Do cimo da cúpula, bem na crista da linha<strong>de</strong> combate mas oculto pela palha seca, oGeneral sentiu o vento e ficou satisfeito.Dispostos em grelha por logaritmo próprio, os lí<strong>de</strong>rese sargentos controlavam as tropas. Ou quase:<strong>de</strong> on<strong>de</strong> estava, sentiu o <strong>de</strong>sequilíbrio químico,um milésimo <strong>de</strong> segundo antes <strong>de</strong> o <strong>de</strong>tectarpelos meios convencionais. Arrastou o arcaboiçona sua direcção para o i<strong>de</strong>ntificar.Não era uma alteração complexa, pelo queconcluiu tratar-se <strong>de</strong> medo corrente, embora comintensida<strong>de</strong> para furar as hormonas <strong>de</strong> controlo.Provinha do lí<strong>de</strong>r do esquadrão 43721-C/31,agregado à força <strong>de</strong> ataque 4-Alpha que estava aliperto, na margem Sul do quadrante 231B Norte.Uma picuinhice fácil <strong>de</strong> resolver: emissão químicaapropriada e, um pouco mais acima, numaabrigada zona <strong>de</strong> dunas cheia <strong>de</strong> cardos, os corposnegros dos Reguladores puseram-se a caminho.Não pensou mais no assunto e reposicionouo corpo. Sentia-se algo pesado, com as entranhasalgo quentes e balouçando <strong>de</strong>mais, mas não erahora <strong>de</strong> se distrair.O pesa<strong>de</strong>lo normal <strong>de</strong> uma batalha era a logística.Multiplicados pormenores a ter em contana manutenção e uso dos imensos milhares <strong>de</strong>componentes orgânicos, obrigavam a um uso intemperado<strong>de</strong> processamento neural. E mesmoassim, o preço que, como General geneticamenteescolhido, pagaria como Centro — a dissoluçãoao final da campanha, manifestação últimada completa perfeição — não lhe parecia gran<strong>de</strong>:mais do que a glória ou a simples vitória, manterse-iao Ganzzz, o Bio-Equilibrio.Calculou a temperatura da quente manhã queterminava, bem como a distribuição <strong>de</strong> força eólica,suficiente para não haver baixas por merocansaço, e ficou satisfeito. Não queria cair no erro<strong>de</strong> há cinco dias, quando na sequência do toque<strong>de</strong> reunião, milhares <strong>de</strong> soldados se tinham <strong>de</strong>sconchavadonas correntes <strong>de</strong> ar frias e traiçoeirassobre as falésias. Um fenómeno a todos os títulosimprevisível, embora ele <strong>de</strong>vesse ter estabelecidoum perímetro <strong>de</strong> recepção e encaminhamento...ser o General não lhe dava gran<strong>de</strong> margem paraerros <strong>de</strong>stes. O Ganzzz, reflectiu, não é flexível osuficiente para tais coisas.Para além da simples e prosaica ocupação doterreno, a preocupação fundamental, a sua e <strong>de</strong>mais nenhum subalterno posto, era a alimentaçãoe propagação <strong>das</strong> tropas. As suas terminações nervosas,magnifica<strong>das</strong> pelo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> processamentodo total <strong>das</strong> espécies alia<strong>das</strong> reuni<strong>das</strong>, cuidava <strong>de</strong>tudo. Até <strong>de</strong> ataques suici<strong>das</strong> por elementos neuróticos,um dos poucos elementos <strong>de</strong> caos aceitáveisna horda. A tirania eterna <strong>das</strong> pequenas coisas.Sob o areal, as forças inimigas não os tinhamainda <strong>de</strong>tectado. Para além <strong>de</strong> sujeitas à organizaçãomono-espécie, bem como aos padrões <strong>de</strong>referência informacional unívocos que não proporcionavamdados externos inteligíveis, davamàs forças alia<strong>das</strong> esta absurda vantagem. Era certoque o inimigo tinha gran<strong>de</strong> expressão a nívelaéreo, mas não em número preocupante: antes dofim da batalha, pensou o General com o cuidado<strong>de</strong> o retransmitir subliminarmente aos lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong>esquadrão, o céu seria <strong>de</strong>les. Ocultou as pulsõesprimárias na mensagem: não convinha que os soldadospercebessem a possibilida<strong>de</strong> do contrário,da morte total e absoluta, do olvido, do ImpensávelZsoth. Assinou a última transmissão feromonalcom a imagem do campo <strong>de</strong> batalha, umextenso areal, <strong>de</strong>itado em frente como um crescentefértil, contendo alimento suficiente paravárias gerações...Com um subtil trejeito <strong>de</strong> asa, o General Moscardo,único sem nome ou posto entre os milhõesdispostos no terreno, or<strong>de</strong>nou subsonicamente apré-sequência <strong>de</strong> ataque à horda <strong>de</strong> mosquitosque vinha no vento, percorrendo a orla <strong>das</strong> praias.10 11No areal, o ambiente <strong>de</strong> tensão era calmamente alimentadopelos lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> esquadrão e sargentos posicionaisà custa da administração <strong>de</strong> judiciosas doses<strong>de</strong> massas biológicas em vários estados <strong>de</strong> necrose.Todos tinham uma vaga noção da importânciadaquela Intervenção; mesmo os mais estupidamenteneófitos, na pujança hormonal <strong>das</strong> suas forças anímicas,entretinham i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> glória futura, povoada<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s orgias copulatórias <strong>de</strong> propagação nomomento da vitória. Para estes, o Ganzzz era umconceito <strong>de</strong>masiado esotérico para ter em conta.A coberto <strong>de</strong> uma duna cheia <strong>de</strong> cardos mitopoéticos,as forças terrestres reuni<strong>das</strong> com as suastropas iam-se aguentando. Um mistura <strong>de</strong> espécies,com centopeias, escaravelhos, moscas, aranhas, aranhetas,libelinhas, e muitas mais; até os ratos, notoriamenteassociais em questões inter-espécies, tinhamaceitado o repto <strong>de</strong> limpeza ecológica.Os sargentos, com as trelas hormonais possíveis,bem como a mole <strong>de</strong> individualistas Reguladores,tratavam <strong>de</strong> manter as hostes prepara<strong>das</strong> sem ruído.O lí<strong>de</strong>r do esquadrão 43721-C/32 sabia que oGeneral esperava que a eminência do ataque galvanizasseas tropas o suficiente para a matança, masmantê-las ao mesmo tempo calmas estava a provarsedifícil. Há pouco entrara em pânico quando umdos soldados quisera sair a correr areal fora, sozinhoque nem um louco, <strong>de</strong> encontro ao inimigo. Ele próprioo apanhara, mas não sem antes ter emitido umpouco <strong>de</strong> medo. Os Reguladores tinham vindo rapidamente.Não tinham sido meigos e ia sentir faltadaquela pata, mas fazer o quê senão aguentar e calara matraca? Aguentou estoicamente o castigo: Tudopelo Ganzzz!Fixou as suas polifaceta<strong>das</strong> oculares no céu intensamenteazul, tentando ser frio e calculista comouma boa aranheta. Em segundos, o azul celeste elimpo começou a ser filtrado por milhares <strong>de</strong> verrugasgnósticas em busca <strong>de</strong> corpos quentes.A visão era encantadora. Se os mosquitos nãofossem uma tão radical antítese filogenética, seriamuma linda manifestação <strong>das</strong> inúmeras potencialida<strong>de</strong>sdo Ganzzz. Gostaria <strong>de</strong> ser uma melhor aranha,<strong>de</strong> conseguir filosofar ao nível do General Moscardo...mas já tinha problemas suficientes a comandarestes malandros, não precisava <strong>de</strong> trabalhos complexos;tinha era <strong>de</strong> mandar como <strong>de</strong>ve ser ou os Reguladoresviriam aí outra vez.— Deixem-nos pousar — Comunicou com aspinças para o seu esquadrão.De entre a filamentar palha acastanhada <strong>de</strong> fabricohumano, o General, que embora oculto tudopercebera, <strong>de</strong>u o seu tácito aval, não comentando.No que tocava à arraia-miúda, ao soldado no terreno,a expectativa era enorme e ensan<strong>de</strong>cedora. Nãohavia lembrança <strong>de</strong> uma força invasora <strong>de</strong> mosquitoscom aquela envergadura. Algo na memória eidéticapartilhada fazia-os sentir que, tanto a ameaçacomo a reacção <strong>de</strong>les próprios, não eram recentes.Mas <strong>de</strong> memória, nada.Impacientes por dar início à matança, as tropasmoviam-se sobre e sob a areia, presos aos juncos e<strong>de</strong>tritos, ocultos pelas ervas altas e cardos, zumbindonervosamente. Alguns elementos individuais nãoresistiam à pressão, atacando-se mutuamente; nadaque um rápido empregar <strong>de</strong> açaimes hormonais pelossargentos, ou pelo esporádico ferrão dos Reguladores,fiéis unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> irascibilida<strong>de</strong> controlada,não resolvesse antes que houvesse estragos a sério.A mole <strong>de</strong> humanos que como vacas cegas empasto dourad’azul esperava indolente, ignorava aenormida<strong>de</strong> do ataque eminente. As nuvens eclipsantesdo inimigo aproximavam-se.Através dos balouçantes cardos, as tropas alia<strong>das</strong><strong>de</strong>ixaram que eles enchessem os abdómenes.O ataque anofelectico espalhou-se como um manto vivo peloscorpos humanos <strong>de</strong>itados na areia. Enxames <strong>de</strong> centenaszumbiam em torno <strong>das</strong> carnes expostas. Mesmo junto à água,os mosquitos caíram-lhes em cima com uma sanha mais genéticaque calculada, mas nem por isso menos feroz. Pequenosbatalhões picantes acumulavam-se orgiasticamente para aaplicação caótica dos proboscí<strong>de</strong>os e subsequente <strong>de</strong>voragem <strong>de</strong>doces leucócitos.Nesse instante o moscardo General saiu da protecção dapalhota, voando verticalmente: chegara o momento.Seguiu-se a confusão somática total. Milhões <strong>de</strong> dados eminput <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado. Análises teórico-práticas extensas. Teoriacomplexifi cada do Caos. E os seus polimórfi cos contrários.Tudo <strong>de</strong> acordo com o habitual. O sol brasa a imponênciado apogeu climático <strong>de</strong> que é capaz. Porém, lá em baixo, issopouca diferença faz…O General faz pequenos voos circulares <strong>de</strong> modo aabarcar o cenário convenientemente. Vê como empouco tempo e na ânsia da fuga os humanos entupiramas vias terrestres <strong>de</strong> acesso ao areal. Amon-
toavam-se como patos a abater, ignorantes <strong>das</strong> verda<strong>de</strong>irascapacida<strong>de</strong>s mortíferas do adversário, semmeios ou saber que lhes valesse. No fundo, pensouao vê-los agarrados aos seus pertences e entrandonos ina<strong>de</strong>quadamente <strong>de</strong>fensáveis veículos <strong>de</strong> locomoção,os humanos não têm Ganzzz.As forças alia<strong>das</strong> continuavam a atacar o inimigo,com pequenas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> guerrilha, começando afazer notórios estragos, especialmente ao longo <strong>das</strong>dunas.Quando já quase não havia humanos, o inimigocomeçou a comemorar a vitória, o sucesso do seucego bugblitzkrieg. Ainda não se tinham apercebidodo ataque na orla geográfica protegida, entre aservas.Nada mais se via sobre a areia senão nuvens <strong>de</strong>mosquitos em <strong>de</strong>lírio orgiástico; muitos <strong>de</strong>les, <strong>de</strong>barriga cheia, <strong>de</strong>dicavam-se a tarefas propagatórias.Tudo muitíssimo contente e distraído.Nesse inolvidável momento, as forças alia<strong>das</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>fesa da costa fecharam o cerco.Sob a escuridão radial <strong>das</strong> oculares do General,milhares <strong>de</strong> insectos saíram da areia e <strong>das</strong> dunas circundantes,empurrando bolas <strong>de</strong> minas-estrume elançando teias ao vento, enquanto briga<strong>das</strong> <strong>de</strong> peixes<strong>de</strong> várias espécies se posicionaram à espera da insana<strong>de</strong>rrocada do inimigo em direcção ao mar. O resto<strong>das</strong> tropas limitou-se a mor<strong>de</strong>r, picar e <strong>de</strong>vorar.Um clássico e brutal movimento <strong>de</strong> tenaz.A carnificina durou o resto da tar<strong>de</strong> e boa parteda noite, após o que o General se imolou satisfatoriamenteperante as mandíbulas dos seus próprioslí<strong>de</strong>res e sargentos. Fora atingida a perfeição.E o Ganzzz.o lixo variado. A água da maré cheia não chegaracompletamente ao cimo, à zona mais alta on<strong>de</strong> asdunas davam lugar à falésia, o que só aconteceriamais para a noite.O casal foi para mais perto da linha <strong>de</strong> água.Sobre o mar ainda se via alguma agitação, apesar<strong>de</strong> não haver on<strong>das</strong>. Abraçados, com expressões <strong>de</strong>perplexida<strong>de</strong> a ensombrar os rostos bronzeados, resolveramnão ligar para a espuma e para a aparenteprofusão <strong>de</strong> peixes e gaivotas.Namoraram assim, tranquila e lentamente, compequenos encostos e carícias. Só pararam o crescente<strong>de</strong> inevitável ousadia quando resmas <strong>de</strong> famílias,seguindo a diminuição do calor como nóma<strong>das</strong> portadores<strong>de</strong> criancinhas esfomea<strong>das</strong> por natureza, começarama aparecer por todo o lado.A maior praga do amor, murmurou o rapaz, é aexistência dos outros. Ela nada disse, mas abraçou-omais apertado.Acabaram por se afastar em direcção ao abrigoprovisório <strong>das</strong> dunas.Estimulados pela emissão <strong>de</strong> feromonas e com a serena leveza<strong>de</strong> quem está fi rmemente plantado na terra, os juncos e <strong>de</strong>maiservas daninhas, sebes, cardos e árvores <strong>de</strong> pequeno porte, observavamtudo.Algumas discussões fi losófi cas, sobre os acontecimentos <strong>das</strong>últimas horas e sobre a integração <strong>das</strong> activida<strong>de</strong>s falha<strong>das</strong>dos humanos como espécie, viriam ainda a reverberar entreelas durante muitos e bons anos.Principalmente entre as duas correntes onto-antagónicassimples.Entre os que <strong>de</strong>fendiam que nenhum animal, por<strong>de</strong>fi nição, podia ser inteligente e viável, e os que afi rmavam ocontrário. Preocupações discursivas elementares. Tudo <strong>de</strong>baixodo agradável sol do Verão. BANG!12 13— Achas que a praia já está boa? — Perguntou orapaz à namorada, enquanto passavam <strong>de</strong>sconfiadospelo pequeno trilho que levava à praia.— É tentar.A praia continuava <strong>de</strong>serta. Na parte mais seca,milhares <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> pontinhos pretos jaziamentre os cristais <strong>de</strong> sílica, os pedaços <strong>de</strong> palha eValéria Rizzi é uma jovem escritora fi lha <strong>de</strong> pai italiano emãe francesa que vive em Portugal <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 3 anos <strong>de</strong>ida<strong>de</strong>. Espreita para o mundo <strong>das</strong> janelas góticas da suavivenda no Estoril e adora praia, mas do que realmentegosta é <strong>de</strong> ler e escrever sobre este mundo como sendoalgo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iramente fantástico. Esta é a sua primeiracolaboração para a Bang!