Antropofagia e Alteridade - CFH
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Revista Virtual de Ciências Humanas - IMPRIMATUR - Ano 1 - Dezembro de 1999 Nº. 4<br />
Dessa forma, ingeria-se não o inimigo, mas o parente morto e suas qualidades, restituindo-se<br />
também, a unidade mística do “nosso grupo”, quebrada quando da devoração do parente pelos<br />
inimigos.<br />
Outro aspecto importante para se compreender o caráter de alteridade implícito no canibalismo<br />
Tupinambá é que antes do inimigo ser devorado, ele era mantido por algum tempo na aldeia. Lá<br />
ele recebia os pertences do parente morto e até mesmo deitava-se com suas mulheres. E enquanto<br />
não ocorresse a vingança ninguém mais poderia usar os pertences do parente morto ou casar-se<br />
com alguma de suas mulheres.<br />
No entanto, essas interdições sociais têm a ver não com a pessoa do morto, mas com o domínio<br />
mágico obtido pelo inimigo sobre o morto e o círculo de projeção social dele. O que quebraria a<br />
proposta de alteridade. Mas se lembrarmos de configurações psíquicas semelhantes narradas por<br />
Todorov (1993) onde os índios, mesmo sendo considerados coisas pelos espanhóis, em outros<br />
momentos são assimilados às mulheres, temos novamente a passagem do outro ao eu,<br />
reconhecido como semelhante, pois “...antes de mais nada, o outro é nosso próprio corpo.” (1993,<br />
p.151).<br />
Quando um Tupinambá devorava o inimigo, concebia-lhe então um estatuto de semelhante e, por<br />
fim, devorava não o outro, mas a si próprio, definido na “substância” do parente. Vale notar que<br />
esse aspecto já havia sido descrito por Montaigne (1980) através dos cânticos do inimigo que,<br />
prestes a ser devorado, entoa que “...estes músculos, esta carne, estas veias [...] são vossas, pobres<br />
loucos. Não reconheceis a substância dos membros de vossos próprios antepassados: saboreai-os<br />
atentamente, sentireis o gosto de vossa própria carne” (1980, p.104).<br />
A antropofagia Tupinambá compreende, pois, dois momentos: o massacre ritual e a devoração do<br />
inimigo. No primeiro momento a antropofagia reconduzia o parente devorado ao estado de<br />
autonomia mágica (a vingança), e no segundo momento, desigualdade e identidade confluem<br />
para o ato da devoração, como síntese da própria alteridade.<br />
Voltando ao campo das artes plásticas, o conceito de antropofagia foi tomado significando-se,<br />
principalmente, apropriação e resignificação do externo. Obviamente, nessa definição, a noção de<br />
alteridade encontra-se sutilmente implícita. Mas para nosso objetivo, poderíamos estender um<br />
pouco o conceito de antropofagia, de modo a explicitar seu caráter de alteridade. Afinal, a<br />
antropofagia não é apenas apropriação e resignificação, mas também transmutação de nosso próprio eu.<br />
<strong>Antropofagia</strong> e alteridade na arte brasileira<br />
o eu brasílico<br />
Se já podemos considerar que o ato antropofágico constitui uma relação de alteridade, resta-nos<br />
então delimitar tal conceito dentro da arte contemporânea no Brasil.<br />
Mas o mais interessante da aplicação do conceito de antropofagia como alteridade, sobre a arte<br />
brasileira, é que ele pode se referir tanto ao todo da produção artística, em seu diálogo com a arte<br />
internacional (o outro) definidor de nosso eu brasílico, como no diálogo público-obra, onde o eu<br />
e o outro do espectador se esfacelam e se reagrupam diante de um estranhamento prospectivo.<br />
Tomemos primeiramente a análise do eu brasílico.<br />
IMPRIMATUR - Ano 1 - Nº 4 - Página 4