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Jornal da<br />
<strong>Junho</strong>•<strong>2006</strong> <strong>UFRJ</strong><br />
21<br />
Desejo<br />
Cultura<br />
Desejo<br />
Desejo Desejo<br />
A representação do<br />
Kadu Cayres<br />
ilustração Patrícia Perez<br />
O erotismo na Arte tem sido visto como uma forma <strong>de</strong> manifestar, representar e perpetuar o <strong>de</strong>sejo humano<br />
Manifestar, traduzir ou interpretar o<br />
<strong>de</strong>sejo por meio <strong>de</strong> objetos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />
do local ou período on<strong>de</strong> foram<br />
produzidos é <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> erotismo. Na<br />
Arte, alguns enfatizam que, muitas vezes,<br />
a representação <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sejo esbarra<br />
em sentimentos como prazer e dor, vida<br />
e morte, transcendência e imanência,<br />
reconhecimento e alienação, ou seja,<br />
dicotomias que estão na base da simbolização<br />
do erótico nas Artes Plásticas e na<br />
Literatura.<br />
Vladimir Machado, professor<br />
<strong>de</strong> Pintura da Escola<br />
<strong>de</strong> Belas Artes (EBA),<br />
da <strong>UFRJ</strong>, acredita que<br />
a relação entre erotismo,<br />
Artes Plásticas e a<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> manifestar<br />
o <strong>de</strong>sejo, se dá, principal-<br />
mente, por três<br />
motivos: preocupação<br />
que a Arte tem em manter<br />
sempre ao alcance dos<br />
olhos o ausente; vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> transpor<br />
para o coletivo o <strong>de</strong>sejo abrigado na solitária<br />
consciência; e, por fim, trazer à<br />
presença o que está distante, para <strong>de</strong>leite<br />
e perpetuação, na imagem, do objeto que<br />
se afasta. “O gozo acabou, a mulher partiu,<br />
o tempo passou, a Garota <strong>de</strong> Ipanema passou,<br />
mas aquele instante ficou eternizado<br />
na poesia, na música e na pintura como<br />
uma espécie <strong>de</strong> prolongamento da vida”,<br />
afirma o professor a respeito da capacida<strong>de</strong><br />
que a Arte tem <strong>de</strong> eternizar objetos<br />
e momentos.<br />
Em sua opinião, a obra <strong>de</strong> arte erótica<br />
não substitui a experiência real, entretanto,<br />
sugere o que foi vivido e o que é possível<br />
talvez viver. “Ela tem esse po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
manter presente a promessa imaginária do<br />
antigo <strong>de</strong>sejo humano da realização plena<br />
dos instintos sexuais e amorosos,<br />
livres como os animais. Talvez por<br />
isso exista <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a pré-história da<br />
humanida<strong>de</strong>”, <strong>de</strong>staca Vladimir,<br />
que lembra a tragédia Grega da<br />
filha <strong>de</strong> Budapeste, que ao ver<br />
seu amado, marinheiro,<br />
partir em viagem, projeta<br />
sua sombra na pare<strong>de</strong> e<br />
traça, com carvão, sua silhueta,<br />
fixando em imagem,<br />
aquela ausência.<br />
Marcelo Jacques, professor <strong>de</strong><br />
Literatura Francesa da Faculda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Letras (FL), da<br />
<strong>UFRJ</strong>, afirma que<br />
assim como nas artes<br />
plásticas, o erotismo<br />
também foi um gran<strong>de</strong><br />
tema para a Literatura.<br />
Sua relação com a transposição <strong>de</strong><br />
sentimentos se baseia numa espécie <strong>de</strong><br />
superação dos limites humanos, e isso,<br />
por sua vez, se assemelha à relação da<br />
Literatura com outros assuntos limítrofes<br />
como a violência e a morte. “As<br />
experiências eróticas na Literatura são<br />
calcadas na busca das fronteiras <strong>de</strong> si.<br />
Num primeiro momento, eu diria que o<br />
erotismo é um tema <strong>de</strong> interrogação do<br />
homem sobre outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
sentido para própria existência. É alguma<br />
coisa que diz respeito à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
comunhão com o próximo”, avalia.<br />
Imaginação livre<br />
Tanto Vladimir Machado como Marcelo<br />
Jacques sustentam que o erotismo<br />
é uma ativida<strong>de</strong> que perpassa a cultura<br />
como um todo e não é privilégio <strong>de</strong> nenhuma<br />
época. “A Arte prolongou esse<br />
instante fugaz do gozo erótico, eternizando-o<br />
numa representação imaginária”,<br />
lembra Marcelo Jacques.<br />
Vladimir Machado crê que o Surrealismo<br />
foi o movimento artístico do século<br />
XX que melhor conseguiu elaborar<br />
o erotismo em Arte, <strong>de</strong> forma revolucionária<br />
e subversiva. “Esse movimento<br />
colocou a mulher como a musa da vida<br />
e das artes, como a que provoca a imaginação<br />
<strong>de</strong> todos os sonhos, os <strong>de</strong>satinos e<br />
os <strong>de</strong>sejos; a que enlouquece os homens e<br />
é o obscuro objeto do<br />
<strong>de</strong>sejo”, explica<br />
Machado.<br />
Segundo ele,<br />
o Surrealismo foi,<br />
por excelência, a<br />
corrente artística mo<strong>de</strong>rna<br />
da representação<br />
do irracional e do<br />
subconsciente. Suas<br />
origens remontam ao<br />
Dadaísmo e à pintura<br />
metafísica <strong>de</strong> Giorgio De<br />
Chirico. A problemática<br />
surrealista emerge todas as<br />
vezes que a imaginação se<br />
manifesta livremente, sem o freio do<br />
espírito crítico. O que vale é o impulso<br />
psíquico. Os surrealistas <strong>de</strong>ixam o<br />
mundo real para penetrarem no irreal,<br />
pois a emoção mais profunda tem a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se expressar quando<br />
se aproxima do fantástico, naquele<br />
<strong>de</strong>sconcertante ponto on<strong>de</strong> a razão<br />
humana per<strong>de</strong> o comando do discurso.<br />
Erotismo versus pornografia<br />
Diferentemente <strong>de</strong> “arte erótica”, <strong>de</strong><br />
“arte sexy” ou ainda <strong>de</strong> “sensualida<strong>de</strong><br />
na Arte”, para além da sensualida<strong>de</strong> e do<br />
erotismo, está a questão do sexo. Segundo<br />
Marcelo Jacques, o sexo, como força<br />
po<strong>de</strong>rosa tem movimentado o mundo,<br />
suscitado guerras, gerado negócios, provocado<br />
paixões avassaladoras, movimentos<br />
religiosos, crimes terríveis, poemas perfeitos.<br />
Enfim, tem sido o combustível da<br />
humanida<strong>de</strong> para a maior parte <strong>de</strong> suas<br />
ações, quase tudo o que se faz tem uma<br />
certa contraparte sexual. Quer seja pelo<br />
instinto da perpetuação da espécie, quer<br />
seja pelo <strong>de</strong>sejo, puro e simples, do sexo<br />
na vida. Portanto, será possível reproduzir<br />
o <strong>de</strong>sejo sexual através das artes, sem, no<br />
entanto, vulgarizá-lo? Existe diferença<br />
entre o erótico e o pornográfico?<br />
Para Vladimir Machado, as pinturas<br />
eróticas da <strong>de</strong>usa Vênus, na Mitologia<br />
Romana ou Afrodite, na Grega; as bacanais<br />
dionisíacas; o <strong>de</strong>us Zeus e suas conquistas<br />
sexuais (ambos gregos), são obras<br />
clássicas e sofisticadas que tratam do ato<br />
sexual. Logo, os limites entre erotismo<br />
e pornografia são difíceis, porém, não<br />
impossíveis <strong>de</strong> serem estabelecidos. “A<br />
Arte erótica possui uma diferença básica<br />
e fundamental: ela não é absolutamente<br />
explícita, não visa uma representação tal e<br />
qual a vida é. O erotismo na Arte – mesmo<br />
na Arte vulgar kitsch (exagero com mescla<br />
<strong>de</strong> vários estilos) ou pop (apropriação intencional<br />
<strong>de</strong> temas e imagens da cultura<br />
<strong>de</strong> massa) – lida sempre com o simbólico<br />
e o imaginário, com seus <strong>de</strong>slocamentos<br />
e fetiches. Sem imaginação, o ato sexual<br />
representado é pornografia”, explica o<br />
professor.<br />
Na Literatura, segundo Jacques, afirmar<br />
a diferença entre erotismo e pornografia é<br />
uma aposta que precisa ser refeita a cada<br />
momento. “Acredito ser muito difícil ler<br />
um texto e conseguir discernir o erótico<br />
do pornográfico. Isso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> muito da<br />
sua estratégia <strong>de</strong> leitura, do sentido que<br />
aquilo produz no sujeito”, avalia, afirmando<br />
que antes <strong>de</strong> classificar um texto como<br />
pornográfico ou não, <strong>de</strong>ve-se avaliar os<br />
fins comerciais que o rondam.<br />
Erotismo, Arte e Psicanálise<br />
O erotismo na Arte po<strong>de</strong> ser visto<br />
como uma forma <strong>de</strong> expressar um <strong>de</strong>sejo<br />
reprimido? Para Theodor Lowenkron, psicanalista<br />
e professor do Departamento <strong>de</strong><br />
Psiquiatria e Medicina Legal da Faculda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Medicina da <strong>UFRJ</strong>, a expressão “<strong>de</strong>sejo<br />
reprimido”, segundo a Psicanálise, é ina<strong>de</strong>quada<br />
para se referir ao erotismo na Arte.<br />
“O conceito <strong>de</strong> sublimação é mais preciso<br />
para compreen<strong>de</strong>r o erotismo nesse caso,<br />
pois é o processo postulado por Freud para<br />
explicar ativida<strong>de</strong>s humanas sem qualquer<br />
relação com a sexualida<strong>de</strong>”, explica o professor<br />
afirmando que o pai da Psicanálise<br />
<strong>de</strong>finiu como ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sublimação,<br />
por excelência, tanto a Arte como a investigação<br />
intelectual.<br />
Lowenkron <strong>de</strong>staca, também, que não<br />
<strong>de</strong>vemos partir <strong>de</strong> forças externas para<br />
nos referirmos ao <strong>de</strong>sejo sexual humano.<br />
Em sua opinião, na experiência clínica e<br />
na teoria psicanalítica, a sexualida<strong>de</strong> não<br />
<strong>de</strong>signa apenas as ativida<strong>de</strong>s e o prazer<br />
<strong>de</strong>rivado da cópula, mas toda uma série <strong>de</strong><br />
excitações mais amplas presentes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
infância.