Antropofagia e Alteridade - CFH
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Revista Virtual de Ciências Humanas - IMPRIMATUR - Ano 1 - Dezembro de 1999 Nº. 4<br />
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A busca desse eu não é algo específico de nossa cultura e, tão pouco, é uma problemática recente.<br />
“A procura da identidade nacional é um dos grandes temas da cultura ibero-americana, que vem<br />
se tornando evidente em numerosos exemplos, fáceis de serem detectados muito antes que se<br />
consumassem as sucessivas independências dos impérios coloniais europeus. Essa necessidade de<br />
reconhecimento do que lhe é próprio é vivenciado de uma forma consciente ao longo dos séculos<br />
XVI, XVII, e XVIII, período em que se vai delineando um conjunto de características que já<br />
nestas datas devem ser vividas como diferentes e que, posteriormente, irão constituir a essência<br />
da mensagem nacionalista frente aos outros.” (Sáiz, 1998, p.111).<br />
Como exemplo dessa busca, em fins do XVII e ao longo do XVIII se faz sentir nos círculos<br />
andinos e entre artífices negros e afro-americanos na América Portuguesa uma hibridização<br />
artística: uma mistura de temas europeus e motivos pré-hispânicos; entrecruzamentos de alegorias<br />
cristãs e temas de mitologia profana; e gostos e desejos expressos em formas indígenas<br />
coexistindo nas imagens cristãs (v. Belluzzo, 1998, p.72).<br />
No entanto, mesmo sendo a antropofagia uma estratégia de afirmação cultural que se pode<br />
identificar na cultura latino-americana e, em especial, na brasileira, já em séculos anteriores (v.<br />
Lima & Pato, 1998), a antropofagia tida como um processo não apenas poético mas, acima de<br />
tudo, político - capaz de instaurar a própria condição de possibilidade de uma arte nacional -, será<br />
um fenômeno tomado de forma consciente apenas modernamente.<br />
A antropofagia como processo político consciente é um fenômeno moderno justamente porque o<br />
moderno não era uma escolha, mas uma incontornável vocação histórica, dada a nossa ausência<br />
de tradição, conforme nos lembra Mario Pedrosa. Daí a modernidade ser o marco da aparente<br />
descoberta da antropofagia, que se afirma então como solução política da linguagem.<br />
E nessa política busca de uma autonomia, a poética artística se depara com o monocromo. Será<br />
este a propiciar uma discussão do processo de constituição de autonomia da cultura de regiões<br />
periféricas frente ao processo eurocêntrico (v. Herkenhoff, 1998b, p.192).<br />
Assim, na definição de nosso eu brasílico, enquanto a antropofagia projetou um processo de<br />
emancipação cultural, foi através da cor que se organizou um modelo de identidade no Brasil.<br />
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E como não poderia deixar de ser, a definição de nossa cor identitária passa necessariamente pela<br />
experiência da antropofagia como alteridade. Afinal, será somente através do distanciamento do<br />
olhar, do estranhamento do seu eu brasílico através de sua estadia em Paris, que Tarsila irá<br />
redescobrir o Brasil, desenvolvendo uma paleta brasileira que, mesmo não totalizando o país,<br />
demarca nossa teoria de cor. Definia-se o “pintar em brasileiro”.<br />
Daí em diante o impacto da resignificação da cor nos trabalhos de nossos melhores artistas só<br />
viria a reafirmar a consolidação e demarcação de nosso eu brasílico. “Quando Lasar Segall imigra<br />
em 1924, o impacto da cor tropical resulta na mais violenta relação cromática de sua trajetória”<br />
(Herkenhoff, 1998c, p.341). A luz tropical passara a imprimir em seus trabalhos uma temperatura<br />
cromática.<br />
Assim como em Segall, a trajetória de Guignard também se perfila numa história da luz e da cor<br />
na arte brasileira. “Quando chega ao Brasil, depois de longa permanência na Europa, Guignard<br />
traz uma pintura espessa, às vezes sombria [...] A pintura pastosa se tornará transparente como<br />
IMPRIMATUR - Ano 1 - Nº 4 - Página 5