“Atravessaram uma praça on<strong>de</strong> havia grupos <strong>de</strong> cegos que se entretinhama escutar os discursos doutros cegos, à primeira vistanão pareciam cegos nem uns nem outros, os que falavam viravaminflamadamente a cara para os que ouviam, os que ouviam viravamatentamente a cara para os que falavam.”ENSAIOAprerrogativa <strong>de</strong> se ser humano talvez consista em, comoescreveu Walter Benjamin, «contemplar a nossa <strong>de</strong>struiçãocomo um requintado prazer estético» 1 . Um significado queatribuo a esta transcrição é que a catástrofe torna-se em verda<strong>de</strong>iraapoteose ao ser virada do avesso; e, como tal, ascen<strong>de</strong>para lá do alcance da moral para ser introduzida no reinodos sentidos. Se, nesse caso, já não nos é permitido julgar atragédia, nem as suas causas ou sequer calcular os danos, éverda<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos saboreá-los. Existem escritores queconseguem exprimir muitíssimo bem essa noção, seja emque género narrativo for, mas uma área da literatura em queela é amplificada com maior arrojo é o Fantástico; em particularna ficção científica e no horror.A <strong>de</strong>sagregação da socieda<strong>de</strong> é um assunto que seapresenta com diversos disfarces; aquele que me interessaobservar neste texto é o tema do indivíduo solitário contraum mundo que se transformou num cenário distinto daqueleque ele conheceu toda a vida. Vou-lhe chamar, provisoriamente,o tema da “Inconformida<strong>de</strong>”; e é sob essa orientaçãoque vou olhar para dois livros em que o objecto é similar.Um título <strong>de</strong> literatura erudita e outro <strong>de</strong> literatura popular,escolhidos por mim; tal como é prescrito pelo <strong>de</strong>safio doeditor da revista BANG!, ao qual respondo: Ensaio Sobre aCegueira <strong>de</strong> José Saramago (Editorial Caminho, 1995) e O<strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s <strong>de</strong> John Wyndham (Doubleday, 1951). Emambas as histórias, a <strong>de</strong>sagregação da socieda<strong>de</strong>, mencionadano início <strong>de</strong>ste parágrafo, cumpre-se pelo artifício dacegueira colectiva, num contexto em que toda a gente ficacega <strong>de</strong> um momento para o outro, <strong>de</strong> modo misterioso.Toda a gente, excepto uma pessoa; e é <strong>de</strong>ssa singularida<strong>de</strong>que nasce o drama.No livro <strong>de</strong> Saramago, a personagem com a qual o leitorse i<strong>de</strong>ntifica é uma mulher e no livro <strong>de</strong> Wyndham é um homem.Ela é dada a conhecer, somente, pela <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong>“a mulher do médico”; ele aten<strong>de</strong> pelo nome <strong>de</strong> Bill Masen.Está estabelecida uma <strong>das</strong> diferenças entre os dois objectosque analisarei: a história <strong>de</strong> Ensaio Sobre a Cegueira ocorrenum local sem nenhumas referências espaciais e temporaisque o caracterizem como baseado no real; o enredo <strong>de</strong> O<strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s é plasmado na Inglaterra, durante a década<strong>de</strong> cinquenta do século XX. A falta <strong>de</strong> alusões no romance<strong>de</strong> Saramago opera um efeito interessante: transmiteao leitor uma sensação <strong>de</strong> cegueira distanciada – não umameta-cegueira, mas uma infra-invisualida<strong>de</strong>. Contudo, pensoque será mais justo esclarecer que prefiro o livro escritopor John Wyndham; e que essa preferência, subjectiva, fruida seguinte percepção: esse autor reflectiu <strong>de</strong> modo mais1 “Illuminations” (Schocken, 1969. Pág. 242).pertinente sobre os efeitos que uma cegueira colectiva po<strong>de</strong>riasurtir; não só na esfera íntima <strong>das</strong> células que são aspersonagens, como no todo do organismo que é o mundoem que o contágio enigmático se espalha. Por conseguinte,não me interessa discorrer sobre se o livro escrito porJosé Saramago se inscreve no género do Fantástico e, porinclusão, na área da ficção-científica (mesmo i<strong>de</strong>ntificandoum elevado grau <strong>de</strong> parentesco entre o registo que costumaestar presente em obras <strong>de</strong>ssa natureza e aquele que sepo<strong>de</strong> ler em Ensaio Sobre a Cegueira). A minha curiosida<strong>de</strong> éestimulada pela busca em perceber como o mesmo tema,neste caso o da Inconformida<strong>de</strong>, por intermédio <strong>de</strong> umacegueira partilhada, é <strong>de</strong>senvolvido tanto por um autor <strong>de</strong>literatura popular, como por outro escritor <strong>de</strong> literaturaerudita; e se já revelei uma preferência, elegendo O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong>Trífi <strong>de</strong>s como o predilecto, admito que farei o possível paraque ela não se transforme numa tendência; ou seja, a apreciaçãoserá imparcial.É útil con<strong>de</strong>nsar o enredo dos trabalhos, em duas sinopses,antes <strong>de</strong> avançar.Ensaio sobre a Cegueira Numa fila <strong>de</strong>trânsito, um automobilista anónimo é atingido por uma cegueirarepentina, que o faz ver tudo branco, e que contagiaaqueles que com ele contactam; a origem da doença nuncaé revelada no <strong>de</strong>curso do romance. A cegueira brancamostra ser muitíssimo virulenta e, aparentemente, incurável.O governo elabora um plano para evitar que o contágio seespalhe pelo resto do país e or<strong>de</strong>na ao exército que reúnatodos os cegos, assim como os suspeitos <strong>de</strong> contágio, paraos isolar num manicómio abandonado. Dentro do edifício,<strong>de</strong>teriorado e com péssimas condições <strong>de</strong> higiene, os cegose os não-cegos são <strong>de</strong>ixados às suas sortes, sem qualquerassistência médica, e lutam <strong>de</strong>sesperados por encontrar umarotina que se assemelhe a uma vida que já não é sua. Depois<strong>de</strong> um conflito armado, que opõe cegos e militares, um pequenogrupo <strong>de</strong> cegos, li<strong>de</strong>rado pela mulher <strong>de</strong> um médico,a única personagem que consegue ver (e que, entretanto,tem servido <strong>de</strong> enfermeira aos incapacitados), escapa do encarceramentoe encontra na cida<strong>de</strong> envolvente um mundohostil que urge evitar a todo o custo. Durante esse percursoterrível, os cegos vão encontrar mais personagens. Em seguida,o grupo refugia-se numa casa on<strong>de</strong> tenciona recuperara dignida<strong>de</strong> perdida, mas a cegueira branca, <strong>de</strong> súbito,<strong>de</strong>saparece tão inesperadamente quanto apareceu. Incrédu-26 27los, os ex-cegos olham pelas janelas e não compreen<strong>de</strong>m aalegria sentida pelos cidadãos que <strong>de</strong>ambulam entre a miséria.O mundo <strong>de</strong>les nunca mais voltará a ser o mesmo.O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi<strong>de</strong>s Certa noite, uma raríssimapassagem <strong>de</strong> asterói<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> bizarra luminescência ver<strong>de</strong>,cega toda a população mundial que assiste ao fenómeno.Na manhã seguinte, Bill Masen <strong>de</strong>sperta num hospital <strong>de</strong>Londres, on<strong>de</strong> recupera <strong>de</strong> um aci<strong>de</strong>nte que o obriga a ter osolhos cobertos por ligaduras; horas <strong>de</strong>pois, quando suspeitaque ninguém virá vê-lo, levanta-se da cama, intrigado, tira asligaduras e <strong>de</strong>scobre que é, até prova em contrário, o únicohomem que consegue ver. Como se a cegueira não fossemal suficiente, o risco aumenta quando uma espécie vegetal,chamada Trífi<strong>de</strong>, se aproveita do caos para invadir a cida<strong>de</strong>e atacar os in<strong>de</strong>fesos. Na narrativa, as trífi<strong>de</strong>s são plantasque possui um comportamento animal: têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> se<strong>de</strong>senraizar e usar três pedúnculos para se locomoverem.Usam um apêndice tóxico para paralisar as pessoas. Comoesta espécie, <strong>de</strong> origem <strong>de</strong>sconhecida, já coexistia com oshomens, sendo até usada para a manufactura <strong>de</strong> diversosprodutos, Masen é incapaz <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r se ela apenas aproveitoua cegueira repentina para tomar conta do mundo ouse toda aquela situação faz parte <strong>de</strong> um plano elaborado. Nafuga às trífi<strong>de</strong>s, que estão espalha<strong>das</strong> por todo o lado, tendosido perfeitamente integra<strong>das</strong> na socieda<strong>de</strong> durante anos,Masen encontra múltiplos grupos <strong>de</strong> cegos e <strong>de</strong> não-cegosque se organizaram <strong>das</strong> mais varia<strong>das</strong> formas: uns encontramna adversida<strong>de</strong> uma razão criar laços <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong>,outros <strong>de</strong>ixam-se levar pelos piores instintos. Inversamentea Ensaio Sobre a Cegueira, a doença <strong>de</strong> O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s nuncachega a ser vencida. Num mundo falido, Masen acaba sozinho;fazendo o possível não só por sobreviver, mas porencontrar sentido numa existência que se esgota a si própria.O mundo inteiro nunca mais voltará a ser o mesmo.Po<strong>de</strong>r e vulnerabilida<strong>de</strong>: rituais <strong>de</strong>sujeição Tanto Ensaio Sobre a Cegueira como O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong>Trífi <strong>de</strong>s, ao fazerem da cegueira o objecto dos seus horroressociais e físicos, escolheram concentrar-se nas reacções <strong>de</strong>personagens pertencentes à classe média: não existem personagens<strong>de</strong> outras classes que tenham uma voz activa nessesdois romances. Esta <strong>de</strong>finição “média” escon<strong>de</strong>, <strong>de</strong> certeza,opiniões políticas e serve <strong>de</strong> memorando para o factoque a classe média é, na verda<strong>de</strong>, vital para o funcionamentodo sistema social que foi instaurado no mundo oci<strong>de</strong>ntalapós o término da Segunda Gran<strong>de</strong> Guerra. É interessantenotar, ainda, o seguinte: Wyndham nunca oferece umaorigem para as trífi<strong>de</strong>s, mas sugere, pela voz <strong>de</strong> Masen, umfuncionário que trabalhou a vida toda em contacto com essaespécie, que ela foi <strong>de</strong>senvolvida artificialmente nos laboratóriosda União Soviética (uma escolha autoral que, <strong>de</strong> certezaabsoluta, se alimentou do burburinho que foi provocadopelo trabalho <strong>de</strong> Trofim Denisovich Lysenko, o director doInstituto <strong>de</strong> Ciências Agrícolas do Partido Comunista, durantea ditadura <strong>de</strong> Estaline, cujas medi<strong>das</strong> geneticistas paraoptimizar o crescimento dos cereais apavoraram as opiniõespúblicas europeia e norte-americana quando os preceitoscomeçaram a ser utilizados para purgar as populações<strong>de</strong> instintos capitalistas). Atentando a isso é fácil <strong>de</strong>scobrirreceios <strong>de</strong> uma invasão comunista em O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s, publicadono período clássico da guerra-fria; um receio que,<strong>de</strong> modo menos transversal, está contido em A Invasão dosVioladores <strong>de</strong> Jack Finney (1954). Contudo, as trífi<strong>de</strong>s tambémpo<strong>de</strong>rão ter uma origem extraterrestre; i<strong>de</strong>ia reforçadapela passagem da chuva <strong>de</strong> asterói<strong>de</strong>s, responsável pela cegueira– estariam à espera <strong>de</strong>sse momento para se revelaremcomo invasoras? Sejam as trífi<strong>de</strong>s produtos transgénicos ouorganismos oriundos <strong>de</strong> outra galáxia, Wyndham não per<strong>de</strong>tempo com elaborações sobre a origem <strong>de</strong>las e investe, comagilida<strong>de</strong>, no <strong>de</strong>senvolvimento do drama pessoal <strong>de</strong> Masen ea sua busca por outros indivíduos que consigam ver. Nessaóptica, assemelha-se à direcção que Saramago imprime emEnsaio Sobre a Cegueira: os efeitos provocados pela epi<strong>de</strong>miatêm uma dimensão maior que a especulação sobre a suaprocedência ou a busca por uma cura.O tema da Inconformida<strong>de</strong> é introduzido aqui: as personagensnas quais os leitores se reconhecem (a mulher domédico e Bill Masen) são aquelas que se cifram como anormais,face à maioria. O conflito <strong>de</strong> sentimentos experimentadopelo leitor é po<strong>de</strong>roso: ele sabe que a razão, a norma,está do lado <strong>de</strong>las (e do <strong>de</strong>le), mas num mundo às avessasas coisas assumem diferentes configurações. No final <strong>das</strong>leituras sente-se um gosto amargo na boca; um estranhoembaraço quando se consi<strong>de</strong>ra a comicida<strong>de</strong> que as situaçõesnarra<strong>das</strong> possuem. Na realida<strong>de</strong>, fomos todos obrigadosa uma “abdicação do ser” para conseguir levar a leituraaté ao fim, porque, no <strong>de</strong>curso <strong>de</strong>sse exercício, os vilões, osmonstros, fomos nós.Todavia, a leitura <strong>de</strong> Ensaio Sobre a Cegueira obriga uminesperado adiamento da abjecção, paralelamente à <strong>de</strong>missãodo ego que O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s também produz. Obriga auma suspensão da náusea. Essa é uma qualida<strong>de</strong> a reter, na minhavisão daquilo que a arte <strong>de</strong>ve oferecer; e eu encontro-aem inúmeros romances, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> O Pássaro Pintado <strong>de</strong> JerzyKosinski, passando por Viagem ao Fim da Noite <strong>de</strong> Céline,até Os Cantos <strong>de</strong> Maldoror <strong>de</strong> Isidore Ducasse e as obras maisverrinosas <strong>de</strong> Sa<strong>de</strong> e Bataille. Porém, evito incluir o EnsaioSobre a Cegueira nesse rol <strong>de</strong> títulos “grand-guignolescos”. O queexiste em Ensaio Sobre a Cegueira é mais uma paródia ao abjectoque uma visão autoral sobre o abjecto – e penso queisso faz toda a diferença.Esse juízo foi-me reforçado pelo <strong>de</strong>sfecho da narrativa:não pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> me sentir ludibriado quando li o finalem que a cegueira se dissipa e toda a gente recupera a visão.As violências coagi<strong>das</strong> nas personagens, pelos cegos e
pelos não-cegos, <strong>de</strong>ntro do manicómio isolado transmitem,nesse mol<strong>de</strong>, mais uma apreciação negativa sobre um estilocosmopolita <strong>de</strong> viver, uma aversão sentida pela cultura capitalista,que uma escalpelização da inumanida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>ser influenciada pelo cativeiro 2 . O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s é, nessesentido, mais sincero: numa curva ascen<strong>de</strong>nte gulliveriana,Masen vai contactando com várias bolsas <strong>de</strong> população quesobrevivem <strong>de</strong> acordo com muitas filosofias diferentes. Apersonagem encontra grupos que se aproximam mais dolado esquerdo do espectro político e outros que estão mais àdireita: existe uma pluralida<strong>de</strong> que está ausente no romance<strong>de</strong> Saramago, porque no livro <strong>de</strong>le parece que só existe umaforma <strong>de</strong> ser mau e uma forma <strong>de</strong> ser bom.A monstruosida<strong>de</strong> em Ensaio Sobre a Cegueira e O <strong>Dia</strong><strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s não é, com efeito, uma consequência da cegueira.Nasce, com maior autorida<strong>de</strong>, <strong>das</strong> nossas próprias noçõessobre o que é normal e higiénico; da i<strong>de</strong>ia que, na culturaoci<strong>de</strong>ntal, qualquer coisa que se distancie, pela singularida<strong>de</strong>,dos mo<strong>de</strong>los afeiçoados aos cânones, se transforma numacontagiosa fonte <strong>de</strong> horrores. Quando lemos sobre um cegoa apalpar as fezes dos companheiros <strong>de</strong> reclusão enquantoprocura o buraco da latrina para se aliviar, não po<strong>de</strong>mosfazer nada a respeito disso. E quando lemos sobre trífi<strong>de</strong>s aalimentarem-se <strong>de</strong> corpos em <strong>de</strong>composição, também não.Ambas as situações são obscenas fugas à norma – aci<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> percurso: testemunhá-las <strong>de</strong>ixa-nos muitíssimovulneráveis. Uma vulnerabilida<strong>de</strong> que se misturacom o nojo, mas esse sentimento é, em últimaanálise, <strong>de</strong> pechisbeque diante da biologia. Convido-vosa uma pequena experiência: façam umabola <strong>de</strong> saliva <strong>de</strong>ntro da boca e engulam-na; emseguida, façam outra bola <strong>de</strong> saliva, cuspam-napara <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um copo e engulam-na. Se nãotiveram problemas em realizar a primeira operação,certamente irão recusar-se a fazer a segunda. Masporquê? A saliva é a mesma; não adquiriu, magicamente,proprieda<strong>de</strong>s tóxicas ao ser vertida para o copo. A experiênciamostra que o conceito que classifica o que é asquerosonada tem a ver com a biologia, mas tem tudo a ver com acultura. «Po<strong>de</strong> ser que o nojo tenha uma estrutura que se impõe nasnossas noções culturais?», pergunta William Ian Miller no livroThe Anatomy of Disgust (Harvard University Press, 1997. Pág.62). O livro <strong>de</strong> Miller é o melhor ensaio que conheço sobrea temática do nojo, enquanto agente formador do humano;2 «(…) se não nos parecer sufi ciente o que entregarem, simplesmente nãocomem, entretenham-se a mastigar as notas <strong>de</strong> banco e a trincar os brilhantes.»“Ensaio Sobre a Cegueira” (Editorial Caminho, 1995. Págs. 140-141).«Entalado entre dois carros, o corpo <strong>de</strong> um homem apodrece. A mulher do médico<strong>de</strong>svia os olhos. O cão <strong>das</strong> lágrimas aproxima-se, mas a morte intimida-o (…)Atravessaram uma praça on<strong>de</strong> havia grupos <strong>de</strong> cegos que se entretinham aescutar os discursos doutros cegos, à primeira vista não pareciam cegos nem unsnem outros, os que falavam viravam infl amadamente a cara para os que ouviam,os que ouviam viravam atentamente a cara para os que falavam. Proclamavam-seali os princípios fundamentais dos gran<strong>de</strong>s sistemas organizados, a proprieda<strong>de</strong>privada, o livre câmbio, o mercado, a bolsa, a taxação fi scal, o juro, a apropriação,a <strong>de</strong>sapropriação, a produção, a distribuição, o consumo, o abastecimento eo <strong>de</strong>sabastecimento, a riqueza e a pobreza, a comunicação, a repressão e a<strong>de</strong>linquência, as lotarias, os edifícios prisionais, o código penal, o código civil, ocódigo <strong>de</strong> estra<strong>das</strong>, o dicionário, a lista <strong>de</strong> telefones, as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prostituição,as fábricas <strong>de</strong> materiais <strong>de</strong> guerra, as forças arma<strong>das</strong>, os cemitérios, apolícia, o contrabando, as drogas, os tráfi cos ilícitos permitidos, a investigaçãofarmacêutica, o jogo, o preço <strong>das</strong> curas e dos funerais, a justiça, o empréstimo,os partidos políticos, as eleições, os parlamentos, os governos, o pensamentoconvexo, o côncavo, o plano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso,o fugido, a ablação <strong>das</strong> cor<strong>das</strong> vocais, a morte da palavra. Aqui fala-se <strong>de</strong>organização, disse a mulher do médico ao marido. Já reparei, respon<strong>de</strong>u ele, ecalou-se.» “Ensaio Sobre a Cegueira” (Págs. 295-296).uma <strong>das</strong> i<strong>de</strong>ias que o autor avança, para interrogar como éque ele se manifesta, relaciona-se com o tema da Inconformida<strong>de</strong>:«(…) coisas que metem nojo porque falham em se encaixarnas nossas expectativas. Explica-se, <strong>de</strong>sse modo, o nojo que po<strong>de</strong> provocara pele <strong>de</strong> um homem que possua o toque <strong>das</strong> escamas <strong>de</strong> um réptile o nojo que po<strong>de</strong> provocar as escamas <strong>de</strong> um réptil que possuam o toqueda pele humana.» 3 Nessa perspectiva, os militares e os cegos“malvados” [sic] <strong>de</strong> Saramago, mais os hooligans <strong>de</strong> Wyndhampossuem uma falsa humanida<strong>de</strong>: são humanos só porquenão são, morfologicamente, monstros!... Esse papel está, emexclusivo, reservado às trífi<strong>de</strong>s.Em suma: nós, leitores <strong>de</strong>sprevenidos, po<strong>de</strong>mos sentirnojo pelo médico cego que tacteia na trampa em busca dacloaca 4 , mas imagino que uma enfermeira, por exemplo, quecontacta com fezes, escarros e sangue o dia inteiro, tenha“Os efeitos provocados pela epi<strong>de</strong>mia têmuma dimensão maior que a especulação sobrea sua procedência ou a busca por uma cura.”uma reacção diferente ao ler o mesmo texto. Talvez pieda<strong>de</strong>.Ou ennui… Outro livro que recomendo a quem <strong>de</strong>seja lercom maior rigor sobre esta temática é Pouvoirs <strong>de</strong> l’Horreur:Essai Sur l’Abjection <strong>de</strong> Julia Kristeva (Seuil, 1980), mas TheAnatomy of Disgust é que é o título fundamental. Para remataresta sumária incursão sobre o asco, e o modo como essaemoção se relaciona com a cultura, transcrevo esta passagem<strong>de</strong> A Insustentável Leveza do Ser <strong>de</strong> Milan Kun<strong>de</strong>ra (apenasporque o trecho é muito a<strong>de</strong>quado a este tópico): «Quando euera pequeno, punha-me a olhar para uma imagem <strong>de</strong> Deus Nosso Senhor<strong>de</strong> pé, em cima <strong>de</strong> uma nuvem que havia no Antigo Testamento,contado às crianças e ilustrado com gravuras <strong>de</strong> Gustave Doré, que costumavafolhear. Era um senhor bastante velho, com olhos, nariz, umagran<strong>de</strong> barba, e eu achava que, como tinha boca, também <strong>de</strong>via comer.E, se comia, também <strong>de</strong>via ter intestinos. Mas fi cava logo assustadocom a i<strong>de</strong>ia porque, embora a minha família fosse quase ateia, percebiabem a blasfémia que era pensar que Deus Nosso Senhor tinha intestinos.Sem a mínima preparação teológica, com toda a espontaneida<strong>de</strong>,a criança que eu era então já compreendia, portanto, a fragilida<strong>de</strong> datese fundamental da antropologia cristã, segundo a qual o homem foicriado à imagem e semelhança <strong>de</strong> Deus. Das duas, uma: ou o homemfoi criado à imagem <strong>de</strong> Deus e Deus tem intestinos, ou Deus não temintestinos e o homem não se parece nada com ele. Os gnósticos antigossentiam-no tão claramente como eu, aos cinco anos. Para acabar <strong>de</strong>uma vez por to<strong>das</strong> com este maldito problema, Valentino, grão-mestreda Gnose do século II, afi rmava que Jesus “comia, bebia, mas não3 “The Anatomy of Disgust.” Pág. 62.4 “Ensaio Sobre a Cegueira”. Págs. 96-97.28 29<strong>de</strong>fecava”. A merda é um problema teológico mais difícil do que o mal.Deus ofereceu a liberda<strong>de</strong> ao homem e, portanto, po<strong>de</strong> admitir-se queele não é responsável pelos crimes da humanida<strong>de</strong>. Mas a responsabilida<strong>de</strong>pela existência da merda incumbe inteiramente àquele que criouo homem, e só a ele.» 5 O que é bem verda<strong>de</strong>: é que a primeiracoisa que se <strong>de</strong>senvolve no embrião humano, pelo processoiniciático conhecido por gastrulação, é o ânus!...O regresso do rei Após a queda <strong>das</strong> Twin Towersdo World Tra<strong>de</strong> Center, em 2001, não po<strong>de</strong>mos ler certaspassagens <strong>de</strong> O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s sem sentir um calafrio na espinha;com honestida<strong>de</strong>, o calafrio já lá estava, enrolando-secomo uma serpente, mas as imagens pós-11 <strong>de</strong> Setembrooferecem-nos ícones certeiros para dar substância a <strong>de</strong>termina<strong>das</strong>frases que, sem esse suporte visual, po<strong>de</strong>riam seranedia<strong>das</strong> pela negação da imaginação. Quando lemos sobreos indivíduos cegos que se suicidam na primeira partedo romance, atirando-se <strong>das</strong> janelas, não são os cidadãos aprecipitar-se no asfalto <strong>de</strong> Manhattan, para fugir ao incêndioque <strong>de</strong>strói os escritórios, aqueles em que pensamos? «By thewindow he paused. With one hand he felt his position very carefully.Then he put both arms around her, holding her to him. “Too won<strong>de</strong>rfulto last, perhaps”, he said softly. “I love you, my sweet, I love you sovery, very much”. She tilted her lips up to him to be kissed. As helifted her he turned, and stepped out of the window.» 6 No livro <strong>de</strong>Saramago, as imagens que vêm à memória são as que construímoscom base no que vimos sobre os campos <strong>de</strong> concentraçãodos diversos regimes totalitários do século XX; oque não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> alçar interrogações interessantes: se, 1) aocontrário do livro <strong>de</strong> Wyndham, a cegueira colectiva está, <strong>de</strong>início, localizada numa pequena amostra <strong>de</strong> indivíduos, então2) qual é a lógica do “governo” [sic] montar um onerosoaparato pseudo-nazi (ou pseudo-estalinista), com a ajuda doexército, para <strong>de</strong>ixar meia-dúzia <strong>de</strong> cegos a morrer à míngua?De facto, não é <strong>de</strong>scrita nenhuma tentativa por parte<strong>das</strong> autorida<strong>de</strong>s em compreen<strong>de</strong>ros sintomas dacegueira ou como se po<strong>de</strong>riaachar uma vacina. Aacção <strong>de</strong>liberada é, apenas,o isolamento dos doentes,em condições que não garantemnenhuma forma<strong>de</strong> evitar que a cegueirase espalhe fora <strong>de</strong> portas.As intenções do autor são,neste sentido, <strong>de</strong>masiadoevi<strong>de</strong>ntes para que surtam“Coisas que metem nojoporque falham em seencaixar nas nossasexpectativas.”um efeito genuíno: ou o leitor aceita ser manipulado e avançana leitura ou não aceita e fecha o livro. Não existe mesmoum meio-termo. O mesmo tipo <strong>de</strong> artifício está presenteno livro Ensaio Sobre a Luci<strong>de</strong>z (Editorial Caminho, 2004),que possui muitos pontos em comum com Ensaio Sobre aCegueira (tantos que po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado uma sequela), masenquanto este se aproxima da ficção-científica, o outro temuma tonalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> romance policial: a segunda meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>Ensaio Sobre a Luci<strong>de</strong>z lê-se como uma novela <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectives.Ambos os títulos contêm i<strong>de</strong>ias que, à partida, oferecemoportunida<strong>de</strong>s excelentes para se escrever ensaios interessantessobre relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a fragilida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>mocracia5 “A Insustentável Leveza do Ser” (RBA Editores, 1994. Pág. 260).e o que significa ser-se humano em condições <strong>de</strong>sumanas:convido-vos a ler os livros para concluírem sobre o sucesso<strong>de</strong>sses empreendimentos, já que a este texto apenas competeuma leitura paralela entre Ensaio Sobre a Cegueira e O <strong>Dia</strong><strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s, sem incorrer num <strong>de</strong>svio para à análise crítica;que vise, ou não, olhar para o conjunto formado pelas obrasdos dois autores.Em O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s po<strong>de</strong>-se ler o seguinte: «”Make arule for yourself not to speak to anyone, and nobody’s going to guessyou can see. It was only being quite unprepared that lan<strong>de</strong>d you in thatmess before. In the country of the blind the one-eyed man is king.”“Oh yes – Wells said that, didn’t he? Only in the story it turned outnot to be true.” “The crux of the difference lies in what you mean bythe word ‘country’ – patria in the original,” I said. “Caecorum inpatria luscus rex imperat omnis – a classical gentleman calledFullonius said that: it’s all anyone seems to remember about him. Butthere’s no organized patria, no state, here – only chaos. Wells imagineda people who had adapted themselves to blindness. I don’t thinkthat is going to happen here – I don’t see how it can.”» 7 Wyndhamrefere-se à história The Country of the Blind <strong>de</strong> H. G. Wells,publicada na revista The Strand, em 1904.O conto <strong>de</strong> Wells fala sobre um alpinista chamado Nunezque, por aci<strong>de</strong>nte, encontra uma al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> indígenas cegos;o recém-chegado <strong>de</strong>pressa compreen<strong>de</strong> que a cegueiraé congénita e pensa em tornar-se lí<strong>de</strong>r da comunida<strong>de</strong>: emterra <strong>de</strong> cegos quem tem um olho é rei, pensa. Contudo, adaptadosa uma vida inteira sem o sentido da visão, os al<strong>de</strong>ões nãocompreen<strong>de</strong>m as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> Nunez, nementen<strong>de</strong>m o conceito <strong>de</strong> ver; tomando-o porum louco inofensivo, <strong>de</strong>ixam-no à sua sorte.Mais tar<strong>de</strong>, o alpinista enamora-se por umaíndia chamada Medina-Saroté; para casarcom ela, concorda em que lhe sejam furadosos olhos, <strong>de</strong>vido à suspeita partilhada pelosrestantes que a tal visão seja, afinal <strong>de</strong> contas,uma doença perigosa. Todavia, na noiteanterior à cerimónia, Nunez foge, <strong>de</strong>cididoa encontrar o caminho <strong>de</strong> regresso à civilização;apesar <strong>de</strong> conseguir sair do vale perdido,morre, <strong>de</strong>sorientado, nas montanhas. A máxima<strong>de</strong> Fellonius entrou no léxico oci<strong>de</strong>ntal pela mão <strong>de</strong>Erasmus <strong>de</strong> Roterdão, que a compilou no volume Adagia(1500); o conto <strong>de</strong> Wells mostra que, por vezes, possuir umavantagem po<strong>de</strong> tornar-se em <strong>de</strong>svantagem.O tema da Inconformida<strong>de</strong> está presente em outrasobras literárias bastante conheci<strong>das</strong>, como A Peste <strong>de</strong> AlbertCamus (1947), A Metamorfose <strong>de</strong> Franz Kafka (1915) e Os Filhosdo Homem <strong>de</strong> P. D. James (1992); um exemplo muitíssimocurioso é uma peça teatral <strong>de</strong> Eugène Ionesco chamada Rhinocéros(1959), na qual a Inconformida<strong>de</strong> advém da transformaçãoem rinocerontes <strong>de</strong> todos os habitantes <strong>de</strong> uma vilafrancesa. Recupero aqui aquilo que escrevi sobre a temática6 “The Day of the Triffi ds” (Mo<strong>de</strong>rn Library, 2003. Pág. 68).