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LITERATURA BRASILEIRA II - Universidade Castelo Branco

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VICE-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO E CORPO DISCENTE<br />

COORDENAÇÃO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA<br />

<strong>LITERATURA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong> <strong>II</strong><br />

Rio de Janeiro / 2008<br />

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS À<br />

UNIVERSIDADE CASTELO BRANCO


UNIVERSIDADE CASTELO BRANCO<br />

Todos os direitos reservados à <strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong> <strong>Branco</strong> - UCB<br />

Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, armazenada ou transmitida de qualquer forma ou<br />

por quaisquer meios - eletrônico, mecânico, fotocópia ou gravação, sem autorização da <strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong><br />

<strong>Branco</strong> - UCB.<br />

Un3l <strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong> <strong>Branco</strong><br />

Literatura Brasileira <strong>II</strong> / <strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong> <strong>Branco</strong>. – Rio de Janeiro:<br />

UCB, 2008. - 56 p.: il.<br />

ISBN 978-85-7880-002-4<br />

1. Ensino a Distância. 2. Título.<br />

<strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong> <strong>Branco</strong> - UCB<br />

Avenida Santa Cruz, 1.631<br />

Rio de Janeiro - RJ<br />

21710-250<br />

Tel. (21) 3216-7700 Fax (21) 2401-9696<br />

www.castelobranco.br<br />

CDD – 371.39


Responsáveis Pela Produção do Material Instrucional<br />

Coordenadora de Educação a Distância<br />

Prof.ª Ziléa Baptista Nespoli<br />

Coordenador do Curso de Graduação<br />

Denílson P. Matos<br />

Conteudista<br />

Robério Oliveira da Silva<br />

Supervisor do Centro Editorial – CEDI<br />

Supervisor do Centro Editorial – CEDI<br />

Joselmo Botelho


Apresentação<br />

Prezado(a) Aluno(a):<br />

É com grande satisfação que o(a) recebemos como integrante do corpo discente de nossos cursos de graduação,<br />

na certeza de estarmos contribuindo para sua formação acadêmica e, conseqüentemente, propiciando<br />

oportunidade para melhoria de seu desempenho profi ssional. Nossos funcionários e nosso corpo docente esperam<br />

retribuir a sua escolha, reafi rmando o compromisso desta Instituição com a qualidade, por meio de uma<br />

estrutura aberta e criativa, centrada nos princípios de melhoria contínua.<br />

Esperamos que este instrucional seja-lhe de grande ajuda e contribua para ampliar o horizonte do seu conhecimento<br />

teórico e para o aperfeiçoamento da sua prática pedagógica.<br />

Seja bem-vindo(a)!<br />

Paulo Alcantara Gomes<br />

Reitor


Orientações para o Auto-Estudo<br />

O presente instrucional está dividido em quatro unidades programáticas, cada uma com objetivos defi nidos e<br />

conteúdos selecionados criteriosamente pelos Professores Conteudistas para que os referidos objetivos sejam<br />

atingidos com êxito.<br />

Os conteúdos programáticos das unidades são apresentados sob a forma de leituras, tarefas e atividades complementares.<br />

As Unidades 1 e 2 correspondem aos conteúdos que serão avaliados em A1.<br />

Na A2 poderão ser objeto de avaliação os conteúdos das quatro unidades.<br />

Havendo a necessidade de uma avaliação extra (A3 ou A4), esta obrigatoriamente será composta por todo o<br />

conteúdo de todas as Unidades Programáticas.<br />

A carga horária do material instrucional para o auto-estudo que você está recebendo agora, juntamente com<br />

os horários destinados aos encontros com o Professor Orientador da disciplina, equivale a 30 horas-aula, que<br />

você administrará de acordo com a sua disponibilidade, respeitando-se, naturalmente, as datas dos encontros<br />

presenciais programados pelo Professor Orientador e as datas das avaliações do seu curso.<br />

Bons Estudos!


Dicas para o Auto-Estudo<br />

1 - Você terá total autonomia para escolher a melhor hora para estudar. Porém, seja<br />

disciplinado. Procure reservar sempre os mesmos horários para o estudo.<br />

2 - Organize seu ambiente de estudo. Reserve todo o material necessário. Evite<br />

interrupções.<br />

3 - Não deixe para estudar na última hora.<br />

4 - Não acumule dúvidas. Anote-as e entre em contato com seu monitor.<br />

5 - Não pule etapas.<br />

6 - Faça todas as tarefas propostas.<br />

7 - Não falte aos encontros presenciais. Eles são importantes para o melhor aproveitamento<br />

da disciplina.<br />

8 - Não relegue a um segundo plano as atividades complementares e a auto-avaliação.<br />

9 - Não hesite em começar de novo.


SUMÁRIO<br />

Quadro-síntese do conteúdo programático ................................................................................................. 11<br />

Contextualização da disciplina ................................................................................................................... 13<br />

UNIDADE I<br />

O ROMANTISMO BRASILEIRO<br />

1.1 - Conceituação ...................................................................................................................................... 15<br />

1.2 - A poesia romântica brasileira .............................................................................................................. 16<br />

1.3 - A prosa narrativa ................................................................................................................................. 22<br />

1.4 - O teatro romântico no Brasil .............................................................................................................. 23<br />

UNIDADE <strong>II</strong><br />

O REALISMO/NATURALISMO<br />

2.1 - Conceituação ...................................................................................................................................... 26<br />

2.2 - O Realismo no Brasil .......................................................................................................................... 27<br />

UNIDADE <strong>II</strong>I<br />

O PARNASIANISMO E O SIMBOLISMO<br />

3.1 - Conceituação ...................................................................................................................................... 31<br />

3.2 - Parnasianismo e Simbolismo no Brasil .............................................................................................. 31<br />

UNIDADE IV<br />

O MODERNISMO<br />

4.1 - Conceituação ...................................................................................................................................... 35<br />

4.2 - O Pré-Modernismo ............................................................................................................................. 35<br />

4.3 - O Modernismo Brasileiro ................................................................................................................... 37<br />

Gabarito ....................................................................................................................................................... 51<br />

Referências bibliográfi cas ........................................................................................................................... 53


Quadro-síntese do conteúdo<br />

programático<br />

UNIDADES DO PROGRAMA OBJETIVOS<br />

I - O ROMANTISMO BRASILEIRO<br />

1.1 - Conceituação<br />

1.2 - A poesia romântica brasileira<br />

1.3 - A prosa narrativa<br />

1.4 - O teatro romântico no Brasil<br />

<strong>II</strong> - O REALISMO/NATURALISMO<br />

2.1 - Conceituação<br />

2.2 - O Realismo no Brasil<br />

<strong>II</strong>I - O PARNASIANISMO E O SIMBOLISMO<br />

3.1 - Conceituação<br />

3.2 - Parnasianismo e Simbolismo no Brasil<br />

IV - O MODERNISMO<br />

4.1 - Conceituação<br />

4.2 - O Pré-Modernismo<br />

4.3 - O Modernismo Brasileiro<br />

A Disciplina Literatura Brasileira <strong>II</strong> visa oferecer<br />

ao estudante de Letras a seqüência das manifestações<br />

literárias no Brasil, no momento em que vão<br />

se consolidando aspectos importantes de nossa literatura.<br />

Oferecemos a possibilidade de análise e<br />

estudo dos movimentos que consagraram uma certa<br />

visão do Brasil, e das maneiras de representá-lo nos<br />

diversos gêneros a partir do Romantismo.<br />

Se a literatura do século XIX parece caminhar<br />

no sentido de uma preocupação interna com as<br />

questões do país, já lançando nomes de alcance,<br />

como Machado de Assis, nosso Modernismo marca<br />

a instituição de uma classe leitora, de um grupo<br />

de escritores conhecidos pelo grande público, e<br />

de um diálogo mais aberto, consistente e contínuo<br />

das obras com o contexto político-cultural,<br />

rompendo a situação de dependência em relação à<br />

metrópole cultural européia.<br />

11


Contextualização da Disciplina<br />

A importância do ensino da Literatura Brasileira, este módulo que apresentamos corresponde à necessidade<br />

de os estudantes do Curso de Letras conhecerem a continuidade e confi rmação da formação de nossa literatura,<br />

com as obras do Romantismo, do Realismo/Naturalismo, bem como do Parnasianismo e do Simbolismo, até<br />

chegar às inovações e releituras efetivadas pelas diversas fases do Modernismo.<br />

A intenção dessa leitura do Brasil, através de sua literatura, viabiliza o entendimento sobre a formação cultural,<br />

política e social do Império, dando prosseguimento à construção de um sistema literário nacional, confi rmado<br />

posteriormente pelos estilos que surgem com a República e o século XX.<br />

Este segundo módulo, portanto, visa integrar o aluno à realidade de nosso país ao encontrar modelos literários<br />

que constituem uma Literatura Brasileira coerente, apesar das várias vertentes, e articulada.<br />

13


UNIDADE I<br />

O ROMANTISMO BRASILEIRO<br />

1.1 - Conceituação<br />

O intenso processo de transformação histórica operada<br />

na Europa dos fi nais do século XV<strong>II</strong>I e inícios<br />

do XIX (Revolução Francesa, início das independências<br />

das colônias americanas, difusão continental da<br />

Revolução Industrial, predomínio da classe burguesa<br />

sobre a nobreza aristocrática) foi acompanhado,<br />

proporcionalmente, de uma revolução no campo artístico<br />

e literário, de variadas tendências e correntes<br />

reunidas sob o título de Romantismo. Ultrapassando<br />

as propostas racionalistas do Neoclassicismo e do Arcadismo,<br />

os artistas românticos valorizariam aspectos<br />

mais subjetivos da produção artística e da manifestação<br />

poética, provocando uma mudança radical tanto<br />

no âmbito dos gêneros literários, consagrando entre<br />

outras inovações, a prosa de fi cção (que de um século<br />

antes, pelo menos, já vinha se desenvolvendo), quanto<br />

na escala de valores em torno da literatura.<br />

Na Alemanha, um rápido, porém fundamental movimento<br />

teve lugar no início da década de 1790: o Sturm<br />

und Drang (“Tempestade e Ímpeto”). Liderada por<br />

nomes como Schiller e Goethe, uma série de poetas e<br />

fi lósofos resgataria uma tradição irracionalista do pensamento<br />

e das manifestações artísticas (em contraponto<br />

à escola anterior), valorizando temas como a natureza<br />

(entendida como em simbiose com o indivíduo),<br />

as crenças populares, a religião (em seus aspectos<br />

místicos), a bruxaria, a poesia ingênua e sentimental,<br />

de fatura popular, os mitos e lendas nacionais (grande<br />

preocupação do período). O grande valor estaria<br />

concentrado na fi gura do indivíduo, entendido como<br />

gênio criador, o qual deveria privar de uma liberdade<br />

sem limites, sobretudo ao ser acometido pela manifestação<br />

poética da beleza (numa concepção mais ampla<br />

que a clássica), ou pela urgência do amor passional.<br />

Neste sentido, ainda, a fi gura do indivíduo desdobrase<br />

nas representações da infância idílica, do herói nacional,<br />

no amante/enamorado devotado, entre outras.<br />

Já na França, o debate, poucas décadas depois, travar-se-ia<br />

no campo dramatúrgico, cujo texto fundamental<br />

tornou-se o “Do Sublime e do Grotesco”, de<br />

Victor Hugo, em que o grande escritor francês elogia<br />

a obra de William Shakespeare, fundamentando a<br />

partir do teatro do mestre inglês a chegada do drama<br />

moderno às páginas e aos palcos. Passando do teatro<br />

para o campo do romance, também na França, o grande<br />

modelo narrativo encerra-se no modelo do melodrama,<br />

de grande ressonância entre nós, reforçando<br />

os aspectos sentimentais do Romantismo, sobretudo<br />

em contexto latino.<br />

No contexto brasileiro, a chegada do Romantismo tardou<br />

a consolidar-se tendo em vista não apenas a dependência<br />

cultural ainda em relação à Metrópole portuguesa,<br />

mas também, o sufocamento dos ideais de independência<br />

nacional, cujo maior exemplo deu-se com a esmagadora<br />

dissolução da Inconfi dência Mineira. No entanto,<br />

poucos anos depois, os resultados da era napoleônica<br />

trouxeram a Família Real Portuguesa para o Brasil, em<br />

1808, elevando a Colônia à categoria de Vice-Reino, forçando<br />

uma urbanização rápida e a instalação de postos<br />

de desenvolvimento econômico, político e cultural mais<br />

próximos do padrão europeu. Com a independência, em<br />

1822, instaura-se o clima de nacionalismo entre os nativos,<br />

o que proporcionaria um clima adequado para o<br />

imaginário romântico instaurar-se. No que tange à economia<br />

do país, de base escravocrata e agrária, assistiu-se<br />

à transposição gradual do centro fi nanceiro da região das<br />

Minas, cujo ciclo de mineração esgotava-se, para o Rio<br />

de Janeiro, e as regiões rurais próximas a este, nas quais<br />

fl oresceria a cultura do café, principal produto do século<br />

XIX, e que se tornou o sustentáculo da economia nacional<br />

durante um século inteiro.<br />

Durante o Império, difundiu-se o senso de pertencimento<br />

nacional – de resto, característica do movimento<br />

romântico em geral – entre a população, gerando a<br />

necessidade de construir uma identidade brasileira a<br />

partir da literatura, que, segundo a proposição de Antônio<br />

Cândido, só tomou lugar como sistema no Brasil<br />

a partir da produção árcade, desdobrando-se dali<br />

em diante pela produção romântica e subseqüentes<br />

estilos de época no país. Deste sentimento brotarão<br />

inicialmente o indianismo e a preocupação regionalista<br />

com as localidades e populações mais afastadas<br />

do litoral e da Corte, localizada no Rio de Janeiro.<br />

De qualquer modo, apenas em 1836 aparecerá a obra<br />

que funda o Romantismo no Brasil, Suspiros Poéticos<br />

e Saudades, de Gonçalves de Magalhães, publicada,<br />

curiosamente em Paris, na revista Niterói. O movimento<br />

romântico no Brasil deixou marcas profundas<br />

na literatura, na cultura e no imaginário nacionais,<br />

tendo se desenvolvido, no campo literário, pelas três<br />

vertentes dos gêneros – poesia lírica, prosa narrativa<br />

e drama teatral – e através de três gerações de autores<br />

e obras, com variações relevantes entre si.<br />

15


16<br />

1.2 - A Poesia Romântica Brasileira<br />

Como afi rmamos acima, a produção poética do período<br />

romântico no Brasil acompanhará o percurso<br />

de três momentos distintos nos campos do tema e da<br />

linguagem utilizados: uma primeira geração, preocupada<br />

com a implantação do novo fazer literário<br />

e voltada para a exploração do tema indígena (daí a<br />

alcunha poesia indianista) e da paisagem brasileira<br />

como marcas da nacionalidade a serem confi rmadas<br />

pela escrita lírica, cujos principais nomes seriam<br />

Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães e Porto<br />

Alegre; a segunda, de inspiração no romantismo<br />

egóico de Byron, e responsável pela tradução tropical<br />

do clima do mal-do-século, marcada pela melancolia<br />

no trato de temas como a infância, o amor<br />

impossível, a morte e tédio, presentes nos textos de<br />

poetas como Álvares de Azevedo, Fagundes Varela,<br />

Casimiro de Abreu, Junqueira Freire, Laurindo<br />

Rabelo; e fi nalmente, a terceira geração, também<br />

conhecida como “condoreira”, portadora dos ideais<br />

liberais e abolicionistas da década de 1870, e que<br />

tem em Castro Alves seu maior representante, ladeado<br />

por Sousândrade, poeta mais experimental.<br />

I<br />

No meio das tabas de amenos verdores,<br />

Cercadas de troncos — cobertos de fl ores,<br />

Alteiam-se os tetos d’altiva nação;<br />

São muitos seus fi lhos, nos ânimos fortes,<br />

Temíveis na guerra, que em densas coortes<br />

Assombram das matas a imensa extensão.<br />

São rudos, severos, sedentos de glória,<br />

Já prélios incitam, já cantam vitória,<br />

Já meigos atendem à voz do cantor:<br />

São todos Timbiras, guerreiros valentes!<br />

Seu nome lá voa na boca das gentes,<br />

Condão de prodígios, de glória e terror!<br />

As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,<br />

As armas quebrando, lançando-as ao rio,<br />

O incenso aspiraram dos seus maracás:<br />

Medrosos das guerras que os fortes acendem,<br />

Custosos tributos ignavos lá rendem,<br />

Aos duros guerreiros sujeitos na paz.<br />

No centro da taba se estende um terreiro,<br />

Onde ora se aduna o concílio guerreiro<br />

Da tribo senhora, das tribos servis:<br />

Os velhos sentados praticam d’outrora,<br />

E os moços inquietos, que a festa enamora,<br />

Derramam-se em torno dum índio infeliz.<br />

I- JUCA-PIRAMA<br />

A Poesia Indianista de Gonçalves Dias<br />

Maranhense, Antônio Gonçalves Dias dizia-se descendente<br />

das três raças que compuseram a etnia brasileira<br />

(pai português e mãe cafusa). Estudando em<br />

Coimbra, entra em contato com a obra de Garrett e<br />

Herculano. Ao voltar ao Brasil, aproxima-se do grupo<br />

de Magalhães e consolida sua posição como poeta ao<br />

publicar seus Primeiros Cantos, em 1846, que seriam<br />

seguidos pelos Segundos Cantos e Sextilhas de Frei<br />

Antão, em 1848, e Últimos Cantos, em 1851.<br />

Excepcional poeta lírico, Gonçalves Dias volta-se<br />

para a criação de uma mitologia indígena (como o<br />

faria na prosa José de Alencar), na qual a fi gura do<br />

índio aproxima-se da imagem do bom selvagem preconizada<br />

por Montaigne, Rousseau e Chateaubriand,<br />

deixando de lado, contudo, os confl itos com o colonizador<br />

português, entendido na mesma chave dócil.<br />

Ao lado da temática indianista, também fi guram na<br />

produção do escritor poemas amorosos, ocasionalmente<br />

entrelaçados à preocupação nativista.<br />

Quem é? — ninguém sabe: seu nome é ignoto,<br />

Sua tribo não diz:— de um povo remoto<br />

Descende por certo— dum povo gentil;<br />

Assim lá na Grécia ao escravo insulano<br />

Tornavam distinto do vil muçulmano<br />

As linhas corretas do nobre perfi l.<br />

Por casos de guerra caiu prisioneiro<br />

Nas mãos dos Timbiras: — no extenso terreiro<br />

Assola-se o teto, que o teve em prisão;<br />

Convidam-se as tribos dos seus arredores,<br />

Cuidosos se incubem do vaso das cores,<br />

Dos vários aprestos da honrosa função.<br />

Acerva-se a lenha da vasta fogueira<br />

Entesa-se a corda da embira ligeira,<br />

Adorna-se a maça com penas gentis:<br />

A custo, entre as vagas do povo da aldeia<br />

Caminha o Timbira, que a turba rodeia,<br />

Garboso nas plumas de vário matiz.<br />

Em tanto as mulheres com leda trigança,<br />

Afeitas ao rito da bárbara usança,<br />

O índio já querem cativo acabar:<br />

A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,<br />

Brilhante enduape no corpo lhe cingem,<br />

Sombreia-lhe a fronte gentil canitar,


<strong>II</strong><br />

Em fundos vasos d’alvacenta argila<br />

Ferve o cauim;<br />

Enchem-se as copas, o prazer começa,<br />

Reina o festim.<br />

O prisioneiro, cuja morte anseiam,<br />

Sentado está,<br />

O prisioneiro, que outro sol no ocaso<br />

Jamais verá!<br />

A dura corda, que lhe enlaça o colo,<br />

Mostra-lhe o fi m<br />

Da vida escura, que será mais breve<br />

Do que o festim!<br />

Contudo os olhos d’ignóbil pranto<br />

Secos estão;<br />

Mudos os lábios não descerram queixas<br />

Do coração.<br />

Mas um martírio, que encobrir não pode,<br />

Em rugas faz<br />

A mentirosa placidez do rosto<br />

Na fronte audaz!<br />

Que tens, guerreiro? Que temor te assalta<br />

No passo horrendo?<br />

Honra das tabas que nascer te viram,<br />

Folga morrendo.<br />

Folga morrendo; porque além dos Andes<br />

Revive o forte,<br />

Que soube ufano contrastar os medos<br />

Da fria morte.<br />

Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva,<br />

Lá murcha e pende:<br />

Somente ao tronco, que devassa os ares,<br />

O raio ofende!<br />

Que foi? Tupã mandou que ele caísse,<br />

Como viveu;<br />

E o caçador que o avistou prostrado<br />

Esmoreceu!<br />

Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes<br />

Revive o forte,<br />

Que soube ufano contrastar os medos<br />

Da fria morte.<br />

<strong>II</strong>I<br />

Em larga roda de novéis guerreiros<br />

Ledo caminha o festival Timbira,<br />

A quem do sacrifício cabe as honras,<br />

Na fronte o canitar sacode em ondas,<br />

O enduape na cinta se embalança,<br />

Na destra mão sopesa a iverapeme,<br />

Orgulhoso e pujante. — Ao menor passo<br />

Colar d’alvo marfi m, insígnia d’honra,<br />

Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,<br />

Como que por feitiço não sabido<br />

Encantadas ali as almas grandes<br />

Dos vencidos Tapuias, inda chorem<br />

Serem glória e brasão d’imigos feros.<br />

“Eis-me aqui”, diz ao índio prisioneiro;<br />

“Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,<br />

“As nossas matas devassaste ousado,<br />

“Morrerás morte vil da mão de um forte.”<br />

Vem a terreiro o mísero contrário;<br />

Do colo à cinta a muçurana desce:<br />

“Dize-nos quem és, teus feitos canta,<br />

“Ou se mais te apraz, defende-te.” Começa<br />

O índio, que ao redor derrama os olhos,<br />

Com triste voz que os ânimos comove.<br />

IV<br />

Meu canto de morte,<br />

Guerreiros, ouvi:<br />

Sou fi lho das selvas,<br />

Nas selvas cresci;<br />

Guerreiros, descendo<br />

Da tribo tupi.<br />

Da tribo pujante,<br />

Que agora anda errante<br />

Por fado inconstante,<br />

Guerreiros, nasci;<br />

Sou bravo, sou forte,<br />

Sou fi lho do Norte;<br />

Meu canto de morte,<br />

Guerreiros, ouvi.<br />

Já vi cruas brigas,<br />

De tribos imigas,<br />

E as duras fadigas<br />

Da guerra provei;<br />

Nas ondas mendaces<br />

Senti pelas faces<br />

Os silvos fugaces<br />

Dos ventos que amei.<br />

Andei longes terras<br />

Lidei cruas guerras,<br />

Vaguei pelas serras<br />

Dos vis Aimoréis;<br />

Vi lutas de bravos,<br />

Vi fortes — escravos!<br />

De estranhos ignavos<br />

Calcados aos pés.<br />

E os campos talados,<br />

E os arcos quebrados,<br />

E os piagas coitados<br />

17


18<br />

Já sem maracás;<br />

E os meigos cantores,<br />

Servindo a senhores,<br />

Que vinham traidores,<br />

Com mostras de paz.<br />

Aos golpes do imigo,<br />

Meu último amigo,<br />

Sem lar, sem abrigo<br />

Caiu junto a mi!<br />

Com plácido rosto,<br />

Sereno e composto,<br />

O acerbo desgosto<br />

Comigo sofri.<br />

Meu pai a meu lado<br />

Já cego e quebrado,<br />

De penas ralado,<br />

Firmava-se em mi:<br />

Nós ambos, mesquinhos,<br />

Por ínvios caminhos,<br />

Cobertos d’espinhos<br />

Chegamos aqui!<br />

O velho no entanto<br />

Sofrendo já tanto<br />

De fome e quebranto,<br />

Só qu’ria morrer!<br />

Não mais me contenho,<br />

Nas matas me embrenho,<br />

Das frechas que tenho<br />

Me quero valer.<br />

Então, forasteiro,<br />

Caí prisioneiro<br />

Neste longo poema, cujo fragmento está extraído de<br />

Os Timbiras, unanimemente elogiado pela crítica quanto<br />

à riqueza dos processos estilísticos, conta-se a história<br />

do guerreiro tupi capturado pelos Timbiras e que<br />

deverá entoar seu canto de morte preparatório para o ri-<br />

Eu vivo sozinha, ninguém me procura!<br />

Acaso feitura<br />

Não sou de Tupá!<br />

Se algum dentre os homens de mim não se esconde:<br />

— “Tu és”, me responde,<br />

“Tu és Marabá!”<br />

— Meus olhos são garços, são cor das safi ras,<br />

— Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;<br />

MARABÁ<br />

De um troço guerreiro<br />

Com que me encontrei:<br />

O cru dessossêgo<br />

Do pai fraco e cego,<br />

Enquanto não chego<br />

Qual seja, — dizei!<br />

Eu era o seu guia<br />

Na noite sombria,<br />

A só alegria<br />

Que Deus lhe deixou:<br />

Em mim se apoiava,<br />

Em mim se fi rmava,<br />

Em mim descansava,<br />

Que fi lho lhe sou.<br />

Ao velho coitado<br />

De penas ralado,<br />

Já cego e quebrado,<br />

Que resta? — Morrer.<br />

Enquanto descreve<br />

O giro tão breve<br />

Da vida que teve,<br />

Deixai-me viver!<br />

Não vil, não ignavo,<br />

Mas forte, mas bravo,<br />

Serei vosso escravo:<br />

Aqui virei ter.<br />

Guerreiros, não coro<br />

Do pranto que choro:<br />

Se a vida deploro,<br />

Também sei morrer.<br />

tual canibal. Na seqüência, preocupado com a saúde do<br />

velho pai, Juca Pirama pede pela liberdade, conseguida;<br />

mas, entendido como vergonhoso pela ética guerreira<br />

indígena, o jovem será devolvido pelo pai aos inimigos<br />

e enfrentará dignamente seu destino sacrifi cial.<br />

— Imitam as nuvens de um céu anilado,<br />

— As cores imitam das vagas do mar!<br />

Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:<br />

“Teus olhos são garços”,<br />

Responde anojado, “mas és Marabá:<br />

“Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,<br />

“Uns olhos fulgentes,<br />

“Bem pretos, retintos, não cor d’anajá!”


— É alvo meu rosto da alvura dos lírios,<br />

— Da cor das areias batidas do mar;<br />

— As aves mais brancas, as conchas mais puras<br />

— Não têm mais alvura, não têm mais brilhar.<br />

Se ainda me escuta meus agros delírios:<br />

— “És alva de lírios”,<br />

Sorrindo responde, “mas és Marabá:<br />

“Quero antes um rosto de jambo corado,<br />

“Um rosto crestado<br />

“Do sol do deserto, não fl or de cajá.”<br />

— Meu colo de leve se encurva engraçado,<br />

— Como hástea pendente do cáctus em fl or;<br />

— Mimosa, indolente, resvalo no prado,<br />

— Como um soluçado suspiro de amor! —<br />

“Eu amo a estatura fl exível, ligeira,<br />

Qual duma palmeira”,<br />

Então me respondem; “tu és Marabá:<br />

“Quero antes o colo da ema orgulhosa,<br />

Que pisa vaidosa,<br />

“Que as fl óreas campinas governa, onde está.”<br />

Já nesse texto, Gonçalves Dias trata do tema da mestiçagem<br />

e da ausência de lugar destinado aos primeiros fi lhos<br />

do intercurso cultural entre indígenas e portugueses.<br />

A Poesia Ultra-Romântica, o “Mal-do-Século”<br />

Liderada por poetas adolescentes, muitos mortos precocemente,<br />

a geração romântica de meados do século<br />

XIX dedicou-se à exploração do intenso subjetivismo na<br />

poesia, desenvolvendo os temas do amor, da morte, da<br />

saudade, da ironia e da dúvida, do tédio e da melancolia,<br />

rompendo, numa atitude estética fi nalmente radical<br />

para o período com tudo aquilo que não remetesse diretamente<br />

aos problemas do “eu”, entidade que por vezes<br />

beira o sagrado. Daí se infere o sufocamento de sensibilidades<br />

juvenis aprisionadas no ambiente burguês da<br />

época. O importante, nos dizeres de Alfredo Bosi (1994:<br />

110), é que “todo um complexo psicológico se articulou<br />

em uma linguagem e em um estilo novo, que se manteve<br />

por quase trinta anos na esfera da história literária e<br />

sobreviveu, esgarçado e anêmico, até hoje, no mundo<br />

da subcultura e das letras provincianas”.<br />

O nome que mais se destaca desta geração encontrase<br />

no paulista Álvares de Azevedo, morto de tuberculose<br />

antes de completar 21 anos, mas que legou uma<br />

obra de incontestável valor literário, composta nos<br />

— Meus loiros cabelos em ondas se anelam,<br />

— O oiro mais puro não tem seu fulgor;<br />

— As brisas nos bosques de os ver se enamoram<br />

— De os ver tão formosos como um beija-fl or!<br />

Mas eles respondem: “Teus longos cabelos,<br />

“São loiros, são belos,<br />

“Mas são anelados; tu és Marabá:<br />

“Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,<br />

“Cabelos compridos,<br />

“Não cor d’oiro fi no, nem cor d’anajá,”<br />

————<br />

E as doces palavras que eu tinha cá dentro<br />

A quem nas direi?<br />

O ramo d’acácia na fronte de um homem<br />

Jamais cingirei:<br />

Jamais um guerreiro da minha arazóia<br />

Me desprenderá:<br />

Eu vivo sozinha, chorando mesquinha,<br />

Que sou Marabá!<br />

três gêneros literários: Lira dos Vinte Anos (poesia),<br />

A Noite na Taverna (narrativa) e Macário (poema<br />

dramático), para fi carmos com as mais importantes.<br />

SE EU MORRESSE AMANHÃ!<br />

Se eu morresse amanhã, viria ao menos<br />

Fechar meus olhos minha triste irmã;<br />

Minha mãe de saudades morreria<br />

Se eu morresse amanhã!<br />

Quanta glória pressinto em meu futuro!<br />

Que aurora de porvir e que manhã!<br />

Eu perdera chorando essas coroas<br />

Se eu morresse amanhã!<br />

Que sol! que céu azul! que doce n’alva<br />

Acorda a natureza mais louçã!<br />

Não me batera tanto amor no peito<br />

Se eu morresse amanhã!<br />

Mas essa dor da vida que devora<br />

A ânsia de glória, o dolorido afã...<br />

A dor no peito emudecera ao menos<br />

Se eu morresse amanhã!<br />

Poeta “maldito”, herdeiro de Byron, Musset, Heine<br />

e Lamartine, Álvares de Azevedo revela a boêmia<br />

19


20<br />

espiritual do jovem adolescente, também perseguido,<br />

em alguns textos, por imagens satânicas, presentes<br />

não apenas em alguns de seus poemas, como nos<br />

contos de A Noite na Taverna. Em outros momentos,<br />

percebe-se o erotismo mesclado ao instinto de morte,<br />

de resto, bastante característico do grupo romântico<br />

daquele momento.<br />

Castro Alves e a Geração “Condoreira”<br />

Inspirada pela fi gura do condor, maior ave da Cordilheira<br />

dos Andes cujo vôo alcança enormes altitudes,<br />

a última geração romântica afasta-se da extrema preocupação<br />

subjetiva, individualista, e volta-se para os<br />

problemas da sociedade, os quais procura denunciar.<br />

ADORMECIDA<br />

Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière<br />

La croix de son collier repose dans sa main,-<br />

Comme pour témoigner qu’elle a fait sa prière.<br />

Et qu’elle va la faire en s’éveillant demain.<br />

A. DE MUSSET<br />

UMA NOITE, eu me lembro... Ela dormia<br />

Numa rede encostada molemente...<br />

Quase aberto o roupão... solto o cabelo<br />

E o pé descalço do tapete rente.<br />

‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste<br />

Exalavam as silvas da campina...<br />

E ao longe, num pedaço do horizonte,<br />

Via-se a noite plácida e divina.<br />

De um jasmineiro os galhos encurvados,<br />

Indiscretos entravam pela sala,<br />

E de leve oscilando ao tom das auras,<br />

Iam na face trêmulos - beijá-la.<br />

Era um quadro celeste!...A cada afago<br />

Mesmo em sonhos a moça estremecia...<br />

Quando ela serenava... a fl or beijava-a...<br />

Quando ela ia beijar-lhe... a fl or fugia...<br />

Dir-se-ia que naquele doce instante<br />

Brincavam duas cândidas crianças...<br />

A brisa, que agitava as folhas verdes,<br />

Fazia-lhe ondear as negras tranças!<br />

E o ramo ora chegava ora afastava-se...<br />

Mas quando a via despeitada a meio,<br />

P’ra não zangá-la... sacudia alegre<br />

Uma chuva de pétalas no seio...<br />

Eu, fi tando esta cena, repetia<br />

Naquela noite lânguida e sentida:<br />

‘Ó fl or! - tu és a virgem das campinas!<br />

‘Virgem! - tu és a fl or da minha vida!...’<br />

Jovem fi lho de médico, nascido no interior baiano,<br />

Antonio Frederico de Castro Alves é o representante<br />

principal da última tendência lírica de nossa poesia<br />

romântica. Tendo estudado entre Recife e São Paulo,<br />

com breve passagem pelo Rio de Janeiro, Castro Alves<br />

estréia num novo ambiente brasileiro, marcado<br />

pela crise do Brasil rural, pelo desenvolvimento, ainda<br />

que lento, da cultura urbana e dos ideais liberais, progressistas<br />

e abolicionistas. Sua poesia vincula-se à voz<br />

de Victor Hugo, cuja lírica tanto se prestou à defesa de<br />

novos tempos e à crítica dos velhos tiranos. O jovem<br />

poeta libera em seu verso todo um epos libertário, preocupado<br />

sobretudo com a questão da escravidão dos<br />

negros, convivendo, por outro lado, com uma sensualidade<br />

bastante franca no trato dos temas amorosos,<br />

sem as culpas que envolviam seus predecessores.<br />

O NAVIO NEGREIRO (fragmento)<br />

IV<br />

Era um sonho dantesco... o tombadilho<br />

Que das luzernas avermelha o brilho.<br />

Em sangue a se banhar.<br />

Tinir de ferros... estalar de açoite...<br />

Legiões de homens negros como a noite,<br />

Horrendos a dançar...<br />

Negras mulheres, suspendendo às tetas<br />

Magras crianças, cujas bocas pretas<br />

Rega o sangue das mães:<br />

Outras moças, mas nuas e espantadas,<br />

No turbilhão de espectros arrastadas,<br />

Em ânsia e mágoa vãs!<br />

E ri-se a orquestra irônica, estridente...<br />

E da ronda fantástica a serpente<br />

Faz doudas espirais ...<br />

Se o velho arqueja, se no chão resvala,<br />

Ouvem-se gritos... o chicote estala.<br />

E voam mais e mais...<br />

Presa nos elos de uma só cadeia,<br />

A multidão faminta cambaleia,<br />

E chora e dança ali!<br />

Um de raiva delira, outro enlouquece,<br />

Outro, que martírios embrutece,<br />

Cantando, geme e ri!<br />

No entanto o capitão manda a manobra,<br />

E após fi tando o céu que se desdobra,<br />

Tão puro sobre o mar,<br />

Diz do fumo entre os densos nevoeiros:<br />

“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!<br />

Fazei-os mais dançar!...”<br />

E ri-se a orquestra irônica, estridente...<br />

E da ronda fantástica a serpente<br />

Faz doudas espirais...


Qual um sonho dantesco as sombras voam!...<br />

Gritos, ais, maldições, preces ressoam!<br />

E ri-se Satanás!...<br />

V<br />

Senhor Deus dos desgraçados!<br />

Dizei-me vós, Senhor Deus!<br />

Se é loucura... se é verdade<br />

Tanto horror perante os céus?!<br />

Ó mar, por que não apagas<br />

Co’a esponja de tuas vagas<br />

De teu manto este borrão?...<br />

Astros! noites! tempestades!<br />

Rolai das imensidades!<br />

Varrei os mares, tufão!<br />

Quem são estes desgraçados<br />

Que não encontram em vós<br />

Mais que o rir calmo da turba<br />

Que excita a fúria do algoz?<br />

Quem são? Se a estrela se cala,<br />

Se a vaga à pressa resvala<br />

Como um cúmplice fugaz,<br />

Perante a noite confusa...<br />

Dize-o tu, severa Musa,<br />

Musa libérrima, audaz!...<br />

São os fi lhos do deserto,<br />

Onde a terra esposa a luz.<br />

Onde vive em campo aberto<br />

A tribo dos homens nus...<br />

São os guerreiros ousados<br />

Que com os tigres mosqueados<br />

Combatem na solidão.<br />

Ontem simples, fortes, bravos.<br />

Hoje míseros escravos,<br />

Sem luz, sem ar, sem razão...<br />

São mulheres desgraçadas,<br />

Como Agar o foi também.<br />

Que sedentas, alquebradas,<br />

De longe... bem longe vêm...<br />

Trazendo com tíbios passos,<br />

Filhos e algemas nos braços,<br />

N’alma — lágrimas e fel...<br />

Como Agar sofrendo tanto,<br />

Que nem o leite de pranto<br />

Têm que dar para Ismael.<br />

Lá nas areias infi ndas,<br />

Das palmeiras no país,<br />

Nasceram crianças lindas,<br />

Viveram moças gentis...<br />

Passa um dia a caravana,<br />

Quando a virgem na cabana<br />

Cisma da noite nos véus ...<br />

... Adeus, ó choça do monte,<br />

... Adeus, palmeiras da fonte!...<br />

... Adeus, amores... adeus!...<br />

Depois, o areal extenso...<br />

Depois, o oceano de pó.<br />

Depois no horizonte imenso<br />

Desertos... desertos só...<br />

E a fome, o cansaço, a sede...<br />

Ai! quanto infeliz que cede,<br />

E cai p’ra não mais s’erguer!...<br />

Vaga um lugar na cadeia,<br />

Mas o chacal sobre a areia<br />

Acha um corpo que roer.<br />

Ontem a Serra Leoa,<br />

A guerra, a caça ao leão,<br />

O sono dormido à toa<br />

Sob as tendas d’amplidão!<br />

Hoje... o porão negro, fundo,<br />

Infecto, apertado, imundo,<br />

Tendo a peste por jaguar...<br />

E o sono sempre cortado<br />

Pelo arranco de um fi nado,<br />

E o baque de um corpo ao mar...<br />

Ontem plena liberdade,<br />

A vontade por poder...<br />

Hoje... cúm’lo de maldade,<br />

Nem são livres p’ra morrer...<br />

Prende-os a mesma corrente<br />

— Férrea, lúgubre serpente —<br />

Nas roscas da escravidão.<br />

E assim zombando da morte,<br />

Dança a lúgubre coorte<br />

Ao som do açoute... Irrisão!...<br />

Senhor Deus dos desgraçados!<br />

Dizei-me vós, Senhor Deus,<br />

Se eu deliro... ou se é verdade<br />

Tanto horror perante os céus?!...<br />

Ó mar, por que não apagas<br />

Co’a esponja de tuas vagas<br />

Do teu manto este borrão?<br />

Astros! noites! tempestades!<br />

Rolai das imensidades!<br />

Varrei os mares, tufão! ...<br />

VI<br />

Existe um povo que a bandeira empresta<br />

P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...<br />

E deixa-a transformar-se nessa festa<br />

Em manto impuro de bacante fria!...<br />

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,<br />

Que impudente na gávea tripudia?<br />

Silêncio. Musa... chora, e chora tanto<br />

Que o pavilhão se lave no teu pranto!...<br />

Auriverde pendão de minha terra,<br />

Que a brisa do Brasil beija e balança,<br />

Estandarte que a luz do sol encerra<br />

E as promessas divinas da esperança...<br />

21


22<br />

Tu que, da liberdade após a guerra,<br />

Foste hasteado dos heróis na lança<br />

Antes te houvessem roto na batalha,<br />

Que servires a um povo de mortalha!...<br />

Fatalidade atroz que a mente esmaga!<br />

Extingue nesta hora o brigue imundo<br />

Ao lado de Castro Alves, aparece na última geração<br />

romântica o nome de Joaquim de Sousa Andrade, ou<br />

Sousândrade, poeta pouco reconhecido à sua época,<br />

dada a carga de originalidade. Ambientado com o<br />

1.3 - A Prosa Narrativa<br />

Além das tardias incursões de Basílio da Gama e<br />

Santa Rita Durão no campo da epopéia, ao fi nal do<br />

Arcadismo, nossas letras não conheciam ainda uma<br />

expressão signifi cativa do gênero narrativo. Será no<br />

contexto do Romantismo que os leitores brasileiros<br />

verão afl orar o romance como principal modelo literário<br />

que, trazido à publicação em meio ao fl orescer<br />

do sentimento de nacionalidade, fi nalmente autorizado<br />

pelo processo da independência, fertilizará nossa<br />

narrativa. O primeiro romance brasileiro a ser publicado<br />

foi O Filho do Pescador, de Teixeira e Sousa,<br />

em 1843. No entanto, serão outros nomes que irão se<br />

destacar, publicando os textos que compõem o principal<br />

legado romântico para nossa prosa de fi cção: Joaquim<br />

Manuel de Macedo, responsável por narrativas<br />

que tentavam registrar, ainda de forma algo edulcorada,<br />

os modos e costumes da corte, como em A Moreninha,<br />

O Moço Loiro, A Luneta Mágica; Bernardo<br />

Guimarães e Visconde de Taunay, que dedicarão<br />

seus escritos à pintura da vida interiorana, regional,<br />

escondida pelos sertões e fazendas, e no caso do segundo,<br />

dedicando especial atenção ao falar brasileiro;<br />

Manuel Antônio de Almeida, jovem escritor cujo<br />

único romance, Memórias de um sargento de milícias<br />

(1853-55), revela uma veia satírica, de certo realismo<br />

grotesco, destinada a tratar com humor o tema do<br />

anti-herói, incomum até então entre nossos principais<br />

autores. No entanto, o grande nome de nossa prosa<br />

fi ccional, responsável pelos romances mais justamente<br />

destinados à construção literária da identidade brasileira,<br />

projeto consciente de seu autor, encontra-se na<br />

fi gura de José de Alencar.<br />

Nascido em Mecejana, Ceará, Alencar construiu<br />

uma importante carreira pública e política tanto<br />

em sua terra natal, como deputado, como na Corte,<br />

ao atuar no Ministério da Justiça, conservador.<br />

Notoriamente ambíguo em suas posições (até retrógradas,<br />

como em face do problema da escravidão),<br />

o escritor acabou por se afastar da vida política,<br />

ressentido com o Imperador Pedro <strong>II</strong>, por não ter<br />

O trilho que Colombo abriu nas vagas,<br />

Como um íris no pélago profundo!<br />

Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga<br />

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!<br />

Andrada! arranca esse pendão dos ares!<br />

Colombo! fecha a porta dos teus mares!<br />

ambiente capitalista da Europa e dos Estados Unidos,<br />

por onde viajou longamente, o poeta era atento às técnicas<br />

de composição, com arranjos sonoros ousados,<br />

plurilingüismo, inovações sintáticas e verbais.<br />

sido indicado por este para o Senado. Como escritor,<br />

José de Alencar notabiliza-se não apenas pela<br />

vasta produção, entre numerosos romances, algumas<br />

peças de teatro, crônicas, ensaios, biografi a e<br />

doutrina política, mas também pelas polêmicas em<br />

que se envolveu, como o embate público com Gonçalves<br />

de Magalhães, em torno da Confederação<br />

dos Tamoios, com a censura a As Asas de um Anjo<br />

e a Lucíola, e com os puristas lusófi los, por conta<br />

de suas inovações lingüísticas nos textos literários,<br />

rompendo os padrões gramaticais portugueses, em<br />

prol de uma linguagem brasileira.<br />

De modo geral, a obra romanesca de Alencar pode<br />

ser subdividida em romances, listando aqui os mais<br />

importantes, indianistas: O Guarani (1857), Iracema<br />

(65), Ubirajara (74), nos quais o escritor dedicou-se<br />

a fazer da fi gura do índio o elemento protagonista<br />

como herói nacional, bem como do casal<br />

mestiço, nos dois primeiros, a matriz primordial para<br />

o surgimento da raça brasileira; urbanos: Cinco Minutos<br />

(1860), Lucíola (62), A Pata da Gazela (70),<br />

Senhora (75), em que, além de apresentar, numa tentativa<br />

inicial de realismo, os hábitos e costumes da<br />

cidade do Rio de Janeiro e traçar perfi s de mulher em<br />

personagens femininas de intensa reverberação até<br />

hoje, traz novamente uma certa inspiração francesa<br />

através do molde do melodrama (mais assumido em<br />

seus textos teatrais) na construção das tramas; regionalistas:<br />

O Gaúcho (1870), O Tronco do Ipê (71),<br />

Til (72), O Sertanejo (75), marcados pelo anseio de<br />

registro das diversidades culturais que o vasto país<br />

apresentava; e históricos, afi nados com a tendência<br />

nacionalista e romântica de preservar a memória da<br />

nação, fortalecendo o projeto de construção fi ccional<br />

da identidade brasileira, através dessa vez, do relato<br />

de passagens importantes da história: As Minas de<br />

Prata (1862), A Guerra dos Mascates (73). Segue,<br />

adiante, uma das mais famosas cenas de Iracema,<br />

que registra o idílico encontro da jovem indígena<br />

com o colonizador português Martim.


Além, muito além daquela serra, que ainda azula no<br />

horizonte, nasceu Iracema.<br />

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os<br />

cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos<br />

que seu talhe de palmeira.<br />

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem<br />

a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.<br />

Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem<br />

corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua<br />

guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil<br />

e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que<br />

vestia a terra com as primeiras águas.<br />

Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da<br />

fl oresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais<br />

fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia<br />

silvestre esparziam fl ores sobre os úmidos cabelos. Escondidos<br />

na folhagem os pássaros ameigavam o canto.<br />

Iracema saiu do banho; o aljôfar d’água ainda a<br />

roreja, como à doce mangaba que corou em manhã<br />

de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do<br />

gará as fl echas de seu arco, e concerta com o sabiá da<br />

mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.<br />

A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca<br />

junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá<br />

chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de<br />

palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes,<br />

os alvos fi os do crautá , as agulhas da juçara com que<br />

tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.<br />

Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta.<br />

Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra;<br />

sua vista perturba-se.<br />

Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro<br />

estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da<br />

fl oresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam<br />

o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas<br />

armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.<br />

Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A fl echa<br />

embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham<br />

na face do desconhecido.<br />

De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz<br />

da espada, mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu<br />

na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo<br />

de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.<br />

O sentimento que ele pos nos olhos e no rosto, não<br />

o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba,<br />

e correu para o guerreiro, sentida da mágoa<br />

que causara.<br />

A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e<br />

compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema<br />

quebrou a fl echa homicida: deu a haste ao desconhecido,<br />

guardando consigo a ponta farpada.<br />

O guerreiro falou:<br />

1.4 - O Teatro Romântico no Brasil<br />

Tornando-se, enfi m, uma cidade dotada de vida cultural<br />

mais movimentada, e alçada à categoria de corte<br />

imperial, o Rio de Janeiro viu surgir o desenvolvimento<br />

do teatro, através de fi guras importantes, como o ator<br />

João Caetano, principal articulador do seu meio artístico<br />

à época, e os autores românticos que se dedicaram<br />

ao gênero dramático. Coube igualmente a Gonçalves<br />

de Magalhães o mérito cronológico de pioneiro com a<br />

tragédia (gênero ainda clássico, portanto) Antônio José<br />

ou O Poeta e a Inquisição, de 1837. Também Gonçalves<br />

Dias, além de Alencar, como já dissemos, aventurou-se<br />

no campo teatral, legando um texto alinhado<br />

com o drama histórico europeu, Leonor de Mendonça<br />

(1847), a partir da leitura romântica de Shakespeare e<br />

das experiências de Garrett, em Portugal.<br />

- Quebras comigo a fl echa da paz?<br />

- Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem<br />

de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que<br />

nunca viram outro guerreiro como tu?<br />

- Venho de bem longe, fi lha das fl orestas. Venho das terras<br />

que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.<br />

- Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras,<br />

senhores das aldeias, e à cabana de Araquém,<br />

pai de Iracema.<br />

Seria a comédia, entretanto, o cenário em que nosso<br />

teatro romântico encontrou maior sucesso, e um autor<br />

inteiramente dedicado a ele, Martins Pena. Suas<br />

comédias de costumes caracterizam-se pela linguagem<br />

coloquial, a utilização de tipos populares, como<br />

o roceiro, o provinciano, a dose de realismo (ainda<br />

que grotesco e/ou convencional), que de certa forma,<br />

marcam um contraponto em relação às idealizações<br />

da narrativa de fi cção e da poesia do mesmo período.<br />

A sensibilidade privilegiada do autor revelou um talento<br />

cênico, que transmite rapidamente ao leitor/espectador<br />

o cômico, captando o risível onde quer que<br />

se encontre, através da intenção satírica, do nonsense,<br />

do absurdo e do tom de farsa. Entre seus textos mais<br />

famosos, ainda encenados com bastante regularidade,<br />

23


24<br />

seguindo as estréias no palco, encontram-se O Juiz de<br />

Paz na Roça (1838), O Judas em Sábado de Aleluia<br />

(44), O Noviço (45), Quem Casa, Quer Casa (45).<br />

O trecho abaixo, extraído de O Noviço, mostra um diálogo<br />

entre o casal de primos da peça, Carlos e Emília,<br />

condenados à vida religiosa pelo padrasto desta – Ambrósio,<br />

escroque de olho na fortuna da esposa ingênua,<br />

Florência – ainda no início da peça. A trama gira a partir<br />

do confl ito entre os jovens e Ambrósio, ao fi nal derrotado.<br />

Carlos, neste fragmento, revoltado com a situação,<br />

fugira do convento e tece uma ácida refl exão, por assim<br />

dizer, a respeito da divisão das profi ssões no Brasil.<br />

EMÍLIA - Fugiste? E por que motivo?<br />

CARLOS - Por que motivo? pois faltam motivos<br />

para se fugir de um convento? O último foi o jejum<br />

em que vivo há sete dias... Vê como tenho esta barriga,<br />

vai a sumir-se. Desde sexta-feira passada que não<br />

mastigo pedaço que valha a pena.<br />

EMÍLIA - Coitado!<br />

CARLOS - Hoje, já não podendo, questionei com o<br />

D. Abade. Palavras puxam palavras; dize tu, direi eu,<br />

e por fi m de contas arrumei-lhe uma cabeçada, que o<br />

atirei por esses ares.<br />

EMÍLIA - O que fi zestes, louco?<br />

CARLOS - E que culpa tenho eu, se tenho a cabeça<br />

esquentada? Para que querem violentar minhas<br />

inclinações? Não nasci para frade, não tenho jeito<br />

nenhum para estar horas inteiras no coro a rezar com<br />

os braços encruzados. Não me vai o gosto para aí...<br />

Não posso jejuar; tenho, pelo menos três vezes ao dia,<br />

uma fome de todos os diabos. Militar é que eu quisera<br />

ser; para aí chama-me a inclinação. Bordoadas, espadeiradas,<br />

rusgas é que me regalam; esse é o meu<br />

gênio. Gosto de teatro, e de lá ninguém vai ao teatro,<br />

à exceção de Frei Maurício, que freqüenta a platéia<br />

de casaca e cabelereira para esconder a coroa.<br />

EMÍLIA - Pobre Carlos, como terás passado estes<br />

seis meses de noviciado!<br />

CARLOS - Seis meses de martírio! Não que a vida<br />

de frade seja má; boa é ela para quem a sabe gozar e<br />

que para ela nasceu; mas eu, priminha, eu que tenho<br />

para tal vidinha negação completa, não posso!<br />

EMÍLIA - E os nossos parentes quando nos obrigam<br />

a seguir uma carreira para a qual não temos inclinação<br />

alguma, dizem que o tempo acostumar-nos-á.<br />

CARLOS - O tempo acostumar! Eis aí porque vemos<br />

entre nós tantos absurdos e disparates. Este tem jeito<br />

para sapateiro: pois vá estudar medicina... Excelente<br />

médico! Aquele tem inclinação para cômico: pois não<br />

senhor, será político... Ora, ainda isso vá. Estoutro<br />

só tem jeito para caiador ou borrador: nada, é ofício<br />

que não presta... Seja diplomata, que borra tudo<br />

quanto faz. Aqueloutro chama-lhe toda a propensão<br />

para a ladroeira; manda o bom senso que se corrija<br />

o sujeitinho, mas isso não se faz; seja tesoureiro de<br />

repartição fi scal, e lá se vão os cofres da nação à<br />

garra... Essoutro tem uma grande carga de preguiça<br />

e indolência e só serviria para leigo de convento, no<br />

entanto vemos o bom do mandrião empregado público,<br />

comendo com as mãos encruzadas sobre a pança<br />

o pingue ordenado da nação.<br />

EMÍLIA - Tens muita razão; assim é.<br />

CARLOS - Este nasceu para poeta ou escritor, com<br />

uma imaginação fogosa e independente, capaz de<br />

grandes cousas, mas não pode seguir a sua inclinação,<br />

porque poetas e escritores morrem de miséria,<br />

no Brasil... E assim o obriga a necessidade a ser o<br />

mais somenos amanuense em uma repartição pública<br />

e a copiar cinco horas por dia os mais soníferos<br />

papéis. O que acontece? Em breve matam-lhe a inteligência<br />

e fazem do homem pensante máquina estúpida,<br />

e assim se gasta uma vida? É preciso, é já tempo<br />

que alguém olhe para isso, e alguém que possa.<br />

EMÍLIA - Quem pode nem sempre sabe o que se passa<br />

entre nós, para poder remediar; é preciso falar.<br />

CARLOS - O respeito e a modéstia prendem muitas<br />

línguas, mas lá vem um dia que a voz da razão se faz<br />

ouvir, e tanto mais forte quanto mais comprimida.<br />

EMÍLIA - Mas Carlos, hoje te estou desconhecendo...<br />

CARLOS - A contradição em que vivo tem-me exasperado!<br />

E como queres tu que eu não fale quando<br />

vejo, aqui, um péssimo cirurgião que poderia ser bom<br />

alveitar; ali um ignorante general que poderia ser<br />

excelente enfermeiro; acolá, um periodiqueiro que só<br />

serviria para arrieiro, tão desbocado e insolente é,<br />

etc., etc. Tudo está fora de seus eixos.<br />

EMÍLIA - Mas que queres tu que se faça?<br />

CARLOS - Que não se constranja ninguém, que se<br />

estudem os homens e que haja uma bem entendida e<br />

esclarecida proteção, e que, sobretudo, se despreze<br />

o patronato, que assenta o jumento nas bancas das<br />

academias e amarra o homem de talento à manjedoura.<br />

Eu, que quisera viver com uma espada à cinta e à<br />

frente do meu batalhão, conduzi-lo ao inimigo através<br />

da metralha, bradando: “Marcha... (Manobrando<br />

pela sala, entusiasmado:) Camaradas, coragem,<br />

calar baionetas! Marche, marche! Firmeza, avança!<br />

O inimigo fraqueia... (Seguindo Emília, que recua,<br />

espantada:) Avança!”


EMÍLIA - Primo, primo, que é isso? Fique quieto!<br />

CARLOS, entusiasmado - “Avança, bravos companheiros,<br />

viva a Pátria Viva!” - e voltar vitorioso, coberto<br />

de sangue e poeira... Em vez desta vida de agita-<br />

Glossário<br />

ção e glória, hei-de ser frade, revestir-me de paciência<br />

e humildade, encomendar defuntos... (Cantando:) Requiescat<br />

in pace... a porta inferi! amen... O que seguirá<br />

disto? O ser eu péssimo frade, descrédito do convento<br />

e vergonha do hábito que visto. Falta-me a paciência.<br />

Grotesco - feio, ridículo ou estranho; referente às manifestações do corpo na arte e na literatura, diferenciandose<br />

da categoria do sublime (belo).<br />

Idílica - suavemente amoroso, da natureza do encontro junto à natureza.<br />

Indianista - diz-se da prosa ou da poesia românticas destinadas à temática do índio.<br />

“Nonsense” - ausência de sentido, construção lógica pautada no chiste, segue a lógica do absurdo.<br />

Exercícios de Auto-avaliação<br />

1. Em que sentido o Romantismo foi fundamental para a confi rmação da temática nacional na literatura brasileira?<br />

2. Quais as principais diferenças entre as três gerações de poesia romântica no Brasil?<br />

3. Aponte, na obra de José de Alencar, como se desdobra seu projeto literário nas vertentes de sua produção fi ccional.<br />

4. O registro da comédia engloba a produção de Martins Pena. Que efeitos de representação dos costumes<br />

brasileiros do século XIX o dramaturgo consegue extrair?<br />

25


26<br />

UNIDADE <strong>II</strong><br />

O REALISMO/NATURALISMO<br />

2.1 - Conceituação<br />

Em termos gerais e amplos, pode-se afi rmar inicialmente<br />

que há sempre certa dose de realismo na literatura<br />

(e na arte) toda vez que esta diminui a ênfase nos<br />

aspectos subjetivos, na expressão marcadamente vinculada<br />

à representação de um “eu”, ainda que mimético,<br />

fi ccional, fruto da linguagem, em prol do olhar sobre o<br />

mundo exterior, sobre os costumes de uma determinada<br />

sociedade, da qual busca fazer uma crítica. No entanto,<br />

muitas vezes essa visada sobre o “real”, o social, o<br />

cotidiano ou o costumeiro, apresenta-se mesclada a formações<br />

caricatas dos personagens e situações, ou ainda<br />

enredada nas idealizações e imagens consolidadas pela<br />

tradição literária. No entanto, no panorama históricoliterário<br />

que se apresenta na segunda metade do século<br />

XIX, na Europa, a busca por uma narrativa que desse<br />

conta de mimetizar com a maior verossimilhança possível<br />

os processos sociais e a vida dos indivíduos encontrou<br />

terreno propício através da hegemonia do materialismo<br />

no campo do pensamento ocidental.<br />

Século do romance, mas também do positivismo, os<br />

oitocentos acompanharam o surgimento de toda uma<br />

visão de mundo baseada em disciplinas que comporiam<br />

uma nova perspectiva sobre a realidade: o darwinismo<br />

e a idéia de evolução (herança romântica),<br />

o embate entre liberalismo de um lado e marxismo de<br />

outro, no campo da economia, a vitória – pelo menos<br />

em termos da Europa Central e Ocidental – do pensamento<br />

laico sobre o poder da Igreja e do discurso<br />

religioso, na prática política, processos paralelos ao<br />

desenvolvimento da biologia, da sociologia, da história,<br />

da psicologia experimental.<br />

No campo literário, desenvolveu-se no campo da<br />

fi cção narrativa, seja no romance, seja no conto, um<br />

projeto literário que buscou afastar-se dos excessos do<br />

subjetivismo romântico para aproximar-se de uma representação<br />

crítica (ainda que presa aos limites das ciências<br />

humanas e naturais à época) dos aspectos menos<br />

nobres da vida pública, das ambigüidades e descompassos<br />

da vida íntima, através de causas naturais (raça,<br />

clima, temperamento) ou culturais (meio social, educação),<br />

o que não deixa de ser um limite até certo ponto.<br />

Na França, continuando o caminho iniciado, pelo<br />

menos por Victor Hugo, o de Os Miseráveis, e Balzac,<br />

e sua monumental Comédia Humana, consolida-se a<br />

chegada do Realismo nas obras de Flaubert, Maupassant,<br />

e, partindo para o Naturalismo, de Émile Zola. Na<br />

Inglaterra, sobressaem Charles Dickens e Thackeray.<br />

Faz-se necessário lembrar a distinção entre Realismo e<br />

Naturalismo, muito embora seja sutil tal separação. De<br />

maneira geral, pode-se dizer que o Realismo opera sobre<br />

uma base de seriedade da proposta do escritor, engajado<br />

num procedimento fi ccional que penetra não apenas nos<br />

esquemas de funcionamento de uma determinada classe<br />

social, quase sempre denunciando a importância do fator<br />

econômico nas relações, mas que também aprofunda a<br />

caracterização psicológica das personagens (no mínimo,<br />

a da protagonista), aproximando-as o máximo possível<br />

do retrato de uma pessoa – podemos pensar nos casos<br />

de Flaubert, de Dostoievski, de Machado de Assis. Já o<br />

Naturalismo mergulha na ênfase dos aspectos biológicos<br />

– a vida sexual, as doenças, a relação com a higiene,<br />

ou a falta desta –, “desvios” psicopatológicos (as taras,<br />

a loucura) e morais (até mesmo numa perspectiva menos<br />

nobre do termo, de moralismo barato, preconceituoso),<br />

como o crime, o incesto, o adultério. Tal ideologia,<br />

no entanto, aprisiona o destino das personagens sob o<br />

peso das leis “naturais”, como eram entendidas. O escritor<br />

naturalista vai além do realista, sem deixar de sê-lo<br />

também, ao não poupar aspectos que, se por um lado<br />

podem ter parecido desagradáveis aos leitores do XIX,<br />

ao mesmo tempo deixaram transparecer, dada a boa receptividade<br />

granjeada pelas obras, um interesse bastante<br />

intenso por este mesmo público.<br />

No caso brasileiro, o Realismo-Naturalismo manifestou-se<br />

num período efervescente, de mudança da política<br />

e da economia, em que a luta abolicionista e republicana<br />

cada vez mais se fortalecia até o advento fi nal da Abolição<br />

e da proclamação da República, já com o período<br />

literário iniciado. Mais uma vez, como acontecera anteriormente,<br />

foi a tendência a seguir a infl uência francesa<br />

que trouxe o novo ideário artístico para a camada literária<br />

e intelectual no Brasil: a laicização, o materialismo,<br />

o racionalismo positivista, o determinismo, a concepção<br />

histórica, o anticlericalismo e o naturalismo.<br />

O ano que vê surgir a primeira publicação realista<br />

no Brasil é 1881, com o lançamento de O Mulato, de<br />

Aluísio Azevedo, seguido de Memórias Póstumas de<br />

Brás Cubas, de Machado de Assis, também naquele<br />

ano. A Literatura Brasileira vai, assim, consolidando<br />

seu caminho, e fazendo do romance o grande gênero<br />

para tratar dos problemas nacionais, já sem o ufanismo<br />

romântico, mas com um olhar mais crítico, maduro,<br />

que não foge à composição radical do quadro<br />

humano e social de que trata.


2.2 - O Realismo no Brasil<br />

A partir dos anos de 1860, os elementos sociais, políticos<br />

e econômicos da sociedade brasileira começaram a<br />

passar por uma profunda e radical transformação. A sociedade<br />

cada vez mais se tornava urbana, deixando lentamente<br />

o espaço agrário para se concentrar nas cidades,<br />

o que prepararia o processo de industrialização, tardiamente<br />

implantado apenas no início do século seguinte.<br />

De qualquer forma, o grande contingente populacional<br />

já começava a criar grupos marginais e um pequeno proletariado<br />

urbano. Lentamente, desenvolvia-se o processo<br />

de fi nalização da escravatura, assistindo-se, porém, a um<br />

processo de “embranquecimento” da população mestiça,<br />

que buscava participar ativamente da vida social, política<br />

e intelectual. Neste ambiente, fl oresceram os ideais republicanos<br />

e liberais, em confl ito com os interesses dos barões<br />

do café, sustentáculo da economia nacional, já que<br />

a cultura açucareira do Nordeste encaminhava-se cada<br />

vez mais para a decadência, gerando bolsões de pobreza<br />

rural, interiorana naquela região, e deixando para o Sul a<br />

hegemonia sobre as decisões nacionais.<br />

Este é o cenário em que se implantou o Realismo entre<br />

nós. Inicialmente, percebe-se uma “descida de tom”,<br />

nos dizeres de Alfredo Bosi, na relação entre o autor e<br />

o tema da obra, há um esforço de objetividade, de impessoalidade<br />

no exercício da criação fi ccional. Adotamse<br />

as idéias do determinismo, de fundo pessimista e o<br />

interesse temático se divide por dois cenários: o urbano,<br />

sobre o qual se criam obras à maneira do romance experimental<br />

de Zola, projeto literário que fazia da narrativa<br />

naturalista o laboratório para teses sociobiológicas, à luz<br />

de uma “teoria”, tematizando aspectos contemporâneos<br />

e cotidianos da sociedade; e o regional, que adota o determinismo<br />

geográfi co, fazendo das forças naturais um<br />

obstáculo insuperável pela vontade humana de progresso,<br />

visão que acentua o pessimismo, a desesperança, o<br />

desencanto, e nega o livre-arbítrio. Se o burguês, o marginal<br />

e o ex-escravo citadinos estão amarrados às injunções<br />

da classe social, o sertanejo encontra-se condenado<br />

pela lei do sangue, da raça e do poder da natureza.<br />

No campo da narrativa urbana, sobressaem os nomes de<br />

Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha (A Normalista, Bom-<br />

Crioulo), Raul Pompéia (já sob infl uxos impressionistas,<br />

à maneira de Proust, em O Ateneu), e avulta o nome<br />

maior, de expressão não apenas brasileira, mas universal,<br />

reconhecida recentemente pelo cânon literário internacional,<br />

de Machado de Assis. No romance regionalista,<br />

destacam-se Domingos Olímpio (Luzia-Homem), Inglês<br />

de Sousa (O Missionário) e Rodolfo Teófi lo (A Fome).<br />

O Bruxo do Cosme Velho<br />

Nome maior de nossa literatura narrativa nos oitocentos,<br />

Machado de Assis nasceu no Morro do Livra-<br />

mento, fi lho de um pintor mulato e de uma lavadeira<br />

de origem açoriana. Criado pela madrasta, o jovem<br />

recebeu o ensino primário em escola pública, tendo<br />

aprendido francês e latim com a ajuda de um padre amigo,<br />

e mais tarde, como autodidata, construiu uma vasta<br />

cultura literária. Trabalhando como tipógrafo, ingressa<br />

no mundo literário e trava conhecimento com os principais<br />

escritores da época. Dessa época, datam suas comédias<br />

e sua produção lírica com as Crisálidas (1864).<br />

Aos trinta anos, casa-se com a culta Carolina Xavier de<br />

Novais. Consolidada sua carreira burocrática, passa a se<br />

dedicar à produção de seus contos e romances.<br />

No que tange à classifi cação de sua obra pelos autores<br />

mais canônicos, convencionou-se separar a obra<br />

de Machado em dois momentos: um primeiro, em<br />

que o escritor lentamente afasta-se do molde romântico,<br />

penetrando paulatinamente na fi guração realista<br />

– desde sempre, porém, ultrapassada pela fi na ironia<br />

de seus narradores e procedimentos romanescos – e<br />

como que se preparando para o salto de qualidade<br />

que marcará o segundo período. A esta fase pertencem<br />

Contos Fluminenses (1870), Ressurreição (72),<br />

Histórias da Meia-Noite (73), A Mão e a Luva (74),<br />

Helena (76) e Iaiá Garcia (76).<br />

O segundo e mais signifi cativo momento, responsável<br />

pela consagração de Machado de Assis, inicia-se<br />

com a publicação do romance Memórias Póstumas<br />

de Brás Cubas (1881). Nesta obra, o escritor avança<br />

para além do aprofundamento psicológico, ou da utilização<br />

da personagem tipo, ao utilizar uma estrutura<br />

informal, fragmentada, com uso de narrador impertinente<br />

– o próprio protagonista, “tecido de lembranças<br />

casuais, fait divers e cortes digressivos entre banais e<br />

cínicos”, nos dizeres de Alfredo Bosi. A unidade encontra-se,<br />

porém, no retrato da sociedade e na presença<br />

das forças do inconsciente, afastando-se do projeto<br />

de um realismo mais programático. Atingida a maturidade<br />

do fi ccionista, seguem-se Histórias sem data<br />

(84), Quincas Borba (92), Várias Histórias (96), Páginas<br />

Recolhidas (99), Dom Casmurro (1900), Esaú e<br />

Jacó (1904) e Relíquias da Casa Velha (1906).<br />

Em 1896, funda, com outros escritores, a Academia<br />

Brasileira de Letras, da qual foi o primeiro presidente.<br />

Oito anos depois, morre-lhe a esposa, e Machado entrega-se<br />

a uma solidão melancólica que, não obstante,<br />

sela a produção de seu último romance, espécie de<br />

testamento literário, Memorial de Aires (1908).<br />

Tendo legado uma vasta produção em todos os gêneros<br />

literários, mas cujo segmento de maior envergadura<br />

artística encontra-se em seus romances e contos,<br />

Machado de Assis tece com maestria sua crítica<br />

carregada de ironia, sua maior fi gura de linguagem,<br />

27


28<br />

a diversos aspectos da vida brasileira, visivelmente<br />

perceptíveis na pintura que faz de sua aldeia, o Rio<br />

de Janeiro dos tempos da Corte, ou, como se dizia, a<br />

Corte, simplesmente. Neste cenário, em que trafegam<br />

moças à espera de casamento, esposas de conduta duvidosa,<br />

jovens de boa família entregues ao fazer nada<br />

Tinha-me lembrado a defi nição que José Dias dera<br />

deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu<br />

não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e<br />

queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se<br />

fi tar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca<br />

os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura<br />

eram minhas conhecidas. A demora da contemplação<br />

creio que lhe deu outra idéia do meu intento;<br />

imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de<br />

perto, com os meus olhos longos, constantes, enfi ados<br />

neles, e a isto atribuo que entrassem a fi car crescidos,<br />

crescidos e sombrios, com tal expressão que...<br />

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação<br />

exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos<br />

de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem<br />

quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me<br />

fi zeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que<br />

me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que<br />

fl uido misterioso e enérgico, uma força que arrastava<br />

para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos<br />

Esse fragmento de Dom Casmurro, obra mais controversa<br />

de Machado de Assis, focaliza o detalhe<br />

físico mais famoso entre as personagens do autor,<br />

nesta narrativa também de memórias, que, mais do<br />

que desnudar o possível adultério de Capitu, esposa<br />

do narrador-protagonista, dá relevo às repercussões<br />

psíquicas que sofre Bentinho diante do comportamento<br />

enigmático da mulher. Contudo, o romance<br />

não deixa de guardar seu aspecto de narrativa de<br />

costumes, em suas referências aos padrões familiares<br />

do Rio de Janeiro. Em meio a essa conjunção,<br />

sobressaem a melancolia e o pessimismo, encarados<br />

sem passionalidade, mas contaminados pela ironia<br />

fi na tão característica do escritor.<br />

Não se pode deixar de apontar a hábil construção de<br />

vários contos admiráveis, nos quais aparecem a crítica<br />

ao cientifi cismo da época (O Alienista), o poder<br />

dos símbolos materiais na construção da identidade<br />

(O Espelho), o desenho psicológico (Trio em Lá Menor,<br />

Dona Benedita, A Causa Secreta), sugestão de<br />

atmosferas (Missa do Galo, Entre Santos), entre outros<br />

recursos estilísticos e temáticos.<br />

Nos dizeres de Alfredo Bosi (1994: 182-183), a<br />

obra machadiana “constitui, pelo equilíbrio formal<br />

que atingiu, um dos caminhos permanentes da prosa<br />

brasileira na direção da profundidade e da universa-<br />

de sua condição abastada (cujo único ofício constituise<br />

na ocupação de cargos públicos políticos), algumas<br />

mucamas, o escritor destila sua perspicaz observação<br />

das relações humanas, elegendo temas como a loucura,<br />

o interesse fi nanceiro, a banalidade dos costumes<br />

sociais e a morte.<br />

dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me<br />

às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos<br />

cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa<br />

buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha<br />

crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me,<br />

puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos<br />

naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado<br />

esse tempo infi nito e breve. A eternidade tem as suas<br />

pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer<br />

saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de<br />

dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer<br />

a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno<br />

os seus inimigos; assim também a quantidade<br />

das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos<br />

aumentará as dores aos condenados do inferno. Este<br />

outro suplício escapou ao divino Dane; mas eu não<br />

estou aqui para emendar poetas. Estou para contar<br />

que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me<br />

defi nitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com<br />

as mãos, e disse-lhe – para dizer alguma cousa, – que<br />

era capaz de os pentear, se quisesse.<br />

lidade. Mas não deve ser transformada em ídolo; isso<br />

não conviria a um autor que fez da literatura uma<br />

recusa assídua de todos os mitos”.<br />

A Ficção Naturalista de Aluísio Azevedo<br />

Irmão do também famoso Artur Azevedo, comediógrafo<br />

maior da virada do século XIX para o XX,<br />

Aluísio Azevedo nasceu em São Luís do Maranhão,<br />

em 1857. Tendo seguido para o Rio de Janeiro a<br />

convite do irmão, trabalhou como caricaturista em<br />

jornais e humorísticos. Depois de um primeiro romance,<br />

ainda na chave sentimental, Uma Lágrima de<br />

Mulher (1880), o escritor lança aquele que foi considerado<br />

o primeiro romance naturalista brasileiro, O<br />

Mulato (1881), que o faria ser consagrado na Corte,<br />

para onde se mudaria devido à irritação que o livro<br />

provocou entre seus conterrâneos do Maranhão, ao<br />

retratar o racismo presente entre as famílias ricas de<br />

São Luís. Entre 1882 e 1895, consegue viver apenas<br />

de sua ininterrupta produção escrita, que incluía contos,<br />

operetas, revistas teatrais e romances, dos quais<br />

apenas O Mulato, Casa de Pensão (1884) e O Cortiço<br />

(1890) constituem narrativas de maior fôlego literário<br />

e mais afeitas ao desenho naturalista em suas<br />

tramas e temas. O restante de sua lavra romanesca


prende-se ao fi lão bem-sucedido comercialmente,<br />

mas de frágil investidura artística, do melodrama<br />

sentimental, do folhetim.<br />

O Cortiço, romance central na história de nosso<br />

Naturalismo, conta a história de uma habitação coletiva<br />

carioca nos fi nais do século XIX, construída<br />

por João Romão, comerciante português inescru-<br />

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava,<br />

abrindo, não os olhos, mas a sua infi nidade de portas<br />

e janelas alinhadas.<br />

Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma<br />

assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam<br />

ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da<br />

última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se<br />

à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de<br />

saudade perdido em terra alheia.<br />

A roupa lavada, que fi cara de véspera nos coradouros,<br />

umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão<br />

ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no<br />

lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo<br />

anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de<br />

acumulações de espumas secas.<br />

Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas<br />

de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como<br />

o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a<br />

parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente<br />

do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se<br />

de janela para janela as primeiras palavras,<br />

os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à<br />

noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro<br />

das casas vinham choros abafados de crianças que<br />

ainda não andam. No confuso rumor que se formava,<br />

destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam,<br />

sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos,<br />

cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam<br />

mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a<br />

gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos do-<br />

Glossário<br />

puloso, paulatinamente à medida em que explora e<br />

rouba o grupo numeroso de marginais e trabalhadores<br />

que ali vão viver seus dramas, narrados num<br />

grande painel humano que faz com que o enredo<br />

se construa com base em cenas coletivas e tipos<br />

primários como personagens, daí o próprio cortiço<br />

erigir-se como o personagem por excelência de toda<br />

a obra. Leia-se o trecho a seguir.<br />

nos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se<br />

à luz nova do dia.<br />

Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum<br />

crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e<br />

fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente,<br />

debaixo do fi o de água que escorria da altura<br />

de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres<br />

precisavam já prender as saias entre as coxas para<br />

não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços<br />

e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo<br />

todo para o alto do casco; os homens, esses não<br />

se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário,<br />

metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam<br />

com força as ventas e as barbas, fossando e fungando<br />

contra as palmas da mão. As portas das latrinas não<br />

descansavam, era um abrir e fechar de cada instante,<br />

um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam<br />

lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as<br />

saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir,<br />

despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos,<br />

por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.<br />

O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos<br />

os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes<br />

dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo<br />

o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se<br />

discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas<br />

e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se<br />

naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa<br />

de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na<br />

lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir,<br />

a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.<br />

Darwinismo – teoria de Charles Darwin, que propõe a seleção natural das espécies a partir da luta<br />

pela sobrevivência.<br />

Determinismo – teoria pela qual a conduta individual é modelada pelo tipo de sociedade em que<br />

vive.<br />

Digressivo – relativo a digressão, procedimento textual em que se suspende o fi o narrativo ou argumentativo<br />

para divagações de caráter diverso (fi losófi cas, morais, religiosas, políticas etc.)<br />

“Fait-divers”- jargão da imprensa que designa notícias diversas, porém dotadas de toques de bizarrice,<br />

de estranho, prontamente lançadas na banalidade do cotidiano, entretanto.<br />

Laico – leigo, não-religioso; secular, por oposição a eclesiástico.<br />

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30<br />

Liberalismo – doutrina que prega a liberdade política e de consciência, em oposição à autoridade do<br />

Estado ou da Igreja, restringindo ao máximo as atribuições destes; no campo econômico, defende o<br />

trabalho livremente organizado, sem interferência do Estado.<br />

Marxismo – conjunto de idéias, teorias e conceitos elaborados por Karl Marx, a partir da investigação<br />

da base material das sociedades, religiões, impérios etc., enfatizando a questão da luta de classes e<br />

a transformação da sociedade a partir das alterações históricas no sistema produtivo. Tornou-se uma<br />

ampla doutrina que reúne inúmeros pensadores a militantes, nem sempre coincidentes quanto às interpretações<br />

do processo social e das resoluções destinadas à transformação do sistema de produção.<br />

Positivismo – corrente sociológica inaugurada por Auguste Comte (1798-1857), pauta-se sobre a<br />

ciência e a razão como defi nidoras do conhecimento e propiciadoras do desenvolvimento histórico.<br />

Proletariado – classe operária; trabalhadores livres empregados na indústria.<br />

Exercícios de Auto-avaliação<br />

1. Uma distinção entre os projetos realista e naturalista faz-se visível na leitura de autores e obras do fi nal do<br />

século XIX. Quais são os aspectos envolvidos nesta diferença?<br />

2. Aponte as principais características que elevam o texto literário de Machado de Assis para além da cartilha<br />

realista, fazendo de sua obra um momento maior de nossa literatura.<br />

3. Por que é lícito afi rmar que o protagonista do romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo, é a própria habitação<br />

que dá título ao volume?


UNIDADE <strong>II</strong>I<br />

O PARNASIANISMO E O SIMBOLISMO<br />

3.1 - Conceituação<br />

Corrente poética de origem francesa, mais especifi camente<br />

parisiense, devido ao surgimento da revista Parnasse<br />

Contemporain, cujas antologias incluíam poemas<br />

de Gautier, Banville e Leconte de Lisle, o Parnasianismo<br />

caracteriza-se primordialmente pela articulação entre<br />

ideais não-românticos com a objetividade no trato<br />

dos temas e o culto da forma, sobressaindo igualmente<br />

o gosto pela descrição nítida, o retorno da métrica tradicional<br />

(rima, ritmo, metro) e o ideal de impessoalidade.<br />

Estilo de época de grande repercussão em nossas letras<br />

(e também em nossos hábitos culturais e lingüísticos),<br />

foi contemporâneo ao Realismo/Naturalismo, mas também<br />

ao Simbolismo, escola suplantada na vida literária<br />

brasileira do fi m-de-século pela infl uência dos autores<br />

parnasianos, inclusive em esferas políticas.<br />

Se no caso da História da Literatura Brasileira, Parnasianismo<br />

e Simbolismo confi guraram uma animosa<br />

rivalidade, o mesmo não se deu em contexto europeu,<br />

ou pelo menos francês, no qual o segundo sucedeu<br />

ao primeiro sem maiores sobressaltos entre os poetas<br />

pertencentes a ambos os movimentos.<br />

Herdando dos parnasianos a paixão pelo efeito estético,<br />

os poetas do Simbolismo buscaram transcender<br />

seus antecessores na direção daquilo que parecia<br />

ter fi cado para trás no Romantismo: o sentimento de<br />

totalidade, a busca pela vida cósmica, em seus aspectos<br />

religiosos e fi losófi cos. O desconforto com as<br />

soluções racionalistas e cientifi cistas, características<br />

do século XIX, leva o escritor simbolista a sondar o<br />

universo mental anterior à fala, à linguagem, a buscar<br />

o intangível que sustentaria os fenômenos empíricos,<br />

sob o nome de Natureza, Absoluto, Deus ou<br />

Nada. Nesse caminho de investigação metafísica, o<br />

símbolo encerra o valor semântico principal diante<br />

da ambição poética de ascender ao Todo universal<br />

(tradicionalmente vinculado ao discurso e à vivência<br />

religiosa), estabelecendo-se através das sugestões<br />

advindas da poesia de Charles Baudelaire (espécie de<br />

“pai” de toda a poesia moderna), dos boêmios, dos<br />

malditos e das correntes mais antiburguesas e irracionalistas<br />

do Romantismo.<br />

São os primeiros sinais de desilusão diante da promessa<br />

de felicidade que a industrialização oferecera<br />

ao homem ocidental que levam o Simbolismo<br />

à opção pela linguagem da liturgia, da idealização<br />

rarefeita e espiritualizante do conceito de Belo, pelas<br />

sugestões do sonho e da paixão, pelas analogias<br />

sensórias (as Correspondências, de Baudelaire) que<br />

chegam à sinestesia.<br />

3.2 - Parnasianismo e Simbolismo no Brasil<br />

Lançado no Brasil em 1882, com a publicação de Fanfarras,<br />

de Teófi lo Dias, o Parnasianismo estendeu-se,<br />

como norma de linguagem literária e como opção estética,<br />

a despeito das datações do Simbolismo e do Pré-Modernismo<br />

em nossos compêndios escolares, até o advento<br />

da Semana de Arte Moderna, na década de 20, marco da<br />

consolidação do Modernismo. Com a liderança de Olavo<br />

Bilac, eloqüente poeta, o movimento tem em Raimundo<br />

Correia, Alberto de Oliveira e no próprio Bilac sua tríade<br />

máxima de lirismo. Outros nomes importantes do grupo<br />

foram Francisca Júlia e Vicente de Carvalho.<br />

Já o Simbolismo, sem distanciar-se muito do mesmo<br />

quadro histórico e social que engendrara o Realismo e o<br />

Parnasianismo no Brasil, coloca-se de maneira problemática<br />

entre nós, justamente por uma aparente incongruência<br />

entre o contexto e a proposta estética, já que o país encontrava-se<br />

em um momento de intenso engajamento político<br />

por parte de seus literatos, pelo menos em dois processos<br />

que chegariam a uma resolução defi nitiva: a abolição da<br />

escravatura e a mudança de sistema político para a República.<br />

Mesmo Cruz e Sousa, em sua juventude, lançou-se<br />

à produção de textos de preocupação racial.<br />

Assim como os parnasianos, também os simbolistas<br />

ocuparam-se com a oposição ao Império escravocrata.<br />

Logo após, percorrem caminhos distintos: os parnasianos<br />

ocupam-se do culto da forma, enquanto os<br />

simbolistas buscam a religião do verbo. Para estes,<br />

a ênfase recai sobre o sujeito, inserido num projeto<br />

metafísico que ora transfi gura a condição humana<br />

e alcança vôos transcendentais (Cruz e Sousa), ora<br />

opta pela lição de Verlaine e Baudelaire, utilizando<br />

cadências sombrias, lamentosas, litúrgicas e fúnebres<br />

(Alphonsus de Guimaraens). Apesar da novidade,<br />

contudo, o Simbolismo não obteve aqui maiores<br />

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32<br />

desenvolvimentos na vida literária do período, como<br />

acontecera na Europa, entre outros motivos porque a<br />

literatura ofi cial abraçara a cartilha realista e parnasiana<br />

como linguagem e discurso hegemônicos.<br />

Feitas as ressalvas, cabe lembrar a data de 1893<br />

como o início do Simbolismo brasileiro, com a publicação<br />

de Broquéis, de Cruz e Sousa, seguido no mesmo<br />

ano por Missal, igualmente do autor. O curto período<br />

duraria apenas nove anos, quando a publicação<br />

de Canaã, de Graça Aranha, em 1902, daria partida<br />

ao que se convencionou chamar de Pré-Modernismo.<br />

A partir daí, a estética simbolista estaria mesclada a<br />

remanescentes realistas e ao continuum parnasiano.<br />

Além de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, já<br />

citados, destacam-se ainda Emiliano Perneta, Mário<br />

Pederneiras, Eduardo Guimaraens, Pedro Kilkerry.<br />

Olavo Bilac<br />

Carioca, com uma vasta carreira administrativa e<br />

diplomática, Olavo Bilac (1865-1918) foi um dos<br />

fundadores da Academia Brasileira de Letras, ten-<br />

A um Poeta<br />

Longe do estéril turbilhão da rua<br />

Beneditino, escreve! No aconchego<br />

Do claustro, na paciência e no sossego,<br />

Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!<br />

Mas que na forma se disfarce o emprego<br />

Do esforço; e a trama viva se construa<br />

De tal modo, que a imagem fi que nua,<br />

Rica mas sóbria, como um templo grego<br />

Não se mostre na fábrica o suplício<br />

Do mestre. E, natural, o efeito agrade,<br />

Sem lembrar os andaimes do edifício:<br />

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,<br />

Arte Pura, inimiga do artifício,<br />

É a força e a graça na sua simplicidade.<br />

do um papel de relevo em campanhas cívicas (em<br />

prol do serviço militar obrigatório; contra o analfabetismo),<br />

ligando-se também de forma signifi cativa<br />

ao jornalismo e à boemia. Nos últimos anos de<br />

vida, consagrado como poeta e como fi gura pública,<br />

foi honrado com várias missões diplomáticas, e<br />

foi o primeiro a receber a alcunha de “príncipe dos<br />

poetas brasileiros”.<br />

Famoso pelo brilho da frase isolada e pela “chave<br />

de ouro” dos sonetos, partes que encerram toda a<br />

mensagem de um poema, Bilac busca o grande efeito,<br />

construindo uma estrutura intencional, voltada para a<br />

própria louvação da poesia, senão como tema mesmo,<br />

também como processo lírico que torna o texto uma<br />

obra de ourivesaria (procedimento de todo modo parnasiano)<br />

que se desvela como tal. No campo dos temas,<br />

sobressai o amor sensual, exaltado, acompanhado pela<br />

beleza física da mulher, momentos épicos da história<br />

brasileira. Revelou também o poeta uma preocupação<br />

cívica e patriótica, de tendência conservadora, de acordo<br />

com o gosto daqueles resistentes à estética modernista<br />

que já se infi ltrava, embora sufocada.<br />

Ouvir Estrelas<br />

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo<br />

Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,<br />

Que, para ouvi-las muita vez desperto<br />

E abro as janelas, pálido de espanto...<br />

E conversamos toda noite, enquanto<br />

A Via Láctea, como um pálio aberto,<br />

Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,<br />

Inda as procuro pelo céu deserto.<br />

Direis agora: “Tresloucado amigo!<br />

Que conversas com elas? Que sentido<br />

Tem o que dizes, quando não estão contigo?”<br />

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!<br />

Pois só quem ama pode ter ouvido<br />

Capaz de ouvir e de entender estrelas”.<br />

Obras: Poesias (1888), Poesias Infantis (1904), Crítica e Fantasia (1906), Conferências Literárias (1906),<br />

Ironia e Piedade (1916), A Defesa Nacional (1917) e Tarde (1919).<br />

Cruz e Sousa<br />

Nascido em Desterro, atual Florianópolis, em 1861,<br />

fi lho de escravos alforriados, criado, porém, por família<br />

branca que lhe franqueou uma rica instrução, João<br />

da Cruz e Sousa engajou-se na imprensa abolicionista<br />

catarinense, tendo participado também de uma companhia<br />

teatral, com a qual conheceu o país. Em 1890,<br />

passa a morar no Rio de Janeiro, onde colabora na<br />

Folha Popular. Empregado na Estrada de Ferro Central,<br />

casa-se com uma jovem de frágil saúde mental,<br />

com quem tem quatro fi lhos, dois dos quais mortos<br />

antes do pai. Tuberculoso, falece aos 36 anos de idade.<br />

Suas principais obras são Broquéis (1893), Missal<br />

(1893), Evocações (1898), Faróis (1900) e Últimos<br />

Sonetos (1905).


Poeta original e expressivo, Cruz e Sousa renova a linguagem<br />

poética brasileira, marcada, entre outras características,<br />

pela sublimação do conteúdo sexual, o embate<br />

entre matéria e espírito mimetizado através da palavra,<br />

ricamente veiculada em todos os seus recursos. Como<br />

traço simbolista inconfundível, ressoam as camadas<br />

Antífona<br />

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras<br />

De luares, de neves, de neblinas!<br />

Ó Formas vagas, fl uidas, cristalinas...<br />

Incensos dos turíbulos das aras<br />

Formas do Amor, constelarmante puras,<br />

De Virgens e de Santas vaporosas...<br />

Brilhos errantes, mádidas frescuras<br />

E dolências de lírios e de rosas ...<br />

Indefi níveis músicas supremas,<br />

Harmonias da Cor e do Perfume...<br />

Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,<br />

Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...<br />

Visões, salmos e cânticos serenos,<br />

Surdinas de órgãos fl ébeis, soluçantes...<br />

Dormências de volúpicos venenos<br />

Sutis e suaves, mórbidos, radiantes ...<br />

Infi nitos espíritos dispersos,<br />

Inefáveis, edênicos, aéreos,<br />

Fecundai o Mistério destes versos<br />

Com a chama ideal de todos os mistérios.<br />

Do Sonho as mais azuis diafaneidades<br />

Que fuljam, que na Estrofe se levantem<br />

E as emoções, todas as castidades<br />

Da alma do Verso, pelos versos cantem.<br />

Que o pólen de ouro dos mais fi nos astros<br />

Fecunde e infl ame a rima clara e ardente...<br />

Que brilhe a correção dos alabastros<br />

Sonoramente, luminosamente.<br />

Forças originais, essência, graça<br />

De carnes de mulher, delicadezas...<br />

Todo esse efl úvio que por ondas passa<br />

Do Éter nas róseas e áureas correntezas...<br />

Cristais diluídos de clarões alacres,<br />

Desejos, vibrações, ânsias, alentos<br />

Fulvas vitórias, triunfamentos acres,<br />

Os mais estranhos estremecimentos...<br />

sonoras que constituem os poemas de constante fl uxo<br />

sonoro, ultrapassando a rigidez do verso parnasiano, e<br />

compondo novos processos morfológicos, gráfi cos. Um<br />

dos aspectos imagéticos mais importantes em Cruz e<br />

Sousa encontra-se na utilização do branco como índice<br />

do esforço de superação e cristalização do poeta.<br />

Flores negras do tédio e fl ores vagas<br />

De amores vãos, tantálicos, doentios...<br />

Fundas vermelhidões de velhas chagas<br />

Em sangue, abertas, escorrendo em rios...<br />

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,<br />

Nos turbilhões quiméricos do Sonho,<br />

Passe, cantando, ante o perfi l medonho<br />

E o tropel cabalístico da Morte...<br />

Violões que Choram...<br />

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,<br />

soluços ao luar, choros ao vento...<br />

Tristes perfi s, os mais vagos contornos,<br />

bocas murmurejantes de lamento.<br />

Noites de além, remotas, que eu recordo,<br />

noites de solidão, noites remotas<br />

que nos azuis das Fantasias bordo,<br />

vou constelando de visões ignotas.<br />

Sutis palpitações à luz da lua<br />

anseio dos momentos mais saudosos,<br />

quando lá choram na deserta rua<br />

as cordas vivas dos violões chorosos.<br />

Quando os sons dos violões vão soluçando,<br />

quando os sons dos violões nas cordas gemem,<br />

e vão dilacerando e deliciando,<br />

rasgando as almas que nas sombras tremem.<br />

Harmonias que pungem, que laceram,<br />

dedos nervosos e ágeis que percorrem<br />

cordas e um mundo de dolências geram,<br />

gemidos, prantos, que no espaço morrem...<br />

E sons soturnos, suspiradas mágoas,<br />

mágoas amargas e melancolias,<br />

no sussurro monótono das águas,<br />

noturnamente, entre ramagens frias.<br />

Vozes veladas, veludosas vozes,<br />

volúpias dos violões, vozes veladas,<br />

vagam nos velhos vórtices velozes<br />

dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.<br />

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34<br />

Glossário<br />

Analogia – identidade de relação entre seres de natureza diferente. Em literatura, refere-se sobretudo à<br />

fi gura de linguagem desenvolvida por Charles Baudelaire que atribui a signos pertencentes a diferentes<br />

linguagens, características de semelhança semântica, chamadas pelo poeta de “correspondências”.<br />

Metafísica – Ciência do supra-sensível, do que está além do mundo concreto, físico. Em fi losofi a<br />

relaciona-se com o conhecimento advindo da razão pura.<br />

Sinestesia – fi gura de linguagem que enlaça duas ou mais sensações distintas em uma única sentença<br />

(“calor doce”, “ruído acre”, por exemplo).<br />

Exercícios de Auto-avaliação<br />

1. O que pode signifi car dizer que, no Parnasianismo, há uma preocupação da arte pela arte?<br />

2. Estabeleça os recursos que fazem da poesia de Olavo Bilac o ponto máximo de nossa poesia parnasiana.<br />

3. Qual o sentido possível para a presença do “branco” entre as principais imagens da poética de Cruz e Sousa?<br />

4. Disserte sobre a relação histórica no Brasil entre os movimentos parnasiano e simbolista.


UNIDADE IV<br />

O MODERNISMO<br />

4.1 - Conceituação<br />

Iniciado o século XX, os artistas passaram a buscar<br />

uma grande renovação de valores artísticos e culturais,<br />

diante da profunda crise que desencadeou duas<br />

guerras e profundas transformações na vida política e<br />

econômica das sociedades. No período compreendido<br />

entre a Primeira (1914-1918) e a Segunda Guerra<br />

(1939-1945), surgem movimentos artísticos denominados<br />

vanguarda, cujas principais obras seriam: o<br />

Futurismo (1909), marcado pelo entusiasmo com a<br />

modernidade, o amor à máquina, à velocidade dos novos<br />

tempos, a destruição do antigo em prol do novo;<br />

o Expressionismo (1910), responsável pela fi guração<br />

deformada dos aspectos angustiantes e sombrio do sujeito,<br />

desafi ado em suas instâncias psíquicas pelo peso<br />

da infelicidade no mundo burguês; o Cubismo (1939),<br />

que legou os processos de fragmentação e decomposição<br />

da palavra e da imagem; o Dadaísmo (1916),<br />

expressão máxima de iconoclastia e destruição da aura<br />

sagrada em torno do objeto artístico e da literatura;<br />

4.2 - O Pré-Modernismo<br />

Estabelecida a República Velha, marcada pela chamada<br />

política “café com leite”, baseada na soma entre<br />

a lavoura cafeeira de São Paulo com a pecuária<br />

leiteira de Minas Gerais, centro de onde emanavam<br />

as decisões sobre os destinos do país, no campo cultural,<br />

nossa literatura, não obstante a existência de<br />

autores e obras relevantes, não foi capaz de construir<br />

naquele momento um grupo coeso em torno de<br />

uma proposta artística mais abrangente, em termos<br />

de ambição nacional.<br />

Feita a ressalva, pode-se dizer que, nas primeiras décadas<br />

do século XX, as obras a que se pode chamar de<br />

“pré-modernistas” problematizam a nossa realidade<br />

social e cultural, se pensarmos na fi cção de Lima Barreto,<br />

Graça Aranha e Monteiro Lobato, na experiência<br />

de Euclides da Cunha, em Os Sertões. Para alguns autores,<br />

podemos inserir nesta série a poesia perturbadora<br />

de Augusto dos Anjos, dado o nível de perturbação<br />

e o Surrealismo (1924), caracterizado pela utilização<br />

da linguagem do inconsciente, do sonho e do devaneio<br />

na composição das formas artísticas. Vistas em<br />

conjunto, as vanguardas intensifi caram ao extremo os<br />

processos renovadores que se colocavam desde pelo<br />

menos o Romantismo e atravessaram todo o século<br />

XIX, legando a valorização da linguagem como tema<br />

e objeto da arte, a busca pela penetração no inconsciente<br />

e a inquietude dos artistas diante de caminhos<br />

já percorridos.<br />

Posteriormente às vanguardas, os escritores continuarão<br />

abrindo, sem tanta violência na atitude, mas<br />

mantendo a consciência crítica e o gosto pela pesquisa,<br />

caminhos de inovação na linguagem e nas temáticas.<br />

No caso particular da Literatura Brasileira,<br />

contudo, foi necessário um momento de preparação<br />

para o salto no Modernismo propriamente dito, com<br />

o advento da Semana de Arte Moderna, em 1922. A<br />

que ela provoca na dicção simbolista, estética em que,<br />

para muitos, se enquadra a obra do poeta.<br />

Augusto dos Anjos<br />

Paraibano, homem culto e lido, Augusto dos Anjos<br />

(1884-1914) formou-se em Direito em Recife, passando<br />

a lecionar em João Pessoa, dali transferindo-se<br />

para o Rio de Janeiro e posteriormente para Leopoldina<br />

(Minas Gerais).<br />

Poeta de um livro só, Eu (1912), experimenta até<br />

hoje grande popularidade devido à extraordinária originalidade<br />

de seus versos, cuja linguagem esdrúxula,<br />

pessimista cria um texto poderoso, que não se furta a<br />

ultrapassar os limites do “mau gosto”, utilizando um<br />

vocabulário cientifi cista através do qual se exprime a<br />

dimensão cósmica e a angústia moral.<br />

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36<br />

Psicologia de um Vencido<br />

Eu, fi lho do carbono e do amoníaco,<br />

Monstro de escuridão e rutilância,<br />

Sofro, desde a epigênesis da infância,<br />

A infl uência má dos signos do zodíaco.<br />

Profundissimamente hipocondríaco,<br />

Este ambiente me causa repugnância...<br />

Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia<br />

Que se escapa da boca de um cardíaco.<br />

Já o verme – este operário das ruínas –<br />

Que o sangue podre das carnifi cinas<br />

Come, e à vida em geral declara guerra,<br />

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,<br />

E há de deixar-me apenas os cabelos,<br />

Na frialdade inorgânica da terra!<br />

Lima Barreto e o Romance Social<br />

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) possui<br />

uma biografi a formada por passagens em cargos<br />

burocráticos ao mesmo tempo em que inicia uma carreira<br />

jornalística e de romancista. Perseguido pelo alcoolismo<br />

e por crises de loucura, e autor que se afasta do<br />

cânone literário de sua época, Lima Barreto não é aceito<br />

na Academia Brasileira de Letras. Acostumado com o<br />

melhor da literatura européia do século anterior, Barreto<br />

foi dos poucos a conhecer os romancistas russos, que<br />

lhe denunciavam os preconceitos de que ele mesmo era<br />

vítima. Vindo da classe média suburbana, contraditoriamente<br />

à novidade de suas leituras e infl uências, deixava<br />

trair um conservadorismo diante de alguns implementos<br />

da modernidade e dos novos costumes.<br />

Os romances de Lima Barreto, Recordações do Escrivão<br />

Isaías Caminha (1909), Triste Fim de Policarpo<br />

Quaresma (1911, folhetim; 1915, livro), Numa e<br />

Não se sabia bem onde nascera, mas não fora decerto<br />

em São Paulo, nem no Rio Grande do Sul, nem no Pará.<br />

Errava quem quisesse encontrar nele qualquer regionalismo;<br />

Quaresma era antes de tudo brasileiro. Não tinha<br />

predileção por esta ou aquela parte de seu país, tanto<br />

assim que aquilo que o fazia vibrar de paixão não eram<br />

só os pampas do Sul com o seu gado, não era o café de<br />

São Paulo, não eram o ouro e os diamantes de Minas,<br />

não era a beleza da Guanabara, não era a altura da<br />

Paulo Afonso, não era o estro de Gonçalves Dias ou o<br />

ímpeto de Andrade Neves – era tudo isso junto, fundido,<br />

reunido, sob a bandeira estrelada do Cruzeiro.<br />

Logo aos dezoito anos quis fazer-se militar; mas a<br />

junta de saúde julgou-o incapaz. Desgostou-se, sofreu,<br />

Versos Íntimos<br />

Vês! Ninguém assistiu ao formidável<br />

Enterro de tua última quimera.<br />

Somente a Ingratidão – esta pantera –<br />

Foi tua companheira inseparável!<br />

Acostuma-te à lama que te espera!<br />

O Homem, que, nesta terra miserável,<br />

Mora, entre feras, sente inevitável<br />

Necessidade de também ser fera.<br />

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!<br />

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,<br />

A mão que afaga é a mesma que apedreja.<br />

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,<br />

Apedreja essa mão vil que te afaga,<br />

Escarra nessa boca que te beija!<br />

Ninfa (1915), Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá<br />

(1919), Clara dos Anjos (1923-24), Bagatelas (1923),<br />

Os Bruzundangas (1923), apresentam em primeiro<br />

plano uma visão de crônica dos costumes cariocas<br />

(metonímia aqui de brasileiros, devido à centralidade<br />

cultural da capital da República). Somam-se a esse<br />

registro uma duplicidade entre os planos narrativo e<br />

crítico, desdobrada com uma aguda inteligência; um<br />

ponto de vista afetivo e polêmico do narrador, o que<br />

faz com que o estilo resulte realista e intencional a um<br />

só tempo. Sua obra de melhor acabamento consiste<br />

no Triste Fim de Policarpo Quaresma, romance que<br />

conta a trajetória do ingênuo major ufanista, de exacerbado<br />

nacionalismo livresco, que inventa propostas<br />

para melhorar o Brasil, mas através de uma perspectiva<br />

quixotesca, seu maior traço constitutivo. No entanto,<br />

o traço humorístico da personagem é invadido por<br />

tintas melancólicas revelando a dupla face da melhor<br />

criação barretiana. Segue abaixo um fragmento de<br />

apresentação do protagonista.<br />

mas não maldisse a Pátria. O ministério era liberal,<br />

ele se fez conservador e continuou mais do que nunca<br />

a amar a “terra que o viu nascer”. Impossibilitado<br />

de evoluir-se sob os dourados do exército, procurou a<br />

administração e dos seus ramos escolheu o militar.<br />

Era onde estava bem. No meio de soldados, de canhões,<br />

de veteranos, de papelada inçada de quilos de pólvora,<br />

de nomes de fuzis e termos técnicos de artilharia, aspirava<br />

diariamente aquele hálito de guerra, de bravura, de<br />

vitória, de triunfo, que é bem o hálito da Pátria.<br />

Durante os lazeres burocráticos, estudou, mas estudou<br />

a Pátria, nas suas riquezas naturais, na sua<br />

história, na sua geografi a, na sua literatura e na sua


política. Quaresma sabia as espécies de minerais,<br />

vegetais e animais que o Brasil continha; sabia o<br />

valor do ouro, dos diamantes exportados por Minas,<br />

as guerras holandesas, as batalhas do Paraguai, as<br />

nascentes e o curso de todos os rios. Defendia com<br />

azedume e paixão a proeminência do Amazonas sobre<br />

todos os demais rios do mundo. Para isso ia até<br />

ao crime de amputar alguns quilômetros ao Nilo e<br />

era com este rival do “seu” rio que ele mais implicava.<br />

Ai de quem o citasse na sua frente! Em geral,<br />

calmo e delicado, o major fi cava agitado e malcriado,<br />

quando se discutia a extensão do Amazonas em<br />

face da do Nilo.<br />

Havia um ano a esta parte que se dedicava ao tupiguarani.<br />

Todas as manhãs, antes que a “Aurora, com<br />

seus dedos rosados abrisse caminho ao louro Febo”,<br />

ele se atracava até ao almoço com o Montoya, Arte<br />

y diccionario de la lengua guaraní ó más bien tupí, e<br />

estudava o jargão caboclo com afi nco e paixão. Na<br />

repartição, os pequenos empregados, amanuenses e<br />

escreventes, tendo notícia desse seu estudo do idioma<br />

tupiniquim, deram não se sabe por que em chamá-lo<br />

– Ubirajara. Certa vez, o escrevente Azevedo, ao assinar<br />

o ponto, distraído, sem reparar quem lhe estava às<br />

costas, disse em tom chocarreiro: “Você já viu que hoje<br />

o Ubirajara está tardando?”<br />

Além de Lima Barreto, não se pode deixar de destacar<br />

a importância de Graça Aranha, com seu Canaã<br />

(1902), inaugurador do período pré-modernista,<br />

romance que conta a saga dos imigrantes alemães no<br />

sul do Espírito Santo; Euclides da Cunha, autor de Os<br />

Sertões (1902), obra que escapa das intenções científi<br />

cas e jornalísticas de seu autor e vai se constituir<br />

em narrativa defi nitiva a respeito do confl ito estabelecido<br />

em Canudos, entre os seguidores messiânicos<br />

de Antônio Conselheiro e o Exército, registrando com<br />

erudição as condições do sertão, a natureza dos homens<br />

ali presentes e os combates travados. Cabe ainda<br />

apontar a grande fi gura de Monteiro Lobato, que, para<br />

4.3 - O Modernismo Brasileiro<br />

A Semana de Arte Moderna e a Primeira<br />

Geração Modernista<br />

Se a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo,<br />

tornou-se o marco da implantação irreversível do<br />

modernismo no Brasil, deve-se, contudo, recordar, ainda<br />

que de maneira breve, os antecedentes do evento:<br />

a viagem de Oswald de Andrade à Europa, em 1912,<br />

de onde o escritor traria o Manifesto Futurista; os artigos<br />

de Monteiro Lobato denunciando o fi m do sentimentalismo<br />

e do idealismo na prosa regionalista, em<br />

Quaresma era considerado no arsenal: a sua idade, a<br />

sua ilustração, a modéstia e honestidade de seu viver impunham-no<br />

ao respeito de todos. Sentindo que a alcunha<br />

lhe era dirigida, não perdeu a dignidade, não prorrompeu<br />

em doestos e insultos. Endireitou-se, concertou o pince-nez,<br />

levantou o dedo indicador no ar e respondeu:<br />

– Senhor Azevedo, não seja leviano. Não queira levar<br />

ao ridículo aqueles que trabalham em silêncio,<br />

para a grandeza e a emancipação da Pátria.<br />

Nesse dia, o major pouco conversou. Era costume<br />

seu, assim pela hora do café, quando os empregados<br />

deixavam as bancas, transmitir aos companheiros o<br />

fruto de seus estudos, as descobertas que fazia, no<br />

seu gabinete de trabalho, de riquezas nacionais. Um<br />

dia era o petróleo que lera em qualquer parte, como<br />

sendo encontrado na Bahia; outra vez, era um novo<br />

exemplar de árvore de borracha que crescia no rio<br />

Pardo, em Mato Grosso; outra, era um sábio, uma<br />

notabilidade, cuja bisavó era brasileira; e quando<br />

não tinha descoberta a trazer, entrava pela corografi<br />

a, contava o curso dos rios, a sua extensão navegável,<br />

os melhoramentos insignifi cantes de que careciam<br />

para se prestarem a um franco percurso da<br />

foz às nascentes. Ele amava sobremodo os rios; as<br />

montanhas lhe eram indiferentes, Pequenas talvez...<br />

além de sua inovadora obra, representada pelos contos<br />

de Urupês (1918) e Cidades Mortas (1919), pela série<br />

infantil de O sítio do pica-pau amarelo, e de vários<br />

textos jornalísticos e ensaísticos a respeito do Brasil,<br />

foi fi gura fundamental no processo de instalação do<br />

pensamento moderno entre nós, ainda que de maneira<br />

ambígua, como na oposição que fará à estética expressionista<br />

da pintura de Anita Malfati, em 1917.<br />

Outros nomes a se lembrar neste período são João<br />

Ribeiro, João do Rio, Coelho Neto, Rui Barbosa,<br />

sem o peso artístico, porém alcançado pelos citados<br />

no parágrafo anterior.<br />

1915; a polêmica deste último quando da exposição de<br />

Anita Malfati, que atacaria através do artigo “Paranóia<br />

ou Mistifi cação?”, traindo um despreparo e uma visão<br />

conservadora diante da proposta vanguardista da pintora,<br />

em 1917 – ano também marcado pela aproximação<br />

efetiva entre Mário de Andrade e Oswald de Andrade;<br />

O “Manifesto do Trianon” e a batalha travada pela<br />

imprensa entre modernistas e conservadores em 1921.<br />

Estes e outros acontecimentos contribuíram para a<br />

criação de uma rede coesa de escritores, poetas e artistas<br />

que formaram o grupo principal de participantes da<br />

Semana, e nomes mais importantes do Modernismo.<br />

37


38<br />

Apoiada por componentes da oligarquia cafeeira<br />

(Paulo Prado), do empresariado e do governo do estado,<br />

a Semana de Arte Moderna teve lugar no Teatro<br />

Municipal de São Paulo nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro<br />

de 1922. Em auxílio ao grupo paulista, contribuíram,<br />

do Rio de Janeiro, Ribeiro Couto, Manuel<br />

Bandeira, Villa-Lobos, Ronald de Carvalho, Sérgio<br />

Buarque de Holanda, fortalecendo o evento e o movimento.<br />

Se o recital começou pacífi co, a partir do<br />

segundo dia estabeleceu-se um verdadeiro campo de<br />

batalha, quando Menotti del Picchia discursou contra<br />

o parnasianismo, contra o passadismo, Mário de Andrade<br />

declamou versos da Paulicéia desvairada diante<br />

vaia ensurdecedora. O público se dividiu, e as vaias,<br />

na verdade, agradavam as intenções dos artistas. Entre<br />

tantos comportamentos inusitados, destaquemos<br />

como exemplo a aparição de Villa-Lobos, vestido de<br />

casaca, mas calçando chinelos, por motivos de saúde,<br />

fato que foi recebido como mais um ataque “futurista”<br />

pela platéia. Ou também, o coro feito pela platéia<br />

à leitura do poema Os Sapos, de Manuel Bandeira.<br />

Com o escândalo e as vaias, foram atingidas as metas<br />

dos “futuristas” ou “avanguardistas”, como eram chamados<br />

os participantes na ocasião.<br />

Desta primeira geração que, segundo opinião corrente<br />

entre a crítica acadêmica mais canônica, negligenciou<br />

aspectos político-ideológicos, em vantagem<br />

da pesquisa estética e da ousadia de atitude diante da<br />

força reacionária da linguagem ofi cial, sobressaem,<br />

no campo literário, os nomes de Manuel Bandeira,<br />

Mário de Andrade e Oswald de Andrade.<br />

Pneumotórax<br />

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.<br />

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.<br />

Tosse, tosse, tosse.<br />

Mandou chamar o médico:<br />

— Diga trinta e três.<br />

— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .<br />

— Respire.<br />

........................................................................<br />

O Poeta da Humildade<br />

Manuel Bandeira (1886-1968) nasceu em Recife,<br />

tendo se mudado ainda adolescente para o Rio de Janeiro,<br />

para concluir os estudos. Cursando Engenharia<br />

em São Paulo, abandonou o curso devido à tuberculose<br />

(que lhe acompanharia por toda a vida), indo para a<br />

Suíça em tratamento. Uma vez na Europa, travou conhecimento<br />

com a poesia simbolista e pós-simbolista<br />

francesa. Com o início da Primeira Guerra, retorna ao<br />

Brasil e lança seu primeiro livro de poesias, A Cinza<br />

das Horas (1917), ainda de inspiração simbolista. Segue-se<br />

Carnaval (1919), Poesias (incluído aí o Ritmo<br />

Dissoluto – 1924), Libertinagem (1930), já no contexto<br />

modernista, Estrela da Manhã (1936), Mafuá<br />

do Malungo (1948), Opus 10 (1952); Estrela da Tarde<br />

(1958) e Estrela da Vida Inteira (1966). Escreveu<br />

ainda prosa e realizou traduções.<br />

Dono de vasta cultura literária e erudita, Bandeira<br />

percorre uma longa trajetória desde os primeiros livros,<br />

em que já aparece o traço intimista de seu verso confi<br />

dencial a auto-irônico, passando pela assimilação de<br />

elementos sonoros e temáticos da vida cotidiana, assim<br />

como da musicalidade popular e folclórica, e da liberdade<br />

do verso livre, de que se faz grande utilizador; até<br />

uma madura fase, requintada, em que decanta todo seu<br />

saber poético. Quanto aos temas, sobressaem o erotismo<br />

brejeiro, a aparição dos fantasmas familiares, a ironia<br />

diante da doença e da morte, a presença de imagens<br />

brasileiras de forte ressonância popular, condensadas<br />

nas presenças do beco, da rua, da feira, entre outras.<br />

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infi ltrado.<br />

— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?<br />

— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.<br />

Poética<br />

Estou farto do lirismo comedido<br />

Do lirismo bem comportado<br />

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente<br />

[protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.<br />

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo<br />

[de um vocábulo.


Abaixo os puristas<br />

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais<br />

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção<br />

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis<br />

Estou farto do lirismo namorador<br />

Político<br />

Raquítico<br />

Sifi lítico<br />

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.<br />

De resto não é lirismo<br />

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem<br />

[modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.<br />

Quero antes o lirismo dos loucos<br />

O lirismo dos bêbedos<br />

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos<br />

O lirismo dos clowns de Shakespeare<br />

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.<br />

Vou-me embora pra Pasárgada<br />

Vou-me embora pra Pasárgada<br />

Lá sou amigo do rei<br />

Lá tenho a mulher que eu quero<br />

Na cama que escolherei<br />

Vou-me embora pra Pasárgada<br />

Vou-me embora pra Pasárgada<br />

Aqui eu não sou feliz<br />

Lá a existência é uma aventura<br />

De tal modo inconseqüente<br />

Que Joana a Louca de Espanha<br />

Rainha e falsa demente<br />

Vem a ser contraparente<br />

Da nora que eu nunca tive<br />

E como farei ginástica<br />

Andarei de bicicleta<br />

Montarei em burro brabo<br />

Subirei no pau-de-sebo<br />

Tomarei banhos de mar!<br />

E quando estiver cansado<br />

Deito na beira do rio<br />

Poema tirado de uma notícia de jornal<br />

Mando chamar a mãe-d’água<br />

Pra me contar as histórias<br />

Que no tempo de eu menino<br />

Rosa vinha me contar<br />

Vou-me embora pra Pasárgada<br />

Em Pasárgada tem tudo<br />

É outra civilização<br />

Tem um processo seguro<br />

De impedir a concepção<br />

Tem telefone automático<br />

Tem alcalóide à vontade<br />

Tem prostitutas bonitas<br />

Para a gente namorar<br />

E quando eu estiver mais triste<br />

Mas triste de não ter jeito<br />

Quando de noite me der<br />

Vontade de me matar<br />

— Lá sou amigo do rei —<br />

Terei a mulher que eu quero<br />

Na cama que escolherei<br />

Vou-me embora pra Pasárgada<br />

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número<br />

Uma noite ele chegou no Bar Vinte de Novembro<br />

Bebeu<br />

Cantou<br />

Dançou<br />

Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.<br />

39


40<br />

Mário de Andrade<br />

Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945) nasceu<br />

em São Paulo, onde viveria, na juventude, do magistério<br />

particular, ensinando Música. Em 1917, alinhase<br />

com os principais nomes do Modernismo, tendo<br />

sido um dos líderes da Semana de 22, e colaborado<br />

com as revistas Klaxon, Estética, Terra Roxa e Outras<br />

Terras. Profundo conhecedor de música, artes<br />

plásticas e folclore brasileiro, foi autor profícuo de<br />

várias obras entre lírica, romances, contos, ensaios<br />

e compêndios acadêmicos. Ocupou importante cargo<br />

público à frente do Departamento de Cultura da<br />

Prefeitura de São Paulo, entre 1934 e 37. Trabalhou<br />

ainda na <strong>Universidade</strong> do Distrito Federal (Rio de Janeiro)<br />

e no Patrimônio Histórico.<br />

Sua obra move-se entre necessidades de um registro<br />

emocional da biografi a e a paixão pelo objeto estético,<br />

seja ele um poema, um conto ou uma narrativa maior.<br />

Eu Sou Trezentos...<br />

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,<br />

As sensações renascem de si mesmas sem repouso,<br />

Ôh espelhos, ôh! Pirineus!<br />

Ôh caiçaras!<br />

Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!<br />

Abraço no meu leito as milhores palavras,<br />

E os suspiros que dou são violinos alheios;<br />

Eu piso a terra como quem descobre a furto<br />

Nas esquinas, nos táxis,<br />

nas camarinhas seus próprios beijos!<br />

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,<br />

Mas um dia afi nal toparei comigo...<br />

Tenhamos paciência, andorinhas curtas,<br />

Só o esquecimento é que condensa,<br />

E então minha alma servirá de abrigo.<br />

Ode ao Burguês<br />

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel<br />

O burguês-burguês!<br />

A digestão bem-feita de São Paulo!<br />

O homem-curva! O homem-nádegas!<br />

O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,<br />

é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!<br />

Eu insulto as aristocracias cautelosas!<br />

Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques<br />

zurros!<br />

Que vivem dentro de muros sem pulos,<br />

e gemem sangue de alguns mil-réis fracos<br />

para dizerem que as fi lhas da senhora falam o [francês<br />

e tocam os “Printemps” com as unhas!<br />

Rompendo os limites da literatura acadêmica, sua<br />

poética constrói uma deformação abstrata, que<br />

fragmenta o sujeito e a paisagem, de certa afi nação<br />

com alguns parâmetros do futurismo e do cubismo,<br />

dos quais, todavia, não se faz refém. Sua mais<br />

eloqüente criação narrativa encontra-se na rapsódia<br />

de Macunaíma, um dos textos-chave para a investigação<br />

fi ccional da identidade brasileira, colagem<br />

algo surrealista de lendas folclóricas mescladas à<br />

paródia, ao humor grotesco, cômico, na história do<br />

herói “sem nenhum caráter”. Entre seus principais<br />

títulos, podemos encontrar Há uma gota de sangue<br />

em cada poema (poesia, 1917), Paulicéia Desvairada<br />

(poesia, 1922), A Escrava que não é Isaura<br />

(ensaio poético, 1925), Amar, verbo intransitivo<br />

(romance, 1927), Clã do Jabuti (poesia, 27), Macunaíma,<br />

o herói sem nenhum caráter (rapsódia,<br />

28), Remate de Males (poesia, 30), O Movimento<br />

Modernista (42), Aspectos da Literatura Brasileira<br />

(43) e Contos Novos (47).<br />

Eu insulto o burguês-funesto!<br />

O indigesto feijão com toucinho, dono das [tradições!<br />

Fora os que algarismam os amanhãs!<br />

Olha a vida dos nossos setembros!<br />

Fará Sol? Choverá? Arlequinal!<br />

Mas à chuva dos rosais<br />

o êxtase fará sempre Sol!<br />

Morte à gordura!<br />

Morte às adiposidades cerebrais!<br />

Morte ao burguês-mensal!<br />

Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!<br />

Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!<br />

“— Ai, fi lha, que te darei pelos teus anos?<br />

— Um colar... — Conto e quinhentos!!!<br />

Más nós morremos de fome!”<br />

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!<br />

Oh! purée de batatas morais!<br />

Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!<br />

Ódio aos temperamentos regulares!<br />

Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!<br />

Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados<br />

Ódio aos sem desfalecimentos nem [arrependimentos,<br />

sempiternamente as mesmices convencionais!<br />

De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!<br />

Dois a dois! Primeira posição! Marcha!<br />

Todos para a Central do meu rancor inebriante!<br />

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!<br />

Morte ao burguês de giolhos,<br />

cheirando religião e que não crê em Deus!<br />

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!<br />

Ódio fundamento, sem perdão!<br />

Fora! Fu! Fora o bom burguês!...


Macunaíma (fragmento)<br />

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e fi lho do medo da<br />

noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia<br />

tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.<br />

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam<br />

a falar exclamava:<br />

- Ai que preguiça!...<br />

e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros<br />

e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força do homem. O divertimento<br />

dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava<br />

pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava<br />

o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaiamuns diz-que<br />

habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguns cunhatãs se aproximavam dele pra fazer festinha, Macunaíma<br />

punha a mão nas graças dela, cunhatã se afstava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os<br />

velhos e freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças<br />

religiosas da tribo.<br />

Oswald de Andrade<br />

Filho de tradicional família abastada de São Paulo,<br />

José Oswald de Sousa Andrade, ou simplesmente,<br />

Oswald de Andrade (1890-1945) entrou em contato,<br />

ainda jovem, com a vanguarda européia dos anos 10,<br />

durante viagem que fez ao velho continente. Como<br />

um dos líderes do movimento modernista, defendeu<br />

Anita Malfati durante a polêmica com Lobato. Na década<br />

de 20, lançou os manifestos literários Pau-Brasil<br />

(1924) e Antropofágico (28). Após outras viagens à<br />

Europa, e com a queda da Bolsa de Nova York, atravessa<br />

crise fi nanceira. Em 31, adere ao Comunismo,<br />

afastando-se mais tarde da militância política, em<br />

1945, dedicando-se a partir daí à vida acadêmica.<br />

3 de Maio<br />

Aprendi com meu fi lho de dez anos<br />

Que a poesia é a descoberta<br />

Das coisas que eu nunca vi.<br />

Fim e Começo<br />

A noite caiu sem licença da Câmara<br />

Se a noite não caísse<br />

Que seriam dos lampiões?<br />

OFERTA<br />

Quem sabe<br />

Se algum dia<br />

Traria<br />

O elevador<br />

Até aqui<br />

O teu amor<br />

O principal traço da obra de Oswald de Andrade encontra-se<br />

no processo por ele mesmo denominado de “antropofágico”,<br />

no sentido de buscar adaptar as informações<br />

vanguardistas, de origem externa, aos elementos constitutivos<br />

da cultura brasileira. Tendo se exercitado em poesia,<br />

teatro e romance, o escritor inovou pela revolução<br />

formal, em que desorganiza padrões sintáticos da língua,<br />

mistura a cena brechtiana com a linguagem da chanchada,<br />

fragmenta a narrativa através de cortes e saltos, do simultaneísmo,<br />

entre outros recursos estilísticos. Entre seus<br />

principais textos, encontram-se Memórias Sentimentais<br />

de João Miramar (romance, 1924), Pau-Brasil (poesia,<br />

25), Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de<br />

Andrade (27), Manifesto Antropófago (28), Serafi m Ponte<br />

Grande (romance, 33) e O Rei da Vela (37).<br />

ESCAPULÁRIO<br />

No Pão de Açúcar<br />

De Cada Dia<br />

Dai-nos Senhor<br />

A Poesia<br />

De Cada Dia<br />

PRONOMINAIS<br />

Dê-me um cigarro<br />

Diz a gramática<br />

Do professor e do aluno<br />

E do mulato sabido<br />

Mas o bom negro e o bom branco<br />

Da Nação Brasileira<br />

Dizem todos os dias<br />

Deixa disso camarada<br />

Me dá um cigarro<br />

41


42<br />

Outros nomes importantes do primeiro momento do<br />

Modernismo brasileiro são Cassiano Ricardo, Plínio<br />

Salgado, Raul Bopp, aliados numa outra vertente do<br />

movimento, mais nacionalista, reunida no Verdeamarelismo<br />

(1926) e no grupo da Bandeira (1928).<br />

A Geração de 30<br />

Passada a euforia dos anos 20, fi nalizados com o traumático<br />

crack da Bolsa, que teria conseqüências irreversíveis<br />

também na economia brasileira, a década de<br />

30 inicia-se com a Revolução de 1930, que acabaria<br />

com a política café-com-leite e levaria Getúlio Vargas<br />

ao poder, de onde só sairia em 1945. O campo interno<br />

refl etia igualmente os acontecimentos internacionais:<br />

o avanço das extremas-direitas, culminando no fascismo<br />

e no nazismo, em contraste com o fortalecimento<br />

das esquerdas, oprimidas nos países que optaram pela<br />

continuidade capitalista, no auge de sua fase industrial;<br />

o contínuo processo de infl uência dos EUA no quadro<br />

mundial; o acirramento da luta de classes, situadas<br />

em contexto urbano; o desenvolvimento da cultura de<br />

massas, através do cinema e do rádio.<br />

Diante desta nova situação, um grupo de escritores<br />

viria oferecer outros caminhos para a literatura<br />

nacional, porém, sem trair os avanços conquistados<br />

pela geração de 22, avanços que foram assimilados<br />

em nova perspectiva, no campo da poesia, acentuando<br />

o tom subjetivo, destinado a um enfoque existencial-espiritualista<br />

em confronto com o tempo, a<br />

memória, o nada, o lugar do indivíduo em meio ao<br />

coletivo. Quanto ao romance, gênero que então ganharia<br />

um enorme respaldo popular, alimentando defi<br />

nitivamente a indústria editorial devido ao sucesso<br />

de vendas, operou um retorno ao realismo regionalista,<br />

desta vez não mais preso aos modelos biossociológicos<br />

do naturalismo oitocentista, mas preocupado<br />

No meio do caminho<br />

No meio do caminho tinha uma pedra<br />

tinha uma pedra no meio do caminho<br />

tinha uma pedra<br />

no meio do caminho tinha uma pedra.<br />

Nunca me esquecerei desse acontecimento<br />

na vida de minhas retinas tão fatigadas.<br />

Nunca me esquecerei que no meio do caminho<br />

tinha uma pedra<br />

tinha uma pedra no meio do caminho<br />

no meio do caminho tinha uma pedra<br />

com os aspectos políticos e humanos inerentes à fi -<br />

guração dos problemas sociais que o país fornecia<br />

como tema à narrativa fi ccional.<br />

Entre os poetas, destacaram-se os mineiros Carlos<br />

Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de<br />

Lima, Augusto Frederico Schmidt, Cecília Meirelles,<br />

além de Vinícius de Morais. Do time de romancistas<br />

sobressaem Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge<br />

Amado, Raquel de Queirós, José Américo de Almeida,<br />

Érico Veríssimo, Marques Rebelo; num viés mais<br />

intimista, embora vinculado de todo modo a questões<br />

regionais, Lúcio Cardoso, Otávio de Faria, José Geraldo<br />

Vieira, Cyro dos Anjos e Cornélio Pena.<br />

Carlos Drummond de Andrade<br />

Descendente de mineradores, Drummond (1902-<br />

1987) passou a infância numa fazenda de Itabira.<br />

Após participar do Modernismo mineiro na década<br />

de 20, mudou-se para o Rio em 1934, onde iniciou<br />

uma longa carreira burocrática aliada a contribuição<br />

ininterrupta com o jornalismo cultural.<br />

A poesia de Carlos Drummond de Andrade atravessou<br />

várias fases, das quais ressaltamos um início de<br />

dicção personalista, memorial, atravessado pelo humor<br />

irônico, passando pelo “sentimento do mundo”,<br />

composto pelo tédio existencial, que se transformaria<br />

mais tarde na preocupação política, explícita em<br />

Rosa do Povo (1945), até o desencanto ideológico<br />

após Claro Enigma (51). Obra de múltiplas direções,<br />

a poesia de Drummond constitui um dos momentos<br />

máximos da lírica brasileira no século XX. Entre seus<br />

principais trabalhos podemos citar: Alguma poesia<br />

(1930), Brejo das Almas (34), Sentimento do Mundo<br />

(40), Viola de Bolso (52), Fazendeiro de Ar & Poesia<br />

Até Agora (53) e Boitempo (58).


Poema de sete faces<br />

Quando nasci, um anjo torto<br />

desses que vivem na sombra<br />

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.<br />

As casas espiam os homens<br />

que correm atrás de mulheres.<br />

A tarde talvez fosse azul,<br />

não houvesse tantos desejos.<br />

O bonde passa cheio de pernas:<br />

pernas brancas pretas amarelas.<br />

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu<br />

coração.<br />

Porém meus olhos<br />

não perguntam nada.<br />

Quadrilha<br />

João amava Teresa que amava Raimundo<br />

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili<br />

que não amava ninguém.<br />

João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,<br />

Raimundo morreu de desastre, Maria fi cou para tia,<br />

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes<br />

que não tinha entrado na história.<br />

José<br />

E agora, José?<br />

A festa acabou,<br />

a luz apagou,<br />

o povo sumiu,<br />

a noite esfriou,<br />

e agora, José?<br />

e agora, você?<br />

você que é sem nome,<br />

que zomba dos outros,<br />

você que faz versos,<br />

que ama, protesta?<br />

e agora, José?<br />

Está sem mulher,<br />

está sem discurso,<br />

está sem carinho,<br />

já não pode beber,<br />

já não pode fumar,<br />

cuspir já não pode,<br />

a noite esfriou,<br />

o dia não veio,<br />

o bonde não veio,<br />

o riso não veio,<br />

não veio a utopia<br />

e tudo acabou<br />

e tudo fugiu<br />

e tudo mofou,<br />

e agora, José?<br />

O homem atrás do bigode<br />

é sério, simples e forte.<br />

Quase não conversa.<br />

Tem poucos, raros amigos<br />

o homem atrás dos óculos e do bigode.<br />

Meu Deus, por que me abandonaste<br />

se sabias que eu não era Deus,<br />

se sabias que eu era fraco.<br />

Mundo mundo vasto mundo<br />

se eu me chamasse Raimundo<br />

seria uma rima, não seria uma solução.<br />

Mundo mundo vasto mundo,<br />

mais vasto é meu coração.<br />

Eu não devia te dizer<br />

mas essa lua<br />

mas esse conhaque<br />

botam a gente comovido como o diabo.<br />

E agora, José?<br />

Sua doce palavra,<br />

seu instante de febre,<br />

sua gula e jejum,<br />

sua biblioteca,<br />

sua lavra de ouro,<br />

seu terno de vidro,<br />

sua incoerência,<br />

seu ódio – e agora?<br />

Com a chave na mão<br />

quer abrir a porta,<br />

não existe porta;<br />

quer morrer no mar,<br />

mas o mar secou;<br />

quer ir para Minas,<br />

Minas não há mais.<br />

José, e agora?<br />

Se você gritasse,<br />

se você gemesse,<br />

se você tocasse<br />

a valsa vienense,<br />

se você dormisse,<br />

se você cansasse,<br />

se você morresse...<br />

Mas você não morre,<br />

você é duro, José!<br />

43


44<br />

Sozinho no escuro<br />

qual bicho-do-mato,<br />

sem teogonia,<br />

sem parede nua<br />

para se encostar,<br />

A Ficção de Graciliano Ramos<br />

Graciliano Ramos (1892-1953) nasceu em Quebrângulo<br />

(Alagoas), passando a infância entre várias<br />

cidades de Pernambuco e Alagoas. Elege-se prefeito<br />

de Palmeira dos Índios (AL) em 1927, onde já redigira<br />

seu primeiro romance, Caetés (1925). Entre 30<br />

e 36 dirige a Imprensa e a Instrução do Estado, já<br />

estabelecido em Maceió. Reforça a amizade com os<br />

outros regionalistas nordestinos; também redige São<br />

Bernardo (34) e Angústia (36). Em 36 é preso como<br />

subversivo, embora sem provas, só sendo liberto no<br />

ano seguinte. Dessa experiência surgiram as Memó-<br />

Fuga (fragmento de Vidas Secas)<br />

A vida na fazenda se tornara difícil. Sinhá Vitória<br />

benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os<br />

beiços rezando rezas desesperadas. Encolhido no<br />

banco do copiar, Fabiano espiava a caatinga amarela,<br />

onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas<br />

pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam,<br />

negros, torrados. No céu azul as últimas arribações<br />

tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se fi -<br />

navam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia,<br />

pedindo a Deus um milagre.<br />

Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava<br />

perdido, combinou a viagem com a mulher, matou<br />

o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne,<br />

largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não<br />

poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só<br />

lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido.<br />

Saíram de madrugada. Sinhá Vitória meteu o braço<br />

pelo buraco da parede e fechou a porta da frente com<br />

a taramela. Atravessaram o pátio, deixaram na escuridão<br />

o chiqueiro e o curral, vazios, de porteiras abertas,<br />

o carro de bois que apodrecia, os juazeiros. Ao passar<br />

junto às pedras onde os meninos atiravam cobras mortas,<br />

Sinhá Vitória lembrou-se da cachorra Baleia, chorou,<br />

mas estava invisível e ninguém percebeu o choro.<br />

Desceram a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram<br />

rumo para o sul. Com a fresca da madrugada,<br />

andaram bastante, em silêncio, quatro sombras no caminho<br />

estreito coberto de seixos miúdos – os meninos<br />

à frente, conduzindo trouxas de roupa, Sinhá Vitória<br />

sob o baú de folha pintada e a cabaça de água, Fabiano<br />

atrás de facão de rasto e faca de ponta, a cuia pen-<br />

sem cavalo preto<br />

que fuja a galope,<br />

você marcha, José!<br />

José, para onde?<br />

rias do Cárcere (53). Passa a viver no Rio de Janeiro<br />

já como romancista consagrado.<br />

A obra de Graciliano representa o mais alto ponto de<br />

tensão entre o eu e a sociedade, revelando todas as facetas<br />

da opressão e da dor. Torna-se palpável, em seus<br />

textos, a relação homem e natureza, sem prejuízo, porém,<br />

dos aspectos ideológicos no retrato da opressão.<br />

Seus protagonistas e narradores, vincados de um intenso<br />

pessimismo, tingem de introspecção a temática<br />

regionalista, e proporcionam um clima dramático para<br />

os confl itos, tornando mais complexas relações que<br />

poderiam ser reduzidas a um naturalismo imediato.<br />

durada por uma correia amarrada ao cinturão, o aió<br />

a tiracolo, a espingarda de pederneira num ombro, o<br />

saco da malotagem no outro. Caminharam bem três<br />

léguas antes que a barra do nascente aparecesse.<br />

Fizeram alto. E Fabiano depôs no chão parte da carga,<br />

olhou o céu, as mãos em pala na testa. Arrastarase<br />

até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente<br />

mudança. Retardara-se e repreendera os meninos, que<br />

se adiantavam, aconselhara-os a poupar forças. A verdade<br />

é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem<br />

parecia-lhe sem jeito, nem acreditava nela. Prepararaa<br />

lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só se<br />

resolvera a partir quando estava defi nitivamente perdido.<br />

Podia continuar a viver num cemitério? Nada o<br />

prendia aquela terra dura, acharia um lugar menos<br />

seco para enterrar-se. Era o que Fabiano dizia, pensando<br />

em coisas alheias: o chiqueiro e o curral, que<br />

precisavam conserto, o cavalo de fábrica, bom companheiro,<br />

a égua alazã, as catingueiras, as panelas de<br />

losna, as pedras da cozinha, a cama de varas. E os<br />

pés dele esmoreciam, as alpercatas calavam-se na escuridão.<br />

Seria necessário largar tudo? As alpercatas<br />

chiavam de novo no caminho coberto de seixos.<br />

Agora Fabiano examinava o céu, a barra que tingia<br />

o nascente, e não queria convencer-se da realidade.<br />

Procurou distinguir qualquer coisa diferente da vermelhidão<br />

que todos os dias espiava, com o coração<br />

aos baques. As mãos grossas, por baixo da aba curva<br />

do chapéu, protegiam-lhe os ombros contra a claridade<br />

e tremiam.<br />

Os braços penderam, desanimados.<br />

– Acabou-se.


Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava negro<br />

num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se<br />

profundamente azul. Estremeceu como se descobrisse<br />

uma coisa muito ruim.<br />

Desde o aparecimento das arribações vivia desassossegado.<br />

Trabalhava demais para não perder o<br />

sono. Mas no meio do serviço um arrepio corria-lhe<br />

Um dos romances capitais da obra de Graciliano, Vidas<br />

Secas narra a trajetória do retirante Fabiano, sua<br />

esposa, Sinhá Vitória, e fi lhos, em fuga do fl agelo da<br />

seca. Organizado em capítulos independentes, curiosamente<br />

apresenta narrador em terceira pessoa, ao<br />

contrário dos outros romances do autor, marcados por<br />

narrador-protagonista. Estudiosos apontam essa peculiaridade<br />

devido à condição existencial de Fabiano,<br />

lacônico, quase mudo, em sua luta contra a natureza<br />

hostil que lhe difi culta a vida, e contra a exploração<br />

humana de que também se torna vítima, fazendo com<br />

que se recolha numa ausência de comunicação verbal.<br />

O Modernismo Pós-45<br />

O ano de 1945 é apontado como um marco no desenvolvimento<br />

do Modernismo. Na verdade, nenhuma<br />

obra ou evento cultural foi lançado naquela data,<br />

devendo-se sua importância muito mais a fatos da<br />

história política, nacional e mundial: o fi m do Estado<br />

Novo e o término da Segunda Grande Guerra. De<br />

qualquer modo, um pouco antes, ou logo após de 45,<br />

vieram à publicação novos fi ccionistas e poetas que<br />

renovaram mais uma vez nossas letras.<br />

No campo da poesia, há um retorno ao domínio<br />

do verso, das formas tradicionais, numa perspectiva<br />

formalista, embora mesclada a um intimismo mais<br />

comedido, em que se destacam nomes como Mário<br />

Quintana, Paulo Mendes Campos, Hélio Pelegrino,<br />

Ledo Ivo, Geir Campos, José Paulo Paes, Thiago de<br />

Melo. Abandonando a perspectiva subjetiva em defesa<br />

de uma abordagem impessoal, objetiva da poesia,<br />

num projeto lírico de apurado cuidado formal, aparece<br />

João Cabral de Melo Neto. Posteriormente, nos<br />

anos 50, levando adiante os avanços de Cabral, surge<br />

o movimento, novamente paulista, do Concretismo,<br />

liderado pelos irmãos Campos e por Décio Pignatari,<br />

estética que aboliria o verso em prol de uma construção<br />

imagética do poema, erigido a partir das camadas<br />

palpáveis da palavra. Na seqüência das décadas, aparece<br />

a poesia engajada, participante de um Ferreira<br />

Gullar, por exemplo, ou experimental, como a poesia-práxis.<br />

No fi nal da década de 60, chama a atenção<br />

o movimento do Tropicalismo, experiência artística<br />

que se expandiu em várias frentes como as artes plásticas,<br />

o teatro, a música, e encontrou em poetas-cantores<br />

como Caetano Veloso e Gilberto Gil as linhas<br />

no espinhaço, à noite acordava agoniado e encolhiase<br />

num canto da cama de varas, mordido pelas pulgas,<br />

conjecturando misérias.<br />

A luz aumentou e espalhou-se pela campina. Só aí<br />

principiou a viagem. Fabiano atentou na mulher e nos<br />

fi lhos, apanhou a espingarda e o saco de mantimentos,<br />

ordenou a marcha com uma interjeição áspera.<br />

mais eloqüentes deste retorno consciente à herança<br />

da vanguarda de 22, sobretudo das bases lançadas por<br />

Oswald de Andrade. De lá para cá, após a aposta na<br />

rebeldia da poesia marginal, a lírica brasileira avança<br />

por vertentes variadas, desde aquelas que privilegiam<br />

o discurso pessoal, autobiográfi co, às que mantêm o<br />

apuro formal e experimentalista; outros ainda, trazendo<br />

um caráter público e político mais explícito. Entre<br />

os mais recentes poetas, cabe citar Marly de Oliveira,<br />

Renata Pallottini, Bruno Tolentino, Carlos Nejar, Olga<br />

Savary, Hilda Hilst (também fi ccionista), Armando<br />

Freitas Filho, Ivan Junqueira, Adélia Prado, Ana Cristina<br />

César, Paulo Leminski, Cacaso, Alexei Bueno.<br />

A narrativa brasileira avança por novos caminhos, a<br />

partir de dois autores fundamentais: João Guimarães<br />

Rosa e Clarice Lispector. Enquanto aquele ultrapassa<br />

os limites do regionalismo, rompendo com o naturalismo<br />

e avançando para dentro de uma construção mítica<br />

do universo do sertão, que ganha uma dimensão<br />

épica, além de criar toda uma língua literária própria,<br />

original; esta desestabiliza os postos de enunciação<br />

do sujeito como origem da linguagem, abrindo novas<br />

dimensões para o intimismo psicológico até chegar a<br />

profundas dilacerações fi losófi cas. Nas décadas de 60<br />

e 70, a fi cção toma o caminho do fantástico e do maravilhoso,<br />

moda literária latino-americana. Tal como<br />

acontece na poesia, também na narrativa vários são os<br />

modos e temas de narrar, confi rmando-se obras como<br />

as de Nelson Rodrigues, Dalton Trevisan, Osman<br />

Lins, Lygia Fagundes Telles, Adonias Filho, Autran<br />

Dourado, Rubem Fonseca, Fernando Sabino, Moacyr<br />

Scliar, Murilo Rubião, João Gilberto Noll, Sérgio<br />

Sant’Anna, João Ubaldo Ribeiro, Raduan Nassar, Pedro<br />

Nava, Caio Fernando Abreu, Hilda Hilst.<br />

Quanto a nosso drama, gênero menos contemplado<br />

pelos dois primeiros modernismos (à exceção de poucas<br />

experiências, e O Rei da Vela, de Oswald, só viria<br />

aos palcos em 1967), sofre uma grande renovação<br />

com a chegada de Nelson Rodrigues e seu teatro “desagradável”,<br />

o estabelecimento do Teatro Brasileiro<br />

de Comédia, que atualizaria o repertório (ainda que<br />

hegemonicamente estrangeiro) e a cena, profi ssionalizando<br />

atores, diretores e técnicos; a criação dos<br />

Centros Populares de Cultura, dos Grupos Ofi cina,<br />

Teatro de Arena, Opinião, responsáveis pelo engajamento<br />

político de grande repercussão entre os jo-<br />

45


46<br />

vens e a esquerda. Entre os principais dramaturgos<br />

destacam-se Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco<br />

Guarnieri, Dias Gomes, Millôr Fernandes e Maria<br />

Clara Machado.<br />

João Cabral de Melo Neto<br />

Diplomata nascido em Recife, João Cabral (1920-<br />

1999) tornou-se o último grande poeta do modernis-<br />

A Educação Pela Pedra<br />

Uma educação pela pedra: por lições;<br />

para aprender da pedra, frequentá-la;<br />

captar sua voz inenfática, impessoal<br />

(pela dicção ela começa as aulas).<br />

A lição de moral, sua resistência fria<br />

ao que fl ui e a fl uir, a ser maleada;<br />

a de poética, sua carnadura concreta;<br />

a de economia, seu adensar-se compacta:<br />

lições da pedra (de fora para dentro,<br />

cartilha muda), para quem soletrá-la.<br />

*<br />

Outra educação pela pedra: no Sertão<br />

de dentro para fora, e pré-didática).<br />

No Sertão a pedra não sabe lecionar,<br />

e se lecionasse não ensinaria nada;<br />

lá não se aprende a pedra: lá a pedra,<br />

uma pedra de nascença, entranha a alma.<br />

Guimarães Rosa<br />

Médico do interior mineiro, João Guimarães Rosa<br />

(1908-1967) ingressou na carreira diplomática em<br />

1943, em parte devido a seu grande interesse e domínio<br />

de línguas. Assistindo à Segunda Guerra na Alemanha,<br />

serviu ainda em Bogotá e em Paris. De volta ao Brasil,<br />

continua sua carreira pública. Falece três dias após sua<br />

admissão na Academia Brasileira de Letras.<br />

A produção de Guimarães Rosa é composta basicamente<br />

de narrativas, nos três tipos consolidados pela<br />

literatura moderna: o conto, a novela e o romance. Sua<br />

temática universal faz do homem do sertão um herói<br />

de tintas épicas ao mesmo tempo em que lida com as<br />

forças mágicas da natureza, inclusive em seus aspec-<br />

mo, com uma obra poética marcada pelo exercício<br />

contínuo de limpeza da linguagem, de diminuição<br />

quase até o apagamento do “eu” (instância discursiva<br />

considerada fundamental pela lírica tradicional), de<br />

negação do acessório e do sentimental, nunca, porém,<br />

caindo num vazio poético. Pelo contrário, sua retórica<br />

seca, árida, construída a partir de uma escrita “arquitetônica”,<br />

de engenheiro, deixa revelar a condição<br />

humana, a paisagem, a preocupação social.<br />

Tecendo a Manhã<br />

1<br />

Um galo sozinho não tece uma manhã:<br />

ele precisará sempre de outros galos.<br />

De um que apanhe esse grito que ele<br />

e o lance a outro; de um outro galo<br />

que apanhe o grito de um galo antes<br />

e o lance a outro; e de outros galos<br />

que com muitos outros galos se cruzem<br />

os fi os de sol de seus gritos de galo,<br />

para que a manhã, desde uma teia tênue,<br />

se vá tecendo, entre todos os galos.<br />

2<br />

E se encorpando em tela, entre todos,<br />

se erguendo tenda, onde entrem todos,<br />

se entretendendo para todos, no toldo<br />

(a manhã) que plana livre de armação.<br />

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo<br />

que, tecido, se eleva por si: luz balão.<br />

tos maléfi cos, e os meandros do destino. Escapa sua<br />

representação à cartilha naturalista do regionalismo<br />

consagrado, e o romance opera na chave do mitopoético,<br />

numa mistura de modernidade e velhas tradições<br />

narrativas. Esse universo fi ccional é construído a partir<br />

de uma original recriação lingüística, que vai muito<br />

além da representação do falar sertanejo e assimila<br />

contribuições vernáculas de várias línguas, além do<br />

português. Rosa rearruma processos fono-morfológicos<br />

através de neologismos, de derivações personalíssimas,<br />

levando a prosa poética a níveis estilísticos não<br />

igualados. Além de Grande sertão: veredas (1956), sua<br />

obra-prima, são representativas as novelas contidas em<br />

Sagarana (1946) e Corpo de Baile (1956), além dos<br />

contos presentes em Primeiras Estórias (1962), Tutaméia:<br />

Terceiras Estórias (67), Estas Estórias (69).


A Terceira Margem do Rio (fragmento)<br />

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo;<br />

e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam<br />

as diversas sensatas pessoas, quando indaguei<br />

a informação. Do que eu mesmo me alembro,<br />

ele não fi gurava mais estúrdio nem mais triste do que<br />

os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe<br />

era quem regia, e que ralhava no diário com a gente<br />

— minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo<br />

dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.<br />

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau<br />

de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa,<br />

como para caber justo o remador. Mas teve de ser<br />

toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo,<br />

própria para dever durar na água por uns vinte ou<br />

trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia.<br />

Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia<br />

propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai<br />

nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era<br />

mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua:<br />

o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que<br />

sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra<br />

beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa<br />

fi cou pronta.<br />

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o<br />

chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou<br />

outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez<br />

a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou<br />

que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de<br />

pálida, mascou o beiço e bramou: — “Cê vai, ocê<br />

fi que, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta.<br />

Espiou manso para mim, me acenando de vir<br />

também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe,<br />

mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava,<br />

chega que um propósito perguntei: — “Pai,<br />

o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só<br />

retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com<br />

gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda<br />

virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou<br />

na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu<br />

se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré,<br />

comprida longa.<br />

Clarice Lispector<br />

Imigrante da Ucrânia, vinda ainda criança de colo<br />

para o Brasil, Clarice Lispector (1920-1977) passou<br />

a infância no Recife, vindo para o Rio de Janeiro em<br />

1934, onde estuda Direito e escreve seu primeiro romance,<br />

Perto do coração selvagem (1943). Casada com<br />

diplomata, faz várias viagens com o marido à Europa e<br />

aos Estados Unidos, em meio às quais escreve seus romances<br />

seguintes e colabora com a imprensa brasileira<br />

através dos amigos. No início dos 60, fi xa-se defi nitiva-<br />

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma<br />

parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles<br />

espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro<br />

da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza<br />

dessa verdade deu para. estarrecer de todo a<br />

gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes,<br />

vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram<br />

juntamente conselho.<br />

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura;<br />

por isso, todos pensaram de nosso pai a razão<br />

em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam<br />

o entanto de poder também ser pagamento de promessa;<br />

ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo<br />

de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra,<br />

se desertava para outra sina de existir, perto e longe<br />

de sua família dele. As vozes das notícias se dando<br />

pelas certas pessoas — passadores, moradores das<br />

beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo<br />

que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em<br />

ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como<br />

cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa<br />

mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o<br />

mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava;<br />

e, ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para<br />

jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou<br />

se arrependia, por uma vez, para casa.<br />

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer<br />

para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a<br />

idéia que senti, logo na primeira noite, quando o<br />

pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em<br />

beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se<br />

rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci,<br />

com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei<br />

nosso pai, no enfi m de uma hora, tão custosa<br />

para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no<br />

fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu,<br />

não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer,<br />

depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de<br />

bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que<br />

fi z, e refi z, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais<br />

tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo,<br />

só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava,<br />

facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir.<br />

mente no Rio de Janeiro. A partir daí, torna-se escritora<br />

profi ssional, colaborando com jornais e revistas. Escreveu<br />

contos, crônicas e romances. Algumas obras suas<br />

são O Lustre (1946), A Cidade Sitiada (49), Laços de<br />

Família (60), A Maçã no Escuro (61), A Legião Estrangeira<br />

(64), A paixão segundo G.H. (64), Uma Aprendizagem<br />

ou o Livro dos Prazeres (69), Felicidade Clandestina<br />

(71), Água Viva (73), A Hora da Estrela (77).<br />

Também prosa poética, a escrita de Lispector situase<br />

no limiar de uma crise do sujeito, que beira muitas<br />

47


48<br />

vezes a abstração, levando o leitor a um mergulho profundo<br />

nas instâncias da linguagem e da psique de suas<br />

personagens. Utilizando a técnica do fl uxo de consciência,<br />

a autora traz à página agudas experiências exis-<br />

TENTAÇÃO<br />

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a<br />

claridade das duas horas, ela era ruiva.<br />

Na rua vazia as pedras vibravam de calor – a cabeça<br />

da menina fl amejava. Sentada nos degraus de sua casa,<br />

ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando<br />

inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse<br />

seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia<br />

de momento a momento, abalando o queixo que se<br />

apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina<br />

ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento<br />

contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde.<br />

Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária.<br />

Que importava se num dia futuro sua marca ia<br />

fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto<br />

ela estava sentada num degrau faiscante da porta,<br />

às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha<br />

de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor<br />

conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.<br />

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste<br />

mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de<br />

comunicação surgiu no ângulo quente da esquina<br />

acompanhando uma senhora, e encarnada na fi gura<br />

de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob<br />

a sua fatalidade. Era um basset ruivo.<br />

Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o<br />

seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.<br />

A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente<br />

avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua<br />

vibrava. Ambos se olhavam.<br />

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem<br />

donos de outro ser, lá estava a menina que viera<br />

Glossário<br />

tenciais, desestabilizando os papéis do narrador e da<br />

personagem, deslocados no texto e no mundo, e também<br />

entregues à resolução de problemas da ordem do<br />

fi losófi co e, algumas vezes, do próprio fazer literário.<br />

ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente,<br />

sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada,<br />

séria. Quanto tempo se passava? Um grande<br />

soluço sacudiu-a desafi nado. Ele nem sequer tremeu.<br />

Também ela passou por cima do soluço e continuou a<br />

fi tá-lo. Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.<br />

Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas<br />

que se comunicaram rapidamente, pois não havia<br />

tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam.<br />

Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.<br />

No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto<br />

sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E<br />

no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos<br />

cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma<br />

menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles<br />

se fi tavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú.<br />

Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria,<br />

cedendo talvez à gravidade com que se pediam.<br />

Mas ambos eram comprometidos.<br />

Ela com sua infância impossível, o centro da inocência<br />

que só se abriria quando ela fosse uma mulher.<br />

Ele, com sua natureza aprisionada.<br />

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O<br />

basset ruivo afi nal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo.<br />

Ela fi cou espantada, com o acontecimento<br />

nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam.<br />

Acompanhou-o com olhos pretos que<br />

mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos,<br />

até vê-lo dobrar a outra esquina.<br />

Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez<br />

olhou para trás.<br />

Brechtiano – relativo ao dramaturgo, poeta e teórico do teatro alemão Bertolt Brecht (1898-1956).<br />

O adjetivo refere-se a um conjunto de técnicas de construção dramatúrgica e cênica que levam ao<br />

espectador/leitor a uma refl exão crítica do que assiste e lê, como instrumento de refl exão sócio-histórica,<br />

afastando-o da catarse alienante do modelo do melodrama, ou mesmo aristotélico, percebendo<br />

o espetáculo texto como obra em construção e não como mimese, representação.<br />

Iconoclastia – destruição de ídolos, de deuses, de ícones.<br />

Mitopoético – relativo à criação de mitos, origem de uma mitologia a partir da construção poética,<br />

literária, fi ccional.


Oligarquia – pequeno grupo de famílias ou pessoas que mantém o poder sobre uma determinada<br />

região, geralmente ao longo de muitas gerações.<br />

Quixotesco – procedente de Dom Quixote, a personagem. Diz-se de pessoa visionária, sonhadora,<br />

alienada (em aspectos tanto positivos quanto negativos).<br />

Ufanista – aquele que se orgulha de sua terra, de seu país, negligenciando os aspectos negativos que<br />

porventura existam.<br />

Exercício de Auto-Avaliação<br />

1. Em que sentido convencionou-se atribuir um período preparatório para a chegada da literatura modernista<br />

no Brasil, chamado Pré-Modernismo?<br />

2. Com que traços marcantes Lima Barreto constrói o protagonista de Triste Fim de Policarpo Quaresma?<br />

Que críticas o romance faz à sociedade brasileira?<br />

3. Que caminhos a poesia brasileira do modernismo percorreu ao longo das três gerações de autores?<br />

4. Há alterações na fi guração regionalista do romance de 30 que o afastam do naturalismo dos fi ns do século<br />

XIX. Identifi que-as.<br />

5. Que novidades as obras de Guimarães Rosa e Clarice Lispector apresentam para a história da narrativa<br />

recente no Brasil?<br />

49


50<br />

Se você:<br />

1) concluiu o estudo deste guia;<br />

2) participou dos encontros;<br />

3) fez contato com seu tutor;<br />

4) realizou as atividades previstas;<br />

Então, você está preparado para as<br />

avaliações.<br />

Parabéns!


Gabarito<br />

Unidade I<br />

1) O programa dos mais importantes escritores do período, sobretudo da primeira geração, voltava-se para os<br />

problemas do surgimento do povo, através da questão racial (sobretudo a indígena), da diversidade regional e<br />

até da variação da língua portuguesa no Brasil.<br />

2) Enquanto a primeira geração ocupou-se em lançar o programa romântico no Brasil, em suas bases estéticas<br />

e temáticas, elegendo o índio e a paisagem como fi guras centrais da poesia, para cantar a nação, a segunda<br />

voltou-se para o “mal-do-século”, priorizando os temas amorosos, a solidão, a memória, o tédio diante da vida<br />

burguesa. Já a terceira geração deteve-se nos valores liberais que surgiam no Brasil, dando especial atenção à<br />

temática do negro e da escravidão, valorizando a liberdade como princípio humano por excelência.<br />

3) Alencar lança suas bases literárias para discutir o nacional em quatro vertentes principais de seus romances:<br />

o urbano, em que relata os hábitos e costumes da corte; o regional, em que o mesmo foco se desloca para as<br />

regiões rurais do país; o indianista, responsável pela criação de uma narrativa primordial para o surgimento do<br />

povo brasileiro; e o histórico, na tentativa de traçar painéis grandiosos de momentos cruciais da história colonial<br />

do Brasil. No que tange ao teatro, Alencar adotou o modelo francês do melodrama no sentido de atualizar<br />

a dramaturgia.<br />

4) Pena registra costumes populares, denunciando aspectos pitorescos da população, acentuando uma face<br />

crítica que em outros autores fi cava em segundo plano e proporcionando outros matizes no lugar das idealizações<br />

ufanistas e lisonjeiras.<br />

Unidade <strong>II</strong><br />

1) Enquanto o estilo realista aprofunda-se no desenho psicológico das personagens, na análise dos comportamentos<br />

sociais, particularmente denunciando os aspectos econômicos, a estética naturalista enfatiza os fatores<br />

biológicos, morais e criminosos como ingredientes dos enredos e características das personagens, que denunciam<br />

o determinismo ideológico.<br />

2) Exemplo maior de nosso Realismo, Machado de Assis caracteriza-se pela intensa ironia que atravessa a<br />

refl exão sobre a existência, as relações humanas e os costumes sociais, denunciando a importância do dinheiro,<br />

o vazio de determinadas regras do convívio em sociedade, a sombra da loucura, da memória, do inconsciente<br />

e da morte.<br />

3) Construído em torno de situações que envolvem diversas personagens na formação de um quadro da moradia<br />

coletiva, O Cortiço faz-se uma narrativa em que a soma das fi guras humanas constrói a imagem do próprio<br />

cortiço como uma espécie de organismo vivo, tornando-se, afi nal, o protagonista do romance.<br />

Unidade <strong>II</strong>I<br />

1) A estética parnasiana, ao pretender se afastar do excesso de subjetivismo herdado do romantismo mais<br />

corriqueiro, e buscar o efeito estético, plástico, através do culto de belas imagens e do vocabulário rico, revela<br />

um estilo direcionado à preocupação formal mais aparente, deixando em segundo plano os aspectos humanos<br />

e sentimentais – o que não exclui a presença de emoção.<br />

2) A lírica de Bilac é marcada por um intenso efeito estético, a partir do culto da própria poesia, como tema e<br />

como forma, adotando, entre outros procedimentos, o cultivo da frase, sobretudo a “chave de ouro”. Tais recursos<br />

servem também a uma temática erótica, sensual; em outros momentos, à poesia cívica e patriótica.<br />

3) Reunindo aspectos biográfi cos à inspiração espiritualista presente no Simbolismo, a presença do branco<br />

na poesia de Cruz e Sousa aponta tanto para uma ultrapassagem do racismo sofrido em vida, quanto para os<br />

processos de fl uidez, transparência e sonoridade plangente característicos da estética simbolista.<br />

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4) Estilo contemporâneo aos movimentos abolicionista e republicano, o Parnasianismo consolidou-se como<br />

estética ofi cial, dado à infl uência dos autores na esfera pública, criando um lastro de tradição só rompido pelo<br />

Modernismo de 22. Em contrapartida, o Simbolismo encontrou curta trajetória entre nós, devido aos aspectos<br />

subjetivos e espiritualistas inadequados à mentalidade positivista que movia a nação.<br />

Unidade IV<br />

1) Embora autores como Lima Barreto e Euclides da Cunha, na prosa, e Augusto dos Anjos e o primeiro Manuel<br />

Bandeira constituíssem um avanço em relação à literatura dos oitocentos, ainda não se constituía, nos dois<br />

primeiros decênios do século XX, um projeto literário nacional que rompesse com a estética parnasiana.<br />

2) Policarpo Quaresma marca-se como um protagonista quixotesco, visionário e ao mesmo tempo ingênuo,<br />

ao engajar-se no projeto utópico de provar a riqueza do Brasil, visto por ele como uma grande nação e um<br />

território natural opulento. No entanto, o romance de Lima Barreto opera sobre as desilusões que acometem<br />

o Major diante da estreiteza de visão que encontra nos ambientes sociais, saturados de fi guras caricatas que<br />

são denunciadas não sem certa melancolia. Diante da possibilidade de grande nação prevista por Quaresma, a<br />

sociedade brasileira revela-se, no romance, em seu aspecto medíocre.<br />

3) Das experimentações lingüísticas, dotadas de uma verve revolucionária e iconoclasta, características dos<br />

poetas de 22, a poesia brasileira avançou por um caminho existencialista, subjetivo e espiritual na década de<br />

30, resgatando uma certa ênfase no eu-lírico (sem perder as conquistas formais da geração anterior), chegando<br />

a um apuro formal, conseqüência tanto da lírica modernista quanto do domínio do verso tradicional, num exercício<br />

poético que encontrará seu ápice em movimentos como o Concretismo e a Tropicália.<br />

4) Diferentemente do naturalismo do século anterior, o romance regionalista dos anos 30 ocupa-se com a<br />

temática sociopolítica como base para a narrativa fi ccional, que trata dos motivos políticos e econômicos presentes<br />

nos eventos humanos.<br />

5) Guimarães Rosa cria um universo fi ccional fundamentalmente próprio, construído a partir de uma visão<br />

mítica de sertão, procedimento que amplia os horizontes do regionalismo e permite ao escritor a criação de<br />

uma língua literária original.<br />

Já Clarice Lispector opera sobre as dimensões subjetivas da linguagem, recriando o intimismo psicológico em<br />

suas narrativas, que alcançam profunda ressonância fi losófi ca.


Referências Bibliográficas<br />

ANDRADE, Mário. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Livraria Martins, 1945.<br />

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 33 ed. São Paulo: Cultrix, 1994.<br />

BRAYNER, Sônia. Labirinto do Espaço Romanesco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1979.<br />

COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 17 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.<br />

_________. A Literatura no Brasil. 6 ed. São Paulo: Global, 2003. Vols. 3, 4 e 5.<br />

MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. Breve história da Literatura Brasileira. 3 ed. Rio de<br />

Janeiro: TopBooks, 1996.<br />

MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. 22 ed. São Paulo: Cultrix, 2000.<br />

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