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Jornal da<br />
<strong>UFRJ</strong><br />
Personalida<strong>de</strong><br />
João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto<br />
A poesia como carnadura concreta<br />
Coryntho Bal<strong>de</strong>z<br />
ilustração Jefferson Nepomuceno<br />
“O problema do poeta é fazer um poema poético. Ele perfuma a<br />
flor.” A <strong>de</strong>sconcertante imagem antilírica é <strong>de</strong> João Cabral <strong>de</strong> Melo<br />
Neto (1920-1999), um artesão da palavra, o poeta brasileiro que conseguiu<br />
imprimir em seus versos a exata dicção da pedra. Coerente com<br />
a idéia <strong>de</strong> que lhe bastava a realida<strong>de</strong> externa como matéria-prima,<br />
teceu, com paciência <strong>de</strong> ourives, versos secos e racionais. Conta-se<br />
que lapidou um <strong>de</strong> seus poemas, “Tecendo a manhã”, por mais <strong>de</strong><br />
quatro anos.<br />
Aquele que tentou livrar sua obra <strong>de</strong> si próprio – ou do “perfume”<br />
da sua subjetivida<strong>de</strong> – representa um divisor <strong>de</strong> águas na poesia<br />
brasileira. “Ele diferenciou-se tanto da índole metafísica da geração<br />
<strong>de</strong> 1945, a que pertence, quanto do envelhecimento das fórmulas<br />
vanguardistas propagadas pela geração do Mo<strong>de</strong>rnismo”, afirma<br />
Antonio Carlos Secchin, professor titular <strong>de</strong> Literatura Brasileira da<br />
Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras da <strong>UFRJ</strong>. Para ele, João Cabral ombreia-se, no<br />
plano internacional, com os maiores nomes da poesia mundial da<br />
segunda meta<strong>de</strong> do século XX.<br />
Consistência formal<br />
Ao <strong>de</strong>scobrir Cabral fora do Brasil, em 1977, quando, recém-formado<br />
pela <strong>UFRJ</strong>, foi dar aulas em Bor<strong>de</strong>aux, França Secchin – membro<br />
da Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2004 e autor <strong>de</strong> vários livros<br />
sobre a obra do escritor pernambucano – ficou fascinado com a complexida<strong>de</strong><br />
da sua poesia. As qualida<strong>de</strong>s que mais o cativaram foram a<br />
consistência formal, a aposta em um projeto geral <strong>de</strong> obra – para além<br />
<strong>de</strong> poemas ou livros singulares – e a revitalização <strong>de</strong> formas arcaicas<br />
e esquecidas. O “Auto <strong>de</strong> Natal”, por exemplo, que remonta à Ida<strong>de</strong><br />
Média, ganhou força notável em Morte e Vida Severina (1956)– que<br />
comemora 50 anos <strong>de</strong> publicação este ano.<br />
Com a especificação do autor <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong> um “Auto <strong>de</strong> Natal<br />
pernambucano”, é um poema dramático que conta a via crucis <strong>de</strong> um<br />
retirante que apenas encontra a morte, ao fugir do flagelo da seca,<br />
mas vê a vida reafirmada, ainda que esquálida e provisória, com o<br />
nascimento <strong>de</strong> uma criança. Em 1966, adaptado para o teatro e<br />
musicado por Chico Buarque, fez sucesso em palcos da Europa e<br />
do Brasil.<br />
O processo <strong>de</strong> criação do poeta, para Antonio Carlos Secchin,<br />
ligava-se à sua “conhecida apologia da inteligência, em<br />
<strong>de</strong>trimento do mero surto da inspiração”. Conta ele que João<br />
Cabral – com quem conviveu <strong>de</strong> perto – gostava <strong>de</strong> lançarse<br />
a <strong>de</strong>safios extremos, pois <strong>de</strong>sconfiava <strong>de</strong> tudo que lhe<br />
brotasse rápido <strong>de</strong>mais. Indagado sobre a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> classificação literária da obra <strong>de</strong> Cabral, o professor<br />
da <strong>UFRJ</strong> é taxativo: “ela inaugura uma nova perspectiva<br />
<strong>de</strong> pensar o poema, <strong>de</strong>svinculando-o do lirismo a<br />
que a tradição nos acostumara”. Para Secchin, os poemas<br />
do pernambucano têm mais lastro na antiga literatura espanhola<br />
do que na tradição da poesia em língua portuguesa.<br />
Em nossas letras – <strong>de</strong> acordo com ele – talvez o parente<br />
mais próximo <strong>de</strong> João Cabral seja Graciliano Ramos,<br />
“pela concisão e pela secura referencial e lingüística<br />
encontrada na obra <strong>de</strong> ambos”.<br />
Origens<br />
Natural <strong>de</strong> Recife (PE), João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto<br />
nasce em 9 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1920 e passa a infância em<br />
engenhos <strong>de</strong> açúcar. Primo <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira e<br />
Gilberto Freyre, não refuga o parentesco literário e,<br />
aos 18 anos, começa a freqüentar a roda literária do<br />
Café Lafayette, on<strong>de</strong> marcavam ponto jovens intelectuais,<br />
como o escritor Lêdo Ivo e o pintor Vicente<br />
do Rego Monteiro. O seu primeiro livro, Pedra do<br />
Sono, publicado em 1942, recebe elogios do crítico<br />
literário Antonio Cândido, que enxerga na obra<br />
influências surrealistas e cubistas.<br />
Depois <strong>de</strong> ingressar no Instituto Rio Branco,<br />
em 1945, Cabral conhece, como diplomata,<br />
cida<strong>de</strong>s do mundo inteiro. Mas é Sevilha<br />
(Espanha) que adota como segunda cida<strong>de</strong><br />
natal. Arrebatado pela paisagem da Sevilha<br />
dos bairros populares, <strong>de</strong>dica à cida<strong>de</strong><br />
os Poemas sevilhanos (Nova Fronteira,<br />
1992). Na Espanha – on<strong>de</strong> <strong>de</strong>sembarca<br />
em 1947 – faz amiza<strong>de</strong> com artistas<br />
como Joan Brossa e o aclamado pintor<br />
Joan Miró, à época proibido <strong>de</strong><br />
expor seu trabalho pela ditadura<br />
franquista.<br />
Já no Consulado Geral <strong>de</strong><br />
Londres, em 1950, publica<br />
O cão sem plumas (José Olympio, 3a. ed., 1979), um impressionante<br />
retrato da geografia física e humana do rio que corta a sua<br />
Recife – o Capibaribe.<br />
Perseguição e premiação<br />
Em 1952, respon<strong>de</strong> a inquérito no Brasil sob a acusação <strong>de</strong> “subversão”<br />
e tem ativida<strong>de</strong>s e vencimentos suspensos pelo Itamaraty. Após<br />
o arquivamento do inquérito, em 1954, vai para Pernambuco com a<br />
família. No ano seguinte, recebe o Prêmio Olavo Bilac da Aca<strong>de</strong>mia<br />
Brasileira <strong>de</strong> Letras e, em 1956, a editora José Olympio publica Duas<br />
águas, que reúne as obras anteriores e os inéditos Morte e vida Severina,<br />
Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina.<br />
Depois <strong>de</strong> reintegrado ao Itamaraty, por <strong>de</strong>cisão do Supremo Tribunal<br />
Fe<strong>de</strong>ral (STF), volta a condição <strong>de</strong> diplomata andarilho. Como<br />
conselheiro junto às Nações Unidas, em Genebra, no ano <strong>de</strong> 1964,<br />
tem a alegria <strong>de</strong> ver nascer seu quinto e último filho.<br />
Pelo livro A educação pela pedra (1966), João Cabral recebe, entre<br />
outros, um dos mais importantes prêmios literários do país: o Jabuti.<br />
Não por acaso é eleito para a Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras (ABL),<br />
na vaga <strong>de</strong> Assis Chateaubriand, em 15 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1968. Nos anos<br />
seguintes, continua <strong>de</strong>monstrando o rigor formal que o fazia um “engenheiro”<br />
<strong>de</strong> versos em obras como Museu <strong>de</strong> tudo (Nova Fronteira,<br />
1975), A escola das facas (José Olympio, 1980), Auto do fra<strong>de</strong> (1984),<br />
Agrestes (1985), Sevilha andando (1990) e Andando Sevilha (1994),<br />
todos pela Nova Fronteira.<br />
Na década <strong>de</strong> 1990, João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto, já aposentado,<br />
convive com problemas físicos e crises <strong>de</strong>pressivas. As terríveis dores<br />
<strong>Junho</strong>•<strong>2006</strong><br />
<strong>de</strong> cabeça que o atormentavam eram combatidas com analgésicos; a<br />
melancolia, com remédios importados. Aos poucos, per<strong>de</strong> a visão e<br />
passa a viver na penumbra, em seu apartamento no bairro do Flamengo,<br />
na companhia da segunda esposa, a poeta Marly <strong>de</strong> Oliveira,<br />
recebendo apenas a visita dos filhos e <strong>de</strong> raros amigos – entre eles<br />
Secchin – até a sua morte, em 9 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1999.<br />
A educação pela pedra<br />
(João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto)<br />
Uma educação pela pedra: por lições;<br />
para apren<strong>de</strong>r da pedra, freqüentá-la;<br />
captar sua voz inenfática, impessoal<br />
(pela <strong>de</strong> dicção ela começa as aulas).<br />
A lição <strong>de</strong> moral, sua resistência fria<br />
ao que flui e a fluir, a ser maleada;<br />
a <strong>de</strong> poética, sua carnadura concreta;<br />
a <strong>de</strong> economia, seu a<strong>de</strong>nsar-se compacta:<br />
lições da pedra (<strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro,<br />
cartilha muda), para quem soletrá-la.<br />
Outra educação pela pedra: no Sertão<br />
(<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para fora,<br />
e pré-didática).<br />
No Sertão a pedra<br />
não sabe lecionar,<br />
e se lecionasse,<br />
não ensinaria nada;<br />
lá não se apren<strong>de</strong><br />
a pedra: lá a pedra,<br />
uma pedra <strong>de</strong><br />
nascença,<br />
entranha<br />
a alma.<br />
*