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O Dia das - Saída de Emergência

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“Atravessaram uma praça on<strong>de</strong> havia grupos <strong>de</strong> cegos que se entretinhama escutar os discursos doutros cegos, à primeira vistanão pareciam cegos nem uns nem outros, os que falavam viravaminflamadamente a cara para os que ouviam, os que ouviam viravamatentamente a cara para os que falavam.”ENSAIOAprerrogativa <strong>de</strong> se ser humano talvez consista em, comoescreveu Walter Benjamin, «contemplar a nossa <strong>de</strong>struiçãocomo um requintado prazer estético» 1 . Um significado queatribuo a esta transcrição é que a catástrofe torna-se em verda<strong>de</strong>iraapoteose ao ser virada do avesso; e, como tal, ascen<strong>de</strong>para lá do alcance da moral para ser introduzida no reinodos sentidos. Se, nesse caso, já não nos é permitido julgar atragédia, nem as suas causas ou sequer calcular os danos, éverda<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos saboreá-los. Existem escritores queconseguem exprimir muitíssimo bem essa noção, seja emque género narrativo for, mas uma área da literatura em queela é amplificada com maior arrojo é o Fantástico; em particularna ficção científica e no horror.A <strong>de</strong>sagregação da socieda<strong>de</strong> é um assunto que seapresenta com diversos disfarces; aquele que me interessaobservar neste texto é o tema do indivíduo solitário contraum mundo que se transformou num cenário distinto daqueleque ele conheceu toda a vida. Vou-lhe chamar, provisoriamente,o tema da “Inconformida<strong>de</strong>”; e é sob essa orientaçãoque vou olhar para dois livros em que o objecto é similar.Um título <strong>de</strong> literatura erudita e outro <strong>de</strong> literatura popular,escolhidos por mim; tal como é prescrito pelo <strong>de</strong>safio doeditor da revista BANG!, ao qual respondo: Ensaio Sobre aCegueira <strong>de</strong> José Saramago (Editorial Caminho, 1995) e O<strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s <strong>de</strong> John Wyndham (Doubleday, 1951). Emambas as histórias, a <strong>de</strong>sagregação da socieda<strong>de</strong>, mencionadano início <strong>de</strong>ste parágrafo, cumpre-se pelo artifício dacegueira colectiva, num contexto em que toda a gente ficacega <strong>de</strong> um momento para o outro, <strong>de</strong> modo misterioso.Toda a gente, excepto uma pessoa; e é <strong>de</strong>ssa singularida<strong>de</strong>que nasce o drama.No livro <strong>de</strong> Saramago, a personagem com a qual o leitorse i<strong>de</strong>ntifica é uma mulher e no livro <strong>de</strong> Wyndham é um homem.Ela é dada a conhecer, somente, pela <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong>“a mulher do médico”; ele aten<strong>de</strong> pelo nome <strong>de</strong> Bill Masen.Está estabelecida uma <strong>das</strong> diferenças entre os dois objectosque analisarei: a história <strong>de</strong> Ensaio Sobre a Cegueira ocorrenum local sem nenhumas referências espaciais e temporaisque o caracterizem como baseado no real; o enredo <strong>de</strong> O<strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s é plasmado na Inglaterra, durante a década<strong>de</strong> cinquenta do século XX. A falta <strong>de</strong> alusões no romance<strong>de</strong> Saramago opera um efeito interessante: transmiteao leitor uma sensação <strong>de</strong> cegueira distanciada – não umameta-cegueira, mas uma infra-invisualida<strong>de</strong>. Contudo, pensoque será mais justo esclarecer que prefiro o livro escritopor John Wyndham; e que essa preferência, subjectiva, fruida seguinte percepção: esse autor reflectiu <strong>de</strong> modo mais1 “Illuminations” (Schocken, 1969. Pág. 242).pertinente sobre os efeitos que uma cegueira colectiva po<strong>de</strong>riasurtir; não só na esfera íntima <strong>das</strong> células que são aspersonagens, como no todo do organismo que é o mundoem que o contágio enigmático se espalha. Por conseguinte,não me interessa discorrer sobre se o livro escrito porJosé Saramago se inscreve no género do Fantástico e, porinclusão, na área da ficção-científica (mesmo i<strong>de</strong>ntificandoum elevado grau <strong>de</strong> parentesco entre o registo que costumaestar presente em obras <strong>de</strong>ssa natureza e aquele que sepo<strong>de</strong> ler em Ensaio Sobre a Cegueira). A minha curiosida<strong>de</strong> éestimulada pela busca em perceber como o mesmo tema,neste caso o da Inconformida<strong>de</strong>, por intermédio <strong>de</strong> umacegueira partilhada, é <strong>de</strong>senvolvido tanto por um autor <strong>de</strong>literatura popular, como por outro escritor <strong>de</strong> literaturaerudita; e se já revelei uma preferência, elegendo O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong>Trífi <strong>de</strong>s como o predilecto, admito que farei o possível paraque ela não se transforme numa tendência; ou seja, a apreciaçãoserá imparcial.É útil con<strong>de</strong>nsar o enredo dos trabalhos, em duas sinopses,antes <strong>de</strong> avançar.Ensaio sobre a Cegueira Numa fila <strong>de</strong>trânsito, um automobilista anónimo é atingido por uma cegueirarepentina, que o faz ver tudo branco, e que contagiaaqueles que com ele contactam; a origem da doença nuncaé revelada no <strong>de</strong>curso do romance. A cegueira brancamostra ser muitíssimo virulenta e, aparentemente, incurável.O governo elabora um plano para evitar que o contágio seespalhe pelo resto do país e or<strong>de</strong>na ao exército que reúnatodos os cegos, assim como os suspeitos <strong>de</strong> contágio, paraos isolar num manicómio abandonado. Dentro do edifício,<strong>de</strong>teriorado e com péssimas condições <strong>de</strong> higiene, os cegose os não-cegos são <strong>de</strong>ixados às suas sortes, sem qualquerassistência médica, e lutam <strong>de</strong>sesperados por encontrar umarotina que se assemelhe a uma vida que já não é sua. Depois<strong>de</strong> um conflito armado, que opõe cegos e militares, um pequenogrupo <strong>de</strong> cegos, li<strong>de</strong>rado pela mulher <strong>de</strong> um médico,a única personagem que consegue ver (e que, entretanto,tem servido <strong>de</strong> enfermeira aos incapacitados), escapa do encarceramentoe encontra na cida<strong>de</strong> envolvente um mundohostil que urge evitar a todo o custo. Durante esse percursoterrível, os cegos vão encontrar mais personagens. Em seguida,o grupo refugia-se numa casa on<strong>de</strong> tenciona recuperara dignida<strong>de</strong> perdida, mas a cegueira branca, <strong>de</strong> súbito,<strong>de</strong>saparece tão inesperadamente quanto apareceu. Incrédu-26 27los, os ex-cegos olham pelas janelas e não compreen<strong>de</strong>m aalegria sentida pelos cidadãos que <strong>de</strong>ambulam entre a miséria.O mundo <strong>de</strong>les nunca mais voltará a ser o mesmo.O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi<strong>de</strong>s Certa noite, uma raríssimapassagem <strong>de</strong> asterói<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> bizarra luminescência ver<strong>de</strong>,cega toda a população mundial que assiste ao fenómeno.Na manhã seguinte, Bill Masen <strong>de</strong>sperta num hospital <strong>de</strong>Londres, on<strong>de</strong> recupera <strong>de</strong> um aci<strong>de</strong>nte que o obriga a ter osolhos cobertos por ligaduras; horas <strong>de</strong>pois, quando suspeitaque ninguém virá vê-lo, levanta-se da cama, intrigado, tira asligaduras e <strong>de</strong>scobre que é, até prova em contrário, o únicohomem que consegue ver. Como se a cegueira não fossemal suficiente, o risco aumenta quando uma espécie vegetal,chamada Trífi<strong>de</strong>, se aproveita do caos para invadir a cida<strong>de</strong>e atacar os in<strong>de</strong>fesos. Na narrativa, as trífi<strong>de</strong>s são plantasque possui um comportamento animal: têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> se<strong>de</strong>senraizar e usar três pedúnculos para se locomoverem.Usam um apêndice tóxico para paralisar as pessoas. Comoesta espécie, <strong>de</strong> origem <strong>de</strong>sconhecida, já coexistia com oshomens, sendo até usada para a manufactura <strong>de</strong> diversosprodutos, Masen é incapaz <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r se ela apenas aproveitoua cegueira repentina para tomar conta do mundo ouse toda aquela situação faz parte <strong>de</strong> um plano elaborado. Nafuga às trífi<strong>de</strong>s, que estão espalha<strong>das</strong> por todo o lado, tendosido perfeitamente integra<strong>das</strong> na socieda<strong>de</strong> durante anos,Masen encontra múltiplos grupos <strong>de</strong> cegos e <strong>de</strong> não-cegosque se organizaram <strong>das</strong> mais varia<strong>das</strong> formas: uns encontramna adversida<strong>de</strong> uma razão criar laços <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong>,outros <strong>de</strong>ixam-se levar pelos piores instintos. Inversamentea Ensaio Sobre a Cegueira, a doença <strong>de</strong> O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s nuncachega a ser vencida. Num mundo falido, Masen acaba sozinho;fazendo o possível não só por sobreviver, mas porencontrar sentido numa existência que se esgota a si própria.O mundo inteiro nunca mais voltará a ser o mesmo.Po<strong>de</strong>r e vulnerabilida<strong>de</strong>: rituais <strong>de</strong>sujeição Tanto Ensaio Sobre a Cegueira como O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong>Trífi <strong>de</strong>s, ao fazerem da cegueira o objecto dos seus horroressociais e físicos, escolheram concentrar-se nas reacções <strong>de</strong>personagens pertencentes à classe média: não existem personagens<strong>de</strong> outras classes que tenham uma voz activa nessesdois romances. Esta <strong>de</strong>finição “média” escon<strong>de</strong>, <strong>de</strong> certeza,opiniões políticas e serve <strong>de</strong> memorando para o factoque a classe média é, na verda<strong>de</strong>, vital para o funcionamentodo sistema social que foi instaurado no mundo oci<strong>de</strong>ntalapós o término da Segunda Gran<strong>de</strong> Guerra. É interessantenotar, ainda, o seguinte: Wyndham nunca oferece umaorigem para as trífi<strong>de</strong>s, mas sugere, pela voz <strong>de</strong> Masen, umfuncionário que trabalhou a vida toda em contacto com essaespécie, que ela foi <strong>de</strong>senvolvida artificialmente nos laboratóriosda União Soviética (uma escolha autoral que, <strong>de</strong> certezaabsoluta, se alimentou do burburinho que foi provocadopelo trabalho <strong>de</strong> Trofim Denisovich Lysenko, o director doInstituto <strong>de</strong> Ciências Agrícolas do Partido Comunista, durantea ditadura <strong>de</strong> Estaline, cujas medi<strong>das</strong> geneticistas paraoptimizar o crescimento dos cereais apavoraram as opiniõespúblicas europeia e norte-americana quando os preceitoscomeçaram a ser utilizados para purgar as populações<strong>de</strong> instintos capitalistas). Atentando a isso é fácil <strong>de</strong>scobrirreceios <strong>de</strong> uma invasão comunista em O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s, publicadono período clássico da guerra-fria; um receio que,<strong>de</strong> modo menos transversal, está contido em A Invasão dosVioladores <strong>de</strong> Jack Finney (1954). Contudo, as trífi<strong>de</strong>s tambémpo<strong>de</strong>rão ter uma origem extraterrestre; i<strong>de</strong>ia reforçadapela passagem da chuva <strong>de</strong> asterói<strong>de</strong>s, responsável pela cegueira– estariam à espera <strong>de</strong>sse momento para se revelaremcomo invasoras? Sejam as trífi<strong>de</strong>s produtos transgénicos ouorganismos oriundos <strong>de</strong> outra galáxia, Wyndham não per<strong>de</strong>tempo com elaborações sobre a origem <strong>de</strong>las e investe, comagilida<strong>de</strong>, no <strong>de</strong>senvolvimento do drama pessoal <strong>de</strong> Masen ea sua busca por outros indivíduos que consigam ver. Nessaóptica, assemelha-se à direcção que Saramago imprime emEnsaio Sobre a Cegueira: os efeitos provocados pela epi<strong>de</strong>miatêm uma dimensão maior que a especulação sobre a suaprocedência ou a busca por uma cura.O tema da Inconformida<strong>de</strong> é introduzido aqui: as personagensnas quais os leitores se reconhecem (a mulher domédico e Bill Masen) são aquelas que se cifram como anormais,face à maioria. O conflito <strong>de</strong> sentimentos experimentadopelo leitor é po<strong>de</strong>roso: ele sabe que a razão, a norma,está do lado <strong>de</strong>las (e do <strong>de</strong>le), mas num mundo às avessasas coisas assumem diferentes configurações. No final <strong>das</strong>leituras sente-se um gosto amargo na boca; um estranhoembaraço quando se consi<strong>de</strong>ra a comicida<strong>de</strong> que as situaçõesnarra<strong>das</strong> possuem. Na realida<strong>de</strong>, fomos todos obrigadosa uma “abdicação do ser” para conseguir levar a leituraaté ao fim, porque, no <strong>de</strong>curso <strong>de</strong>sse exercício, os vilões, osmonstros, fomos nós.Todavia, a leitura <strong>de</strong> Ensaio Sobre a Cegueira obriga uminesperado adiamento da abjecção, paralelamente à <strong>de</strong>missãodo ego que O <strong>Dia</strong> <strong>das</strong> Trífi <strong>de</strong>s também produz. Obriga auma suspensão da náusea. Essa é uma qualida<strong>de</strong> a reter, na minhavisão daquilo que a arte <strong>de</strong>ve oferecer; e eu encontro-aem inúmeros romances, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> O Pássaro Pintado <strong>de</strong> JerzyKosinski, passando por Viagem ao Fim da Noite <strong>de</strong> Céline,até Os Cantos <strong>de</strong> Maldoror <strong>de</strong> Isidore Ducasse e as obras maisverrinosas <strong>de</strong> Sa<strong>de</strong> e Bataille. Porém, evito incluir o EnsaioSobre a Cegueira nesse rol <strong>de</strong> títulos “grand-guignolescos”. O queexiste em Ensaio Sobre a Cegueira é mais uma paródia ao abjectoque uma visão autoral sobre o abjecto – e penso queisso faz toda a diferença.Esse juízo foi-me reforçado pelo <strong>de</strong>sfecho da narrativa:não pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> me sentir ludibriado quando li o finalem que a cegueira se dissipa e toda a gente recupera a visão.As violências coagi<strong>das</strong> nas personagens, pelos cegos e

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