Antropofagia e Alteridade - CFH
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Revista Virtual de Ciências Humanas - IMPRIMATUR - Ano 1 - Dezembro de 1999 Nº. 4<br />
IMPRIMATUR - Ano 1 - Nº 4 - Página 2<br />
Introdução<br />
“Demonstra-se que neste século nossos artistas passam a ter uma<br />
relação produtiva direta com a historia da arte, que já não tratam como<br />
história de estilos ou de imagens, mas têm a consciência do processo<br />
histórico de problematização das questões plásticas.” (Herkenhoff,<br />
1998a, p.26).<br />
Se a história da arte refere-se às evoluções da problematização de questões plásticas, nenhum<br />
outro tema poderia ser mais adequado para uma discussão sobre a história da arte no Brasil do<br />
que a antropofagia: problemática principal de nossas artes plásticas desde que a missão francesa<br />
desembarcou no Rio de Janeiro no século passado (v. Lima & Pato, 1998). Aliás, Haroldo de<br />
Campos coloca a latência permanente de modos antropofágicos até mesmo antes, no século XVII,<br />
com Gregório de Mattos.<br />
Tida como estratégia crucial no processo de constituição de uma linguagem autônoma num país<br />
de economia periférica, a antropofagia acabou se tornando um movimento que se espalha no<br />
tempo pela cultura brasileira enquanto estratégia de emancipação cultural (v. Herkenhoff, 1998a)<br />
Nesse processo de emancipação cultural, apropriamo-nos do externo, do outro, para podermos<br />
encontrar a nós mesmos, nosso eu brasileiro. “A política antropofágica [...] indaga sobre as<br />
características do Novo Mundo em relação à cultura do Velho Mundo. Nasce, assim, do encontro<br />
de culturas, ecoando sentidos polivalentes derivados do entrechoque, da catequese e da<br />
assimilação do outro [...] a antropofagia manipula valores interculturais inerentes ao processo<br />
histórico brasileiro e faz da devoração do discurso estranho um meio de expressar o próprio<br />
íntimo” (Belluzzo, 1968, p.68).<br />
Nesse sentido, nossa arte encarna toda a noção de alteridade.<br />
Formada então como base constitutiva de um diálogo com a arte internacional, nossa arte tornouse<br />
justamente isso, um diálogo. No estranhamento do olhar, ao contemplarmos (ou interagirmos<br />
com) a obra de alguns de nossos melhores artistas, terminamos por estranhar a nós mesmos. E<br />
nesse movimento nos redescobrimos.<br />
“...o que faz nossa particularidade tem traços absolutamente esquisitos. E no entanto eles estão prontos a vir<br />
comer em nossa mão, tão logo solicitados. Porque somos igualmente estranhos...” (Naves, 1996, p.13).<br />
Se, talvez por motivos semânticos, Herkenhoff diferencia antropofagia de canibalismo, definindo<br />
antropofagia como tradição cultural brasileira, e canibalismo como prática simbólica, real ou<br />
metafórica da devoração do outro (1998a, p.24). Numa análise mais pormenorizada podemos<br />
perceber que nossa antropofagia é tudo isso. Afinal, segundo o mesmo Herkenhoff, “a idéia de<br />
apropriação [grifo do autor] está no caráter da antropofagia” (ibidem). Apropriar-se para<br />
resignificar.<br />
Para criar então uma espécie de modernidade própria, a cultura brasileira redimensionou não<br />
apenas o outro externo (exocanibalismo), mas também seu próprio eu (endocanibalismo), um<br />
outro distante no passado e na tradição (cf. Sáiz, 1998).<br />
Pretendemos então analisar a passagem da antropofagia pela arte brasileira, não como um<br />
catálogo histórico de suas manifestações, mas buscando entender seu caráter de alteridade.