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O Dia das - Saída de Emergência

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Novamente o sorriso trocista que começava a conhecer<strong>de</strong>masiado bem.— Ora, inspector… Não me diga que acredita em históriasda carochinha.E fechou a porta, parecendo muito agradado pelo dramatismocom que lhe foi permitido fazê-lo.Passei parte da noite a ler o livro e outra parte a tentaresquecer o que lera para conseguir dormir. O autor eraFrancisco Salcedo e tinha como título: “Espíritos, Assombrações,Fantasmas e Outras Manifestações Etéreas.” Nãotinha indicação <strong>de</strong> editora ou <strong>de</strong> ano <strong>de</strong> edição. A julgarpelas páginas amarela<strong>das</strong> e <strong>de</strong> cheiro intenso a papel velhoteria sido impresso déca<strong>das</strong> antes. A secção assinalada, integrandoum capítulo chamado “Espíritos invocáveis, suasqualida<strong>de</strong>s e possíveis consequências” falava <strong>de</strong> víndix, ou“espíritos vingadores”, entida<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>riam ser invoca<strong>das</strong>em situação <strong>de</strong>sesperada para assegurar que <strong>de</strong>terminadoassassínio não ficaria impune. Depois da morte do invocador,o víndix manifesta-se e exerce represálias ferozessobre os homici<strong>das</strong>. O principal problema relacionava-secom a natureza da invocação. Porque o espírito é libertado<strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> quem o invoca, não restará ninguémpara proce<strong>de</strong>r ao ritual <strong>de</strong> expurgação, a não ser que se tomemprovidências para que assim seja. Depois <strong>de</strong> consumadaa vingança, o espírito permanece livre no mundo, portempo in<strong>de</strong>terminado, e po<strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r a missão original àmorte arbitrária <strong>de</strong> quem a sua lógica unidireccional conseguirencaixar na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> “vingança”. Como a morte <strong>de</strong>todos os que entram em contacto com o cadáver do invocador,por exemplo. Ou que entram no domicílio do mortoenquanto este ainda se encontra no interior. O texto referiaainda que o ritual <strong>de</strong> invocação é simples, exigindo apenasuma vela com características específicas (<strong>de</strong> cor negra, compavio torcido e fabricada com cera <strong>de</strong> abelha misturada comessências), a récita <strong>de</strong> palavras a<strong>de</strong>qua<strong>das</strong> e um sacrifício emsangue sobre prata maciça. Mais adiante, referiam-se relatosda existência doutros tipos <strong>de</strong> víndix capazes <strong>de</strong> tarefas quenão se limitariam à simples vingança, po<strong>de</strong>ndo ser aplicadosa funções preventivas para proteger uma pessoa, umobjecto ou um local. Como exemplo, citava-se a utilização<strong>de</strong> espíritos com estas características pelos antigos egípciospara proteger os túmulos dos seus faraós e também pelosetruscos e por civilizações do Oriente longínquo.A secção terminava ali. Li alguns parágrafos da secçãoseguinte, atraído pelo sugestivo título “Aparições <strong>de</strong> carizvenéreo”. Era uma listagem resumida dos tipos <strong>de</strong> espíritoque po<strong>de</strong>riam ser invocados para proporcionar prazer carnal.Eram semelhantes no seu comportamento aos <strong>de</strong>móniosíncubo e súcubo, mas com a distinção <strong>de</strong> possuíremuma natureza imaterial e serem sexualmente ambíguos, nãose lhes po<strong>de</strong>ndo atribuir traços maioritariamente masculinosou femininos. A leitura estava a ser interessante atéchegar às consequências da perda <strong>de</strong> controlo sobre aparições<strong>de</strong>ste tipo. Não consegui concluir a leitura do segundorelato <strong>de</strong> uma invocação venérea que correu mal, fechei olivro, pousei-o na mesa-<strong>de</strong>-cabeceira e apaguei a luz, tentandoadormecer. Minutos <strong>de</strong>pois, tornei a acen<strong>de</strong>r a luz,levantei-me e fui levar o livro à <strong>de</strong>spensa, equilibrando-osobre duas latas <strong>de</strong> salsichas. Fechei a porta da <strong>de</strong>spensa evoltei a <strong>de</strong>itar-me. Não apaguei a luz.Acor<strong>de</strong>i com os primeiros raios <strong>de</strong> sol do dia seguinte,após uma ou duas horas <strong>de</strong> sono intermitente. Queimeitempo até uma hora aceitável e liguei para o Serviço <strong>de</strong>Medicina Legal. Perguntei pelo técnico e disseram-me queainda não tinha chegado. Deixei o meu número e pedi paralhe darem um recado. Era urgente que entrasse em contactocomigo logo que chegasse. O motivo estava relacionadocom a morte do seu colega. Consegui transmitir a mensagemcom o tom <strong>de</strong> urgência a<strong>de</strong>quado porque, uma hora<strong>de</strong>pois, ouvi o telefone tocar. Era ele. Chamava-se PedroMateus. Começou por dizer, sem que lhe perguntasse, quea morte do colega tinha sido uma gran<strong>de</strong> tragédia, mas nãotinha quaisquer informações que não constassem no relatório<strong>de</strong> autópsia e que não compreendia o interesse quepo<strong>de</strong>ria ter em conversar com ele, não tendo sequer competênciapara interpretar dados médicos e sendo apenas alguémque recolhia cadáveres. Tranquilizei-o e <strong>de</strong>ixei claro,por outras palavras, que não era suspeito, mas esclarecendotambém que era provável que a morte do seu colega tivessesido provocada por alguém. Dizer que fora provocada por“alguma coisa” teria sido <strong>de</strong>masiado perturbador e optei pornão o fazer. Acho que foi a melhor escolha. Continuei, dizendo-lheque precisava <strong>de</strong> ter com ele uma conversa absolutamenterotineira e <strong>de</strong> lhe fazer algumas perguntas sobre olocal do crime. Para tal, pedi-lhe que se encontrasse comigoao meio-dia na casa que pertencera a Luís Espanhol. Tentouesquivar-se, dizendo que estaria ocupado em serviço, masvoltei a sublinhar a importância da sua colaboração parai<strong>de</strong>ntificar o assassino. Pedi que justificasse a sua ausência<strong>de</strong> alguma forma que não levantasse <strong>de</strong>masia<strong>das</strong> suspeitas.Disse-lhe que a discrição era exigida pelo caso, mas a verda<strong>de</strong>era que não queria atrair para mim mais atenção do quea estritamente necessária, na eventualida<strong>de</strong> sempre possível<strong>de</strong> estar louco e <strong>de</strong> toda aquela história não passar <strong>de</strong> um<strong>de</strong>lírio alimentado por gente igualmente louca. Acabou poraceitar acrescentar uma hora à sua hora <strong>de</strong> almoço habituale <strong>de</strong>sligou.Passei pelo comissariado para trazer a arma que tinhatrancada no meu cacifo. As balas podiam não ser eficazescontra criaturas sobrenaturais (nem sequer eram <strong>de</strong> pratabenzida como nos filmes <strong>de</strong> terror), mas serviriam para <strong>de</strong>terhumanos com intenções menos agradáveis e isso bastavapara me tranquilizar um pouco.Cheguei ao local combinado dois minutos antes domeio-dia. Pouco <strong>de</strong>pois, à hora certa, um táxi estacionou àminha frente. O Sr. Salcedo vinha sentado no banco <strong>de</strong> tráse acenou, esboçando o seu sorriso <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes sujos. Quandoo carro se imobilizou, vi Acúrcio sair pela porta do condutore contornar o táxi para abrir a porta traseira voltada parao passeio e ajudar o passageiro a sair. Vinha vestido da mesmaforma. A mesma camisa branca imaculada e as mesmascalças pretas vinca<strong>das</strong>. Ou outras exactamente iguais. O Sr.4243Salcedo ostentava um casaco castanho algo surrado e quenão conseguiria abotoar sobre o ventre volumoso, cobertopor uma camisola <strong>de</strong> malha com gola em V e dividida emquadrados <strong>de</strong> dois tons <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>.— On<strong>de</strong> está o taxista? — perguntei a Acúrcio.— O táxi pertence-me — respon<strong>de</strong>u, fechando a portae dirigindo-se para o porta-bagagens. — Alguma objecção?—Não. Nenhuma.Penseique os fantasmas não pagariam muito bem.Louvei-lhe oespírito prático por ter encontrado uma ocu-pação adicional. Retirou uma gran<strong>de</strong> maleta <strong>de</strong> cabedal doporta-bagagens, fechou-o e voltou a aproximar-se.— Meu caro amigo — começou o Sr. Salcedo —, tenho<strong>de</strong> me <strong>de</strong>sculpar pelo achaquezinho <strong>de</strong>ontem. São imprevisíveis.Felizmente, fui dotado com uma saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> ferro, masafecta-me um problema <strong>de</strong> outra natureza. Ainda nãoconseguiencontrar-lhe uma cura, mas não perco a esperança. Éa última a morrer, como diz o ditado.— Claro. — Não disse mais nada. A pergunta lógicaseguinte seria: “É mesmo verda<strong>de</strong> que está possuído por umco<strong>de</strong>mónio?” Mas não me queria ouvir a dizê-lo.Pedro Mateus chegou a seguir numa carrinha da Medi-cina Legal. Caminhou até nós e cumprimentou-me. Tinhacara <strong>de</strong> adolescente tardio e cabelo alourado. Os olhos pareciamquase tão amarelos como o cabelo e também a peleapresentava uma tonalida<strong>de</strong> enfermiça. Apresentei quemme acompanhava, expliquei que qeo Sr. Salcedo era um peritoe esperei que não quisesse saber em quê. Não quis. Esten<strong>de</strong>ua mão, mas nem o Sr. Salcedo nem Acúrcio fizeramqualquer movimento para a receber. O primeiro limitou-sea sorrir. O segundo olhou-o fixamente enquanto formulavaum seco:— Muito gosto.Passámos quase <strong>de</strong>z minutosnum silêncio <strong>de</strong>sconfor-ortávelinterrompido apenas as quando Mateus me perguntou se<strong>de</strong>moraria. Respondi que esperávamos alguém que nos viesseabrir a porta da casa e ouvi-o expressar o seu <strong>de</strong>sagradocom um sopro. O agente imobiliário chegou pouco <strong>de</strong>pois.Pediu <strong>de</strong>sculpa pelo atraso e cumprimentou-nos a todoscom apertos <strong>de</strong> mão, incluindo o Sr. Salcedo e Acúrcio. Di- rigiu-se para o portão e convidou-nos ou-nos a segui-lo. A casa nãomudara muito<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a vira. O mobiliário mantinha-se nhae a maior diferença parecia ser a camada <strong>de</strong> pó e o cheiro acimento que pairavano ar.Caminhando à nossa frente, o agente imobiliário iarecitandouilo? C mio? perguna sualadainha, enumerando as muitas qualida<strong>de</strong>sda moradia que a tornavam i<strong>de</strong>al para albergar uma famí-lia <strong>de</strong> dimensão média. Não percebi se achou que éramosuma família <strong>de</strong> dimensão média. A sua ocupação <strong>de</strong>veriaexigir-lhe espírito aberto para todo o tipo <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong>sna composição os <strong>de</strong> agregados gadosfamiliares. Notei que o LCD<strong>de</strong>saparecera da sala. a. .Oresto mantinha-se.— A casa <strong>de</strong> banho e o escritório foram totalmente te remo<strong>de</strong>ladosdos — explicou. — Oresto encontra-se nt pronto ahabitar. hb Falta-nos apenas acabar ar<strong>de</strong> pintar e equipar a cozinha,mas não levará muito tempo a estar concluída.— Po<strong>de</strong>mos vê-la? — perguntou o Sr. Salcedo. — É ocoração od<strong>de</strong> qualquer lar. Não pon<strong>de</strong>raria sequer a compra <strong>de</strong>uma casa sem uma rica cozinha.A eu cabO agente imobiliário iliápareceu apanhado <strong>de</strong> surpresa resarpelo interesse na divisão quepermanecia por ajeitar. Mur-murou um “com certeza” econduziu-nos pelo corredor.Na cozinha, as diferenças eramnotórias. Os armários, amesa e as ca<strong>de</strong>iras tinham <strong>de</strong>saparecido e não havia vestígios<strong>de</strong> sangue nas pare<strong>de</strong>s nuas. O centro era ocupadopor uma mesa improvisada com tábuas e um par <strong>de</strong> cavaletes,sobre a qual tinham sido colocados bal<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tinta,pincéis, rolos e outro equipamento <strong>de</strong> pintura. Uma <strong>das</strong>pare<strong>de</strong>s tinha já sido pintada <strong>de</strong> branco. Mantinha-se notecto a mancha escura e o cheiro intenso da tinta não tinhaconseguido sobrepor-se por completo ao odor a pêloqueimado. Enquanto o agente imobiliário referia o gás canalizado,a ventilação e o equipamento mo<strong>de</strong>rno que pretendiainstalar, num esforço óbvio para satisfazer o gostopor cozinhas manifestado pelo Sr. Salcedo, vi que Acúrciocolocara a maleta sobre a bancada e retirara um pequenofrasco do interior. Levou a mão a um bolso <strong>das</strong> calçase extraiu um lenço branco, que <strong>de</strong>sdobrou. De seguida,retirou a rolha do frasco, tapou o gargalo com o lenço einverteu-o por um segundo, pousando-o sobre a mesa evoltando a rolhá-lo. O que se seguiu foi quase <strong>de</strong>masiadorápido para conseguir acompanhar com o olhar. Ro<strong>de</strong>ouo pescoço do agente imobiliário com um braço e este ia ameio <strong>de</strong>uma frase sobre as vantagens <strong>das</strong> placas eléctricas<strong>de</strong> fogão quando lhe cobriu a boca e o nariz com o lenço.O homem esboçou um princípio <strong>de</strong> reacção, mas levouapenas as alguns segundos a per<strong>de</strong>r os sentidos e a tombarinanimado no chão, <strong>de</strong>vidamente amparado por Acúrciopara evitar gran<strong>de</strong>s efeitos da queda.Mateus exaltou-se e começou a perguntar-me o que sepassava.Respondi-lhe que estava tudo bem e que não havia motivopara preocupação. Estava tudo sob controlo.— Que raio oseppassa? — perguntei a Acúrcio, vendo-oarrastar o agente imobiliário inerte para fora da cozinha.Voltou a entrar e fechou a porta. Percebendo que não merespondia e se limitava a guardar o frasco e o lenço <strong>de</strong>ntroda maleta, repeti a mesma pergunta, dirigindo-me agora aoSr. Salcedo. — Que raio se passa?—Não é necessário envolver outros elementos alémdos estritamente necessários sários — respon<strong>de</strong>u, sem nunca ter<strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> sorrir.— Que era aquilo? Clorofórmio? — perguntei-lhe.— Óleo <strong>de</strong> calêndula com um outro ingrediente adicional.Nada <strong>de</strong><strong>de</strong>masiado po<strong>de</strong>roso — respon<strong>de</strong>u-meAcúrcio, retirando rando ummolho <strong>de</strong> velas comuns da maletae baixando-se para as equilibrar no chão junto à porta. —Vai acordar muito <strong>de</strong>scontraído e sem se preocupar com amemória perdida <strong>das</strong> últimas horas. A euforia acabará porpassar com os meses, mas, atélá, terá uma vida muito divertida.Foi um favor que lhe fizemos.Mateus disse que se ia embora e dirigiu-se igiu-se i para a porta.Acúrcio olhou-o, sem se erguer, e apontou-lhe um banco aocanto da cozinha. Sentou-se e<strong>de</strong>sistiu <strong>de</strong> protestar. Acaban-do <strong>de</strong> dispor as velas, vi Acúrcio retirar do bolso um pedaço<strong>de</strong> giz branco e começar a traçarlinhas paralelas no chão,junto à base ed<strong>de</strong> cada cilindro <strong>de</strong> cera branca. No interva-lo entre as linhas, acrescentou símbolos que não reconheci.A seguir, dirigiu-se novamente à maleta para retirar novomolho <strong>de</strong> velhas e dispô-las no parapeito da única janelada cozinha, voltando o a usar o gizpara traçar algo que nãoconsegui ver do sítio on<strong>de</strong> me encontrava.— Estamos prontos? — perguntou o Sr. Salcedo. Acúrciovoltou a aproximar-se da maleta e acenou-lhe uma únicavez com a cabeça. — Então, comecemos.Fechou os olhos e murmurou qualquer coisa em vozão p ir pan

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