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O Dia das - Saída de Emergência

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O CONCEITODO SOBRENATURALEM LOVECRAFTNa sua mitologia artificial, os “<strong>de</strong>uses” utilizados porLovecraft não são <strong>de</strong>uses num sentido literal. Todossão constituídos por átomos, embora a disposição <strong>de</strong>stespossa dar origem a matérias e formas perfeitamentealienígenas para o ser humano. Esta minúscula alusão aouniverso quântico da Física serve para afirmarmos que osobrenatural no seio da ficção lovecraftiana é um conceitoalgo problemático. Parece-nos evi<strong>de</strong>nte que, para um mecanicista-materialistacomo o autor em questão, não fariasentido a utilização <strong>de</strong> um sobrenatural propriamente ditocomo aquele utilizado nos autores mais tradicionais do Gótico.Essa seria uma contradição face às suas mais profun<strong>das</strong>convicções pessoais. Uma característica fundamental dosseres que rasgam o “véu” da normalida<strong>de</strong>, como os “OldOnes”, é, <strong>de</strong>ntro da lógica ficcional <strong>de</strong>ste autor, o seu caráctermaterial, <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> contornos “mágicos”.Apesar <strong>de</strong>, à partida, ser possível enten<strong>de</strong>r o carácternatural <strong>de</strong>stas entida<strong>de</strong>s superiores, far-nos-á falta umamaior exactidão na utilização <strong>de</strong> termos. Para tal, serápertinente utilizarmos a teoria <strong>de</strong>senvolvida por TzvetanTodorov sobre o Fantástico na sua obra The Fantastic- AStructural Approach to a Literary Genre. Entre Lovecraft eTodorov, refira-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, existe algo em comum, poisambos os autores, Lovecraft em Supernatural Horror in Literaturee Todorov na obra acima referida, tratam a literaturafantástica numa perspectiva dos seus efeitos. No caso doescritor americano o efeito <strong>de</strong>sejado é o medo, uma ansieda<strong>de</strong>inexplicável perante uma ameaça exterior e que nãoé ainda perceptível. A este tipo <strong>de</strong> medo chamou, como jávimos, “terror cósmico”.Para o autor <strong>de</strong> The Fantastic, o efeito pretendido é ahesitação. Com efeito, Todorov explica, em primeiro lugar,que o Fantástico é, perante uma situação que extravasa anormalida<strong>de</strong>, uma hesitação na atribuição <strong>de</strong>sse acontecimentoa uma estranha combinação <strong>de</strong> leis naturais, portanto,possível <strong>de</strong> acontecer, ou a acontecimentos sobrenaturais,quebrando as referi<strong>das</strong> leis naturais.No caso <strong>de</strong> a narrativa ser racionalmente explicável, entãoestaremos perante aquilo que Todorov <strong>de</strong>signa comopuramente “uncanny”, ou o que po<strong>de</strong>remos chamar <strong>de</strong> “estranho”,exemplificado, na obra <strong>de</strong>ste autor, através do conjunto<strong>das</strong> obras <strong>de</strong> Dostoievsky.Já no “fantástico-uncanny”, o leitor é colocado peranteuma hesitação em que, inicialmente, todos os acontecimentosapontam para a intervenção do sobrenatural, para nofinal surgir uma explicação racional, em conformida<strong>de</strong> comas leis naturais. Todorov exemplifica com recurso a histórias<strong>de</strong> <strong>de</strong>tectives, que insinuam a intervenção <strong>de</strong> elementossobrenaturais, mas que, no final, nos dão uma explicaçãoperfeitamente racional.Por outro lado, no “fantástico-maravilhoso”, os acontecimentos<strong>de</strong> uma narrativa seguem realmente para umaexplicação sobrenatural, uma explicação em consonânciaapenas com a própria estrutura e lógica interna da narrativa.É o caso <strong>de</strong> narrativas em que encontramos a intervenção<strong>de</strong> criaturas como <strong>de</strong>mónios, espíritos ou elfos sendo, <strong>de</strong>facto, apresentados como tal. Finalmente, tal como o puramente“uncanny”, Todorov também apresenta um “maravilhoso”,sem hibridismo. Este irá ser subdividido em quatro:um “maravilhoso hiperbólico” e um “maravilhoso exótico”,em que as narrativas sobre as viagens <strong>de</strong> Sinbad servem <strong>de</strong>exemplo; um “maravilhoso instrumental”, em que objectos“mágicos”, tais como as lâmpa<strong>das</strong> ou os anéis <strong>de</strong> Aladino<strong>de</strong>sempenham um papel fundamental na narrativa e, finalmente,o “maravilhoso científico”, que po<strong>de</strong>mos associar àficção científica.Neste, os acontecimentos iniciais apontam para o sobrenatural,que no caso <strong>de</strong> Lovecraft são quase semprematerializados em raças extraterrestres muito anteriores aoaparecimento do Homem e com capacida<strong>de</strong>s que escapamàquilo que a Ciência po<strong>de</strong> explicar no momento. Contudo,apesar <strong>de</strong> uma incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreensão actual, nãosignifica que as leis “naturais” sejam quebra<strong>das</strong>. As transgressões<strong>de</strong> leis <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> ficcionada, mas que sequer próxima da realida<strong>de</strong> exterior à ficção, possibilitam aoleitor a ilusão <strong>de</strong> que aquilo que lêem po<strong>de</strong>rá ser possível.A este propósito po<strong>de</strong>ríamos socorrer-nos <strong>de</strong> Oscar Wil<strong>de</strong>,que afirmou: “Man can believe the impossible, but man cannever believe the improbable” (Wil<strong>de</strong> 1973: 84), atestando aimportância <strong>de</strong> uma explicação científica ou pseudo-científicaque pareça plausível. O que o leitor encontra em Lovecrafté, nesse sentido, uma explicação racional dos eventos,embora tente sempre causar a hesitação que possibilita oFantástico. Todorov afirma o seguinte acerca do “instrumentalmarvelous”:The «instrumental marvelous» brings us very close towhat in nineteenth-century France was called the scientific marvelous. Here the supernatural is explained in a rationalmanner, but according to laws which contemporaryscience does not acknowledge. In the high periodof fantastic narratives, stories involving magnetism arecharacteristic of the scientific marvelous: magnetism«scientifically» explains supernatural events, yet magnetismitself belongs to the supernatural (Todorov 1970:56).48 49Osobrenatural <strong>de</strong> Lovecraft parece integrar-se nesta últimacategoria, pois muitas <strong>das</strong> entida<strong>de</strong>s e eventos nassuas narrativas, frutos da imaginação do escritor, surgemaos olhos dos seus protagonistas como completamentesobrenaturais, quando na verda<strong>de</strong> a sua materialida<strong>de</strong> epossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem explica<strong>das</strong> num estádio mais avançadoda Ciência permanece entreaberta. Para dar apenas umexemplo refira-se “The Call of Cthulhu”, em que os seresextraterrestres são vistos como <strong>de</strong>uses, num sentido literalda palavra, por socieda<strong>de</strong>s vivendo num estágio culturalmais “primitivo”. Para os protagonistas do conto, levando acabo uma autêntica investigação digna do famoso <strong>de</strong>tectivetocador <strong>de</strong> violino e fumador <strong>de</strong> cachimbo, parece-lhes perfeitamenteclaro que a entida<strong>de</strong> com que estão a lidar, nãoobstante ser muitíssimo po<strong>de</strong>rosa, será ou po<strong>de</strong>rá vir a serexplicável do ponto <strong>de</strong> vista científico.O mesmo po<strong>de</strong>, por exemplo, vir a acontecer com acomunicação aparentemente telepática que Cthulhu estabelececom os seus seguidores. Apesar <strong>de</strong> esta ainda não serexplicável, ou mesmo aceite pela Ciência, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>a mesma vir a ser enquadrada no seu seio num futuro maisou menos distante não é <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezar. Não admira, pois,que Lovecraft seja reconhecido aos olhos <strong>de</strong> muitos críticos,como um dos precursores da ficção científica no século XX.Esta característica da sua escrita reporta-se, fundamentalmente,àquela que po<strong>de</strong>rá ser consi<strong>de</strong>rada a terceira e maisinfluente fase da sua escrita, constituída pelos textos conotadoscom o “Cthulhu Mythos”.Para além <strong>de</strong> Todorov, também Rosemary Jackson, autora<strong>de</strong> Fantasy – The Literature of Subversion nos apresentaalguns pontos <strong>de</strong> vista interessantes para uma melhor <strong>de</strong>finição<strong>de</strong> algumas características da escrita lovecraftiana. Umaposição importante <strong>de</strong>sta autora resi<strong>de</strong> no facto <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rarque o Fantástico não constitui um género, mas sim ummodo. Este <strong>de</strong>verá ser localizado entre o “mimético” e o“maravilhoso”, eles próprios, igualmente modos. De umaforma muito breve, po<strong>de</strong>remos dizer que o mimético é omodo narrativo que preten<strong>de</strong> imitar o real, sendo o maravilhosoum modo com uma lógica própria e não <strong>de</strong> acordocom aquilo que a experiência comum convencionou <strong>de</strong>“real”. Jackson sugere, então, que o Fantástico utiliza a extravagânciado “maravilhoso” e o carácter comum do “mimético”,não pertencendo assim a nenhum modo <strong>de</strong> formadistinta. Será então no Fantástico que, <strong>de</strong> acordo com a autora,fará sentido enquadrar a obra <strong>de</strong> Lovecraft.De acordo com o já anteriormente dito no presente capítulo,a obra <strong>de</strong> Lovecraft escolhe a via do materialismo ouda explicação materialista para construir o elemento fantásticona sua ficção, numa clara tentativa <strong>de</strong> obtenção <strong>de</strong> verosimilhança,estando igualmente <strong>de</strong> acordo com a perda <strong>de</strong>importância do sobrenatural no século XX e com o caráctereminentemente racional do próprio autor. Não obstanteessa opção que o aproxima da ficção científica, o escritornão escapa às problemáticas que envolvem o modo fantástico,como Rosemary Jackson lhe chama. De facto, segundoesta autora, a escrita fantástica apresenta uma relutância ouincapacida<strong>de</strong> em apresentar versões <strong>de</strong>finitivas da “verda<strong>de</strong>”ou da “realida<strong>de</strong>”:Structured upon contradiction and ambivalence, thefantastic traces in that which cannot be said, thatwhich eva<strong>de</strong>s articulation or that which is represente<strong>das</strong> ‘untrue’ and ‘unreal’. By offering a problematicre-presentation of an empirically ‘real’ world, thefantastic raises questions of the nature of the realand unreal, foregrounding the relation between themas its central concern (Jackson 1981: 37.Lovecraft tenta criar um mundo aparentemente real, <strong>de</strong>calcadodo convencional, introduzindo <strong>de</strong>pois algo queperturba essa mesma convencionalida<strong>de</strong>. O caráctermaterialista da sua ficção faz com que tente que o próprioelemento estranho possa vir a ser explicado. Contudo, ascaracterísticas exteriores e totalmente alienígenas em relaçãoà realida<strong>de</strong> quotidiana farão com que haja dificulda<strong>de</strong>s emtorná-las credíveis ou em <strong>de</strong>screvê-las. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntementeda realida<strong>de</strong> com que Lovecraft tenta imbuir os seres alienígenas,as criaturas serão sempre fruto da imaginação doautor, advindo daí as dificulda<strong>de</strong>s em encontrar uma linguagemcapaz <strong>de</strong> exprimir plenamente aquilo que os protagonistasdos seus contos vivenciam. Rosemary Jackson refereo seguinte acerca <strong>de</strong>ste aspecto: “H. P. Lovecraft’s horrorfantasies are particularly self-conscious in their stress onthe impossibility of naming this unnameable presence, the«thing» which can be registered in the text only as absenceand shadow” (Jackson 1981: 39).Uma manifestação <strong>de</strong>sse inominável na ficção lovecraftianaé o conjunto <strong>de</strong> nomes que <strong>de</strong>signam as entida<strong>de</strong>salienígenas, como “Cthulhu”ou “Azathoth”, <strong>de</strong>spidos <strong>de</strong>qualquer significado no “mundo real”. É uma tentativa <strong>de</strong>,levando a linguagem aos seus limites, alcançar aquilo queJean-Paul Sartre <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> como “não-tético”, uma irrealida<strong>de</strong>,que o modo literário do Fantástico tenta alcançar.Apesar <strong>de</strong> não haver uma ligação real entre esses significantese um significado, Lovecraft não abdica <strong>de</strong> quererconvencer o leitor acerca da sua materialida<strong>de</strong>. Nesta suarecusa <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r estes elementos do “Exterior” <strong>de</strong> umaforma maioritariamente metafórica, mas sim apresentá-loscomo literais, resi<strong>de</strong> uma <strong>das</strong> suas principais características.Essa característica acaba também por ser uma <strong>das</strong> característicasdo Fantástico em geral, distinguindo-se, assim, daalegoria e da poesia.A materialida<strong>de</strong> do “exterior” e dos seres que a ele pertencemna ficção lovecraftiana encaixam no conceito <strong>de</strong>“non-signification” que Rosemary Jackson <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> serempróprias do Fantástico mo<strong>de</strong>rno, pois já não estamos peranteum mal moral convencional, pertencente a uma visãomaniqueísta do mundo, mas sim perante algo menos fácil<strong>de</strong> <strong>de</strong>finir: criaturas que <strong>de</strong>safiam a nossa crença <strong>de</strong> centralida<strong>de</strong>no Universo e cuja atitu<strong>de</strong> é maioritariamente <strong>de</strong>indiferença em relação a nós. Não se po<strong>de</strong>rá falar <strong>de</strong> ummal <strong>de</strong>liberadamente dirigido ao ser humano, mas sim <strong>de</strong>algo que coloca em causa a concepção que fazemos <strong>de</strong> umarealida<strong>de</strong> convencionada entre todos, antes mostrando umUniverso indiferente e caótico, portanto, <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> significadoe <strong>de</strong> sentido moral. Aqui residirá, porventura uma<strong>das</strong> maiores originalida<strong>de</strong>s do autor americano, pois, comopo<strong>de</strong>remos verificar em At the Mountains of Madness e “TheShadow Out of Time”, por exemplo, as criaturas extraterrestresretrata<strong>das</strong> como cientistas po<strong>de</strong>rão ser entendi<strong>das</strong>como duplos dos cientistas humanos, impossibilitando queestes últimos possam ser vistos <strong>de</strong> uma perspectiva mais favorávelque os alienígenas. De facto, a dado momento, estesparecem mais imbuídos <strong>de</strong> características supostamentehumanas do que os próprios seres humanos, numa inversão<strong>de</strong> papéis que po<strong>de</strong>remos encontrar em Frankenstein, ou no

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