18.04.2013 Views

Junho de 2006 - UFRJ

Junho de 2006 - UFRJ

Junho de 2006 - UFRJ

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

24<br />

Jornal da<br />

<strong>UFRJ</strong><br />

Personalida<strong>de</strong><br />

João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto<br />

A poesia como carnadura concreta<br />

Coryntho Bal<strong>de</strong>z<br />

ilustração Jefferson Nepomuceno<br />

“O problema do poeta é fazer um poema poético. Ele perfuma a<br />

flor.” A <strong>de</strong>sconcertante imagem antilírica é <strong>de</strong> João Cabral <strong>de</strong> Melo<br />

Neto (1920-1999), um artesão da palavra, o poeta brasileiro que conseguiu<br />

imprimir em seus versos a exata dicção da pedra. Coerente com<br />

a idéia <strong>de</strong> que lhe bastava a realida<strong>de</strong> externa como matéria-prima,<br />

teceu, com paciência <strong>de</strong> ourives, versos secos e racionais. Conta-se<br />

que lapidou um <strong>de</strong> seus poemas, “Tecendo a manhã”, por mais <strong>de</strong><br />

quatro anos.<br />

Aquele que tentou livrar sua obra <strong>de</strong> si próprio – ou do “perfume”<br />

da sua subjetivida<strong>de</strong> – representa um divisor <strong>de</strong> águas na poesia<br />

brasileira. “Ele diferenciou-se tanto da índole metafísica da geração<br />

<strong>de</strong> 1945, a que pertence, quanto do envelhecimento das fórmulas<br />

vanguardistas propagadas pela geração do Mo<strong>de</strong>rnismo”, afirma<br />

Antonio Carlos Secchin, professor titular <strong>de</strong> Literatura Brasileira da<br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras da <strong>UFRJ</strong>. Para ele, João Cabral ombreia-se, no<br />

plano internacional, com os maiores nomes da poesia mundial da<br />

segunda meta<strong>de</strong> do século XX.<br />

Consistência formal<br />

Ao <strong>de</strong>scobrir Cabral fora do Brasil, em 1977, quando, recém-formado<br />

pela <strong>UFRJ</strong>, foi dar aulas em Bor<strong>de</strong>aux, França Secchin – membro<br />

da Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2004 e autor <strong>de</strong> vários livros<br />

sobre a obra do escritor pernambucano – ficou fascinado com a complexida<strong>de</strong><br />

da sua poesia. As qualida<strong>de</strong>s que mais o cativaram foram a<br />

consistência formal, a aposta em um projeto geral <strong>de</strong> obra – para além<br />

<strong>de</strong> poemas ou livros singulares – e a revitalização <strong>de</strong> formas arcaicas<br />

e esquecidas. O “Auto <strong>de</strong> Natal”, por exemplo, que remonta à Ida<strong>de</strong><br />

Média, ganhou força notável em Morte e Vida Severina (1956)– que<br />

comemora 50 anos <strong>de</strong> publicação este ano.<br />

Com a especificação do autor <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong> um “Auto <strong>de</strong> Natal<br />

pernambucano”, é um poema dramático que conta a via crucis <strong>de</strong> um<br />

retirante que apenas encontra a morte, ao fugir do flagelo da seca,<br />

mas vê a vida reafirmada, ainda que esquálida e provisória, com o<br />

nascimento <strong>de</strong> uma criança. Em 1966, adaptado para o teatro e<br />

musicado por Chico Buarque, fez sucesso em palcos da Europa e<br />

do Brasil.<br />

O processo <strong>de</strong> criação do poeta, para Antonio Carlos Secchin,<br />

ligava-se à sua “conhecida apologia da inteligência, em<br />

<strong>de</strong>trimento do mero surto da inspiração”. Conta ele que João<br />

Cabral – com quem conviveu <strong>de</strong> perto – gostava <strong>de</strong> lançarse<br />

a <strong>de</strong>safios extremos, pois <strong>de</strong>sconfiava <strong>de</strong> tudo que lhe<br />

brotasse rápido <strong>de</strong>mais. Indagado sobre a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> classificação literária da obra <strong>de</strong> Cabral, o professor<br />

da <strong>UFRJ</strong> é taxativo: “ela inaugura uma nova perspectiva<br />

<strong>de</strong> pensar o poema, <strong>de</strong>svinculando-o do lirismo a<br />

que a tradição nos acostumara”. Para Secchin, os poemas<br />

do pernambucano têm mais lastro na antiga literatura espanhola<br />

do que na tradição da poesia em língua portuguesa.<br />

Em nossas letras – <strong>de</strong> acordo com ele – talvez o parente<br />

mais próximo <strong>de</strong> João Cabral seja Graciliano Ramos,<br />

“pela concisão e pela secura referencial e lingüística<br />

encontrada na obra <strong>de</strong> ambos”.<br />

Origens<br />

Natural <strong>de</strong> Recife (PE), João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto<br />

nasce em 9 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1920 e passa a infância em<br />

engenhos <strong>de</strong> açúcar. Primo <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira e<br />

Gilberto Freyre, não refuga o parentesco literário e,<br />

aos 18 anos, começa a freqüentar a roda literária do<br />

Café Lafayette, on<strong>de</strong> marcavam ponto jovens intelectuais,<br />

como o escritor Lêdo Ivo e o pintor Vicente<br />

do Rego Monteiro. O seu primeiro livro, Pedra do<br />

Sono, publicado em 1942, recebe elogios do crítico<br />

literário Antonio Cândido, que enxerga na obra<br />

influências surrealistas e cubistas.<br />

Depois <strong>de</strong> ingressar no Instituto Rio Branco,<br />

em 1945, Cabral conhece, como diplomata,<br />

cida<strong>de</strong>s do mundo inteiro. Mas é Sevilha<br />

(Espanha) que adota como segunda cida<strong>de</strong><br />

natal. Arrebatado pela paisagem da Sevilha<br />

dos bairros populares, <strong>de</strong>dica à cida<strong>de</strong><br />

os Poemas sevilhanos (Nova Fronteira,<br />

1992). Na Espanha – on<strong>de</strong> <strong>de</strong>sembarca<br />

em 1947 – faz amiza<strong>de</strong> com artistas<br />

como Joan Brossa e o aclamado pintor<br />

Joan Miró, à época proibido <strong>de</strong><br />

expor seu trabalho pela ditadura<br />

franquista.<br />

Já no Consulado Geral <strong>de</strong><br />

Londres, em 1950, publica<br />

O cão sem plumas (José Olympio, 3a. ed., 1979), um impressionante<br />

retrato da geografia física e humana do rio que corta a sua<br />

Recife – o Capibaribe.<br />

Perseguição e premiação<br />

Em 1952, respon<strong>de</strong> a inquérito no Brasil sob a acusação <strong>de</strong> “subversão”<br />

e tem ativida<strong>de</strong>s e vencimentos suspensos pelo Itamaraty. Após<br />

o arquivamento do inquérito, em 1954, vai para Pernambuco com a<br />

família. No ano seguinte, recebe o Prêmio Olavo Bilac da Aca<strong>de</strong>mia<br />

Brasileira <strong>de</strong> Letras e, em 1956, a editora José Olympio publica Duas<br />

águas, que reúne as obras anteriores e os inéditos Morte e vida Severina,<br />

Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina.<br />

Depois <strong>de</strong> reintegrado ao Itamaraty, por <strong>de</strong>cisão do Supremo Tribunal<br />

Fe<strong>de</strong>ral (STF), volta a condição <strong>de</strong> diplomata andarilho. Como<br />

conselheiro junto às Nações Unidas, em Genebra, no ano <strong>de</strong> 1964,<br />

tem a alegria <strong>de</strong> ver nascer seu quinto e último filho.<br />

Pelo livro A educação pela pedra (1966), João Cabral recebe, entre<br />

outros, um dos mais importantes prêmios literários do país: o Jabuti.<br />

Não por acaso é eleito para a Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras (ABL),<br />

na vaga <strong>de</strong> Assis Chateaubriand, em 15 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1968. Nos anos<br />

seguintes, continua <strong>de</strong>monstrando o rigor formal que o fazia um “engenheiro”<br />

<strong>de</strong> versos em obras como Museu <strong>de</strong> tudo (Nova Fronteira,<br />

1975), A escola das facas (José Olympio, 1980), Auto do fra<strong>de</strong> (1984),<br />

Agrestes (1985), Sevilha andando (1990) e Andando Sevilha (1994),<br />

todos pela Nova Fronteira.<br />

Na década <strong>de</strong> 1990, João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto, já aposentado,<br />

convive com problemas físicos e crises <strong>de</strong>pressivas. As terríveis dores<br />

<strong>Junho</strong>•<strong>2006</strong><br />

<strong>de</strong> cabeça que o atormentavam eram combatidas com analgésicos; a<br />

melancolia, com remédios importados. Aos poucos, per<strong>de</strong> a visão e<br />

passa a viver na penumbra, em seu apartamento no bairro do Flamengo,<br />

na companhia da segunda esposa, a poeta Marly <strong>de</strong> Oliveira,<br />

recebendo apenas a visita dos filhos e <strong>de</strong> raros amigos – entre eles<br />

Secchin – até a sua morte, em 9 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1999.<br />

A educação pela pedra<br />

(João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto)<br />

Uma educação pela pedra: por lições;<br />

para apren<strong>de</strong>r da pedra, freqüentá-la;<br />

captar sua voz inenfática, impessoal<br />

(pela <strong>de</strong> dicção ela começa as aulas).<br />

A lição <strong>de</strong> moral, sua resistência fria<br />

ao que flui e a fluir, a ser maleada;<br />

a <strong>de</strong> poética, sua carnadura concreta;<br />

a <strong>de</strong> economia, seu a<strong>de</strong>nsar-se compacta:<br />

lições da pedra (<strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro,<br />

cartilha muda), para quem soletrá-la.<br />

Outra educação pela pedra: no Sertão<br />

(<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para fora,<br />

e pré-didática).<br />

No Sertão a pedra<br />

não sabe lecionar,<br />

e se lecionasse,<br />

não ensinaria nada;<br />

lá não se apren<strong>de</strong><br />

a pedra: lá a pedra,<br />

uma pedra <strong>de</strong><br />

nascença,<br />

entranha<br />

a alma.<br />

*

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!