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As Meninas por Lygia Fagundes Telles

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lógico. Ficar de fora, mantenha distância, diz aquele ônibus bufando tanto<br />

pelo traseiro que não fico atrás nem um minuto. Detesto guiar, entrar nas<br />

engrenagens. Nas besouragens, diz a Aninha. Enredos. Bom é ficar<br />

olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão<br />

inofensivas na rotina. Comem e não vejo o que comem. Falam e não ouço<br />

o que dizem, harmonia total sem barulho e sem braveza. Um pouco que<br />

alguém se aproxime e já sente odores. Vozes. Um pouco mais e já nem é<br />

espectador, vira testemunha. Se abre o bico para dizer boa noite passa de<br />

testemunha para participante. E não adianta fazer aquela cara de nuvem<br />

se diluindo ao largo <strong>por</strong>que nessa altura já puxaram a nuvem para<br />

dentro e a janela-guilhotina fechou rápida. Eram laços frouxos? Viraram<br />

tentáculos. Ah, que alegria quando fico aqui sozinha. Sozinha. Como<br />

chupar escondida um cacho de uvas. E a máquina do mundo, repelida, se foi<br />

miudamente recompondo — ah, preciso decorar isso, C.D.A. Minha poesia.<br />

Minha música. Às vezes, os amigos (podiam ser menos vezes, ai meu<br />

Pai). A presença-ausência de M.N. Dos meus mortos. Rômulo, meu<br />

irmão. Paizinho. A lembrança de veludo de <strong>As</strong>tronauta.<br />

Uvas, deve ter ainda um cacho na geladeira, eu não disse? Rosadas.<br />

Fico lavando minhas uvas, mãezinha mandou uma caixa enorme.<br />

Distribuí tudo. "Abandonei minha filhinha num pensionato de freiras<br />

pobres, num quarto de chofer em cima da garagem e fui viver com um<br />

homem que me apunhala pelas costas" — disse à tia Luci num dos seus<br />

dias de punição que começam na segunda e vão até domingo. Número<br />

um, imaginar Mieux manejando punhais, coitadinho. Deixa-me rir. Usa<br />

no máximo aqueles palitinhos plásticos de espetar azeitona. Número<br />

dois, isto não é mais o quarto do chofer. O nome da Neusa ficou<br />

sepultado sob o azulejo cor-de-rosa, o encardidume das paredes do<br />

quarto com a obscenidade escrita a lápis vermelho ficou para sempre<br />

debaixo do papel amarelo-dourado — virou concha. Lá fora as coisas<br />

podem estar pretas mas aqui tudo é rosa e ouro. "É preciso ter um peito<br />

de ferro pra agüentar esta cidade" — diz a Lião que cruza esta cidade<br />

com sua alpargata azul. Mas não entro na transa e nem quero.<br />

Faculdade, cinema, um pouco de clube (clube fechado) uma ou outra<br />

lanchonete, compras nas minhas lojas especialíssimas. O oriehnid vem<br />

num envelope. Dia de comprar livros e discos, dia de Deus me visitar, oi,<br />

Lorena. Às vezes, o medo não da cidade (tão remota para mim como seu<br />

povo) mas um medo que nasce debaixo da minha cama. Imagine se lesse

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