LITERATURA BRASILEIRA II - Universidade Castelo Branco
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VICE-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO E CORPO DISCENTE<br />
COORDENAÇÃO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA<br />
<strong>LITERATURA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong> <strong>II</strong><br />
Rio de Janeiro / 2008<br />
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS À<br />
UNIVERSIDADE CASTELO BRANCO
UNIVERSIDADE CASTELO BRANCO<br />
Todos os direitos reservados à <strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong> <strong>Branco</strong> - UCB<br />
Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, armazenada ou transmitida de qualquer forma ou<br />
por quaisquer meios - eletrônico, mecânico, fotocópia ou gravação, sem autorização da <strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong><br />
<strong>Branco</strong> - UCB.<br />
Un3l <strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong> <strong>Branco</strong><br />
Literatura Brasileira <strong>II</strong> / <strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong> <strong>Branco</strong>. – Rio de Janeiro:<br />
UCB, 2008. - 56 p.: il.<br />
ISBN 978-85-7880-002-4<br />
1. Ensino a Distância. 2. Título.<br />
<strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong> <strong>Branco</strong> - UCB<br />
Avenida Santa Cruz, 1.631<br />
Rio de Janeiro - RJ<br />
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Tel. (21) 3216-7700 Fax (21) 2401-9696<br />
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CDD – 371.39
Responsáveis Pela Produção do Material Instrucional<br />
Coordenadora de Educação a Distância<br />
Prof.ª Ziléa Baptista Nespoli<br />
Coordenador do Curso de Graduação<br />
Denílson P. Matos<br />
Conteudista<br />
Robério Oliveira da Silva<br />
Supervisor do Centro Editorial – CEDI<br />
Supervisor do Centro Editorial – CEDI<br />
Joselmo Botelho
Apresentação<br />
Prezado(a) Aluno(a):<br />
É com grande satisfação que o(a) recebemos como integrante do corpo discente de nossos cursos de graduação,<br />
na certeza de estarmos contribuindo para sua formação acadêmica e, conseqüentemente, propiciando<br />
oportunidade para melhoria de seu desempenho profi ssional. Nossos funcionários e nosso corpo docente esperam<br />
retribuir a sua escolha, reafi rmando o compromisso desta Instituição com a qualidade, por meio de uma<br />
estrutura aberta e criativa, centrada nos princípios de melhoria contínua.<br />
Esperamos que este instrucional seja-lhe de grande ajuda e contribua para ampliar o horizonte do seu conhecimento<br />
teórico e para o aperfeiçoamento da sua prática pedagógica.<br />
Seja bem-vindo(a)!<br />
Paulo Alcantara Gomes<br />
Reitor
Orientações para o Auto-Estudo<br />
O presente instrucional está dividido em quatro unidades programáticas, cada uma com objetivos defi nidos e<br />
conteúdos selecionados criteriosamente pelos Professores Conteudistas para que os referidos objetivos sejam<br />
atingidos com êxito.<br />
Os conteúdos programáticos das unidades são apresentados sob a forma de leituras, tarefas e atividades complementares.<br />
As Unidades 1 e 2 correspondem aos conteúdos que serão avaliados em A1.<br />
Na A2 poderão ser objeto de avaliação os conteúdos das quatro unidades.<br />
Havendo a necessidade de uma avaliação extra (A3 ou A4), esta obrigatoriamente será composta por todo o<br />
conteúdo de todas as Unidades Programáticas.<br />
A carga horária do material instrucional para o auto-estudo que você está recebendo agora, juntamente com<br />
os horários destinados aos encontros com o Professor Orientador da disciplina, equivale a 30 horas-aula, que<br />
você administrará de acordo com a sua disponibilidade, respeitando-se, naturalmente, as datas dos encontros<br />
presenciais programados pelo Professor Orientador e as datas das avaliações do seu curso.<br />
Bons Estudos!
Dicas para o Auto-Estudo<br />
1 - Você terá total autonomia para escolher a melhor hora para estudar. Porém, seja<br />
disciplinado. Procure reservar sempre os mesmos horários para o estudo.<br />
2 - Organize seu ambiente de estudo. Reserve todo o material necessário. Evite<br />
interrupções.<br />
3 - Não deixe para estudar na última hora.<br />
4 - Não acumule dúvidas. Anote-as e entre em contato com seu monitor.<br />
5 - Não pule etapas.<br />
6 - Faça todas as tarefas propostas.<br />
7 - Não falte aos encontros presenciais. Eles são importantes para o melhor aproveitamento<br />
da disciplina.<br />
8 - Não relegue a um segundo plano as atividades complementares e a auto-avaliação.<br />
9 - Não hesite em começar de novo.
SUMÁRIO<br />
Quadro-síntese do conteúdo programático ................................................................................................. 11<br />
Contextualização da disciplina ................................................................................................................... 13<br />
UNIDADE I<br />
O ROMANTISMO BRASILEIRO<br />
1.1 - Conceituação ...................................................................................................................................... 15<br />
1.2 - A poesia romântica brasileira .............................................................................................................. 16<br />
1.3 - A prosa narrativa ................................................................................................................................. 22<br />
1.4 - O teatro romântico no Brasil .............................................................................................................. 23<br />
UNIDADE <strong>II</strong><br />
O REALISMO/NATURALISMO<br />
2.1 - Conceituação ...................................................................................................................................... 26<br />
2.2 - O Realismo no Brasil .......................................................................................................................... 27<br />
UNIDADE <strong>II</strong>I<br />
O PARNASIANISMO E O SIMBOLISMO<br />
3.1 - Conceituação ...................................................................................................................................... 31<br />
3.2 - Parnasianismo e Simbolismo no Brasil .............................................................................................. 31<br />
UNIDADE IV<br />
O MODERNISMO<br />
4.1 - Conceituação ...................................................................................................................................... 35<br />
4.2 - O Pré-Modernismo ............................................................................................................................. 35<br />
4.3 - O Modernismo Brasileiro ................................................................................................................... 37<br />
Gabarito ....................................................................................................................................................... 51<br />
Referências bibliográfi cas ........................................................................................................................... 53
Quadro-síntese do conteúdo<br />
programático<br />
UNIDADES DO PROGRAMA OBJETIVOS<br />
I - O ROMANTISMO BRASILEIRO<br />
1.1 - Conceituação<br />
1.2 - A poesia romântica brasileira<br />
1.3 - A prosa narrativa<br />
1.4 - O teatro romântico no Brasil<br />
<strong>II</strong> - O REALISMO/NATURALISMO<br />
2.1 - Conceituação<br />
2.2 - O Realismo no Brasil<br />
<strong>II</strong>I - O PARNASIANISMO E O SIMBOLISMO<br />
3.1 - Conceituação<br />
3.2 - Parnasianismo e Simbolismo no Brasil<br />
IV - O MODERNISMO<br />
4.1 - Conceituação<br />
4.2 - O Pré-Modernismo<br />
4.3 - O Modernismo Brasileiro<br />
A Disciplina Literatura Brasileira <strong>II</strong> visa oferecer<br />
ao estudante de Letras a seqüência das manifestações<br />
literárias no Brasil, no momento em que vão<br />
se consolidando aspectos importantes de nossa literatura.<br />
Oferecemos a possibilidade de análise e<br />
estudo dos movimentos que consagraram uma certa<br />
visão do Brasil, e das maneiras de representá-lo nos<br />
diversos gêneros a partir do Romantismo.<br />
Se a literatura do século XIX parece caminhar<br />
no sentido de uma preocupação interna com as<br />
questões do país, já lançando nomes de alcance,<br />
como Machado de Assis, nosso Modernismo marca<br />
a instituição de uma classe leitora, de um grupo<br />
de escritores conhecidos pelo grande público, e<br />
de um diálogo mais aberto, consistente e contínuo<br />
das obras com o contexto político-cultural,<br />
rompendo a situação de dependência em relação à<br />
metrópole cultural européia.<br />
11
Contextualização da Disciplina<br />
A importância do ensino da Literatura Brasileira, este módulo que apresentamos corresponde à necessidade<br />
de os estudantes do Curso de Letras conhecerem a continuidade e confi rmação da formação de nossa literatura,<br />
com as obras do Romantismo, do Realismo/Naturalismo, bem como do Parnasianismo e do Simbolismo, até<br />
chegar às inovações e releituras efetivadas pelas diversas fases do Modernismo.<br />
A intenção dessa leitura do Brasil, através de sua literatura, viabiliza o entendimento sobre a formação cultural,<br />
política e social do Império, dando prosseguimento à construção de um sistema literário nacional, confi rmado<br />
posteriormente pelos estilos que surgem com a República e o século XX.<br />
Este segundo módulo, portanto, visa integrar o aluno à realidade de nosso país ao encontrar modelos literários<br />
que constituem uma Literatura Brasileira coerente, apesar das várias vertentes, e articulada.<br />
13
UNIDADE I<br />
O ROMANTISMO BRASILEIRO<br />
1.1 - Conceituação<br />
O intenso processo de transformação histórica operada<br />
na Europa dos fi nais do século XV<strong>II</strong>I e inícios<br />
do XIX (Revolução Francesa, início das independências<br />
das colônias americanas, difusão continental da<br />
Revolução Industrial, predomínio da classe burguesa<br />
sobre a nobreza aristocrática) foi acompanhado,<br />
proporcionalmente, de uma revolução no campo artístico<br />
e literário, de variadas tendências e correntes<br />
reunidas sob o título de Romantismo. Ultrapassando<br />
as propostas racionalistas do Neoclassicismo e do Arcadismo,<br />
os artistas românticos valorizariam aspectos<br />
mais subjetivos da produção artística e da manifestação<br />
poética, provocando uma mudança radical tanto<br />
no âmbito dos gêneros literários, consagrando entre<br />
outras inovações, a prosa de fi cção (que de um século<br />
antes, pelo menos, já vinha se desenvolvendo), quanto<br />
na escala de valores em torno da literatura.<br />
Na Alemanha, um rápido, porém fundamental movimento<br />
teve lugar no início da década de 1790: o Sturm<br />
und Drang (“Tempestade e Ímpeto”). Liderada por<br />
nomes como Schiller e Goethe, uma série de poetas e<br />
fi lósofos resgataria uma tradição irracionalista do pensamento<br />
e das manifestações artísticas (em contraponto<br />
à escola anterior), valorizando temas como a natureza<br />
(entendida como em simbiose com o indivíduo),<br />
as crenças populares, a religião (em seus aspectos<br />
místicos), a bruxaria, a poesia ingênua e sentimental,<br />
de fatura popular, os mitos e lendas nacionais (grande<br />
preocupação do período). O grande valor estaria<br />
concentrado na fi gura do indivíduo, entendido como<br />
gênio criador, o qual deveria privar de uma liberdade<br />
sem limites, sobretudo ao ser acometido pela manifestação<br />
poética da beleza (numa concepção mais ampla<br />
que a clássica), ou pela urgência do amor passional.<br />
Neste sentido, ainda, a fi gura do indivíduo desdobrase<br />
nas representações da infância idílica, do herói nacional,<br />
no amante/enamorado devotado, entre outras.<br />
Já na França, o debate, poucas décadas depois, travar-se-ia<br />
no campo dramatúrgico, cujo texto fundamental<br />
tornou-se o “Do Sublime e do Grotesco”, de<br />
Victor Hugo, em que o grande escritor francês elogia<br />
a obra de William Shakespeare, fundamentando a<br />
partir do teatro do mestre inglês a chegada do drama<br />
moderno às páginas e aos palcos. Passando do teatro<br />
para o campo do romance, também na França, o grande<br />
modelo narrativo encerra-se no modelo do melodrama,<br />
de grande ressonância entre nós, reforçando<br />
os aspectos sentimentais do Romantismo, sobretudo<br />
em contexto latino.<br />
No contexto brasileiro, a chegada do Romantismo tardou<br />
a consolidar-se tendo em vista não apenas a dependência<br />
cultural ainda em relação à Metrópole portuguesa,<br />
mas também, o sufocamento dos ideais de independência<br />
nacional, cujo maior exemplo deu-se com a esmagadora<br />
dissolução da Inconfi dência Mineira. No entanto,<br />
poucos anos depois, os resultados da era napoleônica<br />
trouxeram a Família Real Portuguesa para o Brasil, em<br />
1808, elevando a Colônia à categoria de Vice-Reino, forçando<br />
uma urbanização rápida e a instalação de postos<br />
de desenvolvimento econômico, político e cultural mais<br />
próximos do padrão europeu. Com a independência, em<br />
1822, instaura-se o clima de nacionalismo entre os nativos,<br />
o que proporcionaria um clima adequado para o<br />
imaginário romântico instaurar-se. No que tange à economia<br />
do país, de base escravocrata e agrária, assistiu-se<br />
à transposição gradual do centro fi nanceiro da região das<br />
Minas, cujo ciclo de mineração esgotava-se, para o Rio<br />
de Janeiro, e as regiões rurais próximas a este, nas quais<br />
fl oresceria a cultura do café, principal produto do século<br />
XIX, e que se tornou o sustentáculo da economia nacional<br />
durante um século inteiro.<br />
Durante o Império, difundiu-se o senso de pertencimento<br />
nacional – de resto, característica do movimento<br />
romântico em geral – entre a população, gerando a<br />
necessidade de construir uma identidade brasileira a<br />
partir da literatura, que, segundo a proposição de Antônio<br />
Cândido, só tomou lugar como sistema no Brasil<br />
a partir da produção árcade, desdobrando-se dali<br />
em diante pela produção romântica e subseqüentes<br />
estilos de época no país. Deste sentimento brotarão<br />
inicialmente o indianismo e a preocupação regionalista<br />
com as localidades e populações mais afastadas<br />
do litoral e da Corte, localizada no Rio de Janeiro.<br />
De qualquer modo, apenas em 1836 aparecerá a obra<br />
que funda o Romantismo no Brasil, Suspiros Poéticos<br />
e Saudades, de Gonçalves de Magalhães, publicada,<br />
curiosamente em Paris, na revista Niterói. O movimento<br />
romântico no Brasil deixou marcas profundas<br />
na literatura, na cultura e no imaginário nacionais,<br />
tendo se desenvolvido, no campo literário, pelas três<br />
vertentes dos gêneros – poesia lírica, prosa narrativa<br />
e drama teatral – e através de três gerações de autores<br />
e obras, com variações relevantes entre si.<br />
15
16<br />
1.2 - A Poesia Romântica Brasileira<br />
Como afi rmamos acima, a produção poética do período<br />
romântico no Brasil acompanhará o percurso<br />
de três momentos distintos nos campos do tema e da<br />
linguagem utilizados: uma primeira geração, preocupada<br />
com a implantação do novo fazer literário<br />
e voltada para a exploração do tema indígena (daí a<br />
alcunha poesia indianista) e da paisagem brasileira<br />
como marcas da nacionalidade a serem confi rmadas<br />
pela escrita lírica, cujos principais nomes seriam<br />
Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães e Porto<br />
Alegre; a segunda, de inspiração no romantismo<br />
egóico de Byron, e responsável pela tradução tropical<br />
do clima do mal-do-século, marcada pela melancolia<br />
no trato de temas como a infância, o amor<br />
impossível, a morte e tédio, presentes nos textos de<br />
poetas como Álvares de Azevedo, Fagundes Varela,<br />
Casimiro de Abreu, Junqueira Freire, Laurindo<br />
Rabelo; e fi nalmente, a terceira geração, também<br />
conhecida como “condoreira”, portadora dos ideais<br />
liberais e abolicionistas da década de 1870, e que<br />
tem em Castro Alves seu maior representante, ladeado<br />
por Sousândrade, poeta mais experimental.<br />
I<br />
No meio das tabas de amenos verdores,<br />
Cercadas de troncos — cobertos de fl ores,<br />
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;<br />
São muitos seus fi lhos, nos ânimos fortes,<br />
Temíveis na guerra, que em densas coortes<br />
Assombram das matas a imensa extensão.<br />
São rudos, severos, sedentos de glória,<br />
Já prélios incitam, já cantam vitória,<br />
Já meigos atendem à voz do cantor:<br />
São todos Timbiras, guerreiros valentes!<br />
Seu nome lá voa na boca das gentes,<br />
Condão de prodígios, de glória e terror!<br />
As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,<br />
As armas quebrando, lançando-as ao rio,<br />
O incenso aspiraram dos seus maracás:<br />
Medrosos das guerras que os fortes acendem,<br />
Custosos tributos ignavos lá rendem,<br />
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.<br />
No centro da taba se estende um terreiro,<br />
Onde ora se aduna o concílio guerreiro<br />
Da tribo senhora, das tribos servis:<br />
Os velhos sentados praticam d’outrora,<br />
E os moços inquietos, que a festa enamora,<br />
Derramam-se em torno dum índio infeliz.<br />
I- JUCA-PIRAMA<br />
A Poesia Indianista de Gonçalves Dias<br />
Maranhense, Antônio Gonçalves Dias dizia-se descendente<br />
das três raças que compuseram a etnia brasileira<br />
(pai português e mãe cafusa). Estudando em<br />
Coimbra, entra em contato com a obra de Garrett e<br />
Herculano. Ao voltar ao Brasil, aproxima-se do grupo<br />
de Magalhães e consolida sua posição como poeta ao<br />
publicar seus Primeiros Cantos, em 1846, que seriam<br />
seguidos pelos Segundos Cantos e Sextilhas de Frei<br />
Antão, em 1848, e Últimos Cantos, em 1851.<br />
Excepcional poeta lírico, Gonçalves Dias volta-se<br />
para a criação de uma mitologia indígena (como o<br />
faria na prosa José de Alencar), na qual a fi gura do<br />
índio aproxima-se da imagem do bom selvagem preconizada<br />
por Montaigne, Rousseau e Chateaubriand,<br />
deixando de lado, contudo, os confl itos com o colonizador<br />
português, entendido na mesma chave dócil.<br />
Ao lado da temática indianista, também fi guram na<br />
produção do escritor poemas amorosos, ocasionalmente<br />
entrelaçados à preocupação nativista.<br />
Quem é? — ninguém sabe: seu nome é ignoto,<br />
Sua tribo não diz:— de um povo remoto<br />
Descende por certo— dum povo gentil;<br />
Assim lá na Grécia ao escravo insulano<br />
Tornavam distinto do vil muçulmano<br />
As linhas corretas do nobre perfi l.<br />
Por casos de guerra caiu prisioneiro<br />
Nas mãos dos Timbiras: — no extenso terreiro<br />
Assola-se o teto, que o teve em prisão;<br />
Convidam-se as tribos dos seus arredores,<br />
Cuidosos se incubem do vaso das cores,<br />
Dos vários aprestos da honrosa função.<br />
Acerva-se a lenha da vasta fogueira<br />
Entesa-se a corda da embira ligeira,<br />
Adorna-se a maça com penas gentis:<br />
A custo, entre as vagas do povo da aldeia<br />
Caminha o Timbira, que a turba rodeia,<br />
Garboso nas plumas de vário matiz.<br />
Em tanto as mulheres com leda trigança,<br />
Afeitas ao rito da bárbara usança,<br />
O índio já querem cativo acabar:<br />
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,<br />
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,<br />
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar,
<strong>II</strong><br />
Em fundos vasos d’alvacenta argila<br />
Ferve o cauim;<br />
Enchem-se as copas, o prazer começa,<br />
Reina o festim.<br />
O prisioneiro, cuja morte anseiam,<br />
Sentado está,<br />
O prisioneiro, que outro sol no ocaso<br />
Jamais verá!<br />
A dura corda, que lhe enlaça o colo,<br />
Mostra-lhe o fi m<br />
Da vida escura, que será mais breve<br />
Do que o festim!<br />
Contudo os olhos d’ignóbil pranto<br />
Secos estão;<br />
Mudos os lábios não descerram queixas<br />
Do coração.<br />
Mas um martírio, que encobrir não pode,<br />
Em rugas faz<br />
A mentirosa placidez do rosto<br />
Na fronte audaz!<br />
Que tens, guerreiro? Que temor te assalta<br />
No passo horrendo?<br />
Honra das tabas que nascer te viram,<br />
Folga morrendo.<br />
Folga morrendo; porque além dos Andes<br />
Revive o forte,<br />
Que soube ufano contrastar os medos<br />
Da fria morte.<br />
Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva,<br />
Lá murcha e pende:<br />
Somente ao tronco, que devassa os ares,<br />
O raio ofende!<br />
Que foi? Tupã mandou que ele caísse,<br />
Como viveu;<br />
E o caçador que o avistou prostrado<br />
Esmoreceu!<br />
Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes<br />
Revive o forte,<br />
Que soube ufano contrastar os medos<br />
Da fria morte.<br />
<strong>II</strong>I<br />
Em larga roda de novéis guerreiros<br />
Ledo caminha o festival Timbira,<br />
A quem do sacrifício cabe as honras,<br />
Na fronte o canitar sacode em ondas,<br />
O enduape na cinta se embalança,<br />
Na destra mão sopesa a iverapeme,<br />
Orgulhoso e pujante. — Ao menor passo<br />
Colar d’alvo marfi m, insígnia d’honra,<br />
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,<br />
Como que por feitiço não sabido<br />
Encantadas ali as almas grandes<br />
Dos vencidos Tapuias, inda chorem<br />
Serem glória e brasão d’imigos feros.<br />
“Eis-me aqui”, diz ao índio prisioneiro;<br />
“Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,<br />
“As nossas matas devassaste ousado,<br />
“Morrerás morte vil da mão de um forte.”<br />
Vem a terreiro o mísero contrário;<br />
Do colo à cinta a muçurana desce:<br />
“Dize-nos quem és, teus feitos canta,<br />
“Ou se mais te apraz, defende-te.” Começa<br />
O índio, que ao redor derrama os olhos,<br />
Com triste voz que os ânimos comove.<br />
IV<br />
Meu canto de morte,<br />
Guerreiros, ouvi:<br />
Sou fi lho das selvas,<br />
Nas selvas cresci;<br />
Guerreiros, descendo<br />
Da tribo tupi.<br />
Da tribo pujante,<br />
Que agora anda errante<br />
Por fado inconstante,<br />
Guerreiros, nasci;<br />
Sou bravo, sou forte,<br />
Sou fi lho do Norte;<br />
Meu canto de morte,<br />
Guerreiros, ouvi.<br />
Já vi cruas brigas,<br />
De tribos imigas,<br />
E as duras fadigas<br />
Da guerra provei;<br />
Nas ondas mendaces<br />
Senti pelas faces<br />
Os silvos fugaces<br />
Dos ventos que amei.<br />
Andei longes terras<br />
Lidei cruas guerras,<br />
Vaguei pelas serras<br />
Dos vis Aimoréis;<br />
Vi lutas de bravos,<br />
Vi fortes — escravos!<br />
De estranhos ignavos<br />
Calcados aos pés.<br />
E os campos talados,<br />
E os arcos quebrados,<br />
E os piagas coitados<br />
17
18<br />
Já sem maracás;<br />
E os meigos cantores,<br />
Servindo a senhores,<br />
Que vinham traidores,<br />
Com mostras de paz.<br />
Aos golpes do imigo,<br />
Meu último amigo,<br />
Sem lar, sem abrigo<br />
Caiu junto a mi!<br />
Com plácido rosto,<br />
Sereno e composto,<br />
O acerbo desgosto<br />
Comigo sofri.<br />
Meu pai a meu lado<br />
Já cego e quebrado,<br />
De penas ralado,<br />
Firmava-se em mi:<br />
Nós ambos, mesquinhos,<br />
Por ínvios caminhos,<br />
Cobertos d’espinhos<br />
Chegamos aqui!<br />
O velho no entanto<br />
Sofrendo já tanto<br />
De fome e quebranto,<br />
Só qu’ria morrer!<br />
Não mais me contenho,<br />
Nas matas me embrenho,<br />
Das frechas que tenho<br />
Me quero valer.<br />
Então, forasteiro,<br />
Caí prisioneiro<br />
Neste longo poema, cujo fragmento está extraído de<br />
Os Timbiras, unanimemente elogiado pela crítica quanto<br />
à riqueza dos processos estilísticos, conta-se a história<br />
do guerreiro tupi capturado pelos Timbiras e que<br />
deverá entoar seu canto de morte preparatório para o ri-<br />
Eu vivo sozinha, ninguém me procura!<br />
Acaso feitura<br />
Não sou de Tupá!<br />
Se algum dentre os homens de mim não se esconde:<br />
— “Tu és”, me responde,<br />
“Tu és Marabá!”<br />
— Meus olhos são garços, são cor das safi ras,<br />
— Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;<br />
MARABÁ<br />
De um troço guerreiro<br />
Com que me encontrei:<br />
O cru dessossêgo<br />
Do pai fraco e cego,<br />
Enquanto não chego<br />
Qual seja, — dizei!<br />
Eu era o seu guia<br />
Na noite sombria,<br />
A só alegria<br />
Que Deus lhe deixou:<br />
Em mim se apoiava,<br />
Em mim se fi rmava,<br />
Em mim descansava,<br />
Que fi lho lhe sou.<br />
Ao velho coitado<br />
De penas ralado,<br />
Já cego e quebrado,<br />
Que resta? — Morrer.<br />
Enquanto descreve<br />
O giro tão breve<br />
Da vida que teve,<br />
Deixai-me viver!<br />
Não vil, não ignavo,<br />
Mas forte, mas bravo,<br />
Serei vosso escravo:<br />
Aqui virei ter.<br />
Guerreiros, não coro<br />
Do pranto que choro:<br />
Se a vida deploro,<br />
Também sei morrer.<br />
tual canibal. Na seqüência, preocupado com a saúde do<br />
velho pai, Juca Pirama pede pela liberdade, conseguida;<br />
mas, entendido como vergonhoso pela ética guerreira<br />
indígena, o jovem será devolvido pelo pai aos inimigos<br />
e enfrentará dignamente seu destino sacrifi cial.<br />
— Imitam as nuvens de um céu anilado,<br />
— As cores imitam das vagas do mar!<br />
Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:<br />
“Teus olhos são garços”,<br />
Responde anojado, “mas és Marabá:<br />
“Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,<br />
“Uns olhos fulgentes,<br />
“Bem pretos, retintos, não cor d’anajá!”
— É alvo meu rosto da alvura dos lírios,<br />
— Da cor das areias batidas do mar;<br />
— As aves mais brancas, as conchas mais puras<br />
— Não têm mais alvura, não têm mais brilhar.<br />
Se ainda me escuta meus agros delírios:<br />
— “És alva de lírios”,<br />
Sorrindo responde, “mas és Marabá:<br />
“Quero antes um rosto de jambo corado,<br />
“Um rosto crestado<br />
“Do sol do deserto, não fl or de cajá.”<br />
— Meu colo de leve se encurva engraçado,<br />
— Como hástea pendente do cáctus em fl or;<br />
— Mimosa, indolente, resvalo no prado,<br />
— Como um soluçado suspiro de amor! —<br />
“Eu amo a estatura fl exível, ligeira,<br />
Qual duma palmeira”,<br />
Então me respondem; “tu és Marabá:<br />
“Quero antes o colo da ema orgulhosa,<br />
Que pisa vaidosa,<br />
“Que as fl óreas campinas governa, onde está.”<br />
Já nesse texto, Gonçalves Dias trata do tema da mestiçagem<br />
e da ausência de lugar destinado aos primeiros fi lhos<br />
do intercurso cultural entre indígenas e portugueses.<br />
A Poesia Ultra-Romântica, o “Mal-do-Século”<br />
Liderada por poetas adolescentes, muitos mortos precocemente,<br />
a geração romântica de meados do século<br />
XIX dedicou-se à exploração do intenso subjetivismo na<br />
poesia, desenvolvendo os temas do amor, da morte, da<br />
saudade, da ironia e da dúvida, do tédio e da melancolia,<br />
rompendo, numa atitude estética fi nalmente radical<br />
para o período com tudo aquilo que não remetesse diretamente<br />
aos problemas do “eu”, entidade que por vezes<br />
beira o sagrado. Daí se infere o sufocamento de sensibilidades<br />
juvenis aprisionadas no ambiente burguês da<br />
época. O importante, nos dizeres de Alfredo Bosi (1994:<br />
110), é que “todo um complexo psicológico se articulou<br />
em uma linguagem e em um estilo novo, que se manteve<br />
por quase trinta anos na esfera da história literária e<br />
sobreviveu, esgarçado e anêmico, até hoje, no mundo<br />
da subcultura e das letras provincianas”.<br />
O nome que mais se destaca desta geração encontrase<br />
no paulista Álvares de Azevedo, morto de tuberculose<br />
antes de completar 21 anos, mas que legou uma<br />
obra de incontestável valor literário, composta nos<br />
— Meus loiros cabelos em ondas se anelam,<br />
— O oiro mais puro não tem seu fulgor;<br />
— As brisas nos bosques de os ver se enamoram<br />
— De os ver tão formosos como um beija-fl or!<br />
Mas eles respondem: “Teus longos cabelos,<br />
“São loiros, são belos,<br />
“Mas são anelados; tu és Marabá:<br />
“Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,<br />
“Cabelos compridos,<br />
“Não cor d’oiro fi no, nem cor d’anajá,”<br />
————<br />
E as doces palavras que eu tinha cá dentro<br />
A quem nas direi?<br />
O ramo d’acácia na fronte de um homem<br />
Jamais cingirei:<br />
Jamais um guerreiro da minha arazóia<br />
Me desprenderá:<br />
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha,<br />
Que sou Marabá!<br />
três gêneros literários: Lira dos Vinte Anos (poesia),<br />
A Noite na Taverna (narrativa) e Macário (poema<br />
dramático), para fi carmos com as mais importantes.<br />
SE EU MORRESSE AMANHÃ!<br />
Se eu morresse amanhã, viria ao menos<br />
Fechar meus olhos minha triste irmã;<br />
Minha mãe de saudades morreria<br />
Se eu morresse amanhã!<br />
Quanta glória pressinto em meu futuro!<br />
Que aurora de porvir e que manhã!<br />
Eu perdera chorando essas coroas<br />
Se eu morresse amanhã!<br />
Que sol! que céu azul! que doce n’alva<br />
Acorda a natureza mais louçã!<br />
Não me batera tanto amor no peito<br />
Se eu morresse amanhã!<br />
Mas essa dor da vida que devora<br />
A ânsia de glória, o dolorido afã...<br />
A dor no peito emudecera ao menos<br />
Se eu morresse amanhã!<br />
Poeta “maldito”, herdeiro de Byron, Musset, Heine<br />
e Lamartine, Álvares de Azevedo revela a boêmia<br />
19
20<br />
espiritual do jovem adolescente, também perseguido,<br />
em alguns textos, por imagens satânicas, presentes<br />
não apenas em alguns de seus poemas, como nos<br />
contos de A Noite na Taverna. Em outros momentos,<br />
percebe-se o erotismo mesclado ao instinto de morte,<br />
de resto, bastante característico do grupo romântico<br />
daquele momento.<br />
Castro Alves e a Geração “Condoreira”<br />
Inspirada pela fi gura do condor, maior ave da Cordilheira<br />
dos Andes cujo vôo alcança enormes altitudes,<br />
a última geração romântica afasta-se da extrema preocupação<br />
subjetiva, individualista, e volta-se para os<br />
problemas da sociedade, os quais procura denunciar.<br />
ADORMECIDA<br />
Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière<br />
La croix de son collier repose dans sa main,-<br />
Comme pour témoigner qu’elle a fait sa prière.<br />
Et qu’elle va la faire en s’éveillant demain.<br />
A. DE MUSSET<br />
UMA NOITE, eu me lembro... Ela dormia<br />
Numa rede encostada molemente...<br />
Quase aberto o roupão... solto o cabelo<br />
E o pé descalço do tapete rente.<br />
‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste<br />
Exalavam as silvas da campina...<br />
E ao longe, num pedaço do horizonte,<br />
Via-se a noite plácida e divina.<br />
De um jasmineiro os galhos encurvados,<br />
Indiscretos entravam pela sala,<br />
E de leve oscilando ao tom das auras,<br />
Iam na face trêmulos - beijá-la.<br />
Era um quadro celeste!...A cada afago<br />
Mesmo em sonhos a moça estremecia...<br />
Quando ela serenava... a fl or beijava-a...<br />
Quando ela ia beijar-lhe... a fl or fugia...<br />
Dir-se-ia que naquele doce instante<br />
Brincavam duas cândidas crianças...<br />
A brisa, que agitava as folhas verdes,<br />
Fazia-lhe ondear as negras tranças!<br />
E o ramo ora chegava ora afastava-se...<br />
Mas quando a via despeitada a meio,<br />
P’ra não zangá-la... sacudia alegre<br />
Uma chuva de pétalas no seio...<br />
Eu, fi tando esta cena, repetia<br />
Naquela noite lânguida e sentida:<br />
‘Ó fl or! - tu és a virgem das campinas!<br />
‘Virgem! - tu és a fl or da minha vida!...’<br />
Jovem fi lho de médico, nascido no interior baiano,<br />
Antonio Frederico de Castro Alves é o representante<br />
principal da última tendência lírica de nossa poesia<br />
romântica. Tendo estudado entre Recife e São Paulo,<br />
com breve passagem pelo Rio de Janeiro, Castro Alves<br />
estréia num novo ambiente brasileiro, marcado<br />
pela crise do Brasil rural, pelo desenvolvimento, ainda<br />
que lento, da cultura urbana e dos ideais liberais, progressistas<br />
e abolicionistas. Sua poesia vincula-se à voz<br />
de Victor Hugo, cuja lírica tanto se prestou à defesa de<br />
novos tempos e à crítica dos velhos tiranos. O jovem<br />
poeta libera em seu verso todo um epos libertário, preocupado<br />
sobretudo com a questão da escravidão dos<br />
negros, convivendo, por outro lado, com uma sensualidade<br />
bastante franca no trato dos temas amorosos,<br />
sem as culpas que envolviam seus predecessores.<br />
O NAVIO NEGREIRO (fragmento)<br />
IV<br />
Era um sonho dantesco... o tombadilho<br />
Que das luzernas avermelha o brilho.<br />
Em sangue a se banhar.<br />
Tinir de ferros... estalar de açoite...<br />
Legiões de homens negros como a noite,<br />
Horrendos a dançar...<br />
Negras mulheres, suspendendo às tetas<br />
Magras crianças, cujas bocas pretas<br />
Rega o sangue das mães:<br />
Outras moças, mas nuas e espantadas,<br />
No turbilhão de espectros arrastadas,<br />
Em ânsia e mágoa vãs!<br />
E ri-se a orquestra irônica, estridente...<br />
E da ronda fantástica a serpente<br />
Faz doudas espirais ...<br />
Se o velho arqueja, se no chão resvala,<br />
Ouvem-se gritos... o chicote estala.<br />
E voam mais e mais...<br />
Presa nos elos de uma só cadeia,<br />
A multidão faminta cambaleia,<br />
E chora e dança ali!<br />
Um de raiva delira, outro enlouquece,<br />
Outro, que martírios embrutece,<br />
Cantando, geme e ri!<br />
No entanto o capitão manda a manobra,<br />
E após fi tando o céu que se desdobra,<br />
Tão puro sobre o mar,<br />
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:<br />
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!<br />
Fazei-os mais dançar!...”<br />
E ri-se a orquestra irônica, estridente...<br />
E da ronda fantástica a serpente<br />
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...<br />
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!<br />
E ri-se Satanás!...<br />
V<br />
Senhor Deus dos desgraçados!<br />
Dizei-me vós, Senhor Deus!<br />
Se é loucura... se é verdade<br />
Tanto horror perante os céus?!<br />
Ó mar, por que não apagas<br />
Co’a esponja de tuas vagas<br />
De teu manto este borrão?...<br />
Astros! noites! tempestades!<br />
Rolai das imensidades!<br />
Varrei os mares, tufão!<br />
Quem são estes desgraçados<br />
Que não encontram em vós<br />
Mais que o rir calmo da turba<br />
Que excita a fúria do algoz?<br />
Quem são? Se a estrela se cala,<br />
Se a vaga à pressa resvala<br />
Como um cúmplice fugaz,<br />
Perante a noite confusa...<br />
Dize-o tu, severa Musa,<br />
Musa libérrima, audaz!...<br />
São os fi lhos do deserto,<br />
Onde a terra esposa a luz.<br />
Onde vive em campo aberto<br />
A tribo dos homens nus...<br />
São os guerreiros ousados<br />
Que com os tigres mosqueados<br />
Combatem na solidão.<br />
Ontem simples, fortes, bravos.<br />
Hoje míseros escravos,<br />
Sem luz, sem ar, sem razão...<br />
São mulheres desgraçadas,<br />
Como Agar o foi também.<br />
Que sedentas, alquebradas,<br />
De longe... bem longe vêm...<br />
Trazendo com tíbios passos,<br />
Filhos e algemas nos braços,<br />
N’alma — lágrimas e fel...<br />
Como Agar sofrendo tanto,<br />
Que nem o leite de pranto<br />
Têm que dar para Ismael.<br />
Lá nas areias infi ndas,<br />
Das palmeiras no país,<br />
Nasceram crianças lindas,<br />
Viveram moças gentis...<br />
Passa um dia a caravana,<br />
Quando a virgem na cabana<br />
Cisma da noite nos véus ...<br />
... Adeus, ó choça do monte,<br />
... Adeus, palmeiras da fonte!...<br />
... Adeus, amores... adeus!...<br />
Depois, o areal extenso...<br />
Depois, o oceano de pó.<br />
Depois no horizonte imenso<br />
Desertos... desertos só...<br />
E a fome, o cansaço, a sede...<br />
Ai! quanto infeliz que cede,<br />
E cai p’ra não mais s’erguer!...<br />
Vaga um lugar na cadeia,<br />
Mas o chacal sobre a areia<br />
Acha um corpo que roer.<br />
Ontem a Serra Leoa,<br />
A guerra, a caça ao leão,<br />
O sono dormido à toa<br />
Sob as tendas d’amplidão!<br />
Hoje... o porão negro, fundo,<br />
Infecto, apertado, imundo,<br />
Tendo a peste por jaguar...<br />
E o sono sempre cortado<br />
Pelo arranco de um fi nado,<br />
E o baque de um corpo ao mar...<br />
Ontem plena liberdade,<br />
A vontade por poder...<br />
Hoje... cúm’lo de maldade,<br />
Nem são livres p’ra morrer...<br />
Prende-os a mesma corrente<br />
— Férrea, lúgubre serpente —<br />
Nas roscas da escravidão.<br />
E assim zombando da morte,<br />
Dança a lúgubre coorte<br />
Ao som do açoute... Irrisão!...<br />
Senhor Deus dos desgraçados!<br />
Dizei-me vós, Senhor Deus,<br />
Se eu deliro... ou se é verdade<br />
Tanto horror perante os céus?!...<br />
Ó mar, por que não apagas<br />
Co’a esponja de tuas vagas<br />
Do teu manto este borrão?<br />
Astros! noites! tempestades!<br />
Rolai das imensidades!<br />
Varrei os mares, tufão! ...<br />
VI<br />
Existe um povo que a bandeira empresta<br />
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...<br />
E deixa-a transformar-se nessa festa<br />
Em manto impuro de bacante fria!...<br />
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,<br />
Que impudente na gávea tripudia?<br />
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto<br />
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...<br />
Auriverde pendão de minha terra,<br />
Que a brisa do Brasil beija e balança,<br />
Estandarte que a luz do sol encerra<br />
E as promessas divinas da esperança...<br />
21
22<br />
Tu que, da liberdade após a guerra,<br />
Foste hasteado dos heróis na lança<br />
Antes te houvessem roto na batalha,<br />
Que servires a um povo de mortalha!...<br />
Fatalidade atroz que a mente esmaga!<br />
Extingue nesta hora o brigue imundo<br />
Ao lado de Castro Alves, aparece na última geração<br />
romântica o nome de Joaquim de Sousa Andrade, ou<br />
Sousândrade, poeta pouco reconhecido à sua época,<br />
dada a carga de originalidade. Ambientado com o<br />
1.3 - A Prosa Narrativa<br />
Além das tardias incursões de Basílio da Gama e<br />
Santa Rita Durão no campo da epopéia, ao fi nal do<br />
Arcadismo, nossas letras não conheciam ainda uma<br />
expressão signifi cativa do gênero narrativo. Será no<br />
contexto do Romantismo que os leitores brasileiros<br />
verão afl orar o romance como principal modelo literário<br />
que, trazido à publicação em meio ao fl orescer<br />
do sentimento de nacionalidade, fi nalmente autorizado<br />
pelo processo da independência, fertilizará nossa<br />
narrativa. O primeiro romance brasileiro a ser publicado<br />
foi O Filho do Pescador, de Teixeira e Sousa,<br />
em 1843. No entanto, serão outros nomes que irão se<br />
destacar, publicando os textos que compõem o principal<br />
legado romântico para nossa prosa de fi cção: Joaquim<br />
Manuel de Macedo, responsável por narrativas<br />
que tentavam registrar, ainda de forma algo edulcorada,<br />
os modos e costumes da corte, como em A Moreninha,<br />
O Moço Loiro, A Luneta Mágica; Bernardo<br />
Guimarães e Visconde de Taunay, que dedicarão<br />
seus escritos à pintura da vida interiorana, regional,<br />
escondida pelos sertões e fazendas, e no caso do segundo,<br />
dedicando especial atenção ao falar brasileiro;<br />
Manuel Antônio de Almeida, jovem escritor cujo<br />
único romance, Memórias de um sargento de milícias<br />
(1853-55), revela uma veia satírica, de certo realismo<br />
grotesco, destinada a tratar com humor o tema do<br />
anti-herói, incomum até então entre nossos principais<br />
autores. No entanto, o grande nome de nossa prosa<br />
fi ccional, responsável pelos romances mais justamente<br />
destinados à construção literária da identidade brasileira,<br />
projeto consciente de seu autor, encontra-se na<br />
fi gura de José de Alencar.<br />
Nascido em Mecejana, Ceará, Alencar construiu<br />
uma importante carreira pública e política tanto<br />
em sua terra natal, como deputado, como na Corte,<br />
ao atuar no Ministério da Justiça, conservador.<br />
Notoriamente ambíguo em suas posições (até retrógradas,<br />
como em face do problema da escravidão),<br />
o escritor acabou por se afastar da vida política,<br />
ressentido com o Imperador Pedro <strong>II</strong>, por não ter<br />
O trilho que Colombo abriu nas vagas,<br />
Como um íris no pélago profundo!<br />
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga<br />
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!<br />
Andrada! arranca esse pendão dos ares!<br />
Colombo! fecha a porta dos teus mares!<br />
ambiente capitalista da Europa e dos Estados Unidos,<br />
por onde viajou longamente, o poeta era atento às técnicas<br />
de composição, com arranjos sonoros ousados,<br />
plurilingüismo, inovações sintáticas e verbais.<br />
sido indicado por este para o Senado. Como escritor,<br />
José de Alencar notabiliza-se não apenas pela<br />
vasta produção, entre numerosos romances, algumas<br />
peças de teatro, crônicas, ensaios, biografi a e<br />
doutrina política, mas também pelas polêmicas em<br />
que se envolveu, como o embate público com Gonçalves<br />
de Magalhães, em torno da Confederação<br />
dos Tamoios, com a censura a As Asas de um Anjo<br />
e a Lucíola, e com os puristas lusófi los, por conta<br />
de suas inovações lingüísticas nos textos literários,<br />
rompendo os padrões gramaticais portugueses, em<br />
prol de uma linguagem brasileira.<br />
De modo geral, a obra romanesca de Alencar pode<br />
ser subdividida em romances, listando aqui os mais<br />
importantes, indianistas: O Guarani (1857), Iracema<br />
(65), Ubirajara (74), nos quais o escritor dedicou-se<br />
a fazer da fi gura do índio o elemento protagonista<br />
como herói nacional, bem como do casal<br />
mestiço, nos dois primeiros, a matriz primordial para<br />
o surgimento da raça brasileira; urbanos: Cinco Minutos<br />
(1860), Lucíola (62), A Pata da Gazela (70),<br />
Senhora (75), em que, além de apresentar, numa tentativa<br />
inicial de realismo, os hábitos e costumes da<br />
cidade do Rio de Janeiro e traçar perfi s de mulher em<br />
personagens femininas de intensa reverberação até<br />
hoje, traz novamente uma certa inspiração francesa<br />
através do molde do melodrama (mais assumido em<br />
seus textos teatrais) na construção das tramas; regionalistas:<br />
O Gaúcho (1870), O Tronco do Ipê (71),<br />
Til (72), O Sertanejo (75), marcados pelo anseio de<br />
registro das diversidades culturais que o vasto país<br />
apresentava; e históricos, afi nados com a tendência<br />
nacionalista e romântica de preservar a memória da<br />
nação, fortalecendo o projeto de construção fi ccional<br />
da identidade brasileira, através dessa vez, do relato<br />
de passagens importantes da história: As Minas de<br />
Prata (1862), A Guerra dos Mascates (73). Segue,<br />
adiante, uma das mais famosas cenas de Iracema,<br />
que registra o idílico encontro da jovem indígena<br />
com o colonizador português Martim.
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no<br />
horizonte, nasceu Iracema.<br />
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os<br />
cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos<br />
que seu talhe de palmeira.<br />
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem<br />
a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.<br />
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem<br />
corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua<br />
guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil<br />
e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que<br />
vestia a terra com as primeiras águas.<br />
Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da<br />
fl oresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais<br />
fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia<br />
silvestre esparziam fl ores sobre os úmidos cabelos. Escondidos<br />
na folhagem os pássaros ameigavam o canto.<br />
Iracema saiu do banho; o aljôfar d’água ainda a<br />
roreja, como à doce mangaba que corou em manhã<br />
de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do<br />
gará as fl echas de seu arco, e concerta com o sabiá da<br />
mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.<br />
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca<br />
junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá<br />
chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de<br />
palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes,<br />
os alvos fi os do crautá , as agulhas da juçara com que<br />
tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.<br />
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta.<br />
Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra;<br />
sua vista perturba-se.<br />
Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro<br />
estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da<br />
fl oresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam<br />
o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas<br />
armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.<br />
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A fl echa<br />
embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham<br />
na face do desconhecido.<br />
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz<br />
da espada, mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu<br />
na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo<br />
de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.<br />
O sentimento que ele pos nos olhos e no rosto, não<br />
o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba,<br />
e correu para o guerreiro, sentida da mágoa<br />
que causara.<br />
A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e<br />
compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema<br />
quebrou a fl echa homicida: deu a haste ao desconhecido,<br />
guardando consigo a ponta farpada.<br />
O guerreiro falou:<br />
1.4 - O Teatro Romântico no Brasil<br />
Tornando-se, enfi m, uma cidade dotada de vida cultural<br />
mais movimentada, e alçada à categoria de corte<br />
imperial, o Rio de Janeiro viu surgir o desenvolvimento<br />
do teatro, através de fi guras importantes, como o ator<br />
João Caetano, principal articulador do seu meio artístico<br />
à época, e os autores românticos que se dedicaram<br />
ao gênero dramático. Coube igualmente a Gonçalves<br />
de Magalhães o mérito cronológico de pioneiro com a<br />
tragédia (gênero ainda clássico, portanto) Antônio José<br />
ou O Poeta e a Inquisição, de 1837. Também Gonçalves<br />
Dias, além de Alencar, como já dissemos, aventurou-se<br />
no campo teatral, legando um texto alinhado<br />
com o drama histórico europeu, Leonor de Mendonça<br />
(1847), a partir da leitura romântica de Shakespeare e<br />
das experiências de Garrett, em Portugal.<br />
- Quebras comigo a fl echa da paz?<br />
- Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem<br />
de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que<br />
nunca viram outro guerreiro como tu?<br />
- Venho de bem longe, fi lha das fl orestas. Venho das terras<br />
que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.<br />
- Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras,<br />
senhores das aldeias, e à cabana de Araquém,<br />
pai de Iracema.<br />
Seria a comédia, entretanto, o cenário em que nosso<br />
teatro romântico encontrou maior sucesso, e um autor<br />
inteiramente dedicado a ele, Martins Pena. Suas<br />
comédias de costumes caracterizam-se pela linguagem<br />
coloquial, a utilização de tipos populares, como<br />
o roceiro, o provinciano, a dose de realismo (ainda<br />
que grotesco e/ou convencional), que de certa forma,<br />
marcam um contraponto em relação às idealizações<br />
da narrativa de fi cção e da poesia do mesmo período.<br />
A sensibilidade privilegiada do autor revelou um talento<br />
cênico, que transmite rapidamente ao leitor/espectador<br />
o cômico, captando o risível onde quer que<br />
se encontre, através da intenção satírica, do nonsense,<br />
do absurdo e do tom de farsa. Entre seus textos mais<br />
famosos, ainda encenados com bastante regularidade,<br />
23
24<br />
seguindo as estréias no palco, encontram-se O Juiz de<br />
Paz na Roça (1838), O Judas em Sábado de Aleluia<br />
(44), O Noviço (45), Quem Casa, Quer Casa (45).<br />
O trecho abaixo, extraído de O Noviço, mostra um diálogo<br />
entre o casal de primos da peça, Carlos e Emília,<br />
condenados à vida religiosa pelo padrasto desta – Ambrósio,<br />
escroque de olho na fortuna da esposa ingênua,<br />
Florência – ainda no início da peça. A trama gira a partir<br />
do confl ito entre os jovens e Ambrósio, ao fi nal derrotado.<br />
Carlos, neste fragmento, revoltado com a situação,<br />
fugira do convento e tece uma ácida refl exão, por assim<br />
dizer, a respeito da divisão das profi ssões no Brasil.<br />
EMÍLIA - Fugiste? E por que motivo?<br />
CARLOS - Por que motivo? pois faltam motivos<br />
para se fugir de um convento? O último foi o jejum<br />
em que vivo há sete dias... Vê como tenho esta barriga,<br />
vai a sumir-se. Desde sexta-feira passada que não<br />
mastigo pedaço que valha a pena.<br />
EMÍLIA - Coitado!<br />
CARLOS - Hoje, já não podendo, questionei com o<br />
D. Abade. Palavras puxam palavras; dize tu, direi eu,<br />
e por fi m de contas arrumei-lhe uma cabeçada, que o<br />
atirei por esses ares.<br />
EMÍLIA - O que fi zestes, louco?<br />
CARLOS - E que culpa tenho eu, se tenho a cabeça<br />
esquentada? Para que querem violentar minhas<br />
inclinações? Não nasci para frade, não tenho jeito<br />
nenhum para estar horas inteiras no coro a rezar com<br />
os braços encruzados. Não me vai o gosto para aí...<br />
Não posso jejuar; tenho, pelo menos três vezes ao dia,<br />
uma fome de todos os diabos. Militar é que eu quisera<br />
ser; para aí chama-me a inclinação. Bordoadas, espadeiradas,<br />
rusgas é que me regalam; esse é o meu<br />
gênio. Gosto de teatro, e de lá ninguém vai ao teatro,<br />
à exceção de Frei Maurício, que freqüenta a platéia<br />
de casaca e cabelereira para esconder a coroa.<br />
EMÍLIA - Pobre Carlos, como terás passado estes<br />
seis meses de noviciado!<br />
CARLOS - Seis meses de martírio! Não que a vida<br />
de frade seja má; boa é ela para quem a sabe gozar e<br />
que para ela nasceu; mas eu, priminha, eu que tenho<br />
para tal vidinha negação completa, não posso!<br />
EMÍLIA - E os nossos parentes quando nos obrigam<br />
a seguir uma carreira para a qual não temos inclinação<br />
alguma, dizem que o tempo acostumar-nos-á.<br />
CARLOS - O tempo acostumar! Eis aí porque vemos<br />
entre nós tantos absurdos e disparates. Este tem jeito<br />
para sapateiro: pois vá estudar medicina... Excelente<br />
médico! Aquele tem inclinação para cômico: pois não<br />
senhor, será político... Ora, ainda isso vá. Estoutro<br />
só tem jeito para caiador ou borrador: nada, é ofício<br />
que não presta... Seja diplomata, que borra tudo<br />
quanto faz. Aqueloutro chama-lhe toda a propensão<br />
para a ladroeira; manda o bom senso que se corrija<br />
o sujeitinho, mas isso não se faz; seja tesoureiro de<br />
repartição fi scal, e lá se vão os cofres da nação à<br />
garra... Essoutro tem uma grande carga de preguiça<br />
e indolência e só serviria para leigo de convento, no<br />
entanto vemos o bom do mandrião empregado público,<br />
comendo com as mãos encruzadas sobre a pança<br />
o pingue ordenado da nação.<br />
EMÍLIA - Tens muita razão; assim é.<br />
CARLOS - Este nasceu para poeta ou escritor, com<br />
uma imaginação fogosa e independente, capaz de<br />
grandes cousas, mas não pode seguir a sua inclinação,<br />
porque poetas e escritores morrem de miséria,<br />
no Brasil... E assim o obriga a necessidade a ser o<br />
mais somenos amanuense em uma repartição pública<br />
e a copiar cinco horas por dia os mais soníferos<br />
papéis. O que acontece? Em breve matam-lhe a inteligência<br />
e fazem do homem pensante máquina estúpida,<br />
e assim se gasta uma vida? É preciso, é já tempo<br />
que alguém olhe para isso, e alguém que possa.<br />
EMÍLIA - Quem pode nem sempre sabe o que se passa<br />
entre nós, para poder remediar; é preciso falar.<br />
CARLOS - O respeito e a modéstia prendem muitas<br />
línguas, mas lá vem um dia que a voz da razão se faz<br />
ouvir, e tanto mais forte quanto mais comprimida.<br />
EMÍLIA - Mas Carlos, hoje te estou desconhecendo...<br />
CARLOS - A contradição em que vivo tem-me exasperado!<br />
E como queres tu que eu não fale quando<br />
vejo, aqui, um péssimo cirurgião que poderia ser bom<br />
alveitar; ali um ignorante general que poderia ser<br />
excelente enfermeiro; acolá, um periodiqueiro que só<br />
serviria para arrieiro, tão desbocado e insolente é,<br />
etc., etc. Tudo está fora de seus eixos.<br />
EMÍLIA - Mas que queres tu que se faça?<br />
CARLOS - Que não se constranja ninguém, que se<br />
estudem os homens e que haja uma bem entendida e<br />
esclarecida proteção, e que, sobretudo, se despreze<br />
o patronato, que assenta o jumento nas bancas das<br />
academias e amarra o homem de talento à manjedoura.<br />
Eu, que quisera viver com uma espada à cinta e à<br />
frente do meu batalhão, conduzi-lo ao inimigo através<br />
da metralha, bradando: “Marcha... (Manobrando<br />
pela sala, entusiasmado:) Camaradas, coragem,<br />
calar baionetas! Marche, marche! Firmeza, avança!<br />
O inimigo fraqueia... (Seguindo Emília, que recua,<br />
espantada:) Avança!”
EMÍLIA - Primo, primo, que é isso? Fique quieto!<br />
CARLOS, entusiasmado - “Avança, bravos companheiros,<br />
viva a Pátria Viva!” - e voltar vitorioso, coberto<br />
de sangue e poeira... Em vez desta vida de agita-<br />
Glossário<br />
ção e glória, hei-de ser frade, revestir-me de paciência<br />
e humildade, encomendar defuntos... (Cantando:) Requiescat<br />
in pace... a porta inferi! amen... O que seguirá<br />
disto? O ser eu péssimo frade, descrédito do convento<br />
e vergonha do hábito que visto. Falta-me a paciência.<br />
Grotesco - feio, ridículo ou estranho; referente às manifestações do corpo na arte e na literatura, diferenciandose<br />
da categoria do sublime (belo).<br />
Idílica - suavemente amoroso, da natureza do encontro junto à natureza.<br />
Indianista - diz-se da prosa ou da poesia românticas destinadas à temática do índio.<br />
“Nonsense” - ausência de sentido, construção lógica pautada no chiste, segue a lógica do absurdo.<br />
Exercícios de Auto-avaliação<br />
1. Em que sentido o Romantismo foi fundamental para a confi rmação da temática nacional na literatura brasileira?<br />
2. Quais as principais diferenças entre as três gerações de poesia romântica no Brasil?<br />
3. Aponte, na obra de José de Alencar, como se desdobra seu projeto literário nas vertentes de sua produção fi ccional.<br />
4. O registro da comédia engloba a produção de Martins Pena. Que efeitos de representação dos costumes<br />
brasileiros do século XIX o dramaturgo consegue extrair?<br />
25
26<br />
UNIDADE <strong>II</strong><br />
O REALISMO/NATURALISMO<br />
2.1 - Conceituação<br />
Em termos gerais e amplos, pode-se afi rmar inicialmente<br />
que há sempre certa dose de realismo na literatura<br />
(e na arte) toda vez que esta diminui a ênfase nos<br />
aspectos subjetivos, na expressão marcadamente vinculada<br />
à representação de um “eu”, ainda que mimético,<br />
fi ccional, fruto da linguagem, em prol do olhar sobre o<br />
mundo exterior, sobre os costumes de uma determinada<br />
sociedade, da qual busca fazer uma crítica. No entanto,<br />
muitas vezes essa visada sobre o “real”, o social, o<br />
cotidiano ou o costumeiro, apresenta-se mesclada a formações<br />
caricatas dos personagens e situações, ou ainda<br />
enredada nas idealizações e imagens consolidadas pela<br />
tradição literária. No entanto, no panorama históricoliterário<br />
que se apresenta na segunda metade do século<br />
XIX, na Europa, a busca por uma narrativa que desse<br />
conta de mimetizar com a maior verossimilhança possível<br />
os processos sociais e a vida dos indivíduos encontrou<br />
terreno propício através da hegemonia do materialismo<br />
no campo do pensamento ocidental.<br />
Século do romance, mas também do positivismo, os<br />
oitocentos acompanharam o surgimento de toda uma<br />
visão de mundo baseada em disciplinas que comporiam<br />
uma nova perspectiva sobre a realidade: o darwinismo<br />
e a idéia de evolução (herança romântica),<br />
o embate entre liberalismo de um lado e marxismo de<br />
outro, no campo da economia, a vitória – pelo menos<br />
em termos da Europa Central e Ocidental – do pensamento<br />
laico sobre o poder da Igreja e do discurso<br />
religioso, na prática política, processos paralelos ao<br />
desenvolvimento da biologia, da sociologia, da história,<br />
da psicologia experimental.<br />
No campo literário, desenvolveu-se no campo da<br />
fi cção narrativa, seja no romance, seja no conto, um<br />
projeto literário que buscou afastar-se dos excessos do<br />
subjetivismo romântico para aproximar-se de uma representação<br />
crítica (ainda que presa aos limites das ciências<br />
humanas e naturais à época) dos aspectos menos<br />
nobres da vida pública, das ambigüidades e descompassos<br />
da vida íntima, através de causas naturais (raça,<br />
clima, temperamento) ou culturais (meio social, educação),<br />
o que não deixa de ser um limite até certo ponto.<br />
Na França, continuando o caminho iniciado, pelo<br />
menos por Victor Hugo, o de Os Miseráveis, e Balzac,<br />
e sua monumental Comédia Humana, consolida-se a<br />
chegada do Realismo nas obras de Flaubert, Maupassant,<br />
e, partindo para o Naturalismo, de Émile Zola. Na<br />
Inglaterra, sobressaem Charles Dickens e Thackeray.<br />
Faz-se necessário lembrar a distinção entre Realismo e<br />
Naturalismo, muito embora seja sutil tal separação. De<br />
maneira geral, pode-se dizer que o Realismo opera sobre<br />
uma base de seriedade da proposta do escritor, engajado<br />
num procedimento fi ccional que penetra não apenas nos<br />
esquemas de funcionamento de uma determinada classe<br />
social, quase sempre denunciando a importância do fator<br />
econômico nas relações, mas que também aprofunda a<br />
caracterização psicológica das personagens (no mínimo,<br />
a da protagonista), aproximando-as o máximo possível<br />
do retrato de uma pessoa – podemos pensar nos casos<br />
de Flaubert, de Dostoievski, de Machado de Assis. Já o<br />
Naturalismo mergulha na ênfase dos aspectos biológicos<br />
– a vida sexual, as doenças, a relação com a higiene,<br />
ou a falta desta –, “desvios” psicopatológicos (as taras,<br />
a loucura) e morais (até mesmo numa perspectiva menos<br />
nobre do termo, de moralismo barato, preconceituoso),<br />
como o crime, o incesto, o adultério. Tal ideologia,<br />
no entanto, aprisiona o destino das personagens sob o<br />
peso das leis “naturais”, como eram entendidas. O escritor<br />
naturalista vai além do realista, sem deixar de sê-lo<br />
também, ao não poupar aspectos que, se por um lado<br />
podem ter parecido desagradáveis aos leitores do XIX,<br />
ao mesmo tempo deixaram transparecer, dada a boa receptividade<br />
granjeada pelas obras, um interesse bastante<br />
intenso por este mesmo público.<br />
No caso brasileiro, o Realismo-Naturalismo manifestou-se<br />
num período efervescente, de mudança da política<br />
e da economia, em que a luta abolicionista e republicana<br />
cada vez mais se fortalecia até o advento fi nal da Abolição<br />
e da proclamação da República, já com o período<br />
literário iniciado. Mais uma vez, como acontecera anteriormente,<br />
foi a tendência a seguir a infl uência francesa<br />
que trouxe o novo ideário artístico para a camada literária<br />
e intelectual no Brasil: a laicização, o materialismo,<br />
o racionalismo positivista, o determinismo, a concepção<br />
histórica, o anticlericalismo e o naturalismo.<br />
O ano que vê surgir a primeira publicação realista<br />
no Brasil é 1881, com o lançamento de O Mulato, de<br />
Aluísio Azevedo, seguido de Memórias Póstumas de<br />
Brás Cubas, de Machado de Assis, também naquele<br />
ano. A Literatura Brasileira vai, assim, consolidando<br />
seu caminho, e fazendo do romance o grande gênero<br />
para tratar dos problemas nacionais, já sem o ufanismo<br />
romântico, mas com um olhar mais crítico, maduro,<br />
que não foge à composição radical do quadro<br />
humano e social de que trata.
2.2 - O Realismo no Brasil<br />
A partir dos anos de 1860, os elementos sociais, políticos<br />
e econômicos da sociedade brasileira começaram a<br />
passar por uma profunda e radical transformação. A sociedade<br />
cada vez mais se tornava urbana, deixando lentamente<br />
o espaço agrário para se concentrar nas cidades,<br />
o que prepararia o processo de industrialização, tardiamente<br />
implantado apenas no início do século seguinte.<br />
De qualquer forma, o grande contingente populacional<br />
já começava a criar grupos marginais e um pequeno proletariado<br />
urbano. Lentamente, desenvolvia-se o processo<br />
de fi nalização da escravatura, assistindo-se, porém, a um<br />
processo de “embranquecimento” da população mestiça,<br />
que buscava participar ativamente da vida social, política<br />
e intelectual. Neste ambiente, fl oresceram os ideais republicanos<br />
e liberais, em confl ito com os interesses dos barões<br />
do café, sustentáculo da economia nacional, já que<br />
a cultura açucareira do Nordeste encaminhava-se cada<br />
vez mais para a decadência, gerando bolsões de pobreza<br />
rural, interiorana naquela região, e deixando para o Sul a<br />
hegemonia sobre as decisões nacionais.<br />
Este é o cenário em que se implantou o Realismo entre<br />
nós. Inicialmente, percebe-se uma “descida de tom”,<br />
nos dizeres de Alfredo Bosi, na relação entre o autor e<br />
o tema da obra, há um esforço de objetividade, de impessoalidade<br />
no exercício da criação fi ccional. Adotamse<br />
as idéias do determinismo, de fundo pessimista e o<br />
interesse temático se divide por dois cenários: o urbano,<br />
sobre o qual se criam obras à maneira do romance experimental<br />
de Zola, projeto literário que fazia da narrativa<br />
naturalista o laboratório para teses sociobiológicas, à luz<br />
de uma “teoria”, tematizando aspectos contemporâneos<br />
e cotidianos da sociedade; e o regional, que adota o determinismo<br />
geográfi co, fazendo das forças naturais um<br />
obstáculo insuperável pela vontade humana de progresso,<br />
visão que acentua o pessimismo, a desesperança, o<br />
desencanto, e nega o livre-arbítrio. Se o burguês, o marginal<br />
e o ex-escravo citadinos estão amarrados às injunções<br />
da classe social, o sertanejo encontra-se condenado<br />
pela lei do sangue, da raça e do poder da natureza.<br />
No campo da narrativa urbana, sobressaem os nomes de<br />
Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha (A Normalista, Bom-<br />
Crioulo), Raul Pompéia (já sob infl uxos impressionistas,<br />
à maneira de Proust, em O Ateneu), e avulta o nome<br />
maior, de expressão não apenas brasileira, mas universal,<br />
reconhecida recentemente pelo cânon literário internacional,<br />
de Machado de Assis. No romance regionalista,<br />
destacam-se Domingos Olímpio (Luzia-Homem), Inglês<br />
de Sousa (O Missionário) e Rodolfo Teófi lo (A Fome).<br />
O Bruxo do Cosme Velho<br />
Nome maior de nossa literatura narrativa nos oitocentos,<br />
Machado de Assis nasceu no Morro do Livra-<br />
mento, fi lho de um pintor mulato e de uma lavadeira<br />
de origem açoriana. Criado pela madrasta, o jovem<br />
recebeu o ensino primário em escola pública, tendo<br />
aprendido francês e latim com a ajuda de um padre amigo,<br />
e mais tarde, como autodidata, construiu uma vasta<br />
cultura literária. Trabalhando como tipógrafo, ingressa<br />
no mundo literário e trava conhecimento com os principais<br />
escritores da época. Dessa época, datam suas comédias<br />
e sua produção lírica com as Crisálidas (1864).<br />
Aos trinta anos, casa-se com a culta Carolina Xavier de<br />
Novais. Consolidada sua carreira burocrática, passa a se<br />
dedicar à produção de seus contos e romances.<br />
No que tange à classifi cação de sua obra pelos autores<br />
mais canônicos, convencionou-se separar a obra<br />
de Machado em dois momentos: um primeiro, em<br />
que o escritor lentamente afasta-se do molde romântico,<br />
penetrando paulatinamente na fi guração realista<br />
– desde sempre, porém, ultrapassada pela fi na ironia<br />
de seus narradores e procedimentos romanescos – e<br />
como que se preparando para o salto de qualidade<br />
que marcará o segundo período. A esta fase pertencem<br />
Contos Fluminenses (1870), Ressurreição (72),<br />
Histórias da Meia-Noite (73), A Mão e a Luva (74),<br />
Helena (76) e Iaiá Garcia (76).<br />
O segundo e mais signifi cativo momento, responsável<br />
pela consagração de Machado de Assis, inicia-se<br />
com a publicação do romance Memórias Póstumas<br />
de Brás Cubas (1881). Nesta obra, o escritor avança<br />
para além do aprofundamento psicológico, ou da utilização<br />
da personagem tipo, ao utilizar uma estrutura<br />
informal, fragmentada, com uso de narrador impertinente<br />
– o próprio protagonista, “tecido de lembranças<br />
casuais, fait divers e cortes digressivos entre banais e<br />
cínicos”, nos dizeres de Alfredo Bosi. A unidade encontra-se,<br />
porém, no retrato da sociedade e na presença<br />
das forças do inconsciente, afastando-se do projeto<br />
de um realismo mais programático. Atingida a maturidade<br />
do fi ccionista, seguem-se Histórias sem data<br />
(84), Quincas Borba (92), Várias Histórias (96), Páginas<br />
Recolhidas (99), Dom Casmurro (1900), Esaú e<br />
Jacó (1904) e Relíquias da Casa Velha (1906).<br />
Em 1896, funda, com outros escritores, a Academia<br />
Brasileira de Letras, da qual foi o primeiro presidente.<br />
Oito anos depois, morre-lhe a esposa, e Machado entrega-se<br />
a uma solidão melancólica que, não obstante,<br />
sela a produção de seu último romance, espécie de<br />
testamento literário, Memorial de Aires (1908).<br />
Tendo legado uma vasta produção em todos os gêneros<br />
literários, mas cujo segmento de maior envergadura<br />
artística encontra-se em seus romances e contos,<br />
Machado de Assis tece com maestria sua crítica<br />
carregada de ironia, sua maior fi gura de linguagem,<br />
27
28<br />
a diversos aspectos da vida brasileira, visivelmente<br />
perceptíveis na pintura que faz de sua aldeia, o Rio<br />
de Janeiro dos tempos da Corte, ou, como se dizia, a<br />
Corte, simplesmente. Neste cenário, em que trafegam<br />
moças à espera de casamento, esposas de conduta duvidosa,<br />
jovens de boa família entregues ao fazer nada<br />
Tinha-me lembrado a defi nição que José Dias dera<br />
deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu<br />
não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e<br />
queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se<br />
fi tar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca<br />
os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura<br />
eram minhas conhecidas. A demora da contemplação<br />
creio que lhe deu outra idéia do meu intento;<br />
imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de<br />
perto, com os meus olhos longos, constantes, enfi ados<br />
neles, e a isto atribuo que entrassem a fi car crescidos,<br />
crescidos e sombrios, com tal expressão que...<br />
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação<br />
exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos<br />
de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem<br />
quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me<br />
fi zeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que<br />
me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que<br />
fl uido misterioso e enérgico, uma força que arrastava<br />
para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos<br />
Esse fragmento de Dom Casmurro, obra mais controversa<br />
de Machado de Assis, focaliza o detalhe<br />
físico mais famoso entre as personagens do autor,<br />
nesta narrativa também de memórias, que, mais do<br />
que desnudar o possível adultério de Capitu, esposa<br />
do narrador-protagonista, dá relevo às repercussões<br />
psíquicas que sofre Bentinho diante do comportamento<br />
enigmático da mulher. Contudo, o romance<br />
não deixa de guardar seu aspecto de narrativa de<br />
costumes, em suas referências aos padrões familiares<br />
do Rio de Janeiro. Em meio a essa conjunção,<br />
sobressaem a melancolia e o pessimismo, encarados<br />
sem passionalidade, mas contaminados pela ironia<br />
fi na tão característica do escritor.<br />
Não se pode deixar de apontar a hábil construção de<br />
vários contos admiráveis, nos quais aparecem a crítica<br />
ao cientifi cismo da época (O Alienista), o poder<br />
dos símbolos materiais na construção da identidade<br />
(O Espelho), o desenho psicológico (Trio em Lá Menor,<br />
Dona Benedita, A Causa Secreta), sugestão de<br />
atmosferas (Missa do Galo, Entre Santos), entre outros<br />
recursos estilísticos e temáticos.<br />
Nos dizeres de Alfredo Bosi (1994: 182-183), a<br />
obra machadiana “constitui, pelo equilíbrio formal<br />
que atingiu, um dos caminhos permanentes da prosa<br />
brasileira na direção da profundidade e da universa-<br />
de sua condição abastada (cujo único ofício constituise<br />
na ocupação de cargos públicos políticos), algumas<br />
mucamas, o escritor destila sua perspicaz observação<br />
das relações humanas, elegendo temas como a loucura,<br />
o interesse fi nanceiro, a banalidade dos costumes<br />
sociais e a morte.<br />
dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me<br />
às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos<br />
cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa<br />
buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha<br />
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me,<br />
puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos<br />
naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado<br />
esse tempo infi nito e breve. A eternidade tem as suas<br />
pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer<br />
saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de<br />
dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer<br />
a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno<br />
os seus inimigos; assim também a quantidade<br />
das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos<br />
aumentará as dores aos condenados do inferno. Este<br />
outro suplício escapou ao divino Dane; mas eu não<br />
estou aqui para emendar poetas. Estou para contar<br />
que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me<br />
defi nitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com<br />
as mãos, e disse-lhe – para dizer alguma cousa, – que<br />
era capaz de os pentear, se quisesse.<br />
lidade. Mas não deve ser transformada em ídolo; isso<br />
não conviria a um autor que fez da literatura uma<br />
recusa assídua de todos os mitos”.<br />
A Ficção Naturalista de Aluísio Azevedo<br />
Irmão do também famoso Artur Azevedo, comediógrafo<br />
maior da virada do século XIX para o XX,<br />
Aluísio Azevedo nasceu em São Luís do Maranhão,<br />
em 1857. Tendo seguido para o Rio de Janeiro a<br />
convite do irmão, trabalhou como caricaturista em<br />
jornais e humorísticos. Depois de um primeiro romance,<br />
ainda na chave sentimental, Uma Lágrima de<br />
Mulher (1880), o escritor lança aquele que foi considerado<br />
o primeiro romance naturalista brasileiro, O<br />
Mulato (1881), que o faria ser consagrado na Corte,<br />
para onde se mudaria devido à irritação que o livro<br />
provocou entre seus conterrâneos do Maranhão, ao<br />
retratar o racismo presente entre as famílias ricas de<br />
São Luís. Entre 1882 e 1895, consegue viver apenas<br />
de sua ininterrupta produção escrita, que incluía contos,<br />
operetas, revistas teatrais e romances, dos quais<br />
apenas O Mulato, Casa de Pensão (1884) e O Cortiço<br />
(1890) constituem narrativas de maior fôlego literário<br />
e mais afeitas ao desenho naturalista em suas<br />
tramas e temas. O restante de sua lavra romanesca
prende-se ao fi lão bem-sucedido comercialmente,<br />
mas de frágil investidura artística, do melodrama<br />
sentimental, do folhetim.<br />
O Cortiço, romance central na história de nosso<br />
Naturalismo, conta a história de uma habitação coletiva<br />
carioca nos fi nais do século XIX, construída<br />
por João Romão, comerciante português inescru-<br />
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava,<br />
abrindo, não os olhos, mas a sua infi nidade de portas<br />
e janelas alinhadas.<br />
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma<br />
assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam<br />
ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da<br />
última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se<br />
à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de<br />
saudade perdido em terra alheia.<br />
A roupa lavada, que fi cara de véspera nos coradouros,<br />
umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão<br />
ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no<br />
lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo<br />
anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de<br />
acumulações de espumas secas.<br />
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas<br />
de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como<br />
o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a<br />
parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente<br />
do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se<br />
de janela para janela as primeiras palavras,<br />
os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à<br />
noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro<br />
das casas vinham choros abafados de crianças que<br />
ainda não andam. No confuso rumor que se formava,<br />
destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam,<br />
sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos,<br />
cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam<br />
mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a<br />
gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos do-<br />
Glossário<br />
puloso, paulatinamente à medida em que explora e<br />
rouba o grupo numeroso de marginais e trabalhadores<br />
que ali vão viver seus dramas, narrados num<br />
grande painel humano que faz com que o enredo<br />
se construa com base em cenas coletivas e tipos<br />
primários como personagens, daí o próprio cortiço<br />
erigir-se como o personagem por excelência de toda<br />
a obra. Leia-se o trecho a seguir.<br />
nos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se<br />
à luz nova do dia.<br />
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum<br />
crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e<br />
fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente,<br />
debaixo do fi o de água que escorria da altura<br />
de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres<br />
precisavam já prender as saias entre as coxas para<br />
não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços<br />
e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo<br />
todo para o alto do casco; os homens, esses não<br />
se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário,<br />
metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam<br />
com força as ventas e as barbas, fossando e fungando<br />
contra as palmas da mão. As portas das latrinas não<br />
descansavam, era um abrir e fechar de cada instante,<br />
um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam<br />
lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as<br />
saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir,<br />
despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos,<br />
por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.<br />
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos<br />
os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes<br />
dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo<br />
o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se<br />
discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas<br />
e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se<br />
naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa<br />
de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na<br />
lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir,<br />
a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.<br />
Darwinismo – teoria de Charles Darwin, que propõe a seleção natural das espécies a partir da luta<br />
pela sobrevivência.<br />
Determinismo – teoria pela qual a conduta individual é modelada pelo tipo de sociedade em que<br />
vive.<br />
Digressivo – relativo a digressão, procedimento textual em que se suspende o fi o narrativo ou argumentativo<br />
para divagações de caráter diverso (fi losófi cas, morais, religiosas, políticas etc.)<br />
“Fait-divers”- jargão da imprensa que designa notícias diversas, porém dotadas de toques de bizarrice,<br />
de estranho, prontamente lançadas na banalidade do cotidiano, entretanto.<br />
Laico – leigo, não-religioso; secular, por oposição a eclesiástico.<br />
29
30<br />
Liberalismo – doutrina que prega a liberdade política e de consciência, em oposição à autoridade do<br />
Estado ou da Igreja, restringindo ao máximo as atribuições destes; no campo econômico, defende o<br />
trabalho livremente organizado, sem interferência do Estado.<br />
Marxismo – conjunto de idéias, teorias e conceitos elaborados por Karl Marx, a partir da investigação<br />
da base material das sociedades, religiões, impérios etc., enfatizando a questão da luta de classes e<br />
a transformação da sociedade a partir das alterações históricas no sistema produtivo. Tornou-se uma<br />
ampla doutrina que reúne inúmeros pensadores a militantes, nem sempre coincidentes quanto às interpretações<br />
do processo social e das resoluções destinadas à transformação do sistema de produção.<br />
Positivismo – corrente sociológica inaugurada por Auguste Comte (1798-1857), pauta-se sobre a<br />
ciência e a razão como defi nidoras do conhecimento e propiciadoras do desenvolvimento histórico.<br />
Proletariado – classe operária; trabalhadores livres empregados na indústria.<br />
Exercícios de Auto-avaliação<br />
1. Uma distinção entre os projetos realista e naturalista faz-se visível na leitura de autores e obras do fi nal do<br />
século XIX. Quais são os aspectos envolvidos nesta diferença?<br />
2. Aponte as principais características que elevam o texto literário de Machado de Assis para além da cartilha<br />
realista, fazendo de sua obra um momento maior de nossa literatura.<br />
3. Por que é lícito afi rmar que o protagonista do romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo, é a própria habitação<br />
que dá título ao volume?
UNIDADE <strong>II</strong>I<br />
O PARNASIANISMO E O SIMBOLISMO<br />
3.1 - Conceituação<br />
Corrente poética de origem francesa, mais especifi camente<br />
parisiense, devido ao surgimento da revista Parnasse<br />
Contemporain, cujas antologias incluíam poemas<br />
de Gautier, Banville e Leconte de Lisle, o Parnasianismo<br />
caracteriza-se primordialmente pela articulação entre<br />
ideais não-românticos com a objetividade no trato<br />
dos temas e o culto da forma, sobressaindo igualmente<br />
o gosto pela descrição nítida, o retorno da métrica tradicional<br />
(rima, ritmo, metro) e o ideal de impessoalidade.<br />
Estilo de época de grande repercussão em nossas letras<br />
(e também em nossos hábitos culturais e lingüísticos),<br />
foi contemporâneo ao Realismo/Naturalismo, mas também<br />
ao Simbolismo, escola suplantada na vida literária<br />
brasileira do fi m-de-século pela infl uência dos autores<br />
parnasianos, inclusive em esferas políticas.<br />
Se no caso da História da Literatura Brasileira, Parnasianismo<br />
e Simbolismo confi guraram uma animosa<br />
rivalidade, o mesmo não se deu em contexto europeu,<br />
ou pelo menos francês, no qual o segundo sucedeu<br />
ao primeiro sem maiores sobressaltos entre os poetas<br />
pertencentes a ambos os movimentos.<br />
Herdando dos parnasianos a paixão pelo efeito estético,<br />
os poetas do Simbolismo buscaram transcender<br />
seus antecessores na direção daquilo que parecia<br />
ter fi cado para trás no Romantismo: o sentimento de<br />
totalidade, a busca pela vida cósmica, em seus aspectos<br />
religiosos e fi losófi cos. O desconforto com as<br />
soluções racionalistas e cientifi cistas, características<br />
do século XIX, leva o escritor simbolista a sondar o<br />
universo mental anterior à fala, à linguagem, a buscar<br />
o intangível que sustentaria os fenômenos empíricos,<br />
sob o nome de Natureza, Absoluto, Deus ou<br />
Nada. Nesse caminho de investigação metafísica, o<br />
símbolo encerra o valor semântico principal diante<br />
da ambição poética de ascender ao Todo universal<br />
(tradicionalmente vinculado ao discurso e à vivência<br />
religiosa), estabelecendo-se através das sugestões<br />
advindas da poesia de Charles Baudelaire (espécie de<br />
“pai” de toda a poesia moderna), dos boêmios, dos<br />
malditos e das correntes mais antiburguesas e irracionalistas<br />
do Romantismo.<br />
São os primeiros sinais de desilusão diante da promessa<br />
de felicidade que a industrialização oferecera<br />
ao homem ocidental que levam o Simbolismo<br />
à opção pela linguagem da liturgia, da idealização<br />
rarefeita e espiritualizante do conceito de Belo, pelas<br />
sugestões do sonho e da paixão, pelas analogias<br />
sensórias (as Correspondências, de Baudelaire) que<br />
chegam à sinestesia.<br />
3.2 - Parnasianismo e Simbolismo no Brasil<br />
Lançado no Brasil em 1882, com a publicação de Fanfarras,<br />
de Teófi lo Dias, o Parnasianismo estendeu-se,<br />
como norma de linguagem literária e como opção estética,<br />
a despeito das datações do Simbolismo e do Pré-Modernismo<br />
em nossos compêndios escolares, até o advento<br />
da Semana de Arte Moderna, na década de 20, marco da<br />
consolidação do Modernismo. Com a liderança de Olavo<br />
Bilac, eloqüente poeta, o movimento tem em Raimundo<br />
Correia, Alberto de Oliveira e no próprio Bilac sua tríade<br />
máxima de lirismo. Outros nomes importantes do grupo<br />
foram Francisca Júlia e Vicente de Carvalho.<br />
Já o Simbolismo, sem distanciar-se muito do mesmo<br />
quadro histórico e social que engendrara o Realismo e o<br />
Parnasianismo no Brasil, coloca-se de maneira problemática<br />
entre nós, justamente por uma aparente incongruência<br />
entre o contexto e a proposta estética, já que o país encontrava-se<br />
em um momento de intenso engajamento político<br />
por parte de seus literatos, pelo menos em dois processos<br />
que chegariam a uma resolução defi nitiva: a abolição da<br />
escravatura e a mudança de sistema político para a República.<br />
Mesmo Cruz e Sousa, em sua juventude, lançou-se<br />
à produção de textos de preocupação racial.<br />
Assim como os parnasianos, também os simbolistas<br />
ocuparam-se com a oposição ao Império escravocrata.<br />
Logo após, percorrem caminhos distintos: os parnasianos<br />
ocupam-se do culto da forma, enquanto os<br />
simbolistas buscam a religião do verbo. Para estes,<br />
a ênfase recai sobre o sujeito, inserido num projeto<br />
metafísico que ora transfi gura a condição humana<br />
e alcança vôos transcendentais (Cruz e Sousa), ora<br />
opta pela lição de Verlaine e Baudelaire, utilizando<br />
cadências sombrias, lamentosas, litúrgicas e fúnebres<br />
(Alphonsus de Guimaraens). Apesar da novidade,<br />
contudo, o Simbolismo não obteve aqui maiores<br />
31
32<br />
desenvolvimentos na vida literária do período, como<br />
acontecera na Europa, entre outros motivos porque a<br />
literatura ofi cial abraçara a cartilha realista e parnasiana<br />
como linguagem e discurso hegemônicos.<br />
Feitas as ressalvas, cabe lembrar a data de 1893<br />
como o início do Simbolismo brasileiro, com a publicação<br />
de Broquéis, de Cruz e Sousa, seguido no mesmo<br />
ano por Missal, igualmente do autor. O curto período<br />
duraria apenas nove anos, quando a publicação<br />
de Canaã, de Graça Aranha, em 1902, daria partida<br />
ao que se convencionou chamar de Pré-Modernismo.<br />
A partir daí, a estética simbolista estaria mesclada a<br />
remanescentes realistas e ao continuum parnasiano.<br />
Além de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, já<br />
citados, destacam-se ainda Emiliano Perneta, Mário<br />
Pederneiras, Eduardo Guimaraens, Pedro Kilkerry.<br />
Olavo Bilac<br />
Carioca, com uma vasta carreira administrativa e<br />
diplomática, Olavo Bilac (1865-1918) foi um dos<br />
fundadores da Academia Brasileira de Letras, ten-<br />
A um Poeta<br />
Longe do estéril turbilhão da rua<br />
Beneditino, escreve! No aconchego<br />
Do claustro, na paciência e no sossego,<br />
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!<br />
Mas que na forma se disfarce o emprego<br />
Do esforço; e a trama viva se construa<br />
De tal modo, que a imagem fi que nua,<br />
Rica mas sóbria, como um templo grego<br />
Não se mostre na fábrica o suplício<br />
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,<br />
Sem lembrar os andaimes do edifício:<br />
Porque a Beleza, gêmea da Verdade,<br />
Arte Pura, inimiga do artifício,<br />
É a força e a graça na sua simplicidade.<br />
do um papel de relevo em campanhas cívicas (em<br />
prol do serviço militar obrigatório; contra o analfabetismo),<br />
ligando-se também de forma signifi cativa<br />
ao jornalismo e à boemia. Nos últimos anos de<br />
vida, consagrado como poeta e como fi gura pública,<br />
foi honrado com várias missões diplomáticas, e<br />
foi o primeiro a receber a alcunha de “príncipe dos<br />
poetas brasileiros”.<br />
Famoso pelo brilho da frase isolada e pela “chave<br />
de ouro” dos sonetos, partes que encerram toda a<br />
mensagem de um poema, Bilac busca o grande efeito,<br />
construindo uma estrutura intencional, voltada para a<br />
própria louvação da poesia, senão como tema mesmo,<br />
também como processo lírico que torna o texto uma<br />
obra de ourivesaria (procedimento de todo modo parnasiano)<br />
que se desvela como tal. No campo dos temas,<br />
sobressai o amor sensual, exaltado, acompanhado pela<br />
beleza física da mulher, momentos épicos da história<br />
brasileira. Revelou também o poeta uma preocupação<br />
cívica e patriótica, de tendência conservadora, de acordo<br />
com o gosto daqueles resistentes à estética modernista<br />
que já se infi ltrava, embora sufocada.<br />
Ouvir Estrelas<br />
“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo<br />
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,<br />
Que, para ouvi-las muita vez desperto<br />
E abro as janelas, pálido de espanto...<br />
E conversamos toda noite, enquanto<br />
A Via Láctea, como um pálio aberto,<br />
Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,<br />
Inda as procuro pelo céu deserto.<br />
Direis agora: “Tresloucado amigo!<br />
Que conversas com elas? Que sentido<br />
Tem o que dizes, quando não estão contigo?”<br />
E eu vos direi: “Amai para entendê-las!<br />
Pois só quem ama pode ter ouvido<br />
Capaz de ouvir e de entender estrelas”.<br />
Obras: Poesias (1888), Poesias Infantis (1904), Crítica e Fantasia (1906), Conferências Literárias (1906),<br />
Ironia e Piedade (1916), A Defesa Nacional (1917) e Tarde (1919).<br />
Cruz e Sousa<br />
Nascido em Desterro, atual Florianópolis, em 1861,<br />
fi lho de escravos alforriados, criado, porém, por família<br />
branca que lhe franqueou uma rica instrução, João<br />
da Cruz e Sousa engajou-se na imprensa abolicionista<br />
catarinense, tendo participado também de uma companhia<br />
teatral, com a qual conheceu o país. Em 1890,<br />
passa a morar no Rio de Janeiro, onde colabora na<br />
Folha Popular. Empregado na Estrada de Ferro Central,<br />
casa-se com uma jovem de frágil saúde mental,<br />
com quem tem quatro fi lhos, dois dos quais mortos<br />
antes do pai. Tuberculoso, falece aos 36 anos de idade.<br />
Suas principais obras são Broquéis (1893), Missal<br />
(1893), Evocações (1898), Faróis (1900) e Últimos<br />
Sonetos (1905).
Poeta original e expressivo, Cruz e Sousa renova a linguagem<br />
poética brasileira, marcada, entre outras características,<br />
pela sublimação do conteúdo sexual, o embate<br />
entre matéria e espírito mimetizado através da palavra,<br />
ricamente veiculada em todos os seus recursos. Como<br />
traço simbolista inconfundível, ressoam as camadas<br />
Antífona<br />
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras<br />
De luares, de neves, de neblinas!<br />
Ó Formas vagas, fl uidas, cristalinas...<br />
Incensos dos turíbulos das aras<br />
Formas do Amor, constelarmante puras,<br />
De Virgens e de Santas vaporosas...<br />
Brilhos errantes, mádidas frescuras<br />
E dolências de lírios e de rosas ...<br />
Indefi níveis músicas supremas,<br />
Harmonias da Cor e do Perfume...<br />
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,<br />
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...<br />
Visões, salmos e cânticos serenos,<br />
Surdinas de órgãos fl ébeis, soluçantes...<br />
Dormências de volúpicos venenos<br />
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes ...<br />
Infi nitos espíritos dispersos,<br />
Inefáveis, edênicos, aéreos,<br />
Fecundai o Mistério destes versos<br />
Com a chama ideal de todos os mistérios.<br />
Do Sonho as mais azuis diafaneidades<br />
Que fuljam, que na Estrofe se levantem<br />
E as emoções, todas as castidades<br />
Da alma do Verso, pelos versos cantem.<br />
Que o pólen de ouro dos mais fi nos astros<br />
Fecunde e infl ame a rima clara e ardente...<br />
Que brilhe a correção dos alabastros<br />
Sonoramente, luminosamente.<br />
Forças originais, essência, graça<br />
De carnes de mulher, delicadezas...<br />
Todo esse efl úvio que por ondas passa<br />
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...<br />
Cristais diluídos de clarões alacres,<br />
Desejos, vibrações, ânsias, alentos<br />
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,<br />
Os mais estranhos estremecimentos...<br />
sonoras que constituem os poemas de constante fl uxo<br />
sonoro, ultrapassando a rigidez do verso parnasiano, e<br />
compondo novos processos morfológicos, gráfi cos. Um<br />
dos aspectos imagéticos mais importantes em Cruz e<br />
Sousa encontra-se na utilização do branco como índice<br />
do esforço de superação e cristalização do poeta.<br />
Flores negras do tédio e fl ores vagas<br />
De amores vãos, tantálicos, doentios...<br />
Fundas vermelhidões de velhas chagas<br />
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...<br />
Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,<br />
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,<br />
Passe, cantando, ante o perfi l medonho<br />
E o tropel cabalístico da Morte...<br />
Violões que Choram...<br />
Ah! plangentes violões dormentes, mornos,<br />
soluços ao luar, choros ao vento...<br />
Tristes perfi s, os mais vagos contornos,<br />
bocas murmurejantes de lamento.<br />
Noites de além, remotas, que eu recordo,<br />
noites de solidão, noites remotas<br />
que nos azuis das Fantasias bordo,<br />
vou constelando de visões ignotas.<br />
Sutis palpitações à luz da lua<br />
anseio dos momentos mais saudosos,<br />
quando lá choram na deserta rua<br />
as cordas vivas dos violões chorosos.<br />
Quando os sons dos violões vão soluçando,<br />
quando os sons dos violões nas cordas gemem,<br />
e vão dilacerando e deliciando,<br />
rasgando as almas que nas sombras tremem.<br />
Harmonias que pungem, que laceram,<br />
dedos nervosos e ágeis que percorrem<br />
cordas e um mundo de dolências geram,<br />
gemidos, prantos, que no espaço morrem...<br />
E sons soturnos, suspiradas mágoas,<br />
mágoas amargas e melancolias,<br />
no sussurro monótono das águas,<br />
noturnamente, entre ramagens frias.<br />
Vozes veladas, veludosas vozes,<br />
volúpias dos violões, vozes veladas,<br />
vagam nos velhos vórtices velozes<br />
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.<br />
33
34<br />
Glossário<br />
Analogia – identidade de relação entre seres de natureza diferente. Em literatura, refere-se sobretudo à<br />
fi gura de linguagem desenvolvida por Charles Baudelaire que atribui a signos pertencentes a diferentes<br />
linguagens, características de semelhança semântica, chamadas pelo poeta de “correspondências”.<br />
Metafísica – Ciência do supra-sensível, do que está além do mundo concreto, físico. Em fi losofi a<br />
relaciona-se com o conhecimento advindo da razão pura.<br />
Sinestesia – fi gura de linguagem que enlaça duas ou mais sensações distintas em uma única sentença<br />
(“calor doce”, “ruído acre”, por exemplo).<br />
Exercícios de Auto-avaliação<br />
1. O que pode signifi car dizer que, no Parnasianismo, há uma preocupação da arte pela arte?<br />
2. Estabeleça os recursos que fazem da poesia de Olavo Bilac o ponto máximo de nossa poesia parnasiana.<br />
3. Qual o sentido possível para a presença do “branco” entre as principais imagens da poética de Cruz e Sousa?<br />
4. Disserte sobre a relação histórica no Brasil entre os movimentos parnasiano e simbolista.
UNIDADE IV<br />
O MODERNISMO<br />
4.1 - Conceituação<br />
Iniciado o século XX, os artistas passaram a buscar<br />
uma grande renovação de valores artísticos e culturais,<br />
diante da profunda crise que desencadeou duas<br />
guerras e profundas transformações na vida política e<br />
econômica das sociedades. No período compreendido<br />
entre a Primeira (1914-1918) e a Segunda Guerra<br />
(1939-1945), surgem movimentos artísticos denominados<br />
vanguarda, cujas principais obras seriam: o<br />
Futurismo (1909), marcado pelo entusiasmo com a<br />
modernidade, o amor à máquina, à velocidade dos novos<br />
tempos, a destruição do antigo em prol do novo;<br />
o Expressionismo (1910), responsável pela fi guração<br />
deformada dos aspectos angustiantes e sombrio do sujeito,<br />
desafi ado em suas instâncias psíquicas pelo peso<br />
da infelicidade no mundo burguês; o Cubismo (1939),<br />
que legou os processos de fragmentação e decomposição<br />
da palavra e da imagem; o Dadaísmo (1916),<br />
expressão máxima de iconoclastia e destruição da aura<br />
sagrada em torno do objeto artístico e da literatura;<br />
4.2 - O Pré-Modernismo<br />
Estabelecida a República Velha, marcada pela chamada<br />
política “café com leite”, baseada na soma entre<br />
a lavoura cafeeira de São Paulo com a pecuária<br />
leiteira de Minas Gerais, centro de onde emanavam<br />
as decisões sobre os destinos do país, no campo cultural,<br />
nossa literatura, não obstante a existência de<br />
autores e obras relevantes, não foi capaz de construir<br />
naquele momento um grupo coeso em torno de<br />
uma proposta artística mais abrangente, em termos<br />
de ambição nacional.<br />
Feita a ressalva, pode-se dizer que, nas primeiras décadas<br />
do século XX, as obras a que se pode chamar de<br />
“pré-modernistas” problematizam a nossa realidade<br />
social e cultural, se pensarmos na fi cção de Lima Barreto,<br />
Graça Aranha e Monteiro Lobato, na experiência<br />
de Euclides da Cunha, em Os Sertões. Para alguns autores,<br />
podemos inserir nesta série a poesia perturbadora<br />
de Augusto dos Anjos, dado o nível de perturbação<br />
e o Surrealismo (1924), caracterizado pela utilização<br />
da linguagem do inconsciente, do sonho e do devaneio<br />
na composição das formas artísticas. Vistas em<br />
conjunto, as vanguardas intensifi caram ao extremo os<br />
processos renovadores que se colocavam desde pelo<br />
menos o Romantismo e atravessaram todo o século<br />
XIX, legando a valorização da linguagem como tema<br />
e objeto da arte, a busca pela penetração no inconsciente<br />
e a inquietude dos artistas diante de caminhos<br />
já percorridos.<br />
Posteriormente às vanguardas, os escritores continuarão<br />
abrindo, sem tanta violência na atitude, mas<br />
mantendo a consciência crítica e o gosto pela pesquisa,<br />
caminhos de inovação na linguagem e nas temáticas.<br />
No caso particular da Literatura Brasileira,<br />
contudo, foi necessário um momento de preparação<br />
para o salto no Modernismo propriamente dito, com<br />
o advento da Semana de Arte Moderna, em 1922. A<br />
que ela provoca na dicção simbolista, estética em que,<br />
para muitos, se enquadra a obra do poeta.<br />
Augusto dos Anjos<br />
Paraibano, homem culto e lido, Augusto dos Anjos<br />
(1884-1914) formou-se em Direito em Recife, passando<br />
a lecionar em João Pessoa, dali transferindo-se<br />
para o Rio de Janeiro e posteriormente para Leopoldina<br />
(Minas Gerais).<br />
Poeta de um livro só, Eu (1912), experimenta até<br />
hoje grande popularidade devido à extraordinária originalidade<br />
de seus versos, cuja linguagem esdrúxula,<br />
pessimista cria um texto poderoso, que não se furta a<br />
ultrapassar os limites do “mau gosto”, utilizando um<br />
vocabulário cientifi cista através do qual se exprime a<br />
dimensão cósmica e a angústia moral.<br />
35
36<br />
Psicologia de um Vencido<br />
Eu, fi lho do carbono e do amoníaco,<br />
Monstro de escuridão e rutilância,<br />
Sofro, desde a epigênesis da infância,<br />
A infl uência má dos signos do zodíaco.<br />
Profundissimamente hipocondríaco,<br />
Este ambiente me causa repugnância...<br />
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia<br />
Que se escapa da boca de um cardíaco.<br />
Já o verme – este operário das ruínas –<br />
Que o sangue podre das carnifi cinas<br />
Come, e à vida em geral declara guerra,<br />
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,<br />
E há de deixar-me apenas os cabelos,<br />
Na frialdade inorgânica da terra!<br />
Lima Barreto e o Romance Social<br />
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) possui<br />
uma biografi a formada por passagens em cargos<br />
burocráticos ao mesmo tempo em que inicia uma carreira<br />
jornalística e de romancista. Perseguido pelo alcoolismo<br />
e por crises de loucura, e autor que se afasta do<br />
cânone literário de sua época, Lima Barreto não é aceito<br />
na Academia Brasileira de Letras. Acostumado com o<br />
melhor da literatura européia do século anterior, Barreto<br />
foi dos poucos a conhecer os romancistas russos, que<br />
lhe denunciavam os preconceitos de que ele mesmo era<br />
vítima. Vindo da classe média suburbana, contraditoriamente<br />
à novidade de suas leituras e infl uências, deixava<br />
trair um conservadorismo diante de alguns implementos<br />
da modernidade e dos novos costumes.<br />
Os romances de Lima Barreto, Recordações do Escrivão<br />
Isaías Caminha (1909), Triste Fim de Policarpo<br />
Quaresma (1911, folhetim; 1915, livro), Numa e<br />
Não se sabia bem onde nascera, mas não fora decerto<br />
em São Paulo, nem no Rio Grande do Sul, nem no Pará.<br />
Errava quem quisesse encontrar nele qualquer regionalismo;<br />
Quaresma era antes de tudo brasileiro. Não tinha<br />
predileção por esta ou aquela parte de seu país, tanto<br />
assim que aquilo que o fazia vibrar de paixão não eram<br />
só os pampas do Sul com o seu gado, não era o café de<br />
São Paulo, não eram o ouro e os diamantes de Minas,<br />
não era a beleza da Guanabara, não era a altura da<br />
Paulo Afonso, não era o estro de Gonçalves Dias ou o<br />
ímpeto de Andrade Neves – era tudo isso junto, fundido,<br />
reunido, sob a bandeira estrelada do Cruzeiro.<br />
Logo aos dezoito anos quis fazer-se militar; mas a<br />
junta de saúde julgou-o incapaz. Desgostou-se, sofreu,<br />
Versos Íntimos<br />
Vês! Ninguém assistiu ao formidável<br />
Enterro de tua última quimera.<br />
Somente a Ingratidão – esta pantera –<br />
Foi tua companheira inseparável!<br />
Acostuma-te à lama que te espera!<br />
O Homem, que, nesta terra miserável,<br />
Mora, entre feras, sente inevitável<br />
Necessidade de também ser fera.<br />
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!<br />
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,<br />
A mão que afaga é a mesma que apedreja.<br />
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,<br />
Apedreja essa mão vil que te afaga,<br />
Escarra nessa boca que te beija!<br />
Ninfa (1915), Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá<br />
(1919), Clara dos Anjos (1923-24), Bagatelas (1923),<br />
Os Bruzundangas (1923), apresentam em primeiro<br />
plano uma visão de crônica dos costumes cariocas<br />
(metonímia aqui de brasileiros, devido à centralidade<br />
cultural da capital da República). Somam-se a esse<br />
registro uma duplicidade entre os planos narrativo e<br />
crítico, desdobrada com uma aguda inteligência; um<br />
ponto de vista afetivo e polêmico do narrador, o que<br />
faz com que o estilo resulte realista e intencional a um<br />
só tempo. Sua obra de melhor acabamento consiste<br />
no Triste Fim de Policarpo Quaresma, romance que<br />
conta a trajetória do ingênuo major ufanista, de exacerbado<br />
nacionalismo livresco, que inventa propostas<br />
para melhorar o Brasil, mas através de uma perspectiva<br />
quixotesca, seu maior traço constitutivo. No entanto,<br />
o traço humorístico da personagem é invadido por<br />
tintas melancólicas revelando a dupla face da melhor<br />
criação barretiana. Segue abaixo um fragmento de<br />
apresentação do protagonista.<br />
mas não maldisse a Pátria. O ministério era liberal,<br />
ele se fez conservador e continuou mais do que nunca<br />
a amar a “terra que o viu nascer”. Impossibilitado<br />
de evoluir-se sob os dourados do exército, procurou a<br />
administração e dos seus ramos escolheu o militar.<br />
Era onde estava bem. No meio de soldados, de canhões,<br />
de veteranos, de papelada inçada de quilos de pólvora,<br />
de nomes de fuzis e termos técnicos de artilharia, aspirava<br />
diariamente aquele hálito de guerra, de bravura, de<br />
vitória, de triunfo, que é bem o hálito da Pátria.<br />
Durante os lazeres burocráticos, estudou, mas estudou<br />
a Pátria, nas suas riquezas naturais, na sua<br />
história, na sua geografi a, na sua literatura e na sua
política. Quaresma sabia as espécies de minerais,<br />
vegetais e animais que o Brasil continha; sabia o<br />
valor do ouro, dos diamantes exportados por Minas,<br />
as guerras holandesas, as batalhas do Paraguai, as<br />
nascentes e o curso de todos os rios. Defendia com<br />
azedume e paixão a proeminência do Amazonas sobre<br />
todos os demais rios do mundo. Para isso ia até<br />
ao crime de amputar alguns quilômetros ao Nilo e<br />
era com este rival do “seu” rio que ele mais implicava.<br />
Ai de quem o citasse na sua frente! Em geral,<br />
calmo e delicado, o major fi cava agitado e malcriado,<br />
quando se discutia a extensão do Amazonas em<br />
face da do Nilo.<br />
Havia um ano a esta parte que se dedicava ao tupiguarani.<br />
Todas as manhãs, antes que a “Aurora, com<br />
seus dedos rosados abrisse caminho ao louro Febo”,<br />
ele se atracava até ao almoço com o Montoya, Arte<br />
y diccionario de la lengua guaraní ó más bien tupí, e<br />
estudava o jargão caboclo com afi nco e paixão. Na<br />
repartição, os pequenos empregados, amanuenses e<br />
escreventes, tendo notícia desse seu estudo do idioma<br />
tupiniquim, deram não se sabe por que em chamá-lo<br />
– Ubirajara. Certa vez, o escrevente Azevedo, ao assinar<br />
o ponto, distraído, sem reparar quem lhe estava às<br />
costas, disse em tom chocarreiro: “Você já viu que hoje<br />
o Ubirajara está tardando?”<br />
Além de Lima Barreto, não se pode deixar de destacar<br />
a importância de Graça Aranha, com seu Canaã<br />
(1902), inaugurador do período pré-modernista,<br />
romance que conta a saga dos imigrantes alemães no<br />
sul do Espírito Santo; Euclides da Cunha, autor de Os<br />
Sertões (1902), obra que escapa das intenções científi<br />
cas e jornalísticas de seu autor e vai se constituir<br />
em narrativa defi nitiva a respeito do confl ito estabelecido<br />
em Canudos, entre os seguidores messiânicos<br />
de Antônio Conselheiro e o Exército, registrando com<br />
erudição as condições do sertão, a natureza dos homens<br />
ali presentes e os combates travados. Cabe ainda<br />
apontar a grande fi gura de Monteiro Lobato, que, para<br />
4.3 - O Modernismo Brasileiro<br />
A Semana de Arte Moderna e a Primeira<br />
Geração Modernista<br />
Se a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo,<br />
tornou-se o marco da implantação irreversível do<br />
modernismo no Brasil, deve-se, contudo, recordar, ainda<br />
que de maneira breve, os antecedentes do evento:<br />
a viagem de Oswald de Andrade à Europa, em 1912,<br />
de onde o escritor traria o Manifesto Futurista; os artigos<br />
de Monteiro Lobato denunciando o fi m do sentimentalismo<br />
e do idealismo na prosa regionalista, em<br />
Quaresma era considerado no arsenal: a sua idade, a<br />
sua ilustração, a modéstia e honestidade de seu viver impunham-no<br />
ao respeito de todos. Sentindo que a alcunha<br />
lhe era dirigida, não perdeu a dignidade, não prorrompeu<br />
em doestos e insultos. Endireitou-se, concertou o pince-nez,<br />
levantou o dedo indicador no ar e respondeu:<br />
– Senhor Azevedo, não seja leviano. Não queira levar<br />
ao ridículo aqueles que trabalham em silêncio,<br />
para a grandeza e a emancipação da Pátria.<br />
Nesse dia, o major pouco conversou. Era costume<br />
seu, assim pela hora do café, quando os empregados<br />
deixavam as bancas, transmitir aos companheiros o<br />
fruto de seus estudos, as descobertas que fazia, no<br />
seu gabinete de trabalho, de riquezas nacionais. Um<br />
dia era o petróleo que lera em qualquer parte, como<br />
sendo encontrado na Bahia; outra vez, era um novo<br />
exemplar de árvore de borracha que crescia no rio<br />
Pardo, em Mato Grosso; outra, era um sábio, uma<br />
notabilidade, cuja bisavó era brasileira; e quando<br />
não tinha descoberta a trazer, entrava pela corografi<br />
a, contava o curso dos rios, a sua extensão navegável,<br />
os melhoramentos insignifi cantes de que careciam<br />
para se prestarem a um franco percurso da<br />
foz às nascentes. Ele amava sobremodo os rios; as<br />
montanhas lhe eram indiferentes, Pequenas talvez...<br />
além de sua inovadora obra, representada pelos contos<br />
de Urupês (1918) e Cidades Mortas (1919), pela série<br />
infantil de O sítio do pica-pau amarelo, e de vários<br />
textos jornalísticos e ensaísticos a respeito do Brasil,<br />
foi fi gura fundamental no processo de instalação do<br />
pensamento moderno entre nós, ainda que de maneira<br />
ambígua, como na oposição que fará à estética expressionista<br />
da pintura de Anita Malfati, em 1917.<br />
Outros nomes a se lembrar neste período são João<br />
Ribeiro, João do Rio, Coelho Neto, Rui Barbosa,<br />
sem o peso artístico, porém alcançado pelos citados<br />
no parágrafo anterior.<br />
1915; a polêmica deste último quando da exposição de<br />
Anita Malfati, que atacaria através do artigo “Paranóia<br />
ou Mistifi cação?”, traindo um despreparo e uma visão<br />
conservadora diante da proposta vanguardista da pintora,<br />
em 1917 – ano também marcado pela aproximação<br />
efetiva entre Mário de Andrade e Oswald de Andrade;<br />
O “Manifesto do Trianon” e a batalha travada pela<br />
imprensa entre modernistas e conservadores em 1921.<br />
Estes e outros acontecimentos contribuíram para a<br />
criação de uma rede coesa de escritores, poetas e artistas<br />
que formaram o grupo principal de participantes da<br />
Semana, e nomes mais importantes do Modernismo.<br />
37
38<br />
Apoiada por componentes da oligarquia cafeeira<br />
(Paulo Prado), do empresariado e do governo do estado,<br />
a Semana de Arte Moderna teve lugar no Teatro<br />
Municipal de São Paulo nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro<br />
de 1922. Em auxílio ao grupo paulista, contribuíram,<br />
do Rio de Janeiro, Ribeiro Couto, Manuel<br />
Bandeira, Villa-Lobos, Ronald de Carvalho, Sérgio<br />
Buarque de Holanda, fortalecendo o evento e o movimento.<br />
Se o recital começou pacífi co, a partir do<br />
segundo dia estabeleceu-se um verdadeiro campo de<br />
batalha, quando Menotti del Picchia discursou contra<br />
o parnasianismo, contra o passadismo, Mário de Andrade<br />
declamou versos da Paulicéia desvairada diante<br />
vaia ensurdecedora. O público se dividiu, e as vaias,<br />
na verdade, agradavam as intenções dos artistas. Entre<br />
tantos comportamentos inusitados, destaquemos<br />
como exemplo a aparição de Villa-Lobos, vestido de<br />
casaca, mas calçando chinelos, por motivos de saúde,<br />
fato que foi recebido como mais um ataque “futurista”<br />
pela platéia. Ou também, o coro feito pela platéia<br />
à leitura do poema Os Sapos, de Manuel Bandeira.<br />
Com o escândalo e as vaias, foram atingidas as metas<br />
dos “futuristas” ou “avanguardistas”, como eram chamados<br />
os participantes na ocasião.<br />
Desta primeira geração que, segundo opinião corrente<br />
entre a crítica acadêmica mais canônica, negligenciou<br />
aspectos político-ideológicos, em vantagem<br />
da pesquisa estética e da ousadia de atitude diante da<br />
força reacionária da linguagem ofi cial, sobressaem,<br />
no campo literário, os nomes de Manuel Bandeira,<br />
Mário de Andrade e Oswald de Andrade.<br />
Pneumotórax<br />
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.<br />
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.<br />
Tosse, tosse, tosse.<br />
Mandou chamar o médico:<br />
— Diga trinta e três.<br />
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .<br />
— Respire.<br />
........................................................................<br />
O Poeta da Humildade<br />
Manuel Bandeira (1886-1968) nasceu em Recife,<br />
tendo se mudado ainda adolescente para o Rio de Janeiro,<br />
para concluir os estudos. Cursando Engenharia<br />
em São Paulo, abandonou o curso devido à tuberculose<br />
(que lhe acompanharia por toda a vida), indo para a<br />
Suíça em tratamento. Uma vez na Europa, travou conhecimento<br />
com a poesia simbolista e pós-simbolista<br />
francesa. Com o início da Primeira Guerra, retorna ao<br />
Brasil e lança seu primeiro livro de poesias, A Cinza<br />
das Horas (1917), ainda de inspiração simbolista. Segue-se<br />
Carnaval (1919), Poesias (incluído aí o Ritmo<br />
Dissoluto – 1924), Libertinagem (1930), já no contexto<br />
modernista, Estrela da Manhã (1936), Mafuá<br />
do Malungo (1948), Opus 10 (1952); Estrela da Tarde<br />
(1958) e Estrela da Vida Inteira (1966). Escreveu<br />
ainda prosa e realizou traduções.<br />
Dono de vasta cultura literária e erudita, Bandeira<br />
percorre uma longa trajetória desde os primeiros livros,<br />
em que já aparece o traço intimista de seu verso confi<br />
dencial a auto-irônico, passando pela assimilação de<br />
elementos sonoros e temáticos da vida cotidiana, assim<br />
como da musicalidade popular e folclórica, e da liberdade<br />
do verso livre, de que se faz grande utilizador; até<br />
uma madura fase, requintada, em que decanta todo seu<br />
saber poético. Quanto aos temas, sobressaem o erotismo<br />
brejeiro, a aparição dos fantasmas familiares, a ironia<br />
diante da doença e da morte, a presença de imagens<br />
brasileiras de forte ressonância popular, condensadas<br />
nas presenças do beco, da rua, da feira, entre outras.<br />
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infi ltrado.<br />
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?<br />
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.<br />
Poética<br />
Estou farto do lirismo comedido<br />
Do lirismo bem comportado<br />
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente<br />
[protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.<br />
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo<br />
[de um vocábulo.
Abaixo os puristas<br />
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais<br />
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção<br />
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis<br />
Estou farto do lirismo namorador<br />
Político<br />
Raquítico<br />
Sifi lítico<br />
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.<br />
De resto não é lirismo<br />
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem<br />
[modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.<br />
Quero antes o lirismo dos loucos<br />
O lirismo dos bêbedos<br />
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos<br />
O lirismo dos clowns de Shakespeare<br />
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.<br />
Vou-me embora pra Pasárgada<br />
Vou-me embora pra Pasárgada<br />
Lá sou amigo do rei<br />
Lá tenho a mulher que eu quero<br />
Na cama que escolherei<br />
Vou-me embora pra Pasárgada<br />
Vou-me embora pra Pasárgada<br />
Aqui eu não sou feliz<br />
Lá a existência é uma aventura<br />
De tal modo inconseqüente<br />
Que Joana a Louca de Espanha<br />
Rainha e falsa demente<br />
Vem a ser contraparente<br />
Da nora que eu nunca tive<br />
E como farei ginástica<br />
Andarei de bicicleta<br />
Montarei em burro brabo<br />
Subirei no pau-de-sebo<br />
Tomarei banhos de mar!<br />
E quando estiver cansado<br />
Deito na beira do rio<br />
Poema tirado de uma notícia de jornal<br />
Mando chamar a mãe-d’água<br />
Pra me contar as histórias<br />
Que no tempo de eu menino<br />
Rosa vinha me contar<br />
Vou-me embora pra Pasárgada<br />
Em Pasárgada tem tudo<br />
É outra civilização<br />
Tem um processo seguro<br />
De impedir a concepção<br />
Tem telefone automático<br />
Tem alcalóide à vontade<br />
Tem prostitutas bonitas<br />
Para a gente namorar<br />
E quando eu estiver mais triste<br />
Mas triste de não ter jeito<br />
Quando de noite me der<br />
Vontade de me matar<br />
— Lá sou amigo do rei —<br />
Terei a mulher que eu quero<br />
Na cama que escolherei<br />
Vou-me embora pra Pasárgada<br />
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número<br />
Uma noite ele chegou no Bar Vinte de Novembro<br />
Bebeu<br />
Cantou<br />
Dançou<br />
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.<br />
39
40<br />
Mário de Andrade<br />
Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945) nasceu<br />
em São Paulo, onde viveria, na juventude, do magistério<br />
particular, ensinando Música. Em 1917, alinhase<br />
com os principais nomes do Modernismo, tendo<br />
sido um dos líderes da Semana de 22, e colaborado<br />
com as revistas Klaxon, Estética, Terra Roxa e Outras<br />
Terras. Profundo conhecedor de música, artes<br />
plásticas e folclore brasileiro, foi autor profícuo de<br />
várias obras entre lírica, romances, contos, ensaios<br />
e compêndios acadêmicos. Ocupou importante cargo<br />
público à frente do Departamento de Cultura da<br />
Prefeitura de São Paulo, entre 1934 e 37. Trabalhou<br />
ainda na <strong>Universidade</strong> do Distrito Federal (Rio de Janeiro)<br />
e no Patrimônio Histórico.<br />
Sua obra move-se entre necessidades de um registro<br />
emocional da biografi a e a paixão pelo objeto estético,<br />
seja ele um poema, um conto ou uma narrativa maior.<br />
Eu Sou Trezentos...<br />
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,<br />
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,<br />
Ôh espelhos, ôh! Pirineus!<br />
Ôh caiçaras!<br />
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!<br />
Abraço no meu leito as milhores palavras,<br />
E os suspiros que dou são violinos alheios;<br />
Eu piso a terra como quem descobre a furto<br />
Nas esquinas, nos táxis,<br />
nas camarinhas seus próprios beijos!<br />
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,<br />
Mas um dia afi nal toparei comigo...<br />
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,<br />
Só o esquecimento é que condensa,<br />
E então minha alma servirá de abrigo.<br />
Ode ao Burguês<br />
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel<br />
O burguês-burguês!<br />
A digestão bem-feita de São Paulo!<br />
O homem-curva! O homem-nádegas!<br />
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,<br />
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!<br />
Eu insulto as aristocracias cautelosas!<br />
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques<br />
zurros!<br />
Que vivem dentro de muros sem pulos,<br />
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos<br />
para dizerem que as fi lhas da senhora falam o [francês<br />
e tocam os “Printemps” com as unhas!<br />
Rompendo os limites da literatura acadêmica, sua<br />
poética constrói uma deformação abstrata, que<br />
fragmenta o sujeito e a paisagem, de certa afi nação<br />
com alguns parâmetros do futurismo e do cubismo,<br />
dos quais, todavia, não se faz refém. Sua mais<br />
eloqüente criação narrativa encontra-se na rapsódia<br />
de Macunaíma, um dos textos-chave para a investigação<br />
fi ccional da identidade brasileira, colagem<br />
algo surrealista de lendas folclóricas mescladas à<br />
paródia, ao humor grotesco, cômico, na história do<br />
herói “sem nenhum caráter”. Entre seus principais<br />
títulos, podemos encontrar Há uma gota de sangue<br />
em cada poema (poesia, 1917), Paulicéia Desvairada<br />
(poesia, 1922), A Escrava que não é Isaura<br />
(ensaio poético, 1925), Amar, verbo intransitivo<br />
(romance, 1927), Clã do Jabuti (poesia, 27), Macunaíma,<br />
o herói sem nenhum caráter (rapsódia,<br />
28), Remate de Males (poesia, 30), O Movimento<br />
Modernista (42), Aspectos da Literatura Brasileira<br />
(43) e Contos Novos (47).<br />
Eu insulto o burguês-funesto!<br />
O indigesto feijão com toucinho, dono das [tradições!<br />
Fora os que algarismam os amanhãs!<br />
Olha a vida dos nossos setembros!<br />
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!<br />
Mas à chuva dos rosais<br />
o êxtase fará sempre Sol!<br />
Morte à gordura!<br />
Morte às adiposidades cerebrais!<br />
Morte ao burguês-mensal!<br />
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!<br />
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!<br />
“— Ai, fi lha, que te darei pelos teus anos?<br />
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!<br />
Más nós morremos de fome!”<br />
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!<br />
Oh! purée de batatas morais!<br />
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!<br />
Ódio aos temperamentos regulares!<br />
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!<br />
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados<br />
Ódio aos sem desfalecimentos nem [arrependimentos,<br />
sempiternamente as mesmices convencionais!<br />
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!<br />
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!<br />
Todos para a Central do meu rancor inebriante!<br />
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!<br />
Morte ao burguês de giolhos,<br />
cheirando religião e que não crê em Deus!<br />
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!<br />
Ódio fundamento, sem perdão!<br />
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
Macunaíma (fragmento)<br />
No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e fi lho do medo da<br />
noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia<br />
tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.<br />
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam<br />
a falar exclamava:<br />
- Ai que preguiça!...<br />
e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros<br />
e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força do homem. O divertimento<br />
dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava<br />
pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava<br />
o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaiamuns diz-que<br />
habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguns cunhatãs se aproximavam dele pra fazer festinha, Macunaíma<br />
punha a mão nas graças dela, cunhatã se afstava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os<br />
velhos e freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças<br />
religiosas da tribo.<br />
Oswald de Andrade<br />
Filho de tradicional família abastada de São Paulo,<br />
José Oswald de Sousa Andrade, ou simplesmente,<br />
Oswald de Andrade (1890-1945) entrou em contato,<br />
ainda jovem, com a vanguarda européia dos anos 10,<br />
durante viagem que fez ao velho continente. Como<br />
um dos líderes do movimento modernista, defendeu<br />
Anita Malfati durante a polêmica com Lobato. Na década<br />
de 20, lançou os manifestos literários Pau-Brasil<br />
(1924) e Antropofágico (28). Após outras viagens à<br />
Europa, e com a queda da Bolsa de Nova York, atravessa<br />
crise fi nanceira. Em 31, adere ao Comunismo,<br />
afastando-se mais tarde da militância política, em<br />
1945, dedicando-se a partir daí à vida acadêmica.<br />
3 de Maio<br />
Aprendi com meu fi lho de dez anos<br />
Que a poesia é a descoberta<br />
Das coisas que eu nunca vi.<br />
Fim e Começo<br />
A noite caiu sem licença da Câmara<br />
Se a noite não caísse<br />
Que seriam dos lampiões?<br />
OFERTA<br />
Quem sabe<br />
Se algum dia<br />
Traria<br />
O elevador<br />
Até aqui<br />
O teu amor<br />
O principal traço da obra de Oswald de Andrade encontra-se<br />
no processo por ele mesmo denominado de “antropofágico”,<br />
no sentido de buscar adaptar as informações<br />
vanguardistas, de origem externa, aos elementos constitutivos<br />
da cultura brasileira. Tendo se exercitado em poesia,<br />
teatro e romance, o escritor inovou pela revolução<br />
formal, em que desorganiza padrões sintáticos da língua,<br />
mistura a cena brechtiana com a linguagem da chanchada,<br />
fragmenta a narrativa através de cortes e saltos, do simultaneísmo,<br />
entre outros recursos estilísticos. Entre seus<br />
principais textos, encontram-se Memórias Sentimentais<br />
de João Miramar (romance, 1924), Pau-Brasil (poesia,<br />
25), Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de<br />
Andrade (27), Manifesto Antropófago (28), Serafi m Ponte<br />
Grande (romance, 33) e O Rei da Vela (37).<br />
ESCAPULÁRIO<br />
No Pão de Açúcar<br />
De Cada Dia<br />
Dai-nos Senhor<br />
A Poesia<br />
De Cada Dia<br />
PRONOMINAIS<br />
Dê-me um cigarro<br />
Diz a gramática<br />
Do professor e do aluno<br />
E do mulato sabido<br />
Mas o bom negro e o bom branco<br />
Da Nação Brasileira<br />
Dizem todos os dias<br />
Deixa disso camarada<br />
Me dá um cigarro<br />
41
42<br />
Outros nomes importantes do primeiro momento do<br />
Modernismo brasileiro são Cassiano Ricardo, Plínio<br />
Salgado, Raul Bopp, aliados numa outra vertente do<br />
movimento, mais nacionalista, reunida no Verdeamarelismo<br />
(1926) e no grupo da Bandeira (1928).<br />
A Geração de 30<br />
Passada a euforia dos anos 20, fi nalizados com o traumático<br />
crack da Bolsa, que teria conseqüências irreversíveis<br />
também na economia brasileira, a década de<br />
30 inicia-se com a Revolução de 1930, que acabaria<br />
com a política café-com-leite e levaria Getúlio Vargas<br />
ao poder, de onde só sairia em 1945. O campo interno<br />
refl etia igualmente os acontecimentos internacionais:<br />
o avanço das extremas-direitas, culminando no fascismo<br />
e no nazismo, em contraste com o fortalecimento<br />
das esquerdas, oprimidas nos países que optaram pela<br />
continuidade capitalista, no auge de sua fase industrial;<br />
o contínuo processo de infl uência dos EUA no quadro<br />
mundial; o acirramento da luta de classes, situadas<br />
em contexto urbano; o desenvolvimento da cultura de<br />
massas, através do cinema e do rádio.<br />
Diante desta nova situação, um grupo de escritores<br />
viria oferecer outros caminhos para a literatura<br />
nacional, porém, sem trair os avanços conquistados<br />
pela geração de 22, avanços que foram assimilados<br />
em nova perspectiva, no campo da poesia, acentuando<br />
o tom subjetivo, destinado a um enfoque existencial-espiritualista<br />
em confronto com o tempo, a<br />
memória, o nada, o lugar do indivíduo em meio ao<br />
coletivo. Quanto ao romance, gênero que então ganharia<br />
um enorme respaldo popular, alimentando defi<br />
nitivamente a indústria editorial devido ao sucesso<br />
de vendas, operou um retorno ao realismo regionalista,<br />
desta vez não mais preso aos modelos biossociológicos<br />
do naturalismo oitocentista, mas preocupado<br />
No meio do caminho<br />
No meio do caminho tinha uma pedra<br />
tinha uma pedra no meio do caminho<br />
tinha uma pedra<br />
no meio do caminho tinha uma pedra.<br />
Nunca me esquecerei desse acontecimento<br />
na vida de minhas retinas tão fatigadas.<br />
Nunca me esquecerei que no meio do caminho<br />
tinha uma pedra<br />
tinha uma pedra no meio do caminho<br />
no meio do caminho tinha uma pedra<br />
com os aspectos políticos e humanos inerentes à fi -<br />
guração dos problemas sociais que o país fornecia<br />
como tema à narrativa fi ccional.<br />
Entre os poetas, destacaram-se os mineiros Carlos<br />
Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de<br />
Lima, Augusto Frederico Schmidt, Cecília Meirelles,<br />
além de Vinícius de Morais. Do time de romancistas<br />
sobressaem Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge<br />
Amado, Raquel de Queirós, José Américo de Almeida,<br />
Érico Veríssimo, Marques Rebelo; num viés mais<br />
intimista, embora vinculado de todo modo a questões<br />
regionais, Lúcio Cardoso, Otávio de Faria, José Geraldo<br />
Vieira, Cyro dos Anjos e Cornélio Pena.<br />
Carlos Drummond de Andrade<br />
Descendente de mineradores, Drummond (1902-<br />
1987) passou a infância numa fazenda de Itabira.<br />
Após participar do Modernismo mineiro na década<br />
de 20, mudou-se para o Rio em 1934, onde iniciou<br />
uma longa carreira burocrática aliada a contribuição<br />
ininterrupta com o jornalismo cultural.<br />
A poesia de Carlos Drummond de Andrade atravessou<br />
várias fases, das quais ressaltamos um início de<br />
dicção personalista, memorial, atravessado pelo humor<br />
irônico, passando pelo “sentimento do mundo”,<br />
composto pelo tédio existencial, que se transformaria<br />
mais tarde na preocupação política, explícita em<br />
Rosa do Povo (1945), até o desencanto ideológico<br />
após Claro Enigma (51). Obra de múltiplas direções,<br />
a poesia de Drummond constitui um dos momentos<br />
máximos da lírica brasileira no século XX. Entre seus<br />
principais trabalhos podemos citar: Alguma poesia<br />
(1930), Brejo das Almas (34), Sentimento do Mundo<br />
(40), Viola de Bolso (52), Fazendeiro de Ar & Poesia<br />
Até Agora (53) e Boitempo (58).
Poema de sete faces<br />
Quando nasci, um anjo torto<br />
desses que vivem na sombra<br />
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.<br />
As casas espiam os homens<br />
que correm atrás de mulheres.<br />
A tarde talvez fosse azul,<br />
não houvesse tantos desejos.<br />
O bonde passa cheio de pernas:<br />
pernas brancas pretas amarelas.<br />
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu<br />
coração.<br />
Porém meus olhos<br />
não perguntam nada.<br />
Quadrilha<br />
João amava Teresa que amava Raimundo<br />
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili<br />
que não amava ninguém.<br />
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,<br />
Raimundo morreu de desastre, Maria fi cou para tia,<br />
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes<br />
que não tinha entrado na história.<br />
José<br />
E agora, José?<br />
A festa acabou,<br />
a luz apagou,<br />
o povo sumiu,<br />
a noite esfriou,<br />
e agora, José?<br />
e agora, você?<br />
você que é sem nome,<br />
que zomba dos outros,<br />
você que faz versos,<br />
que ama, protesta?<br />
e agora, José?<br />
Está sem mulher,<br />
está sem discurso,<br />
está sem carinho,<br />
já não pode beber,<br />
já não pode fumar,<br />
cuspir já não pode,<br />
a noite esfriou,<br />
o dia não veio,<br />
o bonde não veio,<br />
o riso não veio,<br />
não veio a utopia<br />
e tudo acabou<br />
e tudo fugiu<br />
e tudo mofou,<br />
e agora, José?<br />
O homem atrás do bigode<br />
é sério, simples e forte.<br />
Quase não conversa.<br />
Tem poucos, raros amigos<br />
o homem atrás dos óculos e do bigode.<br />
Meu Deus, por que me abandonaste<br />
se sabias que eu não era Deus,<br />
se sabias que eu era fraco.<br />
Mundo mundo vasto mundo<br />
se eu me chamasse Raimundo<br />
seria uma rima, não seria uma solução.<br />
Mundo mundo vasto mundo,<br />
mais vasto é meu coração.<br />
Eu não devia te dizer<br />
mas essa lua<br />
mas esse conhaque<br />
botam a gente comovido como o diabo.<br />
E agora, José?<br />
Sua doce palavra,<br />
seu instante de febre,<br />
sua gula e jejum,<br />
sua biblioteca,<br />
sua lavra de ouro,<br />
seu terno de vidro,<br />
sua incoerência,<br />
seu ódio – e agora?<br />
Com a chave na mão<br />
quer abrir a porta,<br />
não existe porta;<br />
quer morrer no mar,<br />
mas o mar secou;<br />
quer ir para Minas,<br />
Minas não há mais.<br />
José, e agora?<br />
Se você gritasse,<br />
se você gemesse,<br />
se você tocasse<br />
a valsa vienense,<br />
se você dormisse,<br />
se você cansasse,<br />
se você morresse...<br />
Mas você não morre,<br />
você é duro, José!<br />
43
44<br />
Sozinho no escuro<br />
qual bicho-do-mato,<br />
sem teogonia,<br />
sem parede nua<br />
para se encostar,<br />
A Ficção de Graciliano Ramos<br />
Graciliano Ramos (1892-1953) nasceu em Quebrângulo<br />
(Alagoas), passando a infância entre várias<br />
cidades de Pernambuco e Alagoas. Elege-se prefeito<br />
de Palmeira dos Índios (AL) em 1927, onde já redigira<br />
seu primeiro romance, Caetés (1925). Entre 30<br />
e 36 dirige a Imprensa e a Instrução do Estado, já<br />
estabelecido em Maceió. Reforça a amizade com os<br />
outros regionalistas nordestinos; também redige São<br />
Bernardo (34) e Angústia (36). Em 36 é preso como<br />
subversivo, embora sem provas, só sendo liberto no<br />
ano seguinte. Dessa experiência surgiram as Memó-<br />
Fuga (fragmento de Vidas Secas)<br />
A vida na fazenda se tornara difícil. Sinhá Vitória<br />
benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os<br />
beiços rezando rezas desesperadas. Encolhido no<br />
banco do copiar, Fabiano espiava a caatinga amarela,<br />
onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas<br />
pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam,<br />
negros, torrados. No céu azul as últimas arribações<br />
tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se fi -<br />
navam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia,<br />
pedindo a Deus um milagre.<br />
Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava<br />
perdido, combinou a viagem com a mulher, matou<br />
o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne,<br />
largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não<br />
poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só<br />
lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido.<br />
Saíram de madrugada. Sinhá Vitória meteu o braço<br />
pelo buraco da parede e fechou a porta da frente com<br />
a taramela. Atravessaram o pátio, deixaram na escuridão<br />
o chiqueiro e o curral, vazios, de porteiras abertas,<br />
o carro de bois que apodrecia, os juazeiros. Ao passar<br />
junto às pedras onde os meninos atiravam cobras mortas,<br />
Sinhá Vitória lembrou-se da cachorra Baleia, chorou,<br />
mas estava invisível e ninguém percebeu o choro.<br />
Desceram a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram<br />
rumo para o sul. Com a fresca da madrugada,<br />
andaram bastante, em silêncio, quatro sombras no caminho<br />
estreito coberto de seixos miúdos – os meninos<br />
à frente, conduzindo trouxas de roupa, Sinhá Vitória<br />
sob o baú de folha pintada e a cabaça de água, Fabiano<br />
atrás de facão de rasto e faca de ponta, a cuia pen-<br />
sem cavalo preto<br />
que fuja a galope,<br />
você marcha, José!<br />
José, para onde?<br />
rias do Cárcere (53). Passa a viver no Rio de Janeiro<br />
já como romancista consagrado.<br />
A obra de Graciliano representa o mais alto ponto de<br />
tensão entre o eu e a sociedade, revelando todas as facetas<br />
da opressão e da dor. Torna-se palpável, em seus<br />
textos, a relação homem e natureza, sem prejuízo, porém,<br />
dos aspectos ideológicos no retrato da opressão.<br />
Seus protagonistas e narradores, vincados de um intenso<br />
pessimismo, tingem de introspecção a temática<br />
regionalista, e proporcionam um clima dramático para<br />
os confl itos, tornando mais complexas relações que<br />
poderiam ser reduzidas a um naturalismo imediato.<br />
durada por uma correia amarrada ao cinturão, o aió<br />
a tiracolo, a espingarda de pederneira num ombro, o<br />
saco da malotagem no outro. Caminharam bem três<br />
léguas antes que a barra do nascente aparecesse.<br />
Fizeram alto. E Fabiano depôs no chão parte da carga,<br />
olhou o céu, as mãos em pala na testa. Arrastarase<br />
até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente<br />
mudança. Retardara-se e repreendera os meninos, que<br />
se adiantavam, aconselhara-os a poupar forças. A verdade<br />
é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem<br />
parecia-lhe sem jeito, nem acreditava nela. Prepararaa<br />
lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só se<br />
resolvera a partir quando estava defi nitivamente perdido.<br />
Podia continuar a viver num cemitério? Nada o<br />
prendia aquela terra dura, acharia um lugar menos<br />
seco para enterrar-se. Era o que Fabiano dizia, pensando<br />
em coisas alheias: o chiqueiro e o curral, que<br />
precisavam conserto, o cavalo de fábrica, bom companheiro,<br />
a égua alazã, as catingueiras, as panelas de<br />
losna, as pedras da cozinha, a cama de varas. E os<br />
pés dele esmoreciam, as alpercatas calavam-se na escuridão.<br />
Seria necessário largar tudo? As alpercatas<br />
chiavam de novo no caminho coberto de seixos.<br />
Agora Fabiano examinava o céu, a barra que tingia<br />
o nascente, e não queria convencer-se da realidade.<br />
Procurou distinguir qualquer coisa diferente da vermelhidão<br />
que todos os dias espiava, com o coração<br />
aos baques. As mãos grossas, por baixo da aba curva<br />
do chapéu, protegiam-lhe os ombros contra a claridade<br />
e tremiam.<br />
Os braços penderam, desanimados.<br />
– Acabou-se.
Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava negro<br />
num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se<br />
profundamente azul. Estremeceu como se descobrisse<br />
uma coisa muito ruim.<br />
Desde o aparecimento das arribações vivia desassossegado.<br />
Trabalhava demais para não perder o<br />
sono. Mas no meio do serviço um arrepio corria-lhe<br />
Um dos romances capitais da obra de Graciliano, Vidas<br />
Secas narra a trajetória do retirante Fabiano, sua<br />
esposa, Sinhá Vitória, e fi lhos, em fuga do fl agelo da<br />
seca. Organizado em capítulos independentes, curiosamente<br />
apresenta narrador em terceira pessoa, ao<br />
contrário dos outros romances do autor, marcados por<br />
narrador-protagonista. Estudiosos apontam essa peculiaridade<br />
devido à condição existencial de Fabiano,<br />
lacônico, quase mudo, em sua luta contra a natureza<br />
hostil que lhe difi culta a vida, e contra a exploração<br />
humana de que também se torna vítima, fazendo com<br />
que se recolha numa ausência de comunicação verbal.<br />
O Modernismo Pós-45<br />
O ano de 1945 é apontado como um marco no desenvolvimento<br />
do Modernismo. Na verdade, nenhuma<br />
obra ou evento cultural foi lançado naquela data,<br />
devendo-se sua importância muito mais a fatos da<br />
história política, nacional e mundial: o fi m do Estado<br />
Novo e o término da Segunda Grande Guerra. De<br />
qualquer modo, um pouco antes, ou logo após de 45,<br />
vieram à publicação novos fi ccionistas e poetas que<br />
renovaram mais uma vez nossas letras.<br />
No campo da poesia, há um retorno ao domínio<br />
do verso, das formas tradicionais, numa perspectiva<br />
formalista, embora mesclada a um intimismo mais<br />
comedido, em que se destacam nomes como Mário<br />
Quintana, Paulo Mendes Campos, Hélio Pelegrino,<br />
Ledo Ivo, Geir Campos, José Paulo Paes, Thiago de<br />
Melo. Abandonando a perspectiva subjetiva em defesa<br />
de uma abordagem impessoal, objetiva da poesia,<br />
num projeto lírico de apurado cuidado formal, aparece<br />
João Cabral de Melo Neto. Posteriormente, nos<br />
anos 50, levando adiante os avanços de Cabral, surge<br />
o movimento, novamente paulista, do Concretismo,<br />
liderado pelos irmãos Campos e por Décio Pignatari,<br />
estética que aboliria o verso em prol de uma construção<br />
imagética do poema, erigido a partir das camadas<br />
palpáveis da palavra. Na seqüência das décadas, aparece<br />
a poesia engajada, participante de um Ferreira<br />
Gullar, por exemplo, ou experimental, como a poesia-práxis.<br />
No fi nal da década de 60, chama a atenção<br />
o movimento do Tropicalismo, experiência artística<br />
que se expandiu em várias frentes como as artes plásticas,<br />
o teatro, a música, e encontrou em poetas-cantores<br />
como Caetano Veloso e Gilberto Gil as linhas<br />
no espinhaço, à noite acordava agoniado e encolhiase<br />
num canto da cama de varas, mordido pelas pulgas,<br />
conjecturando misérias.<br />
A luz aumentou e espalhou-se pela campina. Só aí<br />
principiou a viagem. Fabiano atentou na mulher e nos<br />
fi lhos, apanhou a espingarda e o saco de mantimentos,<br />
ordenou a marcha com uma interjeição áspera.<br />
mais eloqüentes deste retorno consciente à herança<br />
da vanguarda de 22, sobretudo das bases lançadas por<br />
Oswald de Andrade. De lá para cá, após a aposta na<br />
rebeldia da poesia marginal, a lírica brasileira avança<br />
por vertentes variadas, desde aquelas que privilegiam<br />
o discurso pessoal, autobiográfi co, às que mantêm o<br />
apuro formal e experimentalista; outros ainda, trazendo<br />
um caráter público e político mais explícito. Entre<br />
os mais recentes poetas, cabe citar Marly de Oliveira,<br />
Renata Pallottini, Bruno Tolentino, Carlos Nejar, Olga<br />
Savary, Hilda Hilst (também fi ccionista), Armando<br />
Freitas Filho, Ivan Junqueira, Adélia Prado, Ana Cristina<br />
César, Paulo Leminski, Cacaso, Alexei Bueno.<br />
A narrativa brasileira avança por novos caminhos, a<br />
partir de dois autores fundamentais: João Guimarães<br />
Rosa e Clarice Lispector. Enquanto aquele ultrapassa<br />
os limites do regionalismo, rompendo com o naturalismo<br />
e avançando para dentro de uma construção mítica<br />
do universo do sertão, que ganha uma dimensão<br />
épica, além de criar toda uma língua literária própria,<br />
original; esta desestabiliza os postos de enunciação<br />
do sujeito como origem da linguagem, abrindo novas<br />
dimensões para o intimismo psicológico até chegar a<br />
profundas dilacerações fi losófi cas. Nas décadas de 60<br />
e 70, a fi cção toma o caminho do fantástico e do maravilhoso,<br />
moda literária latino-americana. Tal como<br />
acontece na poesia, também na narrativa vários são os<br />
modos e temas de narrar, confi rmando-se obras como<br />
as de Nelson Rodrigues, Dalton Trevisan, Osman<br />
Lins, Lygia Fagundes Telles, Adonias Filho, Autran<br />
Dourado, Rubem Fonseca, Fernando Sabino, Moacyr<br />
Scliar, Murilo Rubião, João Gilberto Noll, Sérgio<br />
Sant’Anna, João Ubaldo Ribeiro, Raduan Nassar, Pedro<br />
Nava, Caio Fernando Abreu, Hilda Hilst.<br />
Quanto a nosso drama, gênero menos contemplado<br />
pelos dois primeiros modernismos (à exceção de poucas<br />
experiências, e O Rei da Vela, de Oswald, só viria<br />
aos palcos em 1967), sofre uma grande renovação<br />
com a chegada de Nelson Rodrigues e seu teatro “desagradável”,<br />
o estabelecimento do Teatro Brasileiro<br />
de Comédia, que atualizaria o repertório (ainda que<br />
hegemonicamente estrangeiro) e a cena, profi ssionalizando<br />
atores, diretores e técnicos; a criação dos<br />
Centros Populares de Cultura, dos Grupos Ofi cina,<br />
Teatro de Arena, Opinião, responsáveis pelo engajamento<br />
político de grande repercussão entre os jo-<br />
45
46<br />
vens e a esquerda. Entre os principais dramaturgos<br />
destacam-se Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco<br />
Guarnieri, Dias Gomes, Millôr Fernandes e Maria<br />
Clara Machado.<br />
João Cabral de Melo Neto<br />
Diplomata nascido em Recife, João Cabral (1920-<br />
1999) tornou-se o último grande poeta do modernis-<br />
A Educação Pela Pedra<br />
Uma educação pela pedra: por lições;<br />
para aprender da pedra, frequentá-la;<br />
captar sua voz inenfática, impessoal<br />
(pela dicção ela começa as aulas).<br />
A lição de moral, sua resistência fria<br />
ao que fl ui e a fl uir, a ser maleada;<br />
a de poética, sua carnadura concreta;<br />
a de economia, seu adensar-se compacta:<br />
lições da pedra (de fora para dentro,<br />
cartilha muda), para quem soletrá-la.<br />
*<br />
Outra educação pela pedra: no Sertão<br />
de dentro para fora, e pré-didática).<br />
No Sertão a pedra não sabe lecionar,<br />
e se lecionasse não ensinaria nada;<br />
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,<br />
uma pedra de nascença, entranha a alma.<br />
Guimarães Rosa<br />
Médico do interior mineiro, João Guimarães Rosa<br />
(1908-1967) ingressou na carreira diplomática em<br />
1943, em parte devido a seu grande interesse e domínio<br />
de línguas. Assistindo à Segunda Guerra na Alemanha,<br />
serviu ainda em Bogotá e em Paris. De volta ao Brasil,<br />
continua sua carreira pública. Falece três dias após sua<br />
admissão na Academia Brasileira de Letras.<br />
A produção de Guimarães Rosa é composta basicamente<br />
de narrativas, nos três tipos consolidados pela<br />
literatura moderna: o conto, a novela e o romance. Sua<br />
temática universal faz do homem do sertão um herói<br />
de tintas épicas ao mesmo tempo em que lida com as<br />
forças mágicas da natureza, inclusive em seus aspec-<br />
mo, com uma obra poética marcada pelo exercício<br />
contínuo de limpeza da linguagem, de diminuição<br />
quase até o apagamento do “eu” (instância discursiva<br />
considerada fundamental pela lírica tradicional), de<br />
negação do acessório e do sentimental, nunca, porém,<br />
caindo num vazio poético. Pelo contrário, sua retórica<br />
seca, árida, construída a partir de uma escrita “arquitetônica”,<br />
de engenheiro, deixa revelar a condição<br />
humana, a paisagem, a preocupação social.<br />
Tecendo a Manhã<br />
1<br />
Um galo sozinho não tece uma manhã:<br />
ele precisará sempre de outros galos.<br />
De um que apanhe esse grito que ele<br />
e o lance a outro; de um outro galo<br />
que apanhe o grito de um galo antes<br />
e o lance a outro; e de outros galos<br />
que com muitos outros galos se cruzem<br />
os fi os de sol de seus gritos de galo,<br />
para que a manhã, desde uma teia tênue,<br />
se vá tecendo, entre todos os galos.<br />
2<br />
E se encorpando em tela, entre todos,<br />
se erguendo tenda, onde entrem todos,<br />
se entretendendo para todos, no toldo<br />
(a manhã) que plana livre de armação.<br />
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo<br />
que, tecido, se eleva por si: luz balão.<br />
tos maléfi cos, e os meandros do destino. Escapa sua<br />
representação à cartilha naturalista do regionalismo<br />
consagrado, e o romance opera na chave do mitopoético,<br />
numa mistura de modernidade e velhas tradições<br />
narrativas. Esse universo fi ccional é construído a partir<br />
de uma original recriação lingüística, que vai muito<br />
além da representação do falar sertanejo e assimila<br />
contribuições vernáculas de várias línguas, além do<br />
português. Rosa rearruma processos fono-morfológicos<br />
através de neologismos, de derivações personalíssimas,<br />
levando a prosa poética a níveis estilísticos não<br />
igualados. Além de Grande sertão: veredas (1956), sua<br />
obra-prima, são representativas as novelas contidas em<br />
Sagarana (1946) e Corpo de Baile (1956), além dos<br />
contos presentes em Primeiras Estórias (1962), Tutaméia:<br />
Terceiras Estórias (67), Estas Estórias (69).
A Terceira Margem do Rio (fragmento)<br />
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo;<br />
e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam<br />
as diversas sensatas pessoas, quando indaguei<br />
a informação. Do que eu mesmo me alembro,<br />
ele não fi gurava mais estúrdio nem mais triste do que<br />
os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe<br />
era quem regia, e que ralhava no diário com a gente<br />
— minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo<br />
dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.<br />
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau<br />
de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa,<br />
como para caber justo o remador. Mas teve de ser<br />
toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo,<br />
própria para dever durar na água por uns vinte ou<br />
trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia.<br />
Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia<br />
propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai<br />
nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era<br />
mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua:<br />
o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que<br />
sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra<br />
beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa<br />
fi cou pronta.<br />
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o<br />
chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou<br />
outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez<br />
a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou<br />
que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de<br />
pálida, mascou o beiço e bramou: — “Cê vai, ocê<br />
fi que, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta.<br />
Espiou manso para mim, me acenando de vir<br />
também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe,<br />
mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava,<br />
chega que um propósito perguntei: — “Pai,<br />
o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só<br />
retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com<br />
gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda<br />
virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou<br />
na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu<br />
se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré,<br />
comprida longa.<br />
Clarice Lispector<br />
Imigrante da Ucrânia, vinda ainda criança de colo<br />
para o Brasil, Clarice Lispector (1920-1977) passou<br />
a infância no Recife, vindo para o Rio de Janeiro em<br />
1934, onde estuda Direito e escreve seu primeiro romance,<br />
Perto do coração selvagem (1943). Casada com<br />
diplomata, faz várias viagens com o marido à Europa e<br />
aos Estados Unidos, em meio às quais escreve seus romances<br />
seguintes e colabora com a imprensa brasileira<br />
através dos amigos. No início dos 60, fi xa-se defi nitiva-<br />
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma<br />
parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles<br />
espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro<br />
da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza<br />
dessa verdade deu para. estarrecer de todo a<br />
gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes,<br />
vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram<br />
juntamente conselho.<br />
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura;<br />
por isso, todos pensaram de nosso pai a razão<br />
em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam<br />
o entanto de poder também ser pagamento de promessa;<br />
ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo<br />
de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra,<br />
se desertava para outra sina de existir, perto e longe<br />
de sua família dele. As vozes das notícias se dando<br />
pelas certas pessoas — passadores, moradores das<br />
beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo<br />
que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em<br />
ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como<br />
cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa<br />
mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o<br />
mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava;<br />
e, ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para<br />
jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou<br />
se arrependia, por uma vez, para casa.<br />
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer<br />
para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a<br />
idéia que senti, logo na primeira noite, quando o<br />
pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em<br />
beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se<br />
rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci,<br />
com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei<br />
nosso pai, no enfi m de uma hora, tão custosa<br />
para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no<br />
fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu,<br />
não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer,<br />
depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de<br />
bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que<br />
fi z, e refi z, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais<br />
tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo,<br />
só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava,<br />
facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir.<br />
mente no Rio de Janeiro. A partir daí, torna-se escritora<br />
profi ssional, colaborando com jornais e revistas. Escreveu<br />
contos, crônicas e romances. Algumas obras suas<br />
são O Lustre (1946), A Cidade Sitiada (49), Laços de<br />
Família (60), A Maçã no Escuro (61), A Legião Estrangeira<br />
(64), A paixão segundo G.H. (64), Uma Aprendizagem<br />
ou o Livro dos Prazeres (69), Felicidade Clandestina<br />
(71), Água Viva (73), A Hora da Estrela (77).<br />
Também prosa poética, a escrita de Lispector situase<br />
no limiar de uma crise do sujeito, que beira muitas<br />
47
48<br />
vezes a abstração, levando o leitor a um mergulho profundo<br />
nas instâncias da linguagem e da psique de suas<br />
personagens. Utilizando a técnica do fl uxo de consciência,<br />
a autora traz à página agudas experiências exis-<br />
TENTAÇÃO<br />
Ela estava com soluço. E como se não bastasse a<br />
claridade das duas horas, ela era ruiva.<br />
Na rua vazia as pedras vibravam de calor – a cabeça<br />
da menina fl amejava. Sentada nos degraus de sua casa,<br />
ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando<br />
inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse<br />
seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia<br />
de momento a momento, abalando o queixo que se<br />
apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina<br />
ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento<br />
contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde.<br />
Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária.<br />
Que importava se num dia futuro sua marca ia<br />
fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto<br />
ela estava sentada num degrau faiscante da porta,<br />
às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha<br />
de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor<br />
conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.<br />
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste<br />
mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de<br />
comunicação surgiu no ângulo quente da esquina<br />
acompanhando uma senhora, e encarnada na fi gura<br />
de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob<br />
a sua fatalidade. Era um basset ruivo.<br />
Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o<br />
seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.<br />
A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente<br />
avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua<br />
vibrava. Ambos se olhavam.<br />
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem<br />
donos de outro ser, lá estava a menina que viera<br />
Glossário<br />
tenciais, desestabilizando os papéis do narrador e da<br />
personagem, deslocados no texto e no mundo, e também<br />
entregues à resolução de problemas da ordem do<br />
fi losófi co e, algumas vezes, do próprio fazer literário.<br />
ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente,<br />
sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada,<br />
séria. Quanto tempo se passava? Um grande<br />
soluço sacudiu-a desafi nado. Ele nem sequer tremeu.<br />
Também ela passou por cima do soluço e continuou a<br />
fi tá-lo. Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.<br />
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas<br />
que se comunicaram rapidamente, pois não havia<br />
tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam.<br />
Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.<br />
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto<br />
sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E<br />
no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos<br />
cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma<br />
menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles<br />
se fi tavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú.<br />
Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria,<br />
cedendo talvez à gravidade com que se pediam.<br />
Mas ambos eram comprometidos.<br />
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência<br />
que só se abriria quando ela fosse uma mulher.<br />
Ele, com sua natureza aprisionada.<br />
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O<br />
basset ruivo afi nal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo.<br />
Ela fi cou espantada, com o acontecimento<br />
nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam.<br />
Acompanhou-o com olhos pretos que<br />
mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos,<br />
até vê-lo dobrar a outra esquina.<br />
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez<br />
olhou para trás.<br />
Brechtiano – relativo ao dramaturgo, poeta e teórico do teatro alemão Bertolt Brecht (1898-1956).<br />
O adjetivo refere-se a um conjunto de técnicas de construção dramatúrgica e cênica que levam ao<br />
espectador/leitor a uma refl exão crítica do que assiste e lê, como instrumento de refl exão sócio-histórica,<br />
afastando-o da catarse alienante do modelo do melodrama, ou mesmo aristotélico, percebendo<br />
o espetáculo texto como obra em construção e não como mimese, representação.<br />
Iconoclastia – destruição de ídolos, de deuses, de ícones.<br />
Mitopoético – relativo à criação de mitos, origem de uma mitologia a partir da construção poética,<br />
literária, fi ccional.
Oligarquia – pequeno grupo de famílias ou pessoas que mantém o poder sobre uma determinada<br />
região, geralmente ao longo de muitas gerações.<br />
Quixotesco – procedente de Dom Quixote, a personagem. Diz-se de pessoa visionária, sonhadora,<br />
alienada (em aspectos tanto positivos quanto negativos).<br />
Ufanista – aquele que se orgulha de sua terra, de seu país, negligenciando os aspectos negativos que<br />
porventura existam.<br />
Exercício de Auto-Avaliação<br />
1. Em que sentido convencionou-se atribuir um período preparatório para a chegada da literatura modernista<br />
no Brasil, chamado Pré-Modernismo?<br />
2. Com que traços marcantes Lima Barreto constrói o protagonista de Triste Fim de Policarpo Quaresma?<br />
Que críticas o romance faz à sociedade brasileira?<br />
3. Que caminhos a poesia brasileira do modernismo percorreu ao longo das três gerações de autores?<br />
4. Há alterações na fi guração regionalista do romance de 30 que o afastam do naturalismo dos fi ns do século<br />
XIX. Identifi que-as.<br />
5. Que novidades as obras de Guimarães Rosa e Clarice Lispector apresentam para a história da narrativa<br />
recente no Brasil?<br />
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Se você:<br />
1) concluiu o estudo deste guia;<br />
2) participou dos encontros;<br />
3) fez contato com seu tutor;<br />
4) realizou as atividades previstas;<br />
Então, você está preparado para as<br />
avaliações.<br />
Parabéns!
Gabarito<br />
Unidade I<br />
1) O programa dos mais importantes escritores do período, sobretudo da primeira geração, voltava-se para os<br />
problemas do surgimento do povo, através da questão racial (sobretudo a indígena), da diversidade regional e<br />
até da variação da língua portuguesa no Brasil.<br />
2) Enquanto a primeira geração ocupou-se em lançar o programa romântico no Brasil, em suas bases estéticas<br />
e temáticas, elegendo o índio e a paisagem como fi guras centrais da poesia, para cantar a nação, a segunda<br />
voltou-se para o “mal-do-século”, priorizando os temas amorosos, a solidão, a memória, o tédio diante da vida<br />
burguesa. Já a terceira geração deteve-se nos valores liberais que surgiam no Brasil, dando especial atenção à<br />
temática do negro e da escravidão, valorizando a liberdade como princípio humano por excelência.<br />
3) Alencar lança suas bases literárias para discutir o nacional em quatro vertentes principais de seus romances:<br />
o urbano, em que relata os hábitos e costumes da corte; o regional, em que o mesmo foco se desloca para as<br />
regiões rurais do país; o indianista, responsável pela criação de uma narrativa primordial para o surgimento do<br />
povo brasileiro; e o histórico, na tentativa de traçar painéis grandiosos de momentos cruciais da história colonial<br />
do Brasil. No que tange ao teatro, Alencar adotou o modelo francês do melodrama no sentido de atualizar<br />
a dramaturgia.<br />
4) Pena registra costumes populares, denunciando aspectos pitorescos da população, acentuando uma face<br />
crítica que em outros autores fi cava em segundo plano e proporcionando outros matizes no lugar das idealizações<br />
ufanistas e lisonjeiras.<br />
Unidade <strong>II</strong><br />
1) Enquanto o estilo realista aprofunda-se no desenho psicológico das personagens, na análise dos comportamentos<br />
sociais, particularmente denunciando os aspectos econômicos, a estética naturalista enfatiza os fatores<br />
biológicos, morais e criminosos como ingredientes dos enredos e características das personagens, que denunciam<br />
o determinismo ideológico.<br />
2) Exemplo maior de nosso Realismo, Machado de Assis caracteriza-se pela intensa ironia que atravessa a<br />
refl exão sobre a existência, as relações humanas e os costumes sociais, denunciando a importância do dinheiro,<br />
o vazio de determinadas regras do convívio em sociedade, a sombra da loucura, da memória, do inconsciente<br />
e da morte.<br />
3) Construído em torno de situações que envolvem diversas personagens na formação de um quadro da moradia<br />
coletiva, O Cortiço faz-se uma narrativa em que a soma das fi guras humanas constrói a imagem do próprio<br />
cortiço como uma espécie de organismo vivo, tornando-se, afi nal, o protagonista do romance.<br />
Unidade <strong>II</strong>I<br />
1) A estética parnasiana, ao pretender se afastar do excesso de subjetivismo herdado do romantismo mais<br />
corriqueiro, e buscar o efeito estético, plástico, através do culto de belas imagens e do vocabulário rico, revela<br />
um estilo direcionado à preocupação formal mais aparente, deixando em segundo plano os aspectos humanos<br />
e sentimentais – o que não exclui a presença de emoção.<br />
2) A lírica de Bilac é marcada por um intenso efeito estético, a partir do culto da própria poesia, como tema e<br />
como forma, adotando, entre outros procedimentos, o cultivo da frase, sobretudo a “chave de ouro”. Tais recursos<br />
servem também a uma temática erótica, sensual; em outros momentos, à poesia cívica e patriótica.<br />
3) Reunindo aspectos biográfi cos à inspiração espiritualista presente no Simbolismo, a presença do branco<br />
na poesia de Cruz e Sousa aponta tanto para uma ultrapassagem do racismo sofrido em vida, quanto para os<br />
processos de fl uidez, transparência e sonoridade plangente característicos da estética simbolista.<br />
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4) Estilo contemporâneo aos movimentos abolicionista e republicano, o Parnasianismo consolidou-se como<br />
estética ofi cial, dado à infl uência dos autores na esfera pública, criando um lastro de tradição só rompido pelo<br />
Modernismo de 22. Em contrapartida, o Simbolismo encontrou curta trajetória entre nós, devido aos aspectos<br />
subjetivos e espiritualistas inadequados à mentalidade positivista que movia a nação.<br />
Unidade IV<br />
1) Embora autores como Lima Barreto e Euclides da Cunha, na prosa, e Augusto dos Anjos e o primeiro Manuel<br />
Bandeira constituíssem um avanço em relação à literatura dos oitocentos, ainda não se constituía, nos dois<br />
primeiros decênios do século XX, um projeto literário nacional que rompesse com a estética parnasiana.<br />
2) Policarpo Quaresma marca-se como um protagonista quixotesco, visionário e ao mesmo tempo ingênuo,<br />
ao engajar-se no projeto utópico de provar a riqueza do Brasil, visto por ele como uma grande nação e um<br />
território natural opulento. No entanto, o romance de Lima Barreto opera sobre as desilusões que acometem<br />
o Major diante da estreiteza de visão que encontra nos ambientes sociais, saturados de fi guras caricatas que<br />
são denunciadas não sem certa melancolia. Diante da possibilidade de grande nação prevista por Quaresma, a<br />
sociedade brasileira revela-se, no romance, em seu aspecto medíocre.<br />
3) Das experimentações lingüísticas, dotadas de uma verve revolucionária e iconoclasta, características dos<br />
poetas de 22, a poesia brasileira avançou por um caminho existencialista, subjetivo e espiritual na década de<br />
30, resgatando uma certa ênfase no eu-lírico (sem perder as conquistas formais da geração anterior), chegando<br />
a um apuro formal, conseqüência tanto da lírica modernista quanto do domínio do verso tradicional, num exercício<br />
poético que encontrará seu ápice em movimentos como o Concretismo e a Tropicália.<br />
4) Diferentemente do naturalismo do século anterior, o romance regionalista dos anos 30 ocupa-se com a<br />
temática sociopolítica como base para a narrativa fi ccional, que trata dos motivos políticos e econômicos presentes<br />
nos eventos humanos.<br />
5) Guimarães Rosa cria um universo fi ccional fundamentalmente próprio, construído a partir de uma visão<br />
mítica de sertão, procedimento que amplia os horizontes do regionalismo e permite ao escritor a criação de<br />
uma língua literária original.<br />
Já Clarice Lispector opera sobre as dimensões subjetivas da linguagem, recriando o intimismo psicológico em<br />
suas narrativas, que alcançam profunda ressonância fi losófi ca.
Referências Bibliográficas<br />
ANDRADE, Mário. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Livraria Martins, 1945.<br />
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 33 ed. São Paulo: Cultrix, 1994.<br />
BRAYNER, Sônia. Labirinto do Espaço Romanesco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1979.<br />
COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 17 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.<br />
_________. A Literatura no Brasil. 6 ed. São Paulo: Global, 2003. Vols. 3, 4 e 5.<br />
MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. Breve história da Literatura Brasileira. 3 ed. Rio de<br />
Janeiro: TopBooks, 1996.<br />
MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. 22 ed. São Paulo: Cultrix, 2000.<br />
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