas, vocês humanos apreciam a prática, não é?— Muito… — Sussurrei com a garganta seca, apesardos goles generosos da boa cerveja da Gran<strong>de</strong> Floresta.Meu holotransceptor lançou aquele i<strong>de</strong>ograma solitário,retratando com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> minha admiração e expectativa.— E vocês acaso sabem se ela aceita copular com aliens…com humanos?O comerciante silvou e o citadino borbulhou, gargalhando,cada um a seu modo, e acompanhados nessa açãopelo riso cristalino <strong>de</strong> Lorelei.— Meu bom amigo, como comerciante fluvial, você<strong>de</strong>certo não ignora que tudo nesta vida é uma questão <strong>de</strong>preço. — O reptiliano replicou, serpenteando a língua trifurcadagotejante <strong>de</strong> saliva e cerveja. — Até mesmo copularcom um macho humano!Novas gargalha<strong>das</strong>.— Além disso, se Tee’lak recusasse cópulas com alienígenas,teria que escolher outra profissão ou mudar <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>,visto existirem bem poucos calífagos aqui em Nebulosa.— O amebói<strong>de</strong> comentou com i<strong>de</strong>ogramas <strong>de</strong> matizfilosófico. — Se o amigo consentir, posso intermediar anegociação com a bela Tee’lak. Naturalmente, só cobrareimeus honorários se o acordo for selado.— Naturalmente. — Lorelei respon<strong>de</strong>u, acorrendo em<strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> meus interesses, ante meu silêncio embevecido.O intermediário amebói<strong>de</strong> foi bem sucedido. Incluindoos honorários <strong>de</strong>le, o contrato custou-me <strong>de</strong>z dias <strong>de</strong> paga.A <strong>de</strong>speito da soma exorbitante, senti-me o humano maisfeliz <strong>de</strong> todo o Vale da Neblina.Como Tee’lak já estivesse comprometida para aquelanoite, meu negociador marcou nosso encontro para a noiteseguinte.Regressei para bordo do Ventos Uivantes mais cedo doque <strong>de</strong> costume, vagando trôpego por vielas mal ilumina<strong>das</strong>,sob o céu eternamente nublado que inspirara o nomedaquele núcleo ribeirinho.Deitado em meu catre, no interior do camarote exíguo,não consegui conciliar o sono, tamanha era a expectativa<strong>de</strong> conhecer e <strong>de</strong>sfrutar dos prazeres <strong>de</strong> Tee’lak.— Então, é você o oficial humano que contratou uma noite<strong>de</strong> amor comigo? — Tee’lak me espantou naquele primeiroinstante com seu domínio perfeito <strong>de</strong> nosso idioma.Constatei que não portava sintetizador <strong>de</strong> fala. Notandomeu assombro, ela se apressou em explicar. — Fiz uma intervençãocirúrgica em meus órgãos fonadores para po<strong>de</strong>rarticular seus vernáculos. Nutro predileção especial pelosclientes humanos…Seus olhos fulgurantes capturaram <strong>de</strong> imediato minhaatenção. Como era fácil me afogar nas profun<strong>de</strong>zas escurasdaquele olhar…Observando-a <strong>de</strong> perto, pu<strong>de</strong> perceber que sua bocapossuia uma série <strong>de</strong> tentáculos curtos, que se agitavampor <strong>de</strong>trás dos <strong>de</strong>ntes azuis afiados, como uma miría<strong>de</strong> <strong>de</strong>línguas diminutas, lembrando os apêndices <strong>de</strong> uma anêmona-do-mar.— Vamos subir até meu quarto? Po<strong>de</strong>mos ficar mais àvonta<strong>de</strong> lá em cima.Tomando meu assentimento por certo, não esperouresposta para se dirigir à rampa que conduzia aos quartosexistentes no segundo andar do Estrela Azul. Hipnotizadopelo bamboleio daqueles quadris fabulosos, segui atrás,perto o bastante para inspirar o <strong>de</strong>licioso aroma floral queexalavam.Tee’lak era uma criatura <strong>de</strong> sonho. Moldada sob medida,pela natureza e pela biotecnologia, para aten<strong>de</strong>r meusmínimos <strong>de</strong>sejos.A porta <strong>de</strong> seus aposentos particulares fen<strong>de</strong>u-se ànossa frente e tornou a cerrar-se após nosso ingresso.A iluminação indireta espalhava uma luz alaranja<strong>das</strong>uave por todo o aposento, fazendo com que a pele azul dacalífaga brilhasse com matizes púrpuras. Perguntei-me seaqueles tons correspon<strong>de</strong>riam às lembranças que seu povomantinha <strong>de</strong> seu planeta natal, <strong>de</strong>certo <strong>de</strong>ixado para trás háinúmeras gerações.

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