Luzes,Câmara...Bang!OPINIÃOOano <strong>de</strong> 2009 acabou razoavelmenteem beleza para os fâsdo fantástico e em especialpara os que preferem ficçãocientífica. Um ano que nos <strong>de</strong>uo empolgantere-boot do franchiseStar Trek,a ternura <strong>de</strong> OSítio <strong>das</strong> Coisas Selvagens,o fabulosoDistrito 9 e o discretomas sólidoMoon, acabou embeleza com Avatar eSherlock Holmes. Falemos<strong>de</strong>stes dois.James Cameron<strong>de</strong>u à luz um eventocinematográfico. Algoque explo<strong>de</strong> cor, luz ealta <strong>de</strong>finição nas retinas,capaz <strong>de</strong> fazersaltar da ca<strong>de</strong>ira o maispesado dos críticos.Avatar foi um dos últimosestouros natalícios ecom toda a razão. Toda?Talvez não: um pequenoburaco negro impe<strong>de</strong> essavisão.Gostaria <strong>de</strong> dizer queesse buraco é um mero efeitovisual, como aquele queo espectador da versão 3D experienciasentado na sala durante as 3 horas <strong>de</strong>projecção, essa sensação <strong>de</strong> que o negroem torno do ecrã não <strong>de</strong>veria existir,como se não houvesse o direito <strong>de</strong>a escuridão absorver a existência, o queacontece nos pixéis da vida real HD.Avatar é um filme bem pensado e bemexecutado a muitos níveis. É genial nosefeitos especiais e do 3D em particular,bastante bom na conceptualização docenário alienígena físico e na sua faunae flora. As referências a outros filmesdo género são abundantes. A intenção<strong>de</strong> maravilhar o espectador é palpável.Mas algumas falhas lógicas e temáticasdo enredo <strong>de</strong>stoam com todos estes indícios<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.Tomemos, a título <strong>de</strong> exemplo, osNa’Vi, os alienígenas inteligentes, acultura que o personagem principal iráconhecer e integrar através do seu avatar“real”. O facto <strong>de</strong> serem uma variaçãobarata <strong>de</strong> gatos azuis com apenasdois espaçados olhos, é uma concessão<strong>de</strong>masiado fácil à verosimilhança enquantoconceito <strong>de</strong> puro marketing eninguém pediu que os animais<strong>de</strong> PandoraAvatar eSherlock HolmesRealização <strong>de</strong> Nuno Fonsecativessem todos 4olhos ou que o azul faça dos Na’vibons alvos para a fauna do planeta, queos torna uma qualse impossibilida<strong>de</strong> segundoDarwin. E ninguém foi capaz <strong>de</strong>pensar numa simples solução para isto?O próprio planeta, <strong>de</strong> nome Pandora,potencia uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> campo <strong>de</strong>batalha on<strong>de</strong> se irá <strong>de</strong>cidir algo sobreo <strong>de</strong>stino humano, como é próprio daboa ficção cientifica. Pandora, que não<strong>de</strong>veria ter aberto a caixa, que a abresoltando os horrores sobre o mundo ecuja última coisa a sair é a Esperança.Há alguma relação no filme a isto? Sóbatendo com um martelo muito gran<strong>de</strong>.Dir-me-ão que é só um nome, quepo<strong>de</strong>ria ter sido outro qualquer, quenão tem importância. Mas esta escolhaexemplifica as fraquezas especulativo-narrativasdo filme. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>esperança, para os Na’vi, para a espéciehumana, para os princípios éticose para a <strong>de</strong>ficiência física <strong>de</strong> Jake et al,para a ecologia e o ambiente, são fundamentaisao conceito do filme. E emmuitos aspectos, Pandora é, juntamentecom Jake, a personagem principal dofilme. Mas o nome enganaa interpretação, pois não érepresentativo da históriaou dos temas. No fim dahistória, não é a esperançao fiozinho que fica,mesmo que sejam soltosos horrores sobre Pandora-Gaiae os Na’vi, eestes sejam salvos. Oque acontece, é que aor<strong>de</strong>m natural, apósmuitra tribulação, éreposta. Os maus andamà solta a fazeremo que querem e nofim per<strong>de</strong>m, graçasao herói humanotravestido <strong>de</strong> alien.Fora isso, paraalém do enjooem ver mais umahistória sobreo complexo dohomem branco,a soporíferanão-abordagemdo tema da protecçãodo ambienteface aos gran<strong>de</strong>s interesses corporativos,a diabolização infantil <strong>de</strong> tudo oque é figura <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> (à excepçãoda personagem <strong>de</strong> Sigourney Weaver,que é logo neutralizada após a chegadaem cena), o messias branco, mesmoque bronco, capaz <strong>de</strong> ser mais alien queos aliens e mais inteligente que eles todosao perceber como domar a maiorbesta alada do planeta…a lista <strong>de</strong> conceitosmal trabalhados é tão extensaque <strong>de</strong>srespeita por completo não só oespectador como a história do cinema170 71fantástico ou <strong>de</strong> FC em particular. Ouseja, temos um enredo que nem nosanos 50 estaria completamente bem colocado,o que é um sério atraso relativoà qualida<strong>de</strong> do género.Há uma tentativa, conceptualmenteengraçada, <strong>de</strong> fazer ficção científicacom técnicas <strong>de</strong> fantasia, e em particular<strong>de</strong> alguma fantasia épica. Mas esteestratagema, que na literatura já foimais que bem feito por exemplo pelosprimeiros livros <strong>de</strong> Pern <strong>de</strong> Ann Mc-Cafrey, é aqui feito <strong>de</strong> forma tosca, esquemática,sem nervo. Após ver Avatar,os espectadores <strong>de</strong> fantasia não ficarãoorientados para a FC, embora o tratamentodos cenários lhes leve a ver queé possível virem a gostar <strong>de</strong>sta o que,sendo um ponto bastante positivo, nãochega para ultrapassar <strong>de</strong>finitivamentea barreira que separa os dois públicoscomo era a intenção.Eu percebo a vertente <strong>de</strong> entretenimentoe <strong>de</strong> como é importante. Masaté este <strong>de</strong>ve ser verosímil, fazer sentido.Uma história po<strong>de</strong> ser simples semser parva. E <strong>de</strong>ve evitar a ausência <strong>de</strong>inteligência a todo o custo, para respeitaros espectadores. Avatar po<strong>de</strong>ria tersido o feito da década, mas só consegueser um objecto bonitinho cuja históriatodos se vão esquecer <strong>de</strong>pressa. É quenão é legitimo hoje em dia tratar a audiênciacomo um bando <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>sacéfalas. Mesmo que muitas vezeselas se possam comportar como tal. Eassim, Avatar é apenas isto: uma objectobonito, um feito técnico prodigioso,mas um enredo fraco ou mesmo <strong>de</strong>ficiente.Ou seja, oportunida<strong>de</strong> perdidaque abre caminho para uma verda<strong>de</strong>iraobra-prima, algo que esperamos paraeste ano <strong>de</strong> 2010.Sherlock Holmes <strong>de</strong> Guy Ritchiefoi também outro bom filme.Como já várias vozes o disseram,este é um Holmes muitodiferente, o que tem provocado afirmaçõesrígi<strong>das</strong> sobre a sua legitimida<strong>de</strong>,tanto a favor como contra. O certo éque agora já não precisamos <strong>de</strong> visualizarum Sherlock velhinho, a caminho<strong>de</strong> cair da tripeça, ou arrogantementeemproado, cheio da sua própria eloquência,<strong>de</strong>bitando intermináveis dissertações<strong>de</strong>dutivas a um abúlico e esclerosadoWatson.Em parte, este é <strong>de</strong> facto Sherlock,o homem <strong>de</strong> carnes secas e trabalha<strong>das</strong>,<strong>de</strong> quem se gosta mesmo não querendo,<strong>de</strong>stemido, bom <strong>de</strong> luta, com raciocíniosrápidos, certeiros e totais, esquisito,e que fica muito irrequieto quandonão tem um objecto-problema, umainvestigação qualquer a efectuar, que ainventa quando ela não surge. Porém,não é o mesmo que Conan Doyle punhaa dobrar uma barra <strong>de</strong> ferro comas próprias mãos, e peca por entrarnuma certa <strong>de</strong>pressão que impossívelao original vitoriano; dirão algumasvozes maledicentes que é um Sherlock<strong>de</strong>masiado Robert Downey Jr., e talveznão estejam longe da razão. O certo éque o resultado é fresco (apesar <strong>de</strong> umnotório <strong>de</strong>salinho com aspecto <strong>de</strong> poucobanho), e o próprio cenário londrinoganha mais vida que o habitual, dandomovimento e cor on<strong>de</strong> os tratamentosprévios se ocupavam com um acinzentadonevoeiro londrino. Os fâs dopersonagem há muito que precisavam<strong>de</strong> ver um <strong>de</strong>tective empolgante, numahistória primeiro misteriosa e <strong>de</strong>poismirabolante.É na história que po<strong>de</strong>mos encontrara maior novida<strong>de</strong>. Curiosamente,por ser muito mais fiel aos contos enovelas originais quanto à estruturautilizada. Há quem se queixe <strong>de</strong> as “explicações”que no filme surgem paraos factos serem cheias <strong>de</strong> buracos ouestapafúrdias, mas a realida<strong>de</strong> é que eraesse o método <strong>de</strong> Conan Doyle: quemleu as aventuras do <strong>de</strong>tective <strong>de</strong> BakerStreet sabe ser impossível adivinhar<strong>de</strong> antemão tais “explicações”, e quequando elas surgiam, também sempreapós o apanhar do bandido, iam buscari<strong>de</strong>ias e factos do arco-da-velha quenão passariam pela cabeça <strong>de</strong> ninguém.A arte do autor era a <strong>de</strong> veicular isso<strong>de</strong> uma forma que parecia ser inevitávele “elementar”, mas que ce<strong>de</strong> a algumadose <strong>de</strong> raciocínio. Até o “namoro”com a temática do sobrenatural e subsequente<strong>de</strong>smistificação com recurso aelementos tecológicos ou <strong>de</strong> especulaçãocientífica, são recursos estilísticosabsolutamente típicos da obra original,veiculando uma aura <strong>de</strong> quase ScientificRomance típico da época, do autore <strong>de</strong> vária da importante produção literáriainglesa (e não só) da época. Etorna-se engraçado pensar que, o maisimportante invento tecnológico do filmetransforma-o em ficção científicamo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> estética steampunk, algo<strong>de</strong> que Arthur Conan Doyle teria certamenteapreciado. BANG!Nuno Fonseca nasceu no ano <strong>de</strong> Woodstock e da ídado Homem à Lua, eventos que o condicionaram a umavida <strong>de</strong> amor pela literatura do fantástico e em especialda Ficção Científi ca. Fugindo a uma vida comercial eadministrativa, mergulhou <strong>de</strong> cabeça no género e não seespera que volte a sair. Foi editor da e-zine Nova, escreveregularmente para o site <strong>de</strong> literatura generalista OrgiaLiterária e para o internacional World SF News blog.
OPINIÃO / João BarreirosÉdifícil imaginar, neste multiversofeito <strong>de</strong> um número incomputável<strong>de</strong> escolhas possíveis, comoteria sido a minha vida, se eu tivesseposto os meus olhos sobre um certolivrinho na altura certa. Se as prateleirason<strong>de</strong> se acoitavam os “livros proibidos”da minha família não estivessemacessíveis aos <strong>de</strong>dinhos pegajososda criança que então fui. Bastava terlido em primeiro lugar um Asimov -falo aqui do profundamente entediantee <strong>de</strong>sconexo ciclo da Fundação - emvez <strong>de</strong> um compacto Ortog do KurtSteiner (1960), André Ruelan <strong>de</strong> seuverda<strong>de</strong>iro nome, para que imediatamenteme afastasse <strong>de</strong> um géneroque afinal marcou a minha existência.Assim sendo, lembro-me ainda <strong>de</strong> percorreras páginas <strong>de</strong>sse livro perdido(e tão fininho que ele era), on<strong>de</strong> Ortog,inocente pastor <strong>de</strong> megatérios -tornado enfim cavaleito-nauta - partiapelo espaço em busca do remédio capaz<strong>de</strong> curar a humanida<strong>de</strong> moribunda.Este livro épico, que foi <strong>de</strong>certoum marco na ostracizada literaturafrancesa <strong>de</strong> FC teve mais tar<strong>de</strong> umasequela nunca publicada em Portugal,Ortog et les ténèbres (1969), on<strong>de</strong> o nossoherói, tal mo<strong>de</strong>rno Orfeu, <strong>de</strong>scia aosinfernos para salvar a “consciência” <strong>das</strong>ua bem-amada. Livrinho discreto, aomesmo tempo sinistro e crepuscular,mal foi lido noite escura e com a ajuda<strong>de</strong> uma lanterna sob os lençóis, logoencheu <strong>de</strong> sombras e angst existencialos meus pesa<strong>de</strong>los <strong>de</strong> infância. Tinhaeu sete anitos quando o li pela primeiravez. Assim se corrompem as almasinocentes. Assim se viciam as criancinhascuja obrigação seria ler mais umaEnid Blyton e ficar por aí. E como seisso não bastasse, vítima da inevitávele maléfica sincronicida<strong>de</strong>, enquanto olia, corria no gira-discos a canção proibidado Zeca Afonso, o No lago do Breu- nunca mais me esqueci da imagemdo megacomputador cujos segredosseriam capazes <strong>de</strong> regenerar a senescentehumanida<strong>de</strong>, afundado numlago <strong>de</strong> alcatrão e <strong>de</strong>fendido por umexército <strong>de</strong> morcegos gigantes.E alguns anos <strong>de</strong>pois, outra pequenaepifania...Lembram-se da colecção da RobertLaffont, Ailleurs et Demain, dirigidapor Gerard Klein e cujas capasmetálicas brilhavam nas prateleiras <strong>das</strong>livrarias <strong>de</strong> Lisboa? Nesses temposépicos on<strong>de</strong> Portugal ainda lia em línguaestrangeira, encontrei outro dosgran<strong>de</strong>s marcos da FC pós new wave,o Nova (1968) do Samuel Delany. Sómais tar<strong>de</strong> vim a <strong>de</strong>scobrir que Delanytinha apenas 26 anitos quando o escreveu.Mas a i<strong>de</strong>ia base era fabulosa.Recolher um metal raríssimo geradono núcleo <strong>de</strong> uma estrela em vias <strong>de</strong>explosão. Mergulhar a nave no coração<strong>de</strong> uma supernova, com todosos riscos inerentes ao capitão/piloto.Cegar por overdose <strong>de</strong> luz. Ficar parao resto da vida com uma estrela a explodir-lheem frente dos olhos. Semesquecer o triângulo amoroso que formao núcleo do livro, também ele tão<strong>de</strong>strutivo como o mergulho no coração<strong>de</strong> uma estrela moribunda. Umpouco como o amour fou a la francaise.On<strong>de</strong> o comandante louco mata porinveja a amada com um beijo. E logo<strong>de</strong> seguida se suicida num banho <strong>de</strong>luz. Sem esquecer que o futuro <strong>de</strong>scritopor Delany, não é <strong>de</strong>certo aqueleon<strong>de</strong> habitam os flashes gordons e oscapitães cometa. É um amanhã <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte,dominado pelas famílias típicas<strong>de</strong> uma Renascença Italiana, <strong>de</strong> tripulantesneuróticos viciados em todo otipo <strong>de</strong> drogas psicotrópicas, <strong>de</strong> unhassujas e roupas enxovalha<strong>das</strong>, on<strong>de</strong> oastrogador/poeta está armado <strong>de</strong> umaespécie <strong>de</strong> cítara electrónica que po<strong>de</strong>matar à distância com a intensida<strong>de</strong> dosom. Com os romances Nova, The Fall ofThe Towers, Babel-17, The Einstein Intersection,e com contos fabulosos como We, Insome strange powers employ, Move on a rigorousline, ou o Time consi<strong>de</strong>red as an helix of semipreciousstones, marcou o nascimento <strong>de</strong>uma FC literária, escrita com rigor, capaz<strong>de</strong> colocar o género a anos-luz dospulp que lhe <strong>de</strong>ram a vida. Claro quenada disto foi publicado em Portugal,a não ser a novela, Babel-17 no Círculo<strong>de</strong> Leitores, com uma tradução abominávelda velha nemesis <strong>das</strong> ediçõesportuguesas, Eduardo Saló.Tristes tristezas.Pois nesta época mole e soturnaon<strong>de</strong> presentemente vivemos, as prateleiras<strong>das</strong> livrarias portuguesas continuama encher-se <strong>de</strong> intermináveisfantasias infanto-pueris, sem esquecero vómito do angst adolescente estimuladopelos vampiros bonzinhos epoliticamente correctos da Meyers.Aqui já não há possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolhaa quem queira encontrar a suaprópria epifania. Para isso, teria <strong>de</strong> lerem Inglês ou Francês. Consultar Enciclopédias.Ser um arqueólogo <strong>de</strong> umpassado que resolveu escon<strong>de</strong>r-se outornar-se invisível. BANG!João Barreiros, licenciado em fi losofi a eprofessor do ensino Secundário, é tradutor,autor e (até já foi) editor <strong>de</strong> fi cção científi ca.Os seus livros saíram com as chancelasda Caminho, Livros <strong>de</strong> Areia, Presençae Saída <strong>de</strong> Emergência. A sua próximaantologia sairá pela Gailivro. Em Espanhafoi publicado pela Bibliopolis.172