LITERATURA LATINA I - Universidade Castelo Branco
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VICE-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO E CORPO DISCENTE<br />
COORDENAÇÃO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA<br />
<strong>LITERATURA</strong> <strong>LATINA</strong> I<br />
Rio de Janeiro / 2008<br />
Todos os direiTos reservados à<br />
<strong>Universidade</strong> CasTelo BranCo
UNIVERSIDADE CASTELO BRANCO<br />
Todos os direitos reservados à <strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong> <strong>Branco</strong> - UCB<br />
Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, armazenada ou transmitida de qualquer forma ou<br />
por quaisquer meios - eletrônico, mecânico, fotocópia ou gravação, sem autorização da <strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong><br />
<strong>Branco</strong> - UCB.<br />
<strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong> <strong>Branco</strong> - UCB<br />
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Tel. (21) 3216-7700 Fax (21) 2401-9696<br />
www.castelobranco.br<br />
Un3l <strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong> <strong>Branco</strong><br />
Literatura Latina I / <strong>Universidade</strong> <strong>Castelo</strong> <strong>Branco</strong>. – Rio de Janeiro: UCB,<br />
2008. - 52 p.: il.<br />
ISBN<br />
1. Ensino a Distância. 2. Título.<br />
CDD – 371.39
Responsáveis Pela Produção do Material Instrucional<br />
Coordenadora de Educação a Distância<br />
Prof.ª Ziléa Baptista Nespoli<br />
Coordenador do Curso de Graduação<br />
Denilson P. Matos - Letras<br />
Conteudista<br />
Zeandra Oliveira<br />
Supervisor do Centro Editorial – CEDI<br />
Joselmo Botelho
Apresentação<br />
Prezado(a) Aluno(a):<br />
É com grande satisfação que o(a) recebemos como integrante do corpo discente de nossos cursos de graduação,<br />
na certeza de estarmos contribuindo para sua formação acadêmica e, conseqüentemente, propiciando<br />
oportunidade para melhoria de seu desempenho profissional. Nossos funcionários e nosso corpo docente esperam<br />
retribuir a sua escolha, reafirmando o compromisso desta Instituição com a qualidade, por meio de uma<br />
estrutura aberta e criativa, centrada nos princípios de melhoria contínua.<br />
Esperamos que este instrucional seja-lhe de grande ajuda e contribua para ampliar o horizonte do seu conhecimento<br />
teórico e para o aperfeiçoamento da sua prática pedagógica.<br />
Seja bem-vindo(a)!<br />
Paulo Alcantara Gomes<br />
Reitor
Orientações para o Auto-Estudo<br />
O presente instrucional está dividido em três unidades programáticas, cada uma com objetivos definidos e<br />
conteúdos selecionados criteriosamente pelos Professores Conteudistas para que os referidos objetivos sejam<br />
atingidos com êxito.<br />
Os conteúdos programáticos das unidades são apresentados sob a forma de leituras, tarefas e atividades complementares.<br />
As Unidades 1 e 2 correspondem aos conteúdos que serão avaliados em A1.<br />
Na A2 poderão ser objeto de avaliação os conteúdos das três unidades.<br />
Havendo a necessidade de uma avaliação extra (A3 ou A4), esta obrigatoriamente será composta por todo o<br />
conteúdo de todas as Unidades Programáticas.<br />
A carga horária do material instrucional para o auto-estudo que você está recebendo agora, juntamente com<br />
os horários destinados aos encontros com o Professor Orientador da disciplina, equivale a 30 horas-aula, que<br />
você administrará de acordo com a sua disponibilidade, respeitando-se, naturalmente, as datas dos encontros<br />
presenciais programados pelo Professor Orientador e as datas das avaliações do seu curso.<br />
Bons Estudos!
Dicas para o Auto-Estudo<br />
1 - Você terá total autonomia para escolher a melhor hora para estudar. Porém, seja<br />
disciplinado. Procure reservar sempre os mesmos horários para o estudo.<br />
2 - Organize seu ambiente de estudo. Reserve todo o material necessário. Evite<br />
interrupções.<br />
3 - Não deixe para estudar na última hora.<br />
4 - Não acumule dúvidas. Anote-as e entre em contato com seu monitor.<br />
5 - Não pule etapas.<br />
6 - Faça todas as tarefas propostas.<br />
7 - Não falte aos encontros presenciais. Eles são importantes para o melhor aproveitamento<br />
da disciplina.<br />
8 - Não relegue a um segundo plano as atividades complementares e a auto-avaliação.<br />
9 - Não hesite em começar de novo.
SUMÁRIO<br />
Quadro-síntese do conteúdo programático ................................................................................................. 11<br />
Contextualização da disciplina ................................................................................................................... 13<br />
UNIDADE I<br />
INTRODUÇÃO À <strong>LITERATURA</strong> <strong>LATINA</strong><br />
1.1 - Aspectos históricos ............................................................................................................................. 17<br />
1.2 - O século de Augusto (de 44 ou 43 a. C. a 17 d. C.) ............................................................................ 18<br />
1.3 - Epopéia Grega .................................................................................................................................... 18<br />
1.4 - A epopéia em Roma ............................................................................................................................ 23<br />
UNIDADE II<br />
O LIRISMO<br />
2.1 - O Surgimento da poesia lírica na Grécia ............................................................................................ 29<br />
2.2 - Momento histórico .............................................................................................................................. 29<br />
2.3 - O Lirismo em Roma ........................................................................................................................... 30<br />
2.4 - Virgílio e as Bucólicas ........................................................................................................................ 31<br />
2.5 - Ovídio ................................................................................................................................................. 32<br />
UNIDADE III<br />
DRAMÁTICO (TEATRO - TRAGÉDIA)<br />
3.1 - A palavra tragédia ............................................................................................................................... 34<br />
3.2 - Teatro e cerimônia religiosa ................................................................................................................ 34<br />
3.3 - Teatro e tragédia em Roma ................................................................................................................. 34<br />
3.4 - Roma, a civilização do espetáculo ...................................................................................................... 35<br />
3.5 - Ator: glória e infâmia .......................................................................................................................... 36<br />
3.6 - A máscara ............................................................................................................................................ 37<br />
3.7 - Breve história do teatro latino ............................................................................................................ 37<br />
3.8 - As tragédias de Sêneca ....................................................................................................................... 39<br />
Glossário ..................................................................................................................................................... 47<br />
Gabarito ....................................................................................................................................................... 48<br />
Referências bibliográficas ........................................................................................................................... 49
Quadro-síntese do conteúdo<br />
programático<br />
UNIDADES DO PROGRAMA OBJETIVOS<br />
I - INTRODUÇÃO À <strong>LITERATURA</strong> <strong>LATINA</strong><br />
1.1 - Aspectos históricos<br />
1.2 - O século de Augusto (de 44 ou 43 a. C. a 17 d. C.)<br />
1.3 - Epopéia Grega<br />
1.4 - A epopéia em Roma<br />
II - O LIRISMO<br />
2.1 - O Surgimento da poesia lírica na Grécia<br />
2.2 - Momento histórico<br />
2.3 - O Lirismo em Roma<br />
2.4 - Virgílio e as Bucólicas<br />
2.5 - Ovídio<br />
III II - DRAMÁTICO (TEATRO - TRAGÉDIA)<br />
3.1 - A palavra tragédia<br />
3.2 - Teatro e cerimônia religiosa<br />
3.3 - Teatro e tragédia em Roma<br />
3.4 - Roma, a civilização do espetáculo<br />
3.5 - Ator: glória e infâmia<br />
3.6 - A máscara<br />
3.7 - Breve história do teatro latino<br />
3.8 - As tragédias de Sêneca<br />
• Caracterizar a poesia épica em obras da Literatura<br />
Latina;<br />
• Identificar as características da cultura helenística<br />
e a respectiva influência na Literatura Latina.<br />
• Caracterizar a poesia lírica em obras da Literatura<br />
Latina quanto à época e natureza dos textos.<br />
• Caracterizar a tragédia e a comédia em obras da<br />
Literatura Latina.<br />
11
Contextualização da Disciplina<br />
GÊNEROS LITERÁRIOS<br />
Breve Visão de Conjunto Sobre os Gêneros Literários<br />
O primeiro a elaborar uma poética sobre os gêneros literários foi Aristóteles, em sua Poética. Considera<br />
a arte como mimese. Tal mimese realiza-se, em primeiro lugar, de acordo com os meios em que se<br />
realiza. Por exemplo, a poesia utiliza o ritmo, a melodia, o verso, mas a poesia ditirâmbica utiliza todos<br />
esses elementos, ao passo que a tragédia e a comédia utilizam-na separadamente. Em segundo lugar, de<br />
acordo com os objetos diversos da mimese, ou seja, se o objeto for as pessoas, sendo estas nobres ou<br />
ignóbeis, melhores ou piores do que a média humana, as composições serão diversas conforme o objeto<br />
imitado. Diante disto, a tragédia representa personagens melhores do que os homens o são, ao passo que<br />
a comédia, piores. Em terceiro lugar, de acordo com os diversos modos da mimese. Desta forma, Aristóteles<br />
considera dois modos de mimese poética: o modo narrativo e o modo dramático, ou seja, o modo<br />
épico e o modo dramático.<br />
Horácio (Epistola ad Pisones) concebe o gênero literário como correspondendo a uma tradição formal e sendo<br />
caracterizado por um determinado tom ou metro. Ou seja, para Horácio, o gênero se caracteriza pelo metro,<br />
o qual é usado de acordo com o conteúdo específico. Desta forma, por exemplo, a poesia iâmbica estava mais<br />
próxima da linguagem coloquial, por isso mais adequada à ação dramática. Segundo ele, portanto, os gêneros<br />
não se misturavam, visto que seguiam tons adequados a cada movimento psicológico.<br />
No Renascimento, através da releitura de ambos e através da constatação das obras literárias escritas até então,<br />
chega-se à inclusão de um terceiro gênero, já anunciado por Horácio: o lírico.<br />
No século XVII, admite-se a subdivisão dos três gêneros em gêneros menores (espécies), severamente distintos<br />
e regidos por regras intransigentes e imutáveis que comandavam a criação e orientavam poetas e críticos.<br />
Tais cânones baseavam-se na crença de que os gêneros eram essências fixas ou formas exigidas pela natureza.<br />
Como acreditavam que os antigos realizaram os gêneros em plenitude, estes serviram de modelo. Tal idéia<br />
negava o princípio do desenvolvimento e da alterabilidade dos gêneros no seu processo histórico.<br />
O Barroco vem negar esse tipo de atitude, pregando uma espécie de liberdade criadora, visto que cultiva o<br />
hibridismo dos gêneros (como a criação da tragicomédia).<br />
No século XVIII (Iluminismo francês), ocorre a contestação da tirania da norma com a criação do drama<br />
burguês e do romance.<br />
No Romantismo, séc. XIX, acredita-se que a força inovadora do gênio prevalece sobre a norma; liberdade<br />
de criação.<br />
Tendência moderna: rebeldia contra o estabelecimento de barreiras limitadoras; deve prevalecer a originalidade.<br />
A divisão tripartida (lírico, épico, dramático) não comporta a multiplicidade da produção literária<br />
atual. Ex.: Há contos com os procedimentos do puro diálogo, característico do gênero dramático. Há dramas<br />
sem diálogos, com um personagem só (monólogo). Há obras líricas de cunho narrativo, onde a emoção se<br />
sobrepõe à narração.<br />
Emil Staiger, em Conceitos fundamentais da Poética, apresenta uma solução para a questão dos gêneros;<br />
estabelece a diferença básica entre a conceituação substantiva e a adjetiva.<br />
Os substantivos Lírica, Épica e Drama constituem os ramos em que se classificam as obras, de acordo com<br />
determinadas características formais:<br />
Lírica: poemas de breve extensão que expressam estados de alma.<br />
Épica: relato ou apresentação de uma ação.<br />
Drama: representação da ação movida por um dinamismo de tensão.<br />
13
Os adjetivos lírico, épico e dramático definem a essência caracterizadora da obra; tal essência manifesta-se<br />
por determinados fenômenos estilísticos.<br />
Deste modo uma obra pertence a um ramo genérico onde a essência lírica tem caráter prioritário; tal obra<br />
participa, contudo, da essência ou de traços particulares de outros gêneros.<br />
Ex.: Uma peça teatral é dramática quanto ao ramo porque nela prevalece a essência dramática (representação,<br />
tensão), mas pode participar da essência lírica nos momentos em que tiver desdobramentos afetivos. Um romance<br />
pertence ao ramo épico porque nele prevalece a essência épica (relato/apresentação de uma ação), mas pode<br />
também participar da essência dramática (nos diálogos) e da essência lírica (efusão de sentimentos).<br />
Segundo Staiger, nenhuma obra pode ser classificada exclusivamente num só gênero: sempre vai partilhar da<br />
essência dos demais. Com isso abrem-se os limites para o entrosamento entre os gêneros.<br />
A partir da divisão tripartida dos gêneros, podemos estabelecer divisões em espécies (formas ou classes):<br />
- Espécies da Lírica: soneto, ode, elegia, balada, rondó etc.<br />
- Espécies da Épica: epopéia, romance, conto, novela.<br />
- Espécies do Drama: tragédia, comédia, tragicomédia, farsa etc.<br />
Sobre a Essência de Cada Gênero<br />
O gênero lírico<br />
A essência lírica se manifesta nos fenômenos estilísticos.<br />
Será lírico o poema de extensão menor que não possuir personagens nítidos e no qual uma voz central (um<br />
eu-lírico) exprime seu estado de alma. Da expressão do Eu lírico advém o subjetivismo (o eu-lírico não pode<br />
ser confundido com um eu-autobiográfico). O clima lírico é provido de afetividade e emotividade, ligadas ao<br />
íntimo e ao sentimento. O eu-lírico, ao exprimir seus estados d’alma, envolve-se no que diz. Isto torna fluida<br />
e inconsistente a relação entre o sujeito e o objeto (entre o eu e o mundo). Emoção e sentimento impedem a<br />
configuração mais nítida das coisas e dos seres. O eu e o mundo se aproximam, fundem-se e confundem-se.<br />
Esta aproximação atinge vários graus: quando há descrições, diálogos, análises e reflexões, por exemplo, há um<br />
maior distanciamento entre o eu e o mundo, desvanece-se o clima lírico, visto que são incluídos elementos épicos<br />
ou dramáticos. A atitude lírica consiste na fusão entre o eu e o mundo. Isto só se dá por um estado de alma<br />
que envolve tudo, exterior e interior, passado, presente e futuro. Staiger chama a essência lírica de recordação<br />
(i. e., re + cor, cordis = de novo no coração) > o um-no-outro, o EU nas coisas e as coisas no EU.<br />
O gênero épico<br />
A essência épica:<br />
A essência épica revela-se através de traços estilísticos específicos.<br />
Ao contrário da lírica, a épica se realiza através de um distanciamento entre o sujeito (narrador) e o objeto<br />
(mundo narrado). O narrador não se envolve no que diz, confronta-se com o que narra. O mundo narrado é o<br />
ob-jeto (posto diante de).<br />
Epopéia vem do grego épos = canto, recitação, isto é, alguém narra um fato a um grupo de ouvintes; distanciando-se,<br />
portanto, o narrador em relação ao acontecimento passado, numa posição de confronto. O relato é<br />
a atitude épica na qual o narrador se coloca diante do objeto, segundo determinado ponto de observação, para<br />
ver, registrar, mostrar, enfim, apresentar. Por isso Staiger considera a apresentação a essência épica.<br />
A epopéia enquadra-se no gênero épico (também chamado de narrativo, por causa da apresentação) porque<br />
apresenta os elementos específicos da narração: narrador, espaço, acontecimento, personagens etc. A epopéia,<br />
contudo, não se confunde com a narrativa de ficção pelos seguintes motivos: 1. Integra a expressão formal na<br />
estrutura narrativa, isto é, a epopéia tem como unidade o verso, divide-se em estrofes e cantos, explora recursos
ítmicos e sonoros. 2. Tem a presença de uma consciência lírica, necessária para integrar a expressão formal,<br />
aliada ao fio narrativo. Nesse sentido, fazer uma epopéia é um privilégio do poeta, condição para ser autor<br />
épico. 3. Estrutura a realidade através de uma proposição da realidade histórica resultante da fusão do real e do<br />
mito. A narrativa de ficção estrutura uma proposição de realidade ficcional (do verbo fingere), uma elaboração<br />
em nível de imaginário, de relação existencial do homem com o mundo; matéria romanesca, real imaginário<br />
criado literariamente. A matéria épica baseia-se na estruturação de uma proposição da realidade histórico-maravilhosa<br />
como resultado da realização literária da fusão do real histórico com o mítico.<br />
A natureza da matéria épica: Chamamos de matéria épica a fusão do real histórico com o mítico processada<br />
ao nível da realidade objetiva. A matéria épica constitui-se de uma dimensão real, projetada no acontecimento<br />
histórico, e de uma dimensão mítica sustentada na aderência mítica desrealizadora desse mesmo acontecimento<br />
histórico (ver in Anazildo V. da Silva, Formação épica da Lit. Bras.). O fato histórico, quando ocorre, é só realidade<br />
e o seu relato puro e simples é História. Se esse fato é grandioso e fantástico a ponto de romper o limite<br />
do real (ver mais adiante o conceito de mito), capaz de ultrapassar a capacidade de compreensão do homem na<br />
época de sua ocorrência, começa a receber uma aderência mítica desrealizadora que a ele se funde com o passar<br />
do tempo, convertendo-o em matéria épica.<br />
A epopéia é, pois, uma realização literária específica de uma matéria épica. É por isso que a epopéia estrutura-se<br />
em dois planos, o histórico (dimensão do real da matéria épica) e o maravilhoso (dimensão mítica da<br />
matéria épica). Observe que este conceito é fundamental para entendermos e caracterizarmos o herói épico<br />
e o relato, visto que a interação desses dois planos é uma exigência épica. O herói épico, para ser sujeito<br />
da ação épica, precisa agenciar as duas dimensões: a real e a mítica. Sua condição humana agencia o real<br />
histórico, sua condição mítica, o real maravilhoso. Sendo o personagem épico um ser histórico, a condição<br />
humana é um atributo natural para agenciar o real histórico, mas isto, por si só, não é suficiente para o elevar<br />
à categoria de herói (como ser histórico é um homem, um mortal, sujeito à consumação). Para ser herói,<br />
deve adentrar o solo do maravilhoso, ganhando, com a condição mítica, a imortalidade que o resgata da consumação<br />
do tempo histórico e lhe confere a heroicidade. Com a interação entre os dois planos, ou as duas<br />
realidades, ocorre a transfiguração histórica do relato e do herói. Essa interação ocorre sempre, ainda que o<br />
personagem seja um herói por natureza, isto é, quando já traz em si, geneticamente, as condições humana e<br />
mítica (Ex.: Enéias, filho de Anquises (humano) e de Vênus (deusa), tem em si, por uma situação original, a<br />
dupla condição que unge o herói épico).<br />
O que chamamos de modelo épico clássico é uma manifestação do discurso épico (epopéia) na antigüidade.<br />
Este primeiro modelo (clássico) foi devidamente formulado por Aristóteles. Seu discípulo Staiger<br />
sistematizou teoricamente os elementos estruturadores do discurso épico (também o lírico e o dramático,<br />
inter-relacionando-os).<br />
Staiger tem como objetivo determinar a essência épica, que denomina apresentação e justifica em função<br />
do distanciamento entre o EU e o MUNDO, isto é, entre o narrador e a matéria narrada. Esse distanciamento<br />
coloca o narrador diante da matéria narrada em situação de confronto (não de fusão), resultando daí os demais<br />
elementos ou fenômenos estilísticos que compõem essa essência:<br />
O passado.<br />
A memória.<br />
O uso da 3ª pessoa.<br />
A grandiloqüência.<br />
A narrativa e a ação.<br />
A inalterabilidade de ânimo.<br />
A uniformidade métrica.<br />
O desenrolar progressivo.<br />
Eis algumas obras épicas:<br />
Grécia - Ilíada, Odisséia - epopéias homéricas.<br />
Roma - Eneida, de Vergílio e Farsalia, de Lucano.<br />
Itália - A Divina Comédia - de Dante Alighieri; Jerusalém Libertada - de Torquato Tasso.<br />
Portugal - Os Lusíadas - de Luís de Camões.<br />
Brasil - O Uraguai - de Basílio da Gama e Caramuru - de Frei José de Santa Rita Durão.<br />
15
16<br />
O gênero dramático<br />
Na épica, o narrador apresenta a ação progressivamente, através de análises e descrições, estendendo-se longamente.<br />
Na obra dramática, ao contrário, há uma economia de meios, devido ao fator tempo (que é limitado).<br />
A ação épica se estende no tempo e no espaço, deslocando-se de um lugar para outro, do passado para o futuro.<br />
A ação dramática tem como espaço o palco, no momento da representação, coagida a uma seleção de lances<br />
num ritmo acelerado. Na épica, o narrador se demora em cada parte, importante em si mesma, pois seu objetivo<br />
não é o final. No drama não há essa visão setorial (por partes), mas há uma visão globalizante, que se volta<br />
para o que vai acontecer e instiga a ação para o final, para o desfecho. Esta preocupação faz com que todas as<br />
partes se relacionem entre si e com o todo, interdependentes. Este conjunto que se volta para o que vai ocorrer<br />
é o que Staiger chama de tensão.<br />
Fenômenos estilísticos do gênero dramático<br />
A maneira dramática: na obra lírica a relação entre o autor e o mundo é de envolvimento, na épica, de confronto,<br />
de distanciamento, visto que o narrador é o mediador do relato. Na obra dramática o autor desaparece<br />
atrás do mundo criado, visto que os acontecimentos se desenrolam autonomamente, sem interferência do narrador.<br />
A ação é desenvolvida por meio de personagens num palco, como representação do mundo.<br />
A maneira dramática consiste, pois, no modo de realização das ações, que faz as personagens aparecerem e<br />
agirem diante de nós. A ação se desenrola através de acontecimentos que revelam as personagens, situadas num<br />
determinado lugar e numa determinada época. Ausente o narrador, as personagens são responsáveis para dar<br />
conta das ações, através da representação [Drama = ação].<br />
A tensão dramática, dinamizada pelo alvo a alcançar, impulsiona a ação e suprime todo o excesso. Daí decorre<br />
a concentração ou densidade.<br />
Convém restringir o tempo, economizar espaço e escolher um momento expressivo da longa história, um momento<br />
pouco antes do final, e daí desse ponto reduzir a extensão a uma unidade sensivelmente palpável, para<br />
que, ao invés de partes, grupos coesos ao invés de passagens isoladas, o sentido global fique claro, a fim de que<br />
nada do que o espectador deva fixar se perca.<br />
A obrigação da concentração e do sentido global mobilizado em função de desfecho se conexiona com a unidade<br />
de ação. Tal unidade condensa num todo coeso a ação principal e as acessórias. A ela se junta a unidade de<br />
lugar, pela concentração da encenação às vezes num só cenário, e a unidade de tempo, que é sempre restrito.<br />
O diálogo é a forma natural de as personagens, emancipadas do narrador, desenvolverem a ação. A respeito<br />
dele, Anatol Rosenfeld afirma:<br />
O que se chama, em sentido restrito, de “dramático”, refere-se particularmente ao entrechoque de vontades<br />
e à tensão criada por um diálogo através do qual se externam concepções e objetivos contrários produzindo<br />
o conflito (ROSENFELD, 1996).<br />
A ação, provinda do choque de interesses opostos, antes de chegar ao desfecho, passa por momentos chamados<br />
nó (conjunto de interesses que destrói a situação inicial para encetar a ação), reconhecimento (passagem<br />
da ignorância ao conhecimento de uma dada situação), peripécia (mudança da ação ao contrário do que se<br />
esperava) e clímax (ponto culminante do conflito, depois do qual a trama deve terminar).
UNIDADE I<br />
INTRODUÇÃO À <strong>LITERATURA</strong> <strong>LATINA</strong><br />
1.1 - Aspectos Históricos<br />
Como Foi Transmitida a Literatura Clássica?<br />
Quem lê uma história da literatura latina encontrase<br />
diante de uma narrativa contínua, uma narrativa<br />
complexa na qual se encontram personagens diversos<br />
– os escritores – que produzem suas obras. Ao ler assim,<br />
tudo em seqüência, não se dá conta de quanto<br />
trabalho, no tempo, foi necessário aos estudiosos para<br />
reconstruir um quadro dos fatos e dos acontecimentos<br />
literários tal que se possa, hoje, no estado atual do<br />
conhecimento, defini-lo como completo.<br />
O fato é que, de todos os textos da literatura clássica,<br />
alguns se conservaram mais ou menos íntegros,<br />
outros nos chegaram mutilados mais ou menos gravemente,<br />
de outros permaneceram somente algum<br />
pequeno fragmento, outros ainda desapareceram por<br />
completo e sabemos só (por testemunhas indiretas)<br />
que existiram um dia. O mesmo texto que lemos estampado<br />
em edições não é senão o ponto de chegada<br />
de uma história acidentada, no curso da qual sofreu<br />
deformações e prejuízos de vários tipos que o tornaram<br />
cá e lá defeituoso ou talvez incorreto. O trabalho<br />
dos filólogos providencia com perícia e paciência a<br />
restituição da originária correção dos textos. Em resumo,<br />
tanto a história da literatura grega ou latina<br />
como os textos das obras que as acompanham, se<br />
não tivessem sido integrados pelo trabalho dos estudiosos,<br />
resultariam muito mais lacunosos e incertos<br />
do que hoje o são.<br />
Uma enorme quantidade de textos da literatura latina<br />
já tinha sido perdida no fim da Idade Antiga;<br />
muitos outros se perderam durante a Idade Média.<br />
As razões desse desaparecimento são múltiplas e<br />
diversas: não só mudança de gosto e transformações<br />
culturais fizeram “descartar” certas obras, mas<br />
advém também que obras particularmente longas,<br />
como as Historiae de Tito Lívio, fossem abreviadas<br />
e simplificadas até que os compêndios fizeram desaparecer<br />
os originais; outras desapareceram pelos incêndios<br />
ou saques ou destruições de bibliotecas. Se<br />
o trabalho dos historiadores literários e dos filólogos<br />
não tivesse procurado pesquisar e reconstruir o que<br />
existia, muitos autores importantes hoje não teriam<br />
sequer mencionados os nomes.<br />
Os textos foram conservados e chegaram até nós<br />
graças a papiros e a manuscritos em pergaminhos ou<br />
em papel [ditos ainda códices, do nome codex (tabuinha<br />
de escrever), que tinha a tabuinha de madeira<br />
usada na idade imperial como capa das folhas de<br />
pergaminhos encadernados como livro]; importante<br />
é ainda a documentação que se reuniu através das<br />
epígrafes (inscrições em prosa ou em versos incisas<br />
no mármore, na pedra, no bronze ou sobre os vasos).<br />
Em alguns casos temos numerosíssimos exemplares<br />
para examinar, como certas obras de Ovídio; mas há<br />
também casos em que o manuscrito é um só, como<br />
acontece com os seis primeiros livros dos “Anais”<br />
de Tácito. Na maioria das vezes se trata de manuscritos<br />
medievais (a maior parte dos séculos IX ao<br />
XIII); mais raramente o texto é transmitido por manuscritos<br />
tardo-antigos ou, ao contrário, só por cópia<br />
da idade humanística.<br />
Por quanto vária e complexa possa ser a transmissão<br />
da cada um e dos diversos autores, quando a obra de<br />
um autor é conservada em códices manuscritos (copiados<br />
durante a I. M. pelos monges ou mais tarde<br />
pelos Humanistas), o editor reconstrói o texto trabalhando<br />
sobre testemunhas que são representadas por<br />
uma cópia ou por uma fieira de cópias. O resultado<br />
que alcança é chamado de edição crítica, uma edição<br />
que de costume contém, além do texto crítico reconstruído<br />
pelo editor moderno, também um aparato crítico,<br />
onde estão assinaladas as variantes por ele refutadas<br />
(neste aparato de notas, estampado na maioria<br />
das vezes ao pé da página, se registram precisamente<br />
as variantes, isto é, as diferenças entre os vários manuscritos).<br />
De tal modo resultam logo evidentes os<br />
critérios de reconstrução do texto que o editor adotou<br />
preferindo uma lição a outra (preferindo um determinado<br />
modo que o copista do manuscrito “leu”<br />
e transcreveu um passo). A disciplina que examina a<br />
tradição manuscrita de um texto (ou seja, o conjunto<br />
dos documentos escritos que o transmitiram), que<br />
tem por objetivo reconstruir a forma originária e que<br />
procura saneá-lo dos gastos ocorridos com o tempo, é<br />
chamada de crítica textual.<br />
Nesse caso, qualquer que seja a particular situação<br />
da tradição manuscrita de um autor, a nossa relação<br />
com os textos pode ser definida como direta, no sentido<br />
que esses foram reproduzidos por si sós (embora<br />
com possíveis gastos, cochilos do copista, omissões,<br />
infidelidades, acréscimos e ajustes). Diz-se então que<br />
esses textos chegaram até nós por tradição direta.<br />
17
18<br />
Das obras de alguns autores (por exemplo, Vergílio,<br />
mas também Cícero, Horácio, Pérsio) possuímos seja<br />
a tradição direta, sejam testemunhas de tradições indiretas<br />
(por exemplo em obras de comentadores antigos:<br />
Sérvio para Vergílio, Porfírio para Horácio etc.).<br />
Mas, como se falou, a rede de obras conservadas<br />
se entrecorta continuamente com uma rede de obras<br />
perdidas, da qual é conservada notícia graças ao testemunho<br />
de outros autores e de outros textos. Autores<br />
cruciais para o desenvolvimento da cultura romana<br />
(como Névio, Ênio, Lucílio) nos são conhecidos desta<br />
maneira, porque partes dos seus textos são citadas<br />
por outros autores (como as Origines e o Hortensius<br />
de Cícero). Neste caso possuímos textos que nos são<br />
legados de “segunda mão”: trata-se de pequenos trechos,<br />
de fragmentos recordados habitualmente por<br />
razões lingüísticas ou gramaticais. Diz-se então que<br />
os textos nos chegaram por tradição indireta.<br />
Os gramáticos latinos nos conservaram uma preciosa<br />
coleção de fragmentos de textos para nós perdidos:<br />
eram atraídos por uma palavra inusual, por uma<br />
construção estranha, por um arcaísmo, por um neologismo,<br />
em geral pela experimentação lingüística, e<br />
por isso referiam palavras de autor (trechos inteiros,<br />
frases ou uma expressão) no interior de um discurso<br />
deles. Mas acontece também que Cícero (por ex. no<br />
Brutus) cita com admiração (e assim se os conserva)<br />
alguns versos dos Annales de Ênio. A literatura<br />
clássica seria para nós muito menos substanciosa se<br />
também esta rede fragmentária e semi-submersa não<br />
tivesse sido percorrida e explorada por pacientes e espessos<br />
geniais estudiosos.<br />
1.2 - O Século de Augusto (de 44 ou 43 a. C. a 17 d. C.)<br />
Foi a época de ouro da literatura latina. Floresceram<br />
os mais variados gêneros literários: a historiografia, com<br />
Tito Lívio e Salústio, a poesia épica, com Vergílio (Enei-<br />
1.3 - Epopéia Grega<br />
Leitura<br />
Os helenos são oriundos da planície do Danúbio,<br />
tendo penetrado na bacia mediterrânea oriental por<br />
meio de invasões sucessivas a partir do séc. XV a.C.<br />
Encontraram nas ilhas do mar Egeu populações que<br />
tinham se tornado civilizações brilhantes (civilização<br />
cretense/egéia ou minóica).<br />
A colonização, do séc. VII ao V, expandiu a língua<br />
e a cultura por quase todo o mediterrâneo. As conquistas<br />
de Alexandre (IV) levaram-no até o coração<br />
da Ásia. A conquista romana (II a.C.) introduziu-a em<br />
Roma. No I séc. a. C., em todo o mundo antigo, falava-se<br />
ou lia-se o grego e todos tornaram-se tributários<br />
da cultura helênica.<br />
Dárdano, filho de Zeus, fundou a Dardânia, um distrito<br />
a noroeste de Tróia, e casou-se com a filha de<br />
Teucro, rei do lugar. Seus descendentes foram Tros<br />
(de quem o distrito de Tróia e os troianos tiraram o<br />
nome) e Ilos, fundador da cidade de Tróia, conhecida<br />
conseqüentemente como Ílion.<br />
Segundo Junito Brandão, “um fato parece definitivo:<br />
uma realidade histórica está subjacente ao mito na<br />
epopéia homérica, se bem que, glorificada e transfor-<br />
da), o lirismo, com Horácio, Vergílio, Ovídio, Tibulo e<br />
Propércio. A vida cultural desenvolvia-se em torno dos<br />
círculos como os de Messala, Polião e Mecenas.<br />
Alguns consideram que Homero tenha nascido no<br />
século XII a.C., situando os episódios narrados pela<br />
Ilíada e pela Odisséia como ocorridos por volta do<br />
séc. XIII ou XII a.C. Outros situam seu nascimento<br />
no séc. IX e até mesmo no séc. VII a.C. Modernamente,<br />
prefere-se situá-lo no séc. IX, na Ásia Menor.<br />
O ponto de partida das narrativas é a Guerra de<br />
Tróia, que teria ocorrido entre os séculos XIII e XII<br />
a.C. Segundo escavações recentes, Tróia seria uma<br />
fortaleza de forma aproximadamente circular, não<br />
medindo mais do que 183m transversalmente. As<br />
muralhas tinham aproximadamente 4,50m de largura<br />
e 6m de altura, com portas e torres quadradas para sua<br />
defesa. O terreno dentro da fortaleza elevava-se em<br />
terraços até o palácio situado em seu centro. Eis uma<br />
história reduzidíssima da fundação de Tróia:<br />
mada por vários séculos de tradição puramente oral<br />
que precederam à composição definitiva elaborada<br />
por Homero (séc. IX - VIII a.C.) e a fixação por escrito<br />
dos dois poemas (séc. VI a.C.).<br />
A dificuldade maior no estudo da epopéia Homérica<br />
está em isolar o que realmente é micênico do que pertence<br />
a épocas posteriores, como a Idade do Ferro, a Idade<br />
do Caos e ao ambiente histórico em que viveu o próprio<br />
poeta. Sem dúvida, também sob o ângulo político, social
e religioso, os poemas homéricos são uma colcha de retalhos<br />
com rótulos de civilizações diferentes no tempo e<br />
no espaço. Não obstante todas essas dificuldades, alguns<br />
elementos micênicos podem, com boa margem de segurança,<br />
ser detectados no meio dos dois grandes poemas.<br />
Consoante Homero, o que parece autêntico, o mundo<br />
micênico era um entrelaçamento de reinos pequenos<br />
e grandes, mais ou menos independentes, centralizados<br />
em grandes palácios, como Esparta, Atenas, Pilos,<br />
Micenas, Tebas..., mas devendo fidelidade, ou talvez<br />
vassalagem, não se sabe muito bem por que, ao reino<br />
de Agamêmnon, com sede em Micenas. Além deste<br />
aspecto político, há outros a considerar. M. Helena da<br />
Rocha Pereira alinha alguns elementos aqueus presentes<br />
na epopéia homérica. “Ora, os Poemas Homéricos<br />
descrevem, fundamentalmente, a civilização micênica,<br />
embora ignorem a sua forte burocratização e a<br />
abundância de escravatura, reveladas pelas tabuinhas<br />
de Pilos. Mas, entre os principais elementos micênicos,<br />
podemos apresentar: as figuras e seus epítetos;<br />
a riqueza de Micenas (era rica em ouro); a raridade<br />
do ferro; a noção de que anáks (o senhor, o príncipe,<br />
rei com poderes religiosos e militares) é mais do<br />
que basileus (rei com poderes políticos); o fausto dos<br />
funerais de Pátroclo; a arquitetura dos palácios, nomeadamente<br />
a presença do mégaron; objetos como o<br />
elmo de presas de javali, a taça de Nestor e a espada<br />
de Heitor, com um aro de ouro”.<br />
Mas se comprovadamente existem elementos micênicos,<br />
de fundo e de forma, nos poemas homé-<br />
A Ilíada<br />
Primórdios da Guerra de Tróia<br />
A Ilíada trata de apenas uma pequena parte da Guerra<br />
de Tróia. De fato, só abarca alguns meses durante o<br />
décimo ano dessa guerra. Os gregos antigos, porém,<br />
estavam familiarizados com todos os acontecimentos<br />
que tinham conduzido a esse décimo ano e, no decurso<br />
da Ilíada, Homero faz muitas referências a diversos<br />
fatos passados.<br />
A lenda começa há séculos, com a construção da<br />
cidade de Tróia. Esta estava sob a proteção dos filhos<br />
de Zeus, o pai dos deuses. O rei da cidade era<br />
Laomedonte, que, por ela prosperar rapidamente, decidiu<br />
fazer uma enorme muralha para sua proteção.<br />
Esta é evidentemente a muralha que os gregos não<br />
conseguiram penetrar durante nove anos – o ponto<br />
em que começa a Ilíada. Para uma construção tão<br />
magnífica era necessário evocar o auxílio divino, e o<br />
deus dos mares e dos oceanos, Posídon, ofereceu-se<br />
para ajudar, mas disse que teria de ser compensado<br />
pelos seus esforços.<br />
ricos, como pode o bardo máximo da Hélade ter<br />
conhecimento, por vezes tão preciso, de um mundo<br />
que ele cantou cerca de quatro ou cinco séculos depois?<br />
A escrita já existia, é verdade, e cinco séculos<br />
também antes do poeta, mas aquela, a Linear B, era<br />
usada, sobretudo em documentos administrativos<br />
e comerciais e não em textos de caráter literário.<br />
Parece que os poderosos senhores do mundo aqueu<br />
julgavam indigno ou desnecessário que suas façanhas<br />
fossem gravadas em tabuinhas de argila. E<br />
realmente não era necessário, pela própria técnica<br />
poética da época. A poesia épica missênica é oral<br />
e tradicional, uma poesia não escrita e transmitida<br />
de geração a geração. Uma poesia áulica, cheia de<br />
fórmulas de caráter religioso e militar e cuja sobrevivência<br />
se deveu aos aedos (cantavam ao som<br />
da cítara, improvisando, inspirados pelos deuses)<br />
e rapsodos (poetas que costuravam os versos sem<br />
cantar, apenas recitando-os).<br />
(....) Os poemas homéricos resultam, pois, de um longo,<br />
mas progressivo desenvolvimento da poesia oral, em<br />
que trabalharam muitas gerações. Usando significantes<br />
do fim do séc. IX e meados do séc. VIII a.C., épocas em<br />
que foram, ao que parece, ‘compostas’, na Ásia Menor<br />
grega, respectivamente a Ilíada e a Odisséia, o poeta nos<br />
transmite significados do séc. XIII ao séc. VIII a.C. O<br />
mérito extraordinário de Homero foi saber genialmente<br />
reunir esse acervo imenso em dois insuperáveis poemas<br />
que, até hoje, se constituem no arquétipo da épica ocidental”<br />
(BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega.<br />
Petrópolis, Ática, 1996. v. III).<br />
No fim dos trabalhos, os troianos pensaram que<br />
a muralha era tão impenetrável que se recusaram a<br />
compensar Posídon. Este retirou então a sua proteção<br />
e, assim, a cidade ficou sem a proteção divina e vulnerável<br />
ao ataque.<br />
Na altura da Guerra de Tróia, a cidade era governada<br />
pelo rei Príamo, casado com Hécuba, a qual, segundo<br />
a lenda, deu-lhe 49 filhos, incluindo o nobre Heitor,<br />
a profetisa Cassandra, Páris e muitos outros. Quando<br />
Hécuba estava grávida de Páris, teve o sonho de que<br />
esse filho seria a causa da destruição de Tróia. Um oráculo<br />
e um adivinho confirmaram que ele seria efetivamente<br />
a causa da destruição total da nobre cidade de<br />
Tróia; portanto, para o bem da cidade, Hécuba concordou<br />
em abandonar o recém-nascido à morte, expondoo<br />
no monte Ida, mas ele foi salvo por pastores e cresceu<br />
como pastor, ignorante do seu nascimento real.<br />
Pouco antes do início da Guerra de Tróia, Zeus preparou<br />
o casamento de Tétis (uma deusa) com Peleu<br />
(um mortal); serão a mãe e o pai do nobre Aquiles. No<br />
casamento, todos os deuses e deusas compareceram e<br />
estavam a divertir-se, quando Éris, a deusa da discór-<br />
19
20<br />
dia, que, por razões óbvias, não foi convidada, joga<br />
uma maçã de ouro no meio deles, com as palavras<br />
“PARA A MAIS BELA” nela inscritas.<br />
Hera, Atená e Afrodite reclamam a maçã e pedem<br />
a Zeus que julgue entre elas, mas este recusa-se sabiamente,<br />
preferindo nomear o pastor Páris (o qual<br />
tomava conta dos rebanhos nas proximidades) para<br />
decidir o pleito. As deusas vão todas a ter com Páris,<br />
e cada uma delas procura suborná-lo, oferecendo-lhe<br />
a sua especialidade. Hera oferece-lhe um rico reino e<br />
poder. Atená oferece-lhe sabedoria e êxitos militares.<br />
Afrodite oferece-lhe amor, o amor da mais bela mulher<br />
do mundo, a espetacular Helena. Conseqüentemente,<br />
Páris escolhe Afrodite, tornando assim Hera<br />
e Atená suas implacáveis inimigas, jurando ambas<br />
destruir Páris e a cidade de Tróia.<br />
Ao saber que possuirá Helena, Páris vai primeiro a<br />
Tróia e estabelece-se como verdadeiro príncipe, filho<br />
legítimo de Príamo e Hécuba. Depois embarca para<br />
Esparta, para a corte do rei Menelau, o qual estava<br />
ausente, onde seduz e logo rapta Helena, levando-a<br />
para Tróia.<br />
A Guerra de Tróia<br />
Quando Menelau volta a Esparta e sabe da partida<br />
da esposa, convoca grande número de generais gregos<br />
para o acompanharem na conquista de Tróia e<br />
na recuperação de Helena. Em tempos, todos esses<br />
generais tinham cortejado Helena, chegando depois<br />
a um acordo: comprometiam-se a auxiliar aquele que<br />
conseguisse o amor de Helena e a vingar qualquer<br />
desonra a que o futuro marido ficasse sujeito por causa<br />
dela. Assim, Páris precipitou a Guerra de Tróia,<br />
cumprindo o sonho profético que sua mãe tivera de<br />
dar à luz um filho que seria a causa da destruição da<br />
cidade de Tróia.<br />
Alguns dos chefes gregos estavam ansiosos por saquear<br />
Tróia, mas dois, Ulisses e Aquiles, tinham sido<br />
avisados por oráculos do destino que teriam se participassem<br />
da expedição. Ulisses foi avisado de que estaria<br />
ausente durante vinte anos, pelo que se fingiu de<br />
louco, mas a sua astúcia foi rapidamente descoberta<br />
e acabou por concordar em partir. Os gregos sabiam<br />
que nunca poderiam capturar Tróia sem a ajuda de<br />
Aquiles, que era o maior guerreiro do mundo. Este<br />
era praticamente invulnerável como combatente porque,<br />
ao nascer, a mãe o mergulhara no rio Estige, tornando-o<br />
imortal em todo o corpo exceto no calcanhar,<br />
por onde o segurara (mais tarde, Páris descobrirá esta<br />
vulnerabilidade e disparará uma seta envenenada para<br />
o calcanhar de Aquiles – é por esta razão que utilizamos<br />
a expressão “calcanhar de Aquiles” para nos<br />
referimos à vulnerabilidade de alguém). Aquiles foi<br />
avisado de que, se fosse para a guerra, obteria grande<br />
glória, mas morreria jovem. Então a mãe disfarçou-o<br />
com roupas femininas. Porém, o astuto Ulisses descobriu<br />
a artimanha e Aquiles acabou por concordar com<br />
a sua participação.<br />
O irmão de Menelau, Agamêmnon, foi eleito chefe<br />
do exército. Quando estavam reunidos mil navios, os<br />
ventos acalmaram e, após consulta dos oráculos, descobriu-se<br />
que Agamêmnon matara um veado consagrado<br />
à Ártemis, a deusa da caça. Nada a poderia pacificar<br />
a não ser o sacrifício da filha de Agamêmnon,<br />
Ifigênia. Após considerável angústia, Agamêmnon<br />
mandou chamar a filha, sob pretexto de que ela iria<br />
casar com Aquiles. Uma vez lá, todavia, fê-la sacrificar,<br />
e os ventos começaram imediatamente a soprar.<br />
A expedição partiu.<br />
O primeiro desembarque foi num local errado, mas<br />
os gregos (chamados de aqueus, na Ilíada) acabaram<br />
por chegar a Tróia e sitiar a cidade, colocando Aquiles<br />
numa das extremidades e o famoso Ajax na outra.<br />
Durante nove anos tentaram, sem êxito, penetrar a<br />
invulnerável muralha troiana. Contudo, conquistaram<br />
e pilharam muitas terras pequenas e, no fim do nono<br />
ano, capturaram duas belas mulheres, Criseide, que<br />
foi entregue a Agamêmnon, e Briseide, que coube a<br />
Aquiles. Aqui começa a Ilíada, que terminará com o<br />
funeral de Heitor.<br />
A Queda de Tróia<br />
Depois do funeral de Heitor, os troianos solicitaram<br />
a ajuda de forças exteriores e os gregos perderam<br />
muitos combatentes valorosos. Numa batalha, Aquiles<br />
defrontou-se com Páris, o qual lançou uma seta<br />
que, guiada por Apolo, atingiu Aquiles no calcanhar<br />
direito, o único ponto em que ele era vulnerável. Só<br />
com grande dificuldade é que Ajax e Ulisses conseguiram<br />
recuperar o corpo de Aquiles, e logo surgiu<br />
uma disputa sobre quem deveria receber sua esplêndida<br />
armadura. Quando esta foi atribuída a Ulisses,<br />
Ajax ficou tão furioso que ameaçou matar alguns dos<br />
chefes gregos, mas, ao aperceberem-se do erro do seu<br />
comportamento, acabou por se suicidar.<br />
Com a morte dos dois maiores guerreiros, Ajax e<br />
Aquiles, os gregos começaram a duvidar de que algum<br />
dia conseguiriam conquistar Tróia. Consultando diversos<br />
adivinhos e oráculos, são informados de que se<br />
devem apoderar do arco e flechas de Héracles, que se<br />
encontravam nas mãos do príncipe Filocteto, um grego<br />
anteriormente abandonado devido a uma terrível ferida<br />
que não sarava. Ulisses e Diomedes são enviados e convencem<br />
Filocteto a regressar com o arco e as flechas.<br />
No seu primeiro combate, este consegue matar Páris.<br />
Esta morte, no entanto, não afeta o curso da guerra.
Aos gregos foi então apresentada uma série de coisas<br />
que teriam de ser realizadas para alcançarem a vitória<br />
como: 1. Levar os ossos de Pelops da Ásia de regresso<br />
à Grécia; 2. Fazer que o filho de Aquiles entrasse<br />
na guerra; 3. Roubar a imagem sagrada de Atená do<br />
santuário de Tróia. Estes fatos foram realizados, mas<br />
nenhum deles alterou o curso da guerra. Então Ulisses<br />
concebeu um plano através do qual os gregos poderiam<br />
penetrar as defesas de Tróia: foi construído um<br />
grande cavalo de madeira, com o ventre oco, para conter<br />
muitos guerreiros. Na escuridão da noite, o cavalo<br />
foi levado para as planícies de Tróia, e alguns combatentes<br />
gregos treparam para dentro dele. Os restantes<br />
gregos queimaram os acampamentos e afastaram-se<br />
para os barcos, simulando o abandono da guerra, mas<br />
ficaram à espera para além de uma ilha próxima.<br />
Na manhã seguinte, os troianos descobriram que os<br />
gregos tinham ido embora e encontraram o enorme cavalo<br />
misterioso postado em frente de sua cidade. Também<br />
depararam com um grego chamado Sínone com<br />
histórias plausíveis acerca da partida dos gregos, do cavalo<br />
de pau e da sua própria presença ali. Sínone contou<br />
a Príamo e aos outros que Atená abandonara os gregos<br />
devido ao roubo da sua imagem do templo. Sem a ajuda<br />
dela, sentiram-se perdidos e, por isso, partiram. Porém,<br />
para chegarem em segurança às suas terras, tinham de<br />
proceder a um sacrifício humano. Sínone era o escolhido,<br />
mas fugira e escondera-se. O cavalo fora deixado<br />
para aplacar a ira da deusa, e os gregos tinham a esperança<br />
de que os troianos o profanassem, atraindo o ódio<br />
de Atená. Estas mentiras convenceram Príamo e muitos<br />
outros troianos, que então arrastaram o cavalo gigantesco<br />
para dentro das muralhas, a fim de honrarem Atená.<br />
Nessa noite, os soldados saíram sub-repticiamente do<br />
cavalo, mataram as sentinelas e abriram as portas da cidade<br />
para permitirem a entrada do exército grego. Este<br />
acendeu focos de incêndio por todo o lado, começou a<br />
massacrar os habitantes e procedeu à pilhagem. A resistência<br />
troiana de nada serviu. O rei Príamo foi morto, e,<br />
ao amanhecer, quase todos os troianos tinham tido o mesmo<br />
destino. Só escaparam Enéias, com o seu pai e o seu<br />
filho criança, e um pequeno grupo de troianos. O filhinho<br />
pequeno de Heitor foi atirado do alto da muralha da cidade.<br />
As mulheres que ficaram foram entregues aos chefes<br />
gregos como troféus de guerra para serem usadas como<br />
escravas ou concubinas. Tróia foi devastada. Hera e Atená<br />
tiveram sua vingança sobre Páris e a sua cidade.<br />
Resumos e Comentários<br />
CANTO I<br />
A peste - A ira de Aquiles<br />
A Ilíada começa, como todos os poemas épicos,<br />
com a invocação do poeta à musa (deusa) da poesia.<br />
Nesta invocação, Homero apresenta seu tema, a ira<br />
ou a fúria de Aquiles e seus efeitos, e pede a ajuda da<br />
musa para conseguir contar adequadamente a história.<br />
O leitor é então levado ao ponto onde o problema teve<br />
sua origem. É aí que a história da Ilíada começa.<br />
Durante uma das muitas expedições do exército aqueu<br />
(grego) nas proximidades de Tróia, duas jovens troianas<br />
muito belas, Criseide e Briseide, foram capturadas<br />
e levadas ante o chefe do exército Agamêmnon e ante a<br />
Aquiles. Criseide, troféu de Agamêmnon, é filha de Crises,<br />
sacerdote de Apolo, e não tarda muito para que Crises<br />
venha ao acampamento aqueu, esperando resgatála.<br />
Agamêmnon se recusa a cedê-la e ordena rudemente<br />
ao velho que abandone o acampamento. Desesperado,<br />
Crises implora o auxílio de Apolo. Este responde à prece<br />
do sacerdote e uma peste mortífera espalha-se entre<br />
os aqueus, matando centenas de combatentes.<br />
No décimo dia da peste, Aquiles recusa-se a aguardar<br />
mais tempo uma ação do rei Agamêmnon para pôr fim à<br />
praga. Usurpando a autoridade de Agamêmnon, Aquiles<br />
convoca uma assembléia do exército e sugere que seja<br />
chamado um adivinho para determinar a causa da peste.<br />
Calcante, um adivinho aqueu, explica a causa, após suplicar<br />
a Aquiles absoluta proteção. Quando o adivinho<br />
revela que a causa é resultante da recusa de Agamêmnon<br />
em devolver Criseide ao pai, o próprio Agamêmnon<br />
fica furioso por ser publicamente nomeado como<br />
responsável pela praga. Insiste em que, se for obrigado a<br />
devolver Criseide, sua recompensa de direito, então tem<br />
de ser compensado com a recompensa de Aquiles, Briseide.<br />
Tal exigência enfurece Aquiles, que, ofendido na<br />
sua timé e areté, considera até mesmo a hipótese de apunhalar<br />
Agamêmnon, mas é acalmado pela deusa Atená,<br />
ao tomar da espada. Finalmente Nestor (o mais velho<br />
e sensato de todos os guerreiros aqueus) ergue-se para<br />
falar e consegue pacificar os dois homens irados.<br />
Aquiles, contudo, permanece encolerizado pela afronta<br />
pública de Agamêmnon ao exigir Briseide, e recusase<br />
a aceitar a indignidade que sente ter-lhe sido imposta<br />
na presença de todos os soldados. Conseqüentemente<br />
anuncia que retira todas as suas tropas da luta. Nem<br />
ele, nem nenhum dos seus homens voltarão a lutar com<br />
os aqueus contra os troianos. Justifica a decisão afirmando<br />
que nem ele nem qualquer dos que o seguem<br />
tinham qualquer questão pessoal com os troianos. Ele<br />
só tinha ido ajudar Agamêmnon e Menelau na tentativa<br />
de recuperação da esposa deste, Helena, e considera<br />
extremamente injusto que lhe retirem a recompensa,<br />
Briseide. Aquiles está firme na decisão de não voltar<br />
a lutar: não o fará e, além disso, ele e seus homens regressarão<br />
o mais breve possível à sua própria terra.<br />
No entanto, Agamêmnon decide aplacar Apolo: devolverá<br />
Criseide, a sua recompensa. Envia-a em segurança<br />
a bordo de um navio, que a levará até sua<br />
terra, e depois manda os seus arautos irem buscar Bri-<br />
21
22<br />
seide. Surpreendentemente, Aquiles entrega a jovem<br />
sem qualquer dificuldade.<br />
A seguir, porém, num sofrimento profundo, Aquiles<br />
vagueia sozinho pela praia e chora. Foi publicamente<br />
envergonhado pelo rei Agamêmnon e tratado como um<br />
escravo. A sua mãe Tétis, uma ninfa do mar, aparece ao<br />
ver o filho em tal estado. Este confessa-lhe seus problemas<br />
e pede-lhe que utilize sua influência junto de Zeus<br />
para assegurar que os exércitos troianos derrotem os<br />
seus camaradas de aramas aqueus. Aquiles pensa que,<br />
quando os aqueus compreenderem que estão perdendo<br />
a guerra em razão de sua ausência, entenderão qual o<br />
verdadeiro valor que Aquiles tinha para eles. Em resultado<br />
disso, remediarão o insulto de Agamêmnon.<br />
Tétis visita Zeus no Olimpo, e o rei dos deuses concorda<br />
em ajudar os troianos, embora exprima o temor<br />
de que a esposa, Hera, fique aborrecida, pois ela tem<br />
ciúmes de Tétis, odeia os troianos e não suporta a idéia<br />
de os ver ganhar a guerra. Descobrimos de fato que<br />
Hera odeia os troianos, mas teme ainda mais a ira de<br />
Zeus, pelo que cala os seus problemas. O canto I termina<br />
com um banquete dos deuses no palácio de Zeus.<br />
Odisséia<br />
Sinopse da Odisséia<br />
Ulisses, rei de Ítaca, participa da grande expedição dos<br />
aqueus, comandada por Agamêmnon, contra a cidade<br />
de Tróia, com o fim de resgatar Helena para Menelau.<br />
Após 10 anos, Tróia é saqueada e os heróis aqueus regressam<br />
a casa. Quando a Odisséia começa, já se passou<br />
mais de uma década desde a queda de Tróia.<br />
Ulisses ainda não regressou. Todos os outros chefes<br />
já tinham regressado às suas pátrias ou já tinham morrido.<br />
Não havia, porém, qualquer notícia do rei de Ítaca.<br />
Na sua ausência, os nobres de Ítaca e das cidades<br />
vizinhas convergiram para o palácio, esperando obter<br />
a mão de Penélope, mulher de Ulisses. Esta, sempre<br />
fiel à memória do marido, não quer voltar a casar e,<br />
enquanto permanecem no palácio tentando que ela<br />
mude de idéia, os pretendentes esbanjam a fortuna de<br />
Ulisses para seu próprio prazer e corrompem muitos<br />
dos seus criados. Quando Telêmaco, o filho de Ulisses,<br />
cresceu, visitou vários senhores aqueus na esperança<br />
de saber se o pai ainda estava vivo.<br />
Durante esses dez anos, Ulisses vagueou pelo mundo,<br />
passando por uma série inacreditável de aventuras<br />
e sofrendo tormentos inimagináveis, causados pela<br />
maldade de Possêidon. Perdeu todos os seus barcos<br />
e é o único sobrevivente do valoroso exército que<br />
partiu de Tróia. Finalmente, com a ajuda do rei dos<br />
feaces, Ulisses regressa a Ítaca. Auxiliado pela deusa<br />
Atená, de quem é o favorito, Ulisses castiga os pre-<br />
tendentes e restitui-se como rei. Reencontra a mulher,<br />
o filho e o pai, e uma possível guerra civil é evitada<br />
pela intercessão dos deuses.<br />
A Odisséia começa com a invocação de Homero à<br />
musa da poesia, na qual enuncia o tema do poema<br />
épico e lhe pede que o oriente para que possa contar<br />
a história de modo adequado. É, diz ele, a história de<br />
um homem solitário que vagueou pelo mundo durante<br />
muitos anos e sofreu muitos tormentos antes de a<br />
sua tentativa de regressar à pátria ser bem sucedida.<br />
No início da história, todos os sobreviventes da<br />
guerra de Tróia, com a exceção de Ulisses, já regressaram<br />
a casa. Ele se encontra retido pela ninfa Calipso,<br />
que tem esperanças de o fazer seu marido e,<br />
enquanto a maior parte dos deuses lhe vota simpatia,<br />
Posídon, deus do mar, tem-lhe rancor e fá-lo sofrer<br />
muitas provações.<br />
Na ausência de Posídon, Zeus, o rei dos deuses,<br />
convoca um conselho divino no Olimpo. Depois do<br />
discurso de abertura sobre o castigo de Egisto, o assassino<br />
de Agamêmnon, Atená interrompe o pai. Recorda-lhe<br />
o pobre Ulisses, separados da família e dos<br />
seres amados numa ilha distante e exige que os deuses<br />
retomem a sua anterior amizade para com ele. Salienta<br />
que embora Posídon lhe tenha rancor porque Ulisses<br />
cegou um dos seus filhos, ele pode ser obrigado a submeter-se<br />
ao desejo conjunto dos outros deuses. Sugere<br />
que Hermes seja enviado a Calipso, ordenando-lhe<br />
que liberte Ulisses, enquanto ela se disfarçará e irá<br />
visitar Telêmaco, o filho de Ulisses. Zeus e os outros<br />
deuses concordam com a sugestão de Atená.<br />
Atená veste-se de guerreiro e vai imediatamente a Ítaca,<br />
o país de Ulisses. Ali, encontra a casa do herói ocupada<br />
por um bando de príncipes menores e jovens nobres que<br />
aparentemente fazem a corte à mulher de Ulisses, mas<br />
que, ao mesmo tempo, passam os dias em banquetes e<br />
festins nos quais esbanjam toda a fortuna de Ulisses.<br />
Atená, identificando-se como Mentes, chefe dos Táfios<br />
e velho amigo de Ulisses, é bem recebida por Telêmaco.<br />
Sentados ao jantar, Telêmaco pede desculpa<br />
pelo comportamento grosseiro dos pretendentes. Pergunta<br />
a Atená se tem notícias do pai. Atená tranqüiliza<br />
Telêmaco, dizendo que Ulisses está vivo em algum<br />
lugar e que acabará por regressar a casa e castigará os<br />
pretendentes. Telêmaco descreve os problemas causados<br />
pela ausência do pai e explica como Penélope,<br />
a mãe, se recusa a casar-se novamente. Atená recomenda<br />
a Telêmaco que convoque uma reunião na ágora,<br />
durante a qual ordenará aos pretendentes que saiam<br />
da casa e, ao mesmo tempo, anunciará a sua intenção<br />
de procurar saber notícias do Ulisses. Então, a deusa<br />
aconselha, deve partir para Pilo e Esparta para saber o<br />
que for possível, por intermédio de Nestor e Menelau.
Além disso, salienta Atená, se Ulisses tiver morrido,<br />
então é hora de Telêmaco enfrentar as suas responsabilidades,<br />
reclamando a sua herança, fazendo que a mãe<br />
escolha um novo marido e castigando os pretendentes.<br />
A deusa parte e ambos separam-se como amigos.<br />
Entretanto, no festim dos pretendentes, um aedo<br />
canta sobre as aventuras dos aqueus de Tróia. Penélope<br />
aparece e fica perturbada por esta lembrança de<br />
Ulisses, ausente há tanto tempo, mas Telêmaco orde-<br />
1.4 - A Epopéia em Roma<br />
Publius Vergilius Maro, às vezes chamado<br />
de Vergílio (Andes, 15 de Outubro de de 70 70 aC aC aC aC<br />
- Brindisi, , 21 de Setembro de 19 aC aC aC aC aC aC<br />
Sua obra mais conhecida é a Eneida. Foi considerado<br />
ainda em vida como o grande poeta romano e<br />
expoente da literatura latina. Seu trabalho foi uma<br />
vigorosa expressão das tradições de uma nação que<br />
urgia pela afirmação histórica, saída de um período<br />
turbulento de cerca de dez anos, durante os quais as<br />
revoluções prevaleceram.<br />
Considerado o maior poeta latino, era natural da região<br />
de Mântua (70-19 a.C.) e filho de uma família de camponeses.<br />
Alcançou pelo casamento uma situação estável,<br />
podendo então ouvir, em Milão e Roma, as lições de filósofos<br />
epicuristas. Amigo de Horácio, como ele protegido<br />
por Mecenas, entrou em contato com o imperador, de<br />
quem recebeu o incentivo para escrever a Eneida.<br />
Admirador da cultura helênica, empreendeu uma<br />
viagem à Grécia, berço e viveiro da cultura, sonho<br />
que há muito acalentava: o destino concedeu-lhe a realização<br />
desse anseio, mas morreu no regresso, junto<br />
de Brindisi. O seu túmulo encontra-se em Nápoles.<br />
A obra de Virgílio compreende, além de poemas<br />
menores, compostos na juventude, as Bucólicas ou<br />
Éclogas, em número de dez, em que reflete a influência<br />
do gênero pastoril criado por Teócrito.<br />
As Geórgicas, dedicadas ao seu protetor Mecenas,<br />
constam de quatro livros, tratando da agricultura.<br />
Trata-se de uma obra de implicações políticas indiretas,<br />
embora bem definidas: ao fazer a apologia da<br />
vida do campo, o poeta serve o ideal político-social<br />
da dignificação da classe rural. Reflete a influência de<br />
Hesíodo e Lucrécio.<br />
Literariamente, as Geórgicas são consideradas a sua<br />
obra mais perfeita. E, finalmente, a Eneida, que o poeta<br />
considerou inacabada, a ponto de pedir, no leito de morte,<br />
que fosse queimada, constitui a epopéia nacional.<br />
na-lhe que saia da sala, onde o divertimento é, afinal,<br />
destinada a homens e não a mulheres sensíveis.<br />
Os pretendentes tentam interrogar o jovem sobre o<br />
seu recente visitante. Ele anuncia a convocação da<br />
Assembléia para a manhã seguinte, bem como a sua<br />
projetada viagem em busca de informações e o castigo<br />
que tenciona aplicar a todos eles. Ficam surpresos<br />
com esta súbita afirmação de virilidade, mas prosseguem<br />
o festim esbanjador. Telêmaco vai-se deitar e<br />
sonha com a sua próxima viagem.<br />
Eneida<br />
RESUMO E COMENTáRIOS<br />
A tempestade: Enéias em Cartago<br />
Arma virumque cano... Início da Eneida, verso célebre<br />
na antigüidade. Foi usado por poetas como Propércio,<br />
Ovídio, Pérsio e Marcial, como referência à obra vergiliana.<br />
Sobre paredes de Pompéia, foram encontrados diversos<br />
grafites reproduzindo-os ou parodiando-os, como:<br />
Fullones ululamque cano, no Arma virumque.<br />
(Eu canto os pisantes e a coruja, não as guerras e<br />
o varão.)<br />
Nos sete primeiros versos está resumida toda a ação<br />
da Eneida. O primeiro verso<br />
Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris<br />
evoca Enéias – sem o nomear – e Tróia, sua pátria;<br />
o último dos sete<br />
Albanique patres atque altae moenia Romae<br />
termina sobre o nome de Roma, ou seja, de Tróia<br />
até o Lácio, malgrado a ira de Juno. Ao mesmo tempo<br />
estão presentes os dois personagens principais do<br />
poema: Enéias, o troiano fugitivo que os destinos<br />
chamam para fundar uma cidade sobre as margens do<br />
Tibre, e Roma, cuja grande imagem estará sempre no<br />
pensamento do leitor.<br />
Arma (= instrumentos bélicos de defesa e ataque)<br />
quer dizer guerra, luta; ao passo que virum (homem,<br />
varão, em oposição a homo < humus) refere-se ao herói,<br />
isto é, a um ser cujo epíteto é uma garantia de<br />
nobreza; é o ser dotado da areté e da timé; é aquele<br />
que tem de superar um a um os obstáculos para mostrar<br />
que é herói, isto é, que está acima do comum dos<br />
homens – um semideus; mas é também aquele que vai<br />
se sujeitar ao Destino e à vontade dos deuses (Fato<br />
profugus). A isto o poeta diz cano, isto é, canto, do<br />
verbo cantar. Cantar é mais do que dizer, narrar: é<br />
falar grande, é ser grandiloqüente.<br />
23
24<br />
Depois deste preâmbulo, o poeta invoca a Musa:<br />
Musa, mihi causas memora... (A musa da poesia<br />
épica, a filha mais velha de Mnemosine, era Calíope,<br />
uma das sete musas protetoras das artes e da literatura).<br />
A invocação da Musa é uma tradição homérica.<br />
Esta invocação termina com uma pergunta do poeta:<br />
Tentaene animis coelestibus irae?. Tal questionamento<br />
mostra que o poeta, assim como todos os romanos,<br />
não admite que os deuses possam ser acessíveis<br />
às mesmas paixões que rasgam os humanos. Como<br />
se explica isso? Vergílio assinala desde o início do<br />
poema: diante dos sofrimentos infligidos ao herói<br />
– alma religiosa! – por uma divindade rancorosa, ele,<br />
o herói, se assombra e sua piedade emudece. O poeta<br />
explica que Juno teme por Cartago, sua cidade predileta,<br />
que seja aniquilada por um povo oriundo da<br />
raça troiana. Além disso, a deusa ainda guarda em seu<br />
coração o julgamento de Páris, em que fora preterida.<br />
Deste modo, Juno aparece como uma deusa vingativa;<br />
os infelizes mortais são, então, os joguetes das<br />
paixões divinas. Em Homero este conceito era aceito<br />
normalmente, sem objeções; mas, entre os romanos,<br />
era inconcebível que os deuses agissem assim. Vergílio<br />
atualiza o dado com o verso Tantae molis erat<br />
Romanam condere gentem! (Tantos esforços eram<br />
para fundar a nação romana). É a resposta à pergunta<br />
que acaba a invocação. Ou seja, as divindades têm<br />
suas iras, mas as perseguições servem para dizer que<br />
os fins justificam a injustiça: eram necessárias as tribulações<br />
de Enéias para que Roma pudesse nascer.<br />
Quer dizer, Roma não nasce sem sacrifícios, sem dor;<br />
é também o preço de tanto poder e de tanta glória.<br />
Enéias será o herói desses sacrifícios necessários e<br />
Juno, deusa que é, o instrumento de um Destino que<br />
ela crê combater (também os deuses estavam sujeitos<br />
ao Fado). Começa então a apresentação dos feitos em<br />
que o herói se envolve. A narrativa se inicia in medias<br />
res, isto é, no meio dos acontecimentos. O primeiro<br />
deles se dá no mar: os navios já estão se aproximando<br />
do destino final da viagem, os marinheiros estão felizes,<br />
quando desaba uma terrível tempestade, que Juno<br />
fez desencadear, e afasta os troianos para as costas da<br />
África. O poema não se inicia com os fatos conforme<br />
a ordem de ocorrência: a destruição de Tróia, depois<br />
a fuga, depois a viagem, depois a chegada. Começa<br />
no meio (esta forma de iniciar está em Homero, na<br />
Odisséia, quando Ulisses, depois de ter deixado a ilha<br />
de Calipso num navio, está para chegar ao país dos<br />
feaces. Vem uma tempestade que o leva para longe,<br />
entre os etíopes).<br />
Juno, para desencadear a tempestade, dirige-se a<br />
Éolo, o deus dos ventos, que lhe deve obrigações<br />
(através dela ele se tornou rei dos ventos); a deusa<br />
oferece-lhe em matrimônio Deiopéia, a mais bela de<br />
suas ninfas, como recompensa, a qual lhe dará belos<br />
filhos. Juno é a deusa dos bons casamentos. Vergílio,<br />
com isso, quer valorizar o prazer da dignidade do ca-<br />
samento e a legitimidade das alegrias familiares. Faz<br />
parte do plano augústeo de renovação dos costumes:<br />
a volta aos antigos costumes.<br />
É, pois, no meio do turbilhão dos ventos que aparece<br />
pela primeira vez o herói Enéias. Surge voltado para os<br />
céus, em plangente queixa. É a figura do pius Aeneas,<br />
cujo pensamento se volta sem cessar para o céu. Embora<br />
suas palavras não sejam uma oração, e sim um<br />
pranto, caracterizam o herói como o sobrevivente de<br />
uma “troupe” de outros tantos heróis como Diomedes,<br />
Aquiles, Heitor... A descrição das cenas que envolvem<br />
a tempestade são um belo exemplo da grandiloqüência<br />
épica. A tempestade representa um obstáculo mortal ao<br />
qual o herói deverá suplantar. Visto que estas forças da<br />
natureza são grandes demais para um homem, Netuno<br />
intervém majestosamente, opondo-se a Juno e a Éolo,<br />
e ajuda Enéias. Mas esta ajuda se justifica, visto que<br />
Juno e Éolo se intrometem num domínio que não lhes<br />
pertencia. No mais, a tempestade é a desordem dos elementos<br />
em convulsão; Netuno é igual a Augusto que<br />
vem restabelecer a ordem na cidade.<br />
E os troianos ganham as costas da Líbia. A liderança<br />
do herói se ressalta pelas cenas de reconhecimento<br />
do lugar, pela procura dos companheiros dispersos,<br />
pela provisão dos alimentos, pelo encorajamento aos<br />
companheiros através do discurso eficaz.<br />
Vênus vai ter com Júpiter, buscando satisfações<br />
para o que acontece. Através das palavras de Júpiter,<br />
Vergílio projeta a história e o futuro de Roma. E<br />
mostra o entendimento que deve dar à obra: será uma<br />
epopéia nacional e será um poema dinástico (Augusto<br />
é o continuador de Enéias). As guerras heróicas de<br />
Enéias no Lácio, as guerras que formaram o poderio<br />
romano dão início ao império de Augusto, o fundador<br />
da pax romana. Júpiter manda Mercúrio a Cartago a<br />
fim de preparar Dido para a chegada de Enéias.<br />
Segue-se o encontro de Enéias com sua mãe-protetora<br />
Vênus, que vem ajudá-lo, pondo-lhe a par do<br />
lugar em que está e das pessoas com quem há de lidar.<br />
Segue-se a narração do encontro de Enéias com<br />
a fenícia Dido ou Elissa, rainha da nascente Cartago.<br />
[Cartago teria sido fundada por volta de 814-813 a.C.<br />
por colonos Tírios, sob o reinado de Tir Pigmalião,<br />
por obra da irmã deste, Deido. Visto que as condições<br />
da fundação de Cartago eram desconhecidas, Vergílio<br />
as explica de forma legendária. Vergílio também cria<br />
a lenda da paixão de Dido por Enéias, afastando-se da<br />
história que, segundo Varrão, narra que Enéias teria<br />
tido uma aventura amorosa na África, mas não com<br />
Dido e sim com Ana, que seria a verdadeira fundadora<br />
da capital tíria (como se vê, a história é polêmica)].<br />
Se Vergílio introduziu Enéias no palácio de Dido<br />
para que ele vivesse ali uma aventura amorosa, tinha
suas razões. L. A. Constans enumera três delas: a primeira,<br />
de ordem literária ou estética, pretende que Enéias,<br />
da mesma forma que Ulisses, fique retido pelo amor de<br />
uma mulher – é o lado romanesco da epopéia; a segunda<br />
é de ordem histórica ou nacionalista, visto que a Eneida<br />
evocaria no espírito romano toda a história de Roma – alguma<br />
coisa anterior devia relacionar-se às guerras púnicas,<br />
fato que domina a história da fase republicana: Dido<br />
ao ser abandonada por Enéias lança-lhe imprecações antes<br />
do suicídio, ou seja, as guerras púnicas encontram uma<br />
explicação legendária e sobrenatural, pois elas são o cumprimento<br />
das imprecações de Dido; por fim, a terceira razão<br />
está relacionada com as circunstâncias da atualidade:<br />
a cidade que Enéias vê em construção não era uma cidade<br />
fenícia do século oitavo a.C., mas uma cidade nos moldes<br />
romanos, ou seja: no ano 44 a.C. César havia decidido<br />
ressuscitar Cartago, enviando veteranos para a colonia<br />
Iulia Carthago. Esta cidade seria a cidade em construção<br />
que Vergílio alusivamente descreve.<br />
Enéias vê-se em Cartago onde o detém um vasto<br />
templo que está sendo construído em homenagem a<br />
Juno, em meio a um bosque sagrado. Afrescos decorativos<br />
representam episódios da guerra de Tróia.<br />
O herói os contempla, comove-se ao extremo, vai às<br />
lágrimas e geme, em suspiros profundos arrancados<br />
do peito. Mais de uma vez o herói chora na Eneida.<br />
É a interpretação vergiliana do caráter do herói, do<br />
seu fundo psicológico, que, num momento de pausa<br />
e reflexão, mergulha no imo da alma humana para<br />
se compadecer. Há um elo sentimental entre Tróia,<br />
Enéias e Cartago. Mas esse mergulho é interrompido<br />
pelo que se pode então, de súbito, ver. Dido lhe aparece<br />
deslumbrante de beleza. Traz não só a majestade<br />
da rainha mas também um não sei o quê que a torna<br />
bem digna do filho de uma deusa. Mostra-se a construtora<br />
de uma cidade no momento em que ele sonha<br />
em fixar os penates num novo país.<br />
Vênus, por sua vez, no intuito de ajudar o filho angustiado,<br />
transforma-lhe a fatigada e a pálida face<br />
desfigurada pelo naufrágio na vislumbrante figura que<br />
lembra a estátua de um deus. À vista daquela beleza<br />
sobrenatural, a rainha Dido se comove e seu coração<br />
feminino se enternece de piedade só de pensar nos<br />
sofrimentos do herói.<br />
Obstipuit primo aspectu Sidonia Dido<br />
Casu deinde viri tanto... (I, 613-614)<br />
(A sidônia Dido ficou estupefata à primeira vista;<br />
depois pela tão grande desgraça de um varão...)<br />
Ele é belo, mas infeliz. Ela está pronta a amá-lo. Vênus<br />
põe Cupido em ação, que toma os traços de Ascânio,<br />
o qual serve para os aproximar. Desenrola-se<br />
o banquete e Dido já “bebia o amor em prolongados<br />
goles”. A pedido da rainha, Enéias toma a palavra e<br />
fará o relato que ocupará os livros II e III.<br />
A Eneida Após Vergílio<br />
A glória de Vergílio já dura vinte séculos. Já na Antigüidade,<br />
as escolas esboçavam a imagem de um<br />
Vergílio sábio universal e filósofo místico, cuja obra<br />
encerraria, sob os vôos da alegoria e do símbolo, todos<br />
os segredos do universo. Até mesmo os cristãos<br />
viram no autor da IV égloga (Bucólicas) um anunciador<br />
do nascimento de Cristo. Traçaremos, a seguir,<br />
alguns esboços sobre a Eneida, desde sua publicação<br />
até nossos dias.<br />
A Eneida mal começou a ser escrita e já se tornara<br />
célebre. Os poetas da época de Augusto, Ovídio, Propércio,<br />
Horácio, até mesmo o historiador Tito Lívio,<br />
foram influenciados pela Eneida. No primeiro século<br />
da nossa era, Sílio Itálico e Estácio esforçam-se por enriquecer<br />
a epopéia latina seguindo os traços do mestre.<br />
Os gramáticos e os retóricos comentam seus versos.<br />
Não se pode pensar, por outro lado, que todas as<br />
opiniões só foram favoráveis à Eneida. Houve alguns<br />
autores e críticos que resistiram a ela nos primeiros<br />
tempos. É o caso de Carvilius Pictor que escreveu<br />
Aenneosmastix para fustigá-la. Herennius revela<br />
seus erros, enquanto que Perellius Faustus e Otavius<br />
Avitus denunciam seus plágios. O grande crítico<br />
Asconius Pedianus, do primeiro século da nossa<br />
era, consagrou uma obra para combater os detratores<br />
de Vergílio (Contra obtrectatores Virgilii). Calígula<br />
pretendeu banir das bibliotecas públicas as obras e<br />
as imagens de Vergílio, porque, segundo ele, era uma<br />
obra de “nenhum gênio e de magro saber” (Suetônio,<br />
Calígula, 34). Outros gramáticos como Valério Probo<br />
e Anneus Cornutus comentaram largamente a Eneida.<br />
Posteriormente, o estudo de Vergílio tornou-se<br />
um dos meios indispensáveis para a educação liberal,<br />
mas mantinha ainda alguma polêmica.<br />
Através das escolas, a Eneida ganhava outros locais<br />
além dos muros de Roma. Difundiu-se nos círculos<br />
mundanos e nos meios populares. Também passou a<br />
servir de motivo de esnobismo: na alta sociedade dos<br />
tempos de Nero era de bom tom falar sobre o conhecimento<br />
da Eneida. Juvenal (Sátira, VI) nos fala de<br />
uma mulher tocada pela literatura que senta à “mesa,<br />
louva Vergílio, justifica Dido pronta para morrer, põe<br />
os poetas em paralelo, compara-os, suspendendo na<br />
balança Vergílio de um lado e Homero de outro”.<br />
Políbio, alforriado por Cláudio, havia empreendido a<br />
tradução de Homero para o latim e de Vergílio para o<br />
grego, no que fora elogiado por Sêneca.<br />
A Eneida também difundiu-se entre o povo. Os desocupados<br />
escreviam seus versos sobre as paredes das<br />
casas e sobre os monumentos públicos (pichações).<br />
A pantomima se amparava em seus heróis: Nero, no<br />
dia de sua morte, prometera imitar, dançando, um tre-<br />
25
26<br />
cho de Turno, de Vergílio, se ele escapasse de seus<br />
inimigos. O poema também era declamado em lugares<br />
públicos: Petrônio, no Festim de Trimalcião, nos<br />
mostra um convidado de seu jantar ridículo fazendo<br />
seu escravo recitar o livro V da Eneida.<br />
Na época dos Antoninos, o arcaizante crítico Fronto<br />
dizia preferir Ênio a Vergílio; o imperador Adriano<br />
achava o mesmo. Nessa época, a Eneida começa a<br />
se colorir de idéias supersticiosas: tiram-se dela,<br />
principalmente do livro VI, predições e avisos sobrenaturais.<br />
Para isto, abria-se o livro ao acaso e interpretava-se<br />
o primeiro verso que se oferecia. Adriano,<br />
malgrado suas prevenções literárias, foi o primeiro<br />
imperador a consultar as sortes vergilianae, cujo uso<br />
se perpetuaria durante a Idade Média.<br />
Esta tendência de fazer da Eneida um livro sagrado<br />
no qual se procuravam revelações de toda ordem, se<br />
traduziu nas escolas pela exegese alegórica. A partir<br />
desse procedimento, descobriu-se uma chave de um<br />
enriquecimento ilimitado: fazer significar no texto de<br />
Vergílio idéias filosóficas, religiosas e morais; abriamse<br />
ao ensino perspectivas que não tinham outros limites<br />
senão o da engenhosidade do mestre. O comentário<br />
de Servius, no final do século IV, nos mostra que<br />
desde então exercitava-se em fazer o poeta dizer o<br />
que ele não havia dito, e que sua obra estava para se<br />
tornar o que de fato foi, na alta Idade Média, uma vertente<br />
inexaurível de ensino filosófico e místico.<br />
Eis um exemplo que Servius nos dá acerca do ramo<br />
de ouro que a Sibila mandou Enéias colher para realizar<br />
sua viagem ao Hades: sabe-se que Pitágoras via<br />
a vida humana à imagem da letra Y: o tronco figura a<br />
primeira idade; a bifurcação, o momento da juventude,<br />
em que o homem tem de escolher entre o vício, que é<br />
representado pelo galho esquerdo, e a virtude, que simboliza<br />
o galho direito. O ramo de ouro tinha a forma de<br />
um Y, para significar que era preciso seguir o caminho<br />
da virtude; se Vergílio diz que ele estava escondido<br />
numa floresta, é porque de fato a virtude se dissimula<br />
no meio da confusão da vida e entre uma multidão de<br />
vícios. O mito das duas portas do Sono, uma de chifre<br />
e outra de marfim, é explicada por Sérvio da seguinte<br />
maneira: “a porta de chifres significa os olhos, porque<br />
eles têm a cor do chifre e são mais resistentes que as<br />
outras partes do corpo: visto que não sentem o frio,<br />
como diz Cícero em De natura deorum; a porta de marfim<br />
significa a boca, por causa dos dentes”.<br />
Na época em que apareceram os comentários de<br />
Servius, o Império, agonizante de melhores espíritos,<br />
fazia um supremo desejo de fé para manter o que eles<br />
acreditavam imortal: Roma, seu poder e sua cultura.<br />
E o momento em que Ausônio, um claudiano, tenta<br />
demonstrar pelos exemplos que a técnica vergiliana<br />
é sempre capaz de produzir belos poemas; é quando<br />
Rutílio Namatiamo diz em seus versos de forma clássica<br />
seu amor à cidade eterna. Vergílio, o poeta clássico<br />
por excelência e o cantor da grandeza romana, não<br />
podia deixar de ocupar um lugar de honra nesse renascimento.<br />
Na obra de Macróbio, quase a metade de<br />
suas Saturnales é dedicada a Vergílio. Ele insiste sobre<br />
a universalidade de seus conhecimentos: distingue-se<br />
nitidamente, nos diálogos macrobianos, os primeiros<br />
traços do Vergílio onisciente da Idade Média.<br />
A familiaridade que havia com a obra de Vergílio<br />
favoreceu os jogos literários dos centões (poesias<br />
constituídas por versos ou parte de versos de diversos<br />
autores), que teriam bela sorte na Idade Média.<br />
O Cento Nuptialis de Ausônio é um dos melhores espécimens<br />
do gênero: 131 versos de Vergílio, tirados<br />
especialmente da Eneida, são escolhidos e reunidos<br />
de tal forma que constituem um canto nupcial. Antes<br />
dele, um tal de Hosidius Geta compusera toda a tragédia<br />
de Medéia com a ajuda dos versos da Eneida.<br />
Esta renovação cultural havida entre os séculos IV<br />
e V da nossa era provocou uma série de reedições da<br />
Eneida, conforme nos atestam os manuscritos dessa<br />
época chegados até nós.<br />
A veneração que o autor da Eneida experimentava<br />
no final da Idade Antiga encontra-se também entre<br />
os autores cristãos. Não foi sem luta e remorsos que<br />
Santo Agostinho, bispo de Hipona, dizia: “Quem<br />
mais digno de piedade do que um infeliz que não tinha<br />
piedade por si próprio, e que chorava a morte de<br />
Dido, sobrevinda porque ela amava Enéias, mas que<br />
não chorava a sua própria morte, sobrevinda pela<br />
falta de te amar, ó Deus, luz do meu coração...”. No<br />
mesmo instante em que ele o acusa, freme ainda à<br />
lembrança de tudo o que fez bater seu coração de estudante:<br />
“Eu pecava, pois, quando, menino, preferia<br />
coisas vãs a coisas mais úteis, ou, dizendo melhor,<br />
quando eu detestava umas e amava as outras. Sim,<br />
‘um e um fazem dois, dois e dois fazem quatro’ era<br />
para mim um refrão odioso, e eu experimentava as<br />
mais vivas delícias a este espetáculo de vaidade: um<br />
cavalo de madeira, cheio de soldados armados, incendeia<br />
Tróia, e a sombra da própria Creúsa”.<br />
São Jerônimo é ainda mais dramático. Conhecemos o<br />
sonho que teve em Antioquia: ele comparece diante de<br />
um juiz no tribunal que lhe diz: “Tu és Ciceroniano, e não<br />
cristão. Lá onde está teu tesouro, lá está teu coração”. E<br />
lá de cima um anjo lhe batia com varas. Ele fez então a<br />
promessa de não abrir mais nenhum livro profano.<br />
A leitura alegórica permitiu aos cristãos ler Vergílio<br />
sem nenhum remorso. Fulgêncio, no século VI,<br />
escreveu De continentia Vergiliana (Sobre o conteúdo<br />
de Vergílio), fornecendo um modelo de tal leitura.<br />
Escreve que o espectro de Vergílio lhe aparecera e lhe
evelara que, ao escrever a Eneida, tivera como objetivo<br />
fazer um espelho da vida humana. O início do<br />
poema lhe forneceu a ocasião de mostrar de uma só<br />
vez a vertiginosa e inquietante profundidade do seu<br />
simbolismo: arma, virum, primus, essas três palavras<br />
correspondem a ter, governar, ornar, isto é, significam<br />
a natureza, a ciência e a felicidade. A tempestade<br />
do primeiro livro é a imagem das tempestades da vida<br />
e o naufrágio de Enéias era o nascimento do homem,<br />
que entra chorando nas praias da existência. Os livros<br />
II e III correspondem à infância, ávida de narrativas<br />
fabulosas; este período termina com a morte de Anquises,<br />
a qual simboliza que o homem se liberta da tutela<br />
paterna. Então ele se dedica aos prazeres da caça<br />
e ao amor (Dido). Depois ele retorna, dá-se conta dos<br />
ensinamentos de seu pai, dedica-se aos nobres exercícios<br />
(jogos fúnebres do canto V) e, com a inteligência<br />
triunfante, queima os instrumentos do erro (incêndio<br />
dos navios), libera-se das alucinações (Palinuro) e da<br />
vaidade (Misenas). A descida aos infernos é a viagem<br />
do espírito humano em busca da verdade filosófica.<br />
É inútil dizer se tudo é símbolo no país das sombras:<br />
o velho Caronte é o templo que nos ajuda a passar a<br />
vida sobre as águas agitadas e tumultuosas da juventude<br />
(Aqueronte); Cérbero, o cão ladrador, são as querelas<br />
que dividem os homens a quem somente o mel<br />
da sabedoria acalma. A etimologia – a mais fantasista<br />
– tem naturalmente sua tarefa nesta enlouquecedora<br />
exegese. A Itália, Ausônia, à qual Enéias aspira, é o<br />
símbolo dos progressos da virtude: ele não atingirá<br />
a virtude perfeita senão através de dores e provações<br />
e é isto que significa o nome Lavínia (Lavínia, id est<br />
laborum viam = Lavínia, isto é, vida de trabalhos);<br />
ele terá necessidade da aliança do homem de bem,<br />
Evandro; Turno, a quem precisa vencer, é a violência<br />
insensata (Turnus enin graece dicitur quase, furibundus<br />
sensus); seu cocheiro Metisca é a embriaguez;<br />
sua inspiradora Juturna (diuturna) é a má obstinação.<br />
Tais elucubrações de Fulgêncio tiveram sucesso<br />
durante a Idade Média. Jean de Salisbury, no século<br />
XII, em Polycraticus, completa-as, acrescentando<br />
eu ennaios, quer dizer, “habitante”: assim, Enéias é o<br />
símbolo da alma que habita o corpo.<br />
Vergílio é para Dante o artista incomparável que<br />
lhe ensinou “o belo estilo”: ele é o bom conselheiro,<br />
o amigo que protege e consola como uma mãe;<br />
ele é, enfim, o romano que representa, aos olhos de<br />
um cidadão da “Itália escrava”, a idéia da pátria e o<br />
grande sonho imperial. Todo mundo conhece o sonho<br />
que deu origem à Divina Comédia. Numa manhã<br />
de sexta-feira santa do ano de 1300, o poeta se viu<br />
numa floresta escura, tendo perdido o caminho, e encontrando<br />
sucessivamente, ao longo de uma encosta<br />
cheia de angústia, uma pantera, um leão, uma loba<br />
e três fulvos símbolos que lhe barravam o acesso à<br />
sabedoria e à virtude que ele, em vão, esforçava-se<br />
por alcançar. Aparece-lhe então, no deserto em que<br />
se debatia sua alma, a grande sombra do mantuano<br />
(Vergílio), que Beatrice tinha enviado para ajudá-lo.<br />
Vergílio assume a missão de guiá-lo, com a mais alta<br />
autoridade e a mais terna solicitude, através do Inferno<br />
e do Purgatório. É visível o modelo do livro<br />
VI da Eneida para a concepção da Divina Comédia,<br />
não somente na descrição do Inferno, mas também<br />
do Purgatório e até mesmo do Paraíso. Dante, num<br />
imenso esforço de criação, concilia o mundo pagão,<br />
necessário à epopéia, com o mundo cristão, um imperativo<br />
de sua época.<br />
Surgiram várias histórias medievais envolvendo o<br />
personagem Enéias, tanto na França como na Inglaterra.<br />
Na França, no século XII, surgiu o mais célebre<br />
dos romances contando a história de Enéias e Dido:<br />
Roman de la rose.<br />
O Renascimento italiano se interessou muito por Vergílio.<br />
Petrarca foi um admirador do mantuano. Interpretava<br />
a Eneida ainda alegoricamente, fazendo dele,<br />
segundo a tradição de Fulgêncio, uma representação<br />
da vida humana. O italiano, no entanto, não acreditava,<br />
como os homens de seu século, numa Eneida mágica;<br />
nem concebia que a IV Égloga anunciava Cristo;<br />
também insurgiu-se contra os que acreditavam que a<br />
fábula dos amores de Enéias e Dido fosse uma verdade<br />
histórica. Escreveu África, inspirado pela luta de Cipião<br />
e de Aníbal, rivalizando com o autor da Eneida.<br />
No século XV, surgiram muitos comentadores e imitadores<br />
da Eneida. Cristóforo Landino interpretou-a<br />
sob as idéias de Platão. Cândido Decembrio continua<br />
a Eneida, criando um XIII canto. No século XVI<br />
multiplicaram-se as edições e os comentários acerca<br />
da Eneida, quando se fizeram também as primeiras<br />
traduções para as línguas românticas. Ainda mais: os<br />
poetas da época sentiram-se tentados, à maneira de<br />
Vergílio, de constituir, para seus países, uma epopéia.<br />
Surge assim Orlando Furioso, de Ariosto e Jerusalém<br />
Libertada, de Torquato Tasso, na Itália. Em Portugal,<br />
Luís de Camões escreve o belo poema Os Lusíadas.<br />
No século XVII, Milton, na Inglaterra, escreve O Paraíso<br />
Perdido. No século XVIII, na França, Voltaire<br />
escreve a Henriade, que se parece com a Eneida (há<br />
uma tempestade, uma Gabrielle abandonada como<br />
Dido, uma descida aos Infernos, os Campos Elísios,<br />
onde também coloca os bons e os maus da pátria. Não<br />
podemos esquecer de que, no século XVIII, no Brasil,<br />
surgiram duas epopéias: O Uraguai, de Basílio da<br />
Gama, e o Caramuru, de Santa Rita Durão.<br />
Além de inspirar epopéias, a Eneida inspirou inúmeras<br />
peças de teatro durante o nascimento do teatro<br />
clássico-renascentista: Dido se sacrificando, de Jodelle,<br />
De partu Virginis, de Sannazaro, Dido, de Hardy,<br />
Enéias travestido, de G. B. Lalli, e Vergílio tra-<br />
27
28<br />
vestido, de Scarron (1633); duas comédias; em ópera:<br />
Dido abandonada, de Metastásio, no século XVIII.<br />
A Eneida não exerceu uma ação considerável só no<br />
domínio da literatura universal; foi também para muitos<br />
outros artistas uma fonte de inspiração. Alguns monumentos<br />
da antigüidade atestam sua influência nessa arte.<br />
Exercícios de Auto-avaliação<br />
1- Como foi transmitida a literatura clássica?<br />
2- Qual foi a época de ouro da Literatura Latina?<br />
3- Defina uma epopéia.<br />
4- Como começa A Ilíada?<br />
5- Como começa A Odisséia?<br />
Há, no entanto, alguns quadros inspirados pela Eneida,<br />
encontrados em Pompéia e Herculano. O maior número<br />
de quadros inspirados pela Eneida foram produzidos a<br />
partir do Renascimento. Encontram-se nos museus de<br />
Paris, no Louvre, no National Gallery, de Londres, no<br />
Palácio Máximo, em Roma, no Palácio Ducal em Mântua,<br />
em Viena, em Dresde e em Bruxelas.
UNIDADE II<br />
O LIRISMO<br />
2.1 - O Surgimento da Poesia Lírica na Grécia<br />
A poesia lírica, na antiga Grécia, ritmava a dicção dos<br />
textos subjetivos, a partir do instrumento que a acompanhava<br />
– a lira. Esse acompanhamento musical já<br />
deixava de ser executado na passagem da poesia grega<br />
para a romana, mas veio definitivamente divorciado a<br />
partir do chamado Doce Estilo Novo, movimento poético<br />
italiano nascido na Baixa Idade Média. Com o desaparecimento<br />
da melodia, determinados traços musicais<br />
foram acrescidos ao verso: ritmo, rima, aliteração<br />
e outros aspectos que acentuam a sonoridade.<br />
Segundo a professora Nely M. Pessanha, a poesia<br />
dita lírica, na Grécia Antiga, “nem sempre é expressão<br />
da entrega, do abandono ao fluxo e refluxo dos<br />
mais variados sentimentos; nem sempre é manifestação<br />
do estado anterior à distinção sujeito-objeto, de<br />
onde resulta o ‘um no outro’, de que fala Emil Staiger.<br />
Pode ela ‘recordar’, pode trazer de novo ao coração<br />
as ressonâncias de um estado sincrético entre o ‘eu’<br />
e o ‘outro’”. Isto se explica historicamente.<br />
Se lírica se refere ao instrumento, o sintagma “poesia<br />
lírica” alcança dimensões maiores, visto que a<br />
significação se amplia e a expressão passa a designar<br />
2.2 - Momento Histórico<br />
O surgimento e expansão da lírica na Grécia está<br />
no bojo de grandes transformações políticas, sociais,<br />
econômicas e culturais, decorrentes das ações de colonização<br />
e de ampliação de uma economia voltada<br />
para o comércio e as navegações.<br />
No século VII a.C., as cidades gregas viviam sob o<br />
governo das oligarquias, que substituíram os governos<br />
monárquicos. O poder era, então, aristocrático,<br />
fundado na ancestralidade, reconhecida como divina,<br />
e na riqueza, ligada à propriedade rural. Naquele<br />
século, a expansão do mundo grego, através da emigração,<br />
se fazia indispensável, visto que a população<br />
aumentara e o solo era pobre. Fundaram-se colônias<br />
às margens do mar Egeu e do mar Jônio, onde havia<br />
terras propícias à agricultura. Assim, nasceram novas<br />
cidades e a Grécia Continental e Asiática.<br />
O comércio e a navegação levaram os gregos a negociar<br />
(cereais, matérias-primas, metais preciosos,<br />
todo o poema cantado, acompanhado de um instrumento<br />
musical de cordas: lyra, phórminx, kítharis,<br />
bárbitos – ou de sopro – o aulós.<br />
Iniciando-se no século VII a.C., passando melodiosamente<br />
pelo século VI e ainda ressoando no século<br />
V, ressurge renovada nos séculos III e II a.C. Há, pois,<br />
dois momentos distintos na história da lírica grega: a<br />
lírica arcaica e a lírica alexandrina. A lírica arcaica<br />
constitui a Idade Lírica. Sobre ela faremos considerações<br />
mais prolongadas.<br />
A lírica alexandrina floresceu numa época de anseios<br />
de erudição, nos séculos III e II a.C. Caracteriza-se<br />
sobretudo pelo culto da forma, pela busca da<br />
expressão rara, pelo distanciamento da linguagem coloquial.<br />
Os poetas dessa época são, por assim dizer,<br />
os longínquos precursores do Parnasianismo: tinham<br />
o lema da Arte pela Arte. Os alexandrinos deixaram<br />
de cultivar muitas das modalidades da lírica arcaica<br />
ou transformaram-nas profundamente. Cultivavam a<br />
elegia, de conteúdo amoroso e mitológico. O idílio e<br />
a poesia bucólica foram as criações (formas novas)<br />
desse período.<br />
lãs, vinho, azeite, produtos manufaturados, como a<br />
cerâmica) para além do mundo grego, chegando, por<br />
exemplo, à Síria e ao Egito.<br />
As oligarquias, que tinham um poder absoluto, começam<br />
a sofrer pressões de uma emergente classe<br />
média, de uma “burguesia” (oriunda do comércio)<br />
que reivindica participação no governo. A introdução<br />
da moeda e as transações comerciais mudou o conceito<br />
de riqueza, até então assentada na posse de grandes<br />
quantidades de terra. Os pequenos agricultores são<br />
obrigados a contrair dívidas na tentativa de superar os<br />
efeitos de uma má colheita. Não conseguindo pagálas,<br />
perdem as terras e são reduzidos à condição de<br />
simples trabalhadores e de escravos.<br />
Tal fato impele os camponeses para o outro lado do<br />
mar. Inicia-se, ao mesmo tempo, o movimento reivindicatório<br />
de novas leis, como: anistia das dívidas, divisão<br />
das terras (reforma agrária) e a publicação de<br />
29
30<br />
leis escritas, isto é, a díke ou nómos que substitui a<br />
thémis (casuística) (Thémis = forma de lei vigente até<br />
então, tida como justiça de caráter divino. Consistia<br />
no poder do rei ou do eupátrida de julgar em nome<br />
de deus...). Surgem então os legisladores, dos quais se<br />
destaca a figura de Sólon. As leis produzidas por eles,<br />
no entanto, não causam grande efeito e a crise social<br />
continua. Tal fato determinou a substituição da forma<br />
de poder, que saiu das mãos dos eupátridas, passando<br />
para as dos tiranos (= líderes provenientes da aristocracia<br />
que se uniam ao povo e à classe média para<br />
protegê-los contra os nobres. A conotação pejorativa<br />
veio mais tarde). Os tiranos trataram de realizar obras<br />
de utilidade pública (templos, festas religiosas, jogos<br />
etc.) conseguindo prestígio junto ao dêmos. O regime<br />
tirânico durou só até o fim do século VI.<br />
Características<br />
A lírica arcaica grega não pode ser caracterizada<br />
por aquilo que entendemos como estilo lírico hoje em<br />
dia. Primitivamente, o lírico está coesamente ligado<br />
ao canto e ao som dos instrumentos de corda. Há outros<br />
dois elementos fundamentais ligados à estrutura<br />
formal: o metro e o dialeto utilizados.<br />
O metro variava segundo a palavra e a melodia.<br />
Há variedades métricas ligadas às epopéias homéricas<br />
que usavam o hexâmetro datílico, combinan-<br />
2.3 - O Lirismo em Roma<br />
A Época de César (78-44 aC<br />
A poesia neotérica e Catulo<br />
Poetae novi (neòteroi, à grega) é a expressão usada<br />
por Cícero para indicar as tendências inovadoras, o<br />
moderno gosto poético de uma corrente que se desenvolve<br />
e se afirma no primeiro século a.C., demarcando<br />
uma decisiva curva na história da literatura latina.<br />
O processo de renovação do gosto literário promovido<br />
pelos poetae novi não é senão um aspecto do<br />
fomento geral de helenização dos costumes, de transformação<br />
dos modos de vida conseqüentes das grandes<br />
conquistas do II séc. a.C. que abriram ao poderio<br />
romano o cenário da área oriental do Mediterrâneo,<br />
e posto em contato a arcaica sociedade dos camponeses-soldados<br />
com populações habituadas a formas<br />
de vida mais refinadas. Este enorme e complexo fenômeno<br />
de civilização – que encontra em Roma a tenaz<br />
hostilidade dos cultores da tradição, do “partido<br />
catoniano” – manifesta sua influência, como é óbvio,<br />
também no campo especificamente literário, no qual<br />
se assiste a um lento mas progressivo enfraquecimento<br />
dos valores e das formas da tradição (de gêneros<br />
do-o com o pentâmetro – caso da elegia. Outras, por<br />
sua vez, operam com metros que imitam o ritmo da<br />
língua falada, como os versos iâmbicos. Tendo em<br />
vista a variedade de metros, a harmonia entre sons e<br />
palavras, aliada à busca da musicalidade, podemos<br />
dizer que a lírica moderna conserva traços da lírica<br />
dos tempos dos gregos.<br />
Outra característica da lírica arcaica é a subordinação<br />
a um tipo de dialeto grego, o que se explica pelo fato de<br />
ela ter surgido em diversas cidades e regiões gregas.<br />
Voltado para o presente, o lírico grego deixa<br />
fluir seus sentimentos e emoções. Também reflete<br />
a vida de sua pólis, exortando, recordando preceitos<br />
morais, louvando os que demonstram sua<br />
areté (excelência de qualidades físicas, morais,<br />
intelectuais). Cada um desses climas líricos eram<br />
expressos através de estruturas métricas próprias e<br />
diferenciadas. Assim é que havia a Elegia, a Ode,<br />
o Peã, o Epinício etc.<br />
As Formas Líricas<br />
No período arcaico, havia basicamente quatro modalidades<br />
líricas distintas: a elegia, o iambo, a mélica<br />
monódica e a mélica coral.<br />
literários política e moralmente “empenhados”, como<br />
a épica e, sobretudo, o teatro), e ao emergir de exigências<br />
novas, ditadas pelo refinamento do gosto e<br />
da sensibilidade. O que esses poetas têm de verdadeiramente<br />
novo, no que diz respeito às escolhas dos<br />
antecessores, é não tanto a predileção pela literatura<br />
grega mais recente (também os autores arcaicos trabalharam<br />
com técnica já alexandrina), mas, sim, a<br />
decisiva imitação dos aspectos eruditos e preciosos<br />
que caracterizavam exatamente aquela literatura. Os<br />
neóteroi tomam dos poetas helenísticos o gosto pela<br />
contaminação entre os gêneros, o interesse pela experimentação<br />
métrica, a pesquisa de um léxico e<br />
de um estilo sofisticados, enfim, o caráter decisivamente<br />
descompromissado da sua poesia.<br />
Não obstante os elementos de continuidade entre<br />
a poesia nugatória (poesia de versos ligeiros, de<br />
entretenimento, futilidades, vaidades, erotismo) e a<br />
propriamente neotérica, bem maior é comumente a<br />
sabedoria que esta última possui e, mais nitidamente,<br />
o descarte que ela introduz no que diz respeito<br />
à tradição literária latina. A elegância freqüentemente<br />
maneirada, o artificioso experimentalismo<br />
praticado sobre os modelos gregos pelos literatos
do círculo de Lutácio Cátulo, deixam lugar a um<br />
tipo de poesia que não concede senão um espaço<br />
limitado ao otium e aos seus prazeres (recortados<br />
às margens do sistema, como concessão ocasional<br />
de uma conduta de vida centrada ainda nos deveres<br />
do civis), mas os coloca no centro da existência, tornando-os<br />
os valores absolutos, as razões exclusivas,<br />
como acontece em Catulo. A poesia neotérica assinala<br />
o auge, sob o plano literário, de uma tendência<br />
sensível na literatura latina: de um lado, o crescente<br />
desinteresse pela vida ativa gasta a serviço do estado,<br />
pelos valores venerados pela tradição, pelo<br />
papel, em suma, do civis romano; de outro lado, o<br />
contemporâneo afirmar-se do gosto pelo otium, pelo<br />
tempo livre, dedicado às letras e aos prazeres, à satisfação<br />
das necessidades individuais e privadas.<br />
A revolução do gosto literário é acompanhada por<br />
uma geral revolta do caráter ético que a substancia e<br />
mostra a crise dos valores do mos maiorum. A refutação<br />
da vida empenhada ao serviço da comunidade,<br />
do modelo do cidadão-soldado, se reflete no difundirse<br />
do epicurismo, uma filosofia que prega a renúncia<br />
aos negotia político-militares em favor de uma vida<br />
à parte e tranqüila, em íntima comunhão dos amigos.<br />
A convergência entre os princípios do epicurismo e<br />
as tendências dos poetas neotéricos é evidente, mas<br />
nota-se também uma diferença importante: para os<br />
epicuristas, cuja finalidade é a ataraxia, o prazer sem<br />
perturbações, o éros é uma doença insidiosa, da qual<br />
devemos fugir pois é fonte de angústia e de dor (basta<br />
pensar no livro De rerum natura, de Lucrécio), enquanto<br />
que para os neòteroi – sobretudo para Catulo<br />
2.4 - Virgílio e as Bucólicas<br />
As Bucólicas ou Églogas são uma coletânea de<br />
poemas inspirados nos idílios do alexandrino Teócrito<br />
de Siracusa (III a.C.). Codificam o gênero<br />
bucólico. Há églogas díspares, i. é, dialógicas, e<br />
as églogas pares, narração com uma só voz. São<br />
apresentados, sobre o fundo a campanha padana<br />
personagens pastoris que cantam suas experiências<br />
e seus sentimentos.<br />
A égloga I contém um diálogo entre dois pastores,<br />
dos quais um, Melibeu, é obrigado a deixar<br />
seus campos confiscados, ao passo que o segundo,<br />
Títiro, pode permanecer graças à ajuda de um poderoso<br />
que reside em Roma. Na II égloga, Córidão<br />
lamenta seu amor não correspondido pelo jovem<br />
Aléxis. A III consiste numa disputa poética entre<br />
– o amor é o sentimento central da vida, aquele que<br />
constitui o fulcro e a razão essencial.<br />
Isso torna também, por conseguinte, o tema privilegiado<br />
de sua poesia e concorre para dar forma<br />
a um novo estilo de vida, inspirado justamente no<br />
culto do éros e das paixões e da dedicação à poesia<br />
que os alimenta.<br />
O trabalho da forma, o escrupuloso cuidado pela<br />
composição, o paciente lavor de lima são, enfim, o<br />
tratamento distintivo primário da nova poética vinda<br />
de Calímaco. Como Calímaco havia asperamente polemizado<br />
contra os seguidores do épos homérico, ridicularizando<br />
o desmazelo e o proselitismo do poema<br />
longo, e havia propugnado um novo estilo poético,<br />
inspirado pela brevitas e pela ars (o meticuloso trabalho<br />
do cinzel), assim Catulo e os neòteroi ridicularizam<br />
os estanques imitadores de Ênio, os pomposos<br />
cultores da épica tradicional (Volúsio, Sufeno, Hortênsio),<br />
celebrativa das glórias nacionais, já estranhas<br />
ao gosto atual, quer pelo cuidado formal quer pelos<br />
conteúdos antiquados. Serão, em vez, outros os gêneros<br />
privilegiados pela poética calimácea e apropriados<br />
para o acurado lavor do cinzel, ao labor limae: os<br />
poemas breves, como o epigrama, ou ainda como o<br />
epílio, o poema mitológico em miniatura, possibilitam<br />
ao poeta a ostentação da própria preciosa erudição<br />
(trata-se de antigos mitos de assunto erótico,<br />
próximos, talvez, da sensibilidade moderna), e de pôr<br />
em prática refinadas estratégias de composição (narrativas<br />
de encaixe, narrações tramadas juntas as quais<br />
se refletem mutuamente).<br />
os pastores Dâmeta e Menalca. A IV celebra a renovação<br />
do mundo ligado ao nascimento de um<br />
menino que abrirá uma nova época de paz. A V<br />
evoca, através do canto de dois pastores, a morte<br />
e a divinação de Dáfnis. A VI contém o canto<br />
de Sileno, inspirado em Lucrécio, que descreve a<br />
criação do universo. A VII é uma disputa de canto<br />
entre dois pastores árcades. A VIII apresenta<br />
o lamento de um pastor pela infidelidade da mulher<br />
amada e a descrição dos encantamentos com<br />
que a moça procura reconquistar seu amado. A IX<br />
tem por protagonista dois pastores, dos quais o<br />
primeiro (Mérides) vê seus campos confiscados e<br />
o segundo (Licidas) recorda que Menalca tentou<br />
inutilmente conservar a propriedade com a poesia.<br />
A X canta o amor de Galo pela bela Licóride.<br />
31
32<br />
2.5 - Ovídio<br />
Nasceu em Sulmona (hoje Abruzzo) em 43 a.C.<br />
Freqüentou as melhores escolas de retórica de Roma,<br />
tendo em vista a carreira política e forense. Após uma<br />
visita à Grécia entrou para o círculo de Messala, onde<br />
se relacionou com os maiores poetas romanos. Devido<br />
à sua poesia foi declarado oficialmente imoral<br />
e punido por Augusto com o exílio no Mar Negro,<br />
o Ponto, em Tomes, hoje Costança. Questiona-se a<br />
verdadeira causa do exílio; segundo alguns, a causa<br />
verdadeira seria o seu envolvimento num escândalo<br />
de adultério com a sobrinha de Augusto. Morreu em<br />
Tomes em 17 ou 18 d. C.<br />
Sua primeira obra foi Amores (49 elegias, 2460 versos),<br />
em dísticos elegíacos. Heroides, Ars amatoria<br />
(três livros, 2300 v.), Remedia amoris (814 v.), Medicamina<br />
faciei feminae (=Os cosméticos das mulheres),<br />
Metamorphóseon libri (15 livros, 12.000 v.),<br />
Fasti (seis livros, 5000 v.), Tristia (cinco livros, 3500<br />
v.). Escreveu ainda quatro livros de Epistulae ex Ponto,<br />
em dísticos elegíacos.<br />
As Heroides<br />
Se o éros é o tema da poesia do Ovídio juvenil, a outra<br />
grande fonte da sua poesia é o mito. As Heroides,<br />
bem como as Metamorfoses, alimenta-se desse tema.<br />
Trata-se de uma coleção de cartas poéticas. A primeira<br />
série, de 1-15, é escrita por mulheres famosas, heroínas<br />
do mito grego (também a Dido, de Vergílio, e sobretudo<br />
a personagem histórica Safo) aos seus amantes<br />
ou maridos distantes (Penélope a Ulisses, Fílides a<br />
Demofonte, Briseida a Aquiles, Fedra a Hipólito, Eno<br />
a Páris, Dido a Enéias, Hipsípile a Jasão, Érmião a<br />
Orestes, Djanira a Hércules, Ariana a Teseu, Medéia a<br />
Jasão, Safo a Fáon etc.). A segunda série, de 16 a 21,<br />
é constituída pelas cartas de três enamorados acompanhadas<br />
pelas respostas das respectivas mulheres: Páris<br />
e Helena, Ero e Leandro, Acôncio e Cídipe.<br />
A originalidade dessa obra, com a qual cria uma<br />
nova espécie literária, Ovídio se diz orgulhoso. Com<br />
efeito, não temos notícias de obras semelhantes antes<br />
dele, ou seja, de coletânea de cartas poéticas de assunto<br />
amoroso. Se personagens e situações pertencem<br />
ao grande patrimônio do mito, muitos elementos são<br />
mudados pela tradição elegíaca latina, onde são freqüentes<br />
os motivos como o sofrimento pela distância<br />
da pessoa amada, recriminações, lamentos, súplicas,<br />
suspeitas de infidelidade, acusações de traições etc.<br />
Um exemplo disso é a epístola de Fedra a Hipólito,<br />
cuja heroína de Eurípedes perde os seus traços de nobre<br />
dignidade trágica para assemelhar-se a uma dama<br />
despreocupada da sociedade galante, empenhada em<br />
seduzir o enteado com os afagos de um fácil furti-<br />
vus amor e desenvolta assertiva de uma nova moral<br />
sexual, zombeteiramente intolerante com as antigas<br />
tradições.<br />
Recodificando em termos elegíacos histórias de heroínas<br />
da épica e da tragédia, não nascidas “dentro” e<br />
“para” o código elegíaco, Ovídio introduz o leitor num<br />
novo universo literário, não é antigo, nem moderno,<br />
não é épico, nem trágico ou mítico, nem é elegíaco.<br />
As Heroides são propriamente poesias de lamento,<br />
são a expressão da condição infeliz da mulher, deixada<br />
só pelo esposo amante distante. Ovídio põe nas<br />
palavras de Safo uma ligação entre o verso elegíaco e<br />
a condição da heroína infelizmente enamorada:<br />
flendus meus est: elegi quoque flebile carmen<br />
devo chorar sobre o meu amor; e a elegia é um canto<br />
lacrimoso.<br />
Os Amores<br />
A falta de uma figura unificante<br />
Ovídio não tinha ainda vinte anos quando publicou<br />
Amores, uma coletânea de elegias de assunto amoroso.<br />
Mostra influências de Tibulo e principalmente<br />
Propércio. Também Ovídio é uma voz em primeira<br />
pessoa a cantar temas tradicionais da elegia: poesia<br />
de ocasião (como o epicédio de Tibulo), ou de pura<br />
estampa alexandrina (como a elegia pela morte do<br />
papagaio da amada), sobretudo aventuras de amor,<br />
encontros fugazes, serenatas noturnas, brigas com a<br />
amada, cenas de ciúme, protestos contra a sua venalidade<br />
ou seus caprichos e as traições etc.<br />
Ovídio e a tradição elegíaca<br />
Antes de tudo – e é talvez a novidade mais saliente<br />
– falta uma figura feminina em torno da qual se reúnam<br />
as várias experiências amorosas que constitua o<br />
centro unificante da obra e junto da vida do poeta. Os<br />
poetas de amor precedentes, Catulo e Propércio, construíram<br />
a própria atividade poética em torno de uma<br />
única mulher, de um só grande amor que constitui o<br />
sentido daquela atividade. Com Ovídio não é assim:<br />
Corina, a mulher evocada aqui e acolá com pseudônimo<br />
grego, é uma figura tênue, de presença intermitente<br />
e limitada, que se suspeita não tivesse nem sequer<br />
uma existência real. Não somente o poeta declara mais<br />
vezes de não saber contentar-se com um único amor,<br />
de preferir duas mulheres (2,10) ou definitivamente de<br />
sofrer o fascínio de qualquer mulher bonita.<br />
Como a figura da mulher inspiradora, que não tem os<br />
contornos nítidos de uma protagonista e tende a parecer<br />
um resíduo, uma função convencional do gênero elegí-
aco, também o páthos que tinha caracterizado as vozes<br />
da grande poesia de amor latina com Ovídio se dilui e<br />
banaliza. O drama de Catulo, de Propércio, a sua intensa<br />
aventura existencial, torna-se em Ovídio pouco mais que<br />
um lusus (= passatempo), e a experiência do éros é analisada<br />
pelo poeta com um filtro de ironia e de destaque<br />
intelectual. Não menos significativa é a escassa presença<br />
nos Amores de um motivo centralíssimo na poesia elegíaca<br />
precedente, ou seja, o servitium amoris, a profissão<br />
de total dedicação do amante à amada, aos seus desejos<br />
e aos seus caprichos. Em Ovídio, dizia-se, este motivo<br />
tem uma função bastante limitada, ao passo que é notável<br />
que, numa autêntica elegia, sua posição de realce seja dedicada<br />
à profissão de servitium nos confrontos amorosos.<br />
Não só: ganha peso, com respeito à poesia precedente,<br />
a) a consciência literária do poeta, que se manifesta na<br />
insistência sobre a poesia como instrumento de imortalidade,<br />
como nos conclusivos versos (1, 15):<br />
por isso também quando o rogo fúnebre tiver consumido<br />
meu corpo,<br />
continuarei a existir e grande parte de mim sobreviverá.<br />
b) como autônoma criação do poeta, desvinculada<br />
da obrigação de retratar o real, como nos versos<br />
(3, 12, 41...):<br />
A fértil fantasia dos poetas se desprende sem limites,<br />
e não vincula as próprias palavras à fidelidade à história.<br />
A elegia ovidiana não mais se apresenta como subordinada<br />
à vida, seu fiel reflexo, mas reivindica o seu<br />
primado, a sua centralidade na existência do poeta.<br />
Exercícios de Auto-avaliação<br />
1- Qual foi a primeira obra de Ovídio?<br />
As Metamorfoses<br />
2- Aponte diferenças entre Vergílio e Ovidio existentes nas Metamorfoses.<br />
3- De que trata Os Amores, de Ovídio?<br />
4- Aponte algumas características da lírica.<br />
5- O que é o epicurismo?<br />
Se Vergílio, na Eneida, seguiu a tradição épica,<br />
Ovídio abordou o épos de outra maneira: não optou<br />
pelo poema de grandes dimensões, mas seguiu<br />
o modelo épico inspirado em Hesíodo (Teogonia),<br />
aquele de um “poema coletivo”, que reagrupa uma<br />
série de histórias independentes que têm em comum<br />
um mesmo tema. Segue, pois, um modelo<br />
inspirado entre os alexandrinos, principalmente<br />
em Calímaco.<br />
O poema narra, em forma épica, em 15 livros,<br />
a criação do universo a partir do caos e sobre a<br />
criação do homem. Depois vem o dilúvio universal<br />
e a regeneração do gênero humano graças a<br />
Deucalião e Pirra. A seguir vem o tempo do mito,<br />
dos deuses e semideuses, das suas paixões e caprichos:<br />
de Apolo e Dafne (a transformação desta em<br />
loureiro), de Júpiter e Io, de Faetonte, de Narciso<br />
e Eco etc. Passa também pela história de Príamo,<br />
pela de Perseu que salva Andrômaca do monstro<br />
marinho, pela do rapto de Prosérpina, pela de Minerva<br />
e Aracne, de Medéia, de Ícaro e Dédalo, de<br />
Peleu e Tétis etc.<br />
O amor nas Metamorfoses constitui o tema unificante<br />
da obra. Não se trata mais de um amor ambientado<br />
na vida quotidiana de Roma, da sociedade<br />
mundana, mas no universo do mito, no mundo<br />
dos deuses e dos semideuses, como já ocorrera<br />
antes nas Heroides.<br />
33
34<br />
UNIDADE III<br />
DRAMÁTICO (TEATRO - TRAGÉDIA)<br />
3.1 - A Palavra Tragédia<br />
Este primeiro conjunto de explicações sobre a origem<br />
da tragédia se funde em parte sobre o substantivo “tragédia”<br />
(tragôidia) cujo sentido não é claro. A tragôidia<br />
designa a atividade do tragôidios, que é um membro<br />
de um coro trágico. É um termo composto de dois elementos:<br />
tragos = bode e ôidia, ôidios (ligado a aeidô,<br />
cantar). Pode designar, então: “canto do bode”, “canto<br />
por um bode” ou “canto em honra de um bode”.<br />
Todavia, a presença desse bode intriga. Refere-se<br />
a um bode representando a recompensa oferecida<br />
3.2 - Teatro e Cerimônia Religiosa<br />
A tragédia aparece como um elemento de uma cerimônia<br />
religiosa e não somente na sua origem. Ainda<br />
na época clássica (séculos V - IV), o aspecto religioso<br />
deste espetáculo teatral permanece sensível.<br />
As representações têm lugar no quadro do culto de<br />
Dioniso, durante as festas desse deus. Elas se desenrolam<br />
no teatro de Dioniso, o qual comporta uma<br />
cadeira para o sacerdote e o altar de Dioniso fica<br />
no centro da orquestra. Ainda que nada nas obras<br />
possam lembrar o culto desse deus do vinho e da<br />
3.3 - Teatro e Tragédia em Roma<br />
A Originalidade do Teatro Latino<br />
O teatro latino existe por ele mesmo, mas tal existência<br />
ainda hoje é ignorada ou mal conhecida. Conhecese<br />
o teatro grego porque, por longo tempo, nossa cultura<br />
se reconhece nele. Mas o teatro latino não permite<br />
a mesma ilusão. Ele nos é bastante estranho, bastante<br />
diferente da marmórea imagem que se faz geralmente<br />
da Antigüidade clássica. Ele é não só ignorado, mas<br />
também visto como uma má imitação do teatro grego.<br />
O teatro latino: um evento<br />
A primeira característica do teatro latino é a de não<br />
ser literário. Em Roma, os textos dramáticos eram<br />
escritos unicamente para serem representados, e,<br />
mais freqüentemente, uma só vez. A meta do empreendedor<br />
do espetáculo era de suscitar um evento, de<br />
marcar a memória do público. Para isto, ele montava<br />
ao melhor dramaturgo, como o deixa entrever uma<br />
inscrição em mármore, em Páros? Refere-se simplesmente<br />
a um disfarce dos atores em bode, que se relacionavam<br />
aos sátiros associados a Dioniso, em honra<br />
do qual eram representados esses espetáculos? Ou o<br />
bode era uma vítima oferecida em sacrifício durante<br />
uma cerimônia ritual de purificação à qual eram destinadas<br />
as primeiras formas de tragédia? Esta última<br />
interpretação, que não é muito mais convincente do<br />
que as anteriores, oferece o mérito de relacionar o alcance<br />
religioso das manifestações trágicas.<br />
fecundidade, a ligação com seu culto permanece<br />
forte e é, pois, verossímil que a tragédia resulta do<br />
alargamento de um rito nas cerimônias em honra de<br />
Dioniso. Aristóteles (Poética) afirma que a tragédia<br />
saiu de improvisações a partir do ditirambo, que é<br />
uma obra coral representada em honra de Dioniso.<br />
Aristóteles, todavia, não vê uma filiação continuada:<br />
a tragédia não se encontra senão em potencial no ditirambo<br />
e deve ter sido representada por poetas para<br />
ser verdadeiramente tragédia.<br />
um espetáculo total onde a música e o canto, a dança,<br />
a maquinaria e os atores-vedetes separavam para si<br />
a parte do leão. O texto fornece somente o pretexto<br />
para a representação; raramente ele era conservado.<br />
O essencial em Roma era a festa dentro da qual se<br />
inseria o espetáculo teatral: os jogos. É esta festa que<br />
se insere na memória coletiva, não o texto.<br />
Hoje, nós estamos acostumados a dar prioridade ao<br />
texto. Ele é conservado e de novo interpretado em<br />
outra ocasião. Para nós, ele constitui um monumento<br />
da memória. Estamos, pois, acostumados ao teatromonumento,<br />
ao passo que os romanos preferiam o<br />
teatro-acontecimento.<br />
O calendário teatral<br />
Os romanos iam muito freqüentemente ao teatro,<br />
mas somente na primavera e no verão. O calendário
teatral era o dos jogos. O número de dias consagrados<br />
aos jogos não parou de aumentar durante toda a história<br />
de Roma. No início da República havia dois dias de<br />
jogos, mas já no ano 77 a.C. havia 55 dias para o teatro<br />
dentro de um calendário que possuía 175 dias de jogos;<br />
durante o Império o número de dias de teatro aumentou<br />
para 101, sem contar os dias dos jogos públicos e oficiais.<br />
Além desses, havia os jogos privados, oferecidos<br />
por famílias nobres por ocasião de um triunfo ou de um<br />
funeral. Em cada festa são apresentadas uma ou várias<br />
peças teatrais novas, cada qual uma só vez. As reapresentações<br />
eram raras e assistemáticas.<br />
O costume romano era bem diferente do nosso e<br />
mesmo dos costumes gregos. Na Grécia, somente alguns<br />
dias por ano eram consagrados ao teatro. Em<br />
Roma, a estação dos jogos coincidia necessariamente<br />
com a estação militar: deste modo o teatro começava<br />
em março e parava em outubro, com raras exceções<br />
em novembro, por ocasião dos jogos Plebeus.<br />
Um teatro tocado pela vida política<br />
Em Atenas, o teatro era uma atividade cívica. Em<br />
Roma, o espetáculo teatral é alheio à vida política.<br />
Os atores eram grandemente tomados de infâmia;<br />
qualquer alusão, sobre o palco, a um homem político<br />
era proibida; os poetas dramáticos escreviam apenas<br />
para ganhar suas vidas, normalmente voltados para<br />
as camadas inferiores da população, descartadas da<br />
vida política. O público dos teatros comparecia para<br />
se divertir e não para refletir sobre problemas do Estado<br />
ou sobre as graves questões morais. A plebe que<br />
comparecia sobre os degraus, barulhenta e sedenta por<br />
diversões, não constituía uma assembléia de cidadãos.<br />
Todas as pessoas iam ao teatro, inclusive crianças, mulheres<br />
e escravos. As apresentações não estavam, como<br />
em Atenas, submetidas ao julgamento de um júri civil.<br />
O poeta recebia apenas um salário, jamais a glória.<br />
Com efeito, o espetáculo não se endereça ao julgamento<br />
de público, mas à sua sensibilidade musical. Para os<br />
romanos, a inteligência, os sentidos político e moral são<br />
apanágios dos homens adultos pertencentes às camadas<br />
superiores da sociedade: senadores, cavaleiros, ricos<br />
plebeus. Se o povo não emite julgamentos, no entanto<br />
o sentimento musical é um fator comum a todos. O público<br />
não parece uma assembléia política: fica sentado,<br />
pacífico, disponível ao prazer dos sentidos.<br />
A música, não a mimese<br />
As teorias gregas sobre o teatro, especialmente as de<br />
Aristóteles, não se aplicam inteiramente ao teatro latino,<br />
pois elas se fundam no fator mimese (imitação);<br />
será melhor entendê-la como apresentação. A concepção<br />
de Aristóteles era a seguinte: o poeta dramático,<br />
como o pintor e o escultor ou ainda os outros poetas, é<br />
um imitador por duas razões: ele imita a realidade que<br />
lhe fornece os assuntos e imita as obras-primas dos<br />
seus antecessores, tirando-lhes a técnica. Segundo tal<br />
teoria, uma tragédia ou uma comédia é a representação<br />
dos sentimentos humanos, transformados pela<br />
arte. O teatro é um espelho mais ou menos deformante<br />
da sociedade humana. Toda a obra artística seria uma<br />
imagem da realidade, não existindo senão em razão<br />
do objeto que ela representa. Este teatro de representação<br />
não se aplica inteiramente ao teatro latino, pois<br />
este não representa, mas apresenta algo sobre o palco<br />
para o prazer e o esquecimento dos espectadores.<br />
O que regula os gestos das personagens e dita suas<br />
palavras não é uma verdade, mas a música. Eles dançam<br />
e cantam; seus cantos, sentido e som confundidos,<br />
são organizados pelo ritmo e pelo prazer de brincar<br />
com as palavras.<br />
Um espetáculo lúdico<br />
O teatro em Roma, sob todos esses aspectos, para<br />
nós insólitos, é um teatro diferente porque ele se inscreve<br />
no seio de uma prática ritual própria da civilização<br />
romana: os jogos (ludi); é por isso que os romanos<br />
não falavam em teatro, mas em jogos cênicos<br />
(ludi scaenici).<br />
A característica fundamental do teatro romano era a<br />
de ser um espetáculo lúdico. Por isso ele faz parte dos<br />
jogos, inseridos no calendário dos lazeres dos romanos.<br />
É, pois, estudando os jogos romanos que podemos<br />
reconstituir o teatro latino, quer como espetáculo<br />
cênico, quer como texto escrito. Ele deve ser visto<br />
dentro desse contexto da civilização romana.<br />
3.4 - Roma, a Civilização do Espetáculo<br />
Havia em Roma quatro tipos de espetáculos cívicos:<br />
1º) O espetáculo do poder:<br />
O poder político era encarnado pelos magistrados<br />
(censores, cônsules, pretores e edis). Formava o governo:<br />
seus memboros tinham função de generais, de<br />
presidente da república, de prefeito da cidade ou de<br />
ministros. Nas províncias havia os governadores. Seu<br />
poder se dava através do aparato que os cercava. Sua<br />
roupa, que era aquela dos antigos reis, a toga bordada<br />
de vermelho (a toga pretexta), a cadeira de marfim e<br />
os 12 litores que os acompanham são a materialização<br />
desse poder. Suscitam nos espectadores obediência e<br />
respeito espontâneos.<br />
35
36<br />
O triunfo é por excelência a “mise en scène” do poder<br />
dos magistrados. O cônsul vitorioso sentia-se autorizado,<br />
de maneira especial, a atravessar a cidade à<br />
frente de suas tropas, exibindo os espólios tomados e<br />
trazendo os reis vencidos amarrados na ponta de uma<br />
corrente. O triunfador, com um manto de púrpura e<br />
as bochechas pintadas de vermelho, como as estátuas<br />
dos deuses, conduzia o carro de Júpiter e subia ao<br />
capitólio ao som das trombetas. Toda Roma fazia o<br />
percurso em ovações.<br />
O Senado, a alta assembléia, formada por antigos<br />
magistrados, é também um espetáculo. Esses homens<br />
graves em toga pretexta, numa pose digna e compassada,<br />
demonstravam uma autoridade tão evidente que<br />
um embaixador estrangeiro dizia ter visto neles “uma<br />
assembléia de reis”.<br />
O aparato do poder em Roma é fundamental; ele é a<br />
verdade e manifesta uma legitimidade sagrada.<br />
2º) Os espetáculos da família:<br />
As grandes famílias romanas usavam o mesmo tipo<br />
de espetáculo para assegurar prestígio e afirmar sua<br />
nobreza. O espetáculo por excelência do poderio aristocrático<br />
eram os funerais de um magistrado. O morto<br />
era levado em procissão através da cidade, depois de<br />
uma parada no Fórum. Era precedido por um longo<br />
cortejo de ancestrais já falecidos sobre um carro de<br />
honra, representados por máscaras fúnebres, moldadas<br />
em cera, cujos atores ficavam vestidos com roupas<br />
de magistrados. Após esse desfile ao som das flautas,<br />
os atores que vestiam as máscaras se instalavam no<br />
Fórum, onde faziam seu próprio elogio. Depois sepultavam<br />
o morto fora da cidade. O espetáculo desses<br />
fantasmas com todo o aparato de sua glória passada<br />
e a lembrança de todos seus altos feitos políticos e<br />
militares serviam para gravar na mente de todos os<br />
romanos a lembrança de seus homens ilustres e lhes<br />
davam o gosto da virtude e da glória. Era o espetáculo<br />
da memória, a celebração das virtudes cívicas que<br />
levam às mais altas funções.<br />
As famílias mais ricas e poderosas incluíam, nas solenidades,<br />
combates de gladiadores, que ocorriam no<br />
Fórum. Denominavam-se “deveres” (munera). Não<br />
eram simulações e havia derramamento de sangue.<br />
3.5 - Ator: Glória e Infâmia<br />
O ator romano era chamado de ludius. Era um dançarino<br />
e um mímico. O cantor e o tocador de flauta<br />
eram colaboradores, feitos de glória e de infâmia.<br />
- O ator nos espetáculos:<br />
O espetáculo latino dá ao ator o primeiro lugar nos<br />
Tais combatentes eram admirados por sua coragem;<br />
eram uma lição de virtude.<br />
As famílias nobres exibiam-se em lugares públicos.<br />
Um homem público não se deslocava na cidade se<br />
não estivesse acompanhado de um grupo de “clientes”.<br />
Quanto mais numeroso era o grupo, mais importante<br />
era o homem.<br />
3º) Os espetáculos da religião:<br />
O ato essencial da religião romana era o sacrifício: a<br />
exposição da morte de um animal doméstico sobre um<br />
altar iluminado e a posterior repartição de suas carnes<br />
entre os principais sacrificadores. Sacrifício doméstico<br />
ou sacrifício público era sempre um ato coletivo que<br />
compreendia atores e espectadores. Ambos faziam<br />
parte do sacrifício. Ou se obtinha uma parte do animal<br />
e se a comia, ou se assistia à cerimônia. Olhar já era<br />
participar, e não apenas uma prova de passividade.<br />
4º) Os espetáculos da palavra<br />
A vida política em Roma era aquela da república: a<br />
força que agita era o exercício da palavra. Os magistrados<br />
eram eleitos, as leis eram votadas. Governar<br />
era convencer. Daí se entende a força da eloqüência.<br />
No senado, diante do povo, os políticos falavam.<br />
Uma parte do auditório votaria, a outra não. A prática<br />
do voto não era igualitária, mas os espectadores eram<br />
sempre ativos.<br />
Outro espetáculo da palavra era proporcionado pelos<br />
advogados no Fórum. Era por lá que todo o político<br />
iniciava, dava-se a conhecer, defendendo seus<br />
amigos e atacando seus inimigos. Apresentavam as<br />
provas diante de um público, que todas as manhãs se<br />
apresentava ante o tribunal. Sua presença era tão importante<br />
que Cícero dizia que não havia causa para<br />
defender se não houvesse público.<br />
Na civilização romana, a vida pública era constituída<br />
em grande parte de espetáculos. Seus atores eram<br />
os da vida política. Os espectadores eram os cidadãos,<br />
cuja presença indicava uma legitimação dos atos da<br />
vida pública. Roma afirmava a legitimidade dos poderes<br />
do espetáculo, a verdade das aparências às quais<br />
não se opõe nenhuma interioridade.<br />
espetáculos cênicos. É ele que tem a tarefa mais importante,<br />
não o poeta ou o compositor da música. Era<br />
ele a quem o público aclamava, a quem os simpatizantes<br />
acompanhavam em grupo até sua casa. Ele<br />
desencadeava paixões, inclusive paixões amorosas,<br />
entre os homens da nobreza. O grande ator Roscius
foi sucessivamente o favorito de Lutácio Catulo e de<br />
Sila, dois dos mais poderosos e dos mais nobres personagens<br />
da sua época. Tal glória decorria da sedução<br />
proporcionada pelas suas virtudes físicas, pela sua<br />
dança e seus cantos. Eles eram o prazer dos jogos.<br />
- O ator cômico – um corpo:<br />
O ator cômico era o preferido do público porque ele<br />
executava a dança. Uma comédia era quase a metade<br />
composta de cenas de balé – cantica – nas quais ele<br />
dançava seu papel; o texto era cantado com acompanhamento<br />
de flauta e de um tamborete de madeira<br />
– scabellum. Cada ator cômico se especializava num<br />
papel, masculino ou feminino, treinando quotidianamente.<br />
Devia ser esbelto e ter muito fôlego. Os papéis<br />
de escravos exigiam agilidade e talento de piadista; os<br />
de cortesã, graça e leveza feminina.<br />
Não era suficiente ser bom dançarino e acrobata; nas<br />
passagens faladas, era preciso encher com sua voz os<br />
imensos teatros de Roma. O ator cômico era o modelo<br />
do ator de mimo, da atelana e da pantomima, para<br />
3.6 - A Máscara<br />
Não se sabe até que época as máscaras foram usadas<br />
no teatro romano. Eram mais comuns na comédia.<br />
Devem ter sido importantes, pois até hoje elas constituem<br />
o símbolo do teatro, enfeitando monumentos<br />
consagrados aos espetáculos. Eram maquilagens que<br />
quem o corpo era mais importante que a voz. Eles<br />
eram também capazes de representar nas tragédias.<br />
- O ator trágico – uma voz:<br />
3.7 - Breve História do Teatro Latino<br />
O Teatro Romano Tem uma História?<br />
Os jogos cênicos latinos começam com a importação<br />
das pantomimas etruscas, no IV século a.C. e se concluem<br />
com as pantomimas de assuntos mitológicos que<br />
sobrevivem, no Império do Ocidente, até o século V p.<br />
C. São mais de mil anos de teatro. É fácil, pois, notar<br />
alterações no teatro, em conseqüência da evolução cultural.<br />
O movimento relativo do teatro e da civilização<br />
constitui a história do teatro romano. Basicamente ele<br />
permanece o mesmo, mas se adapta às mutações do<br />
mundo no qual está inserido, ou seja, numa Roma que<br />
permanece uma civilização de espetáculos.<br />
O teatro estava, de início, inserido no calendário dos<br />
jogos. Os jogos constituíam um espaço temporário, à<br />
parte da vida cívica, mas tinham características bem<br />
romanas. Podiam acolher espetáculos estrangeiros,<br />
mas sem destruir sua natureza exótica. Deste modo<br />
os jogos serviam em Roma para receber espetáculos<br />
estrangeiros que os romanos acolhiam por motivos<br />
O ator trágico devia exercitar sobretudo a voz.<br />
Na tragédia, as partes declamadas tinham um lugar<br />
de destaque. Sem acompanhamento musical,<br />
o ator devia impor-se a públicos de 10 a 20 mil<br />
pessoas. Sua dicção era sofisticada, bastante próxima<br />
do recitativo, quase no limite do canto. Vestido com<br />
roupa de rei, na cabeça um diadema de ouro, calçando<br />
uma espécie de coturno que o aumentava de tamanho,<br />
ele devia distinguir-se em papéis difíceis ou de terror,<br />
deva representar Medéia infanticida, Fedra amorosa,<br />
Agamêmnon embevecido pela vitória sobre Tróia.<br />
A representação do ator trágico devia supor que a voz<br />
era uma extensão do seu corpo, pois a expressão corporal<br />
na tragédia era essencial: ela exprimia, segundo um código<br />
gestual determinado, sentimentos simples como dor,<br />
cólera, desespero, jubilação, furor, que eram, de princípio,<br />
esquemas coreográficos. Nenhum gesto era improvisado.<br />
tornavam as fisionomias irreais e despersonalizadas.<br />
Faziam parte de um estatuto cultural. Usavam máscaras<br />
os atores não tocados de infâmia, que representavam<br />
nas atelanas. Teria, segundo alguns, desaparecido<br />
durante o império.<br />
religiosos: oscos, etruscos, gregos. A cada nova importação,<br />
os jogos assimilavam o novo espetáculo,<br />
transformando-o em espetáculo lúdico, em balé, introduzindo-o<br />
nos mimos e na pantomima.<br />
Os Jogos Mudam de Estatuto com o Império<br />
Na República, os jogos definiam um espaço fora das<br />
normas cívicas. O povo dos jogos se opõe ao povo das<br />
armadas e ao povo das assembléias. Com o Império, o<br />
público romano perde sua dúplice definição política e<br />
militar. A oposição cívica X lúdica se apaga. O teatro,<br />
com o circo, torna-se o único pretexto para uma coletividade<br />
que quer se reunir e que não se define mais<br />
como povo de espectadores. A licença lúdica torna-se<br />
um modo de relação entre o povo, constituído pelo público,<br />
e o imperador, que é sempre o editor dos jogos.<br />
O teatro em si não se modificou; permaneceu sempre<br />
um lugar de festa e de lazer desenfreado, de exotismo.<br />
37
38<br />
Há três datas marcantes na história do teatro latino:<br />
- 364 a.C. : a criação dos jogos cênicos marca um<br />
período de teatro sem texto;<br />
- 240 a.C.: a criação dos jogos gregos marca um período<br />
de teatro com texto;<br />
- 27 a.C.: criação da pantomima romana, o desaparecimento<br />
da comédia. A tragédia deu origem à pantomima<br />
(de novo um teatro sem texto).<br />
Os Primeiros Jogos Cênicos<br />
Em 364 a.C., uma peste se abateu sobre Roma. Para<br />
os antigos, a peste não era epidemia, mas um castigo<br />
divino que podia ser execrado através de ritos expiatórios.<br />
Depois de esgotados todos os ritos domésticos,<br />
os romanos apelaram para um ritual estrangeiro,<br />
mandando vir da Etrúria atores para que eles fizessem<br />
um espetáculo cênico. O ritual passou a ser celebrado<br />
anualmente e integrado aos Grandes Jogos, no meio<br />
da procissão e dos espetáculos de circo. Temos aí a<br />
matriz do teatro romano, que existirá no futuro como:<br />
- um teatro-espetáculo lúdico;<br />
- um conteúdo de representações adaptado de espetáculos<br />
estrangeiros;<br />
- a origem da profissão do ator, chamado de histrio<br />
(do etrusco Hister ou Ister) para diferenciá-lo dos ludiones<br />
da procissão, pois era o histrio dotado de infâmia<br />
e excluído da vida cívica (os histriones reuniamse<br />
num colegiado particular);<br />
- um teatro espetáculo de dança.<br />
No Tempo dos Jogos Gregos<br />
O período de 240 a 27 a.C. é o do teatro com texto.<br />
Cultivam-se todas as espécies dramáticas conhecidas.<br />
Duas tendências marcam esses dois séculos: a primeira<br />
é a multiplicação dos dias de jogos, graças à importação<br />
de divindades estrangeiras (como os jogos<br />
da Grande Mãe, vinda do oriente), à celebração das<br />
vitórias obtidas e aos funerais de ilustres cidadãos; a<br />
segunda é a criação do teatro de texto, por imitação<br />
dos gregos. Na Grécia, a tragédia e a comédia eram<br />
consideradas como obras literárias que proporcionavam<br />
aos poetas muitas honras. O mesmo não ocorria<br />
em Roma, de imediato. Aos poucos, a condição do<br />
dramaturgo ganhou ímpeto. De início, eram chamados<br />
de scribae, depois, de poetae. Por fim a tragédia é<br />
considerada uma espécie literária.<br />
O tempo dos scribae vai de Lívio Andronico, passando<br />
por Névio, Plauto, Cecílio, até Ênio. O tempo<br />
dos poetae começa com Ênio, passa por Pacúvio, Lúcio<br />
Lanúvio até Terêncio. Depois vem o tempo dos<br />
oradores. Começa com Ácio e vai até o poeta Varius.<br />
No Tempo dos Jogos Imperiais: a Confusão<br />
dos Espaços<br />
No final da República se instalam os teatros permanentes.<br />
Os jogos não constituem mais um parênteses na vida<br />
dos cidadãos que se consagram à política e à guerra. Os<br />
teatros ficavam no campo de Marte e o campo de Marte<br />
é integrado à cidade. Os jogos passaram a funcionar<br />
como um intercâmbio entre o povo e o editor dos jogos.<br />
Adquiriram um valor político. O campo de Marte, que<br />
era o lugar das eleições e da Liberdade, torna-se o lugar<br />
dos teatros e da licença. Mas o cidadão romano, definido<br />
como um homo spectator, percebe que o espetáculo<br />
mudou. O ludismo eliminou o civismo e o civismo, inversamente,<br />
entra no teatro. Depois de Augusto, os imperadores<br />
introduziram uma série de regulamentações a<br />
fim de dar um pouco de seriedade à festa e de tornar o<br />
público uma sociedade hierarquizada.<br />
O teatro passou a não se dissociar da vida cívica.<br />
Cada vez menos se distinguiam os espetáculos lúdicos<br />
dos espetáculos cívicos. O mundo imaginário do palco<br />
se confundiu com a nova sociedade imperial. Os impossíveis<br />
heróis mitológicos da tragédia encarnaramse<br />
nos imperadores. Eles eram os novos Héracles e<br />
Apolos. Os aristocratas não se preocupavam com a infâmia<br />
e subiram ao palco para se tornarem “heróis”.<br />
O Teatro de Texto Deixa o Palco<br />
Com o início do Império, a tensão entre o teatro monumento<br />
e o teatro acontecimento abriu uma ruptura.<br />
Sob o reinado de Augusto praticaram-se as leituras<br />
públicas – recitatio. Nas casas de cidadãos privados<br />
organizaram-se leituras de textos de poemas dramáticos<br />
para os amigos. O texto era só declamado, como<br />
um discurso. A meta não era suscitar um prazer teatral,<br />
mas propor ao julgamento dos ouvintes uma obra<br />
que pretendia ser um monumento da cultura latina.<br />
O autor dessas obras, geralmente o chefe da casa ou<br />
um seu protegido, não procura o sucesso público dos<br />
teatros. Segundo Horácio, ele escreve uma obra séria,<br />
geralmente uma tragédia, e se deixa prender nas armadilhas<br />
da mimese. Ele dá um conteúdo alegórico<br />
à peça, e o teatro-texto se torna um instrumento de<br />
propaganda entre os espectadores. A poesia dramática<br />
se torna um exercício puramente de retórica, como os<br />
que praticam os declamadores.<br />
A Pantomima<br />
Paralelamente uma outra espécie de espetáculo é<br />
criada: a pantomima. Dois libertos de Augusto, Pylades<br />
e Bathyles, fabricam, a partir da tragédia, peças<br />
de teatro em que tudo é cantado e dançado. Um único<br />
ator apresentava todos os papéis. Um cantor, acom-
panhado pelo coro, canta o texto, um livrinho escrito<br />
por um poeta. O mais importante, no entanto, era a<br />
dança. Assemelhava-se, de certa forma, aos primeiros<br />
jogos cênicos latinos, conforme os modelos do ludis-<br />
3.8 - As Tragédias de Sêneca<br />
Os poetas dramáticos não desapareceram, mas tornaram-se<br />
amadores. Os profissionais partem para o que<br />
lhes interessava: os livrinhos de textos para a pantomima.<br />
Entre os oradores engajados e os livristas interessados,<br />
encontram-se alguns dramaturgos na linha de Ênio<br />
e de Ácio. Sêneca é um deles. É graças a ele que temos<br />
acesso a textos completos de tragédias romanas.<br />
Lucius Annaeus Seneca<br />
Nasceu entre 2 a.C. e 2 d.C. em Córdova, Espanha. Seu<br />
pai era um rico cavaleiro romano, que deixa a Espanha<br />
quando seu filho era ainda bebê. Depois de uma agitada<br />
juventude que acabou com seu exílio na Córsega, por<br />
ordem do Imperador Cláudio, tornou-se o pedagogo de<br />
Nero, juntamente com Burrus, e foi seu primeiro ministro.<br />
Estóico, é acusado de ter aconselhado Nero no assassinato<br />
da mãe do Imperador, Agripina. Foi posto de lado<br />
por Nero, que se lança em sua loucura política. Envolvido<br />
na conjuração contra Nero, suicida-se em 64 p.C.<br />
A leitura das tragédias de Sêneca revela obras cuja eficácia<br />
espetacular é evidente. Elas não são inteligíveis sem<br />
a reconstituição do espetáculo em que elas poderiam ter<br />
lugar. A estrutura se organiza não por uma lógica do discurso,<br />
mas pela encenação do ator. Essas tragédias foram<br />
representadas? Nunca saberemos, mas o importante é que<br />
elas foram escritas como se devessem ser representadas e<br />
como obras de propaganda destinadas à leitura pública.<br />
Elas são suscetíveis de uma interpretação filosófica?<br />
Não se pode, salvo incríveis distorções intelectuais,<br />
por não dizer de sofismas, chamá-las de obras estóicas.<br />
Talvez elas ofereçam uma filosofia pessimista do<br />
poder absoluto e do heroísmo em geral, mas elas afirmam<br />
que o homem heróico não tem senão a escolha<br />
entre a santidade e a monstruosidade, duas maneiras<br />
de excluir a humanidade.<br />
Suas obras dramáticas são: Agamêmnon, Hércules<br />
Furioso, Hércules no Eta, As fenícias, As troianas,<br />
Medéia, Édipo, Fedra e Thiestes.<br />
A Atualidade do Teatro Latino<br />
O tipo de teatro proposto pelo teatro latino corresponde<br />
à evolução contemporânea do palco. Esse<br />
teatro, onde o musical ocupa o papel principal, que<br />
mo do IV século a.C. A única diferença era que os<br />
assuntos eram tomados da mitologia grega. A pantomima<br />
tornou-se, até o final do Império, o espetáculo<br />
por excelência representado em toda a Europa.<br />
não tem nada de intelectual visto que se endereça à<br />
sensibilidade e não à reflexão, este teatro sem distanciamento<br />
e sem mensagem, que não visa a nada senão<br />
a produzir um espetáculo total, é, por todas as razões,<br />
redescoberto pelos grupos de vanguarda americanos<br />
e japoneses. O teatro latino, do mesmo modo, exige<br />
corpos e vozes para conseguir reter a expressão de<br />
paixões elementares e dar livre curso ao rir.<br />
É preciso ainda lembrar que a comédia e a tragédia<br />
latinas passaram além das fronteiras do tempo da<br />
existência do Império Romano. Quando, no Renascimento,<br />
a Europa descobre o teatro antigo, é, de início,<br />
através das tragédias de Sêneca. Admiraram-no e o<br />
imitaram os poetas trágicos em toda a Europa, até à<br />
época clássica, de Shakespeare a Corneille. Os poetas<br />
barrocos não conheciam outro autor clássico vindo da<br />
Antigüidade. Na época clássica, na França, no século<br />
XVII, visto que a tragédia grega eclipsou a tragédia<br />
latina, uma comédia de conteúdo psicológico se impôs.<br />
É dessa época que surge a desafeição pelo teatro<br />
latino depois de muitos séculos. Somente alguns espíritos<br />
isolados, Antonin Artraud ou Robert Brasillach,<br />
na primeira metade do século XX, releram Sêneca e<br />
encontraram sua pujança trágica. A dimensão musical<br />
do teatro de Plauto e de Terêncio não foi, por seu<br />
turno, verdadeiramente redescoberta. Finalmente, a<br />
relação que cada época tem com o teatro latino é revelador<br />
de sua própria estética teatral. É preciso, para<br />
ser capaz de redescobrir o teatro latino, saber fazer do<br />
espetáculo uma festa.<br />
Medéia<br />
Texto I<br />
Prólogo (v. 1-55)<br />
O primeiro canto de Medéia, monólogo de abertura<br />
da tragédia, é ao mesmo tempo um canto de dolor e<br />
um anticanto do himeneu, dando espaço, na entrada, a<br />
uma estrutura de inversão: a queixa da dolor se opõe<br />
termo a termo ao feliz canto do himeneu constituído<br />
pelo primeiro coro.<br />
Este prólogo de Medéia deve ser lido do ponto de<br />
vista do código e da estrutura. Do ponto de vista do<br />
espetáculo, síntese dos dois precedentes, a cena torna<br />
imediatamente sensível a decadência de Medéia,<br />
39
40<br />
depois sua progressiva transformação em criatura inquietante<br />
e detestável. O espetáculo é o da piedade,<br />
depois do horror, o nascimento do monstro.<br />
Medéia manipula o ritual das núpcias de Jasão e Creúsa,<br />
onde o primeiro coro dirá o caráter perfeitamente normal<br />
e normativo. O tempo de sua celebração coincide com<br />
aquele da tragédia, e são eles que desvendam a dolor.<br />
Formalmente, o canto imita a prece. Toda prece começa<br />
por palavras que devem assegurar a comunicação<br />
entre quem reza e os deuses destinatários. É por<br />
isto que, para atualizar suas divindades, quem ora diz<br />
seus nomes e suas características.<br />
MEDÉIA INVOCA UMA SÉRIE DE DIVINDADES<br />
Aquelas que foram associadas ao seu casamento<br />
com Jasão, que, por conseguinte, são garantias e aliadas<br />
de Medéia em sua vingança. Elas são o casamento<br />
passado de Medéia.<br />
MEDÉIA:<br />
Deuses do himeneu!<br />
E tu, Lucina, deusa do leito onde se engendra a raça!<br />
E tu, deusa que ensinaste a Tífis a arte de guiar o<br />
primeiro navio para conquistar os mares!<br />
E tu, Sol, que distribuis sobre a terra a luz do dia!<br />
E tu, ó tríplice Hécato, que dá às misteriosas cerimônias<br />
uma tríplice claridade!<br />
Ó vós todas, divindades por quem Jasão me jurou<br />
sua fidelidade!<br />
Depois ela invoca as divindades infernais, que estão<br />
em oposição aos deuses associados normalmente nos<br />
cantos do himeneu e que vão servir para inverter as<br />
núpcias presentes. Sua invocação realça a identidade<br />
singular de Medéia, do seu passado de maga. Há, pois,<br />
nessas duas listas de divindades invocadas, um dúplice<br />
jogo sobre a memória: divindades do casamento passado,<br />
divindades do passado de Medéia como maga.<br />
Vós todos, poderes que só Medéia tem o direito<br />
de invocar!<br />
Caos da noite eterna,<br />
reino de além-túmulo,<br />
fantasmas selvagens,<br />
soberanos do sombrio império<br />
e tu, sua esposa, raptada por um mais fiel amante!<br />
O fim da invocação relembra que esta invocação é<br />
um canto de dolor. A expressão ambígua “a voz da<br />
desgraça” quer dizer “expressão da desgraça” e “portadora<br />
de desgraça” marca a dúplice natureza da dolor:<br />
sofrimento e desejo de vingança.<br />
Ó deuses, eu vos imploro,<br />
escutai a voz da desgraça!<br />
Depois Medéia invoca as divindades do furor, as Fúrias,<br />
que, na mitologia grega, são também as deusas da<br />
Vingança. Assim a dolor incita um primeiro movimento<br />
rumo ao furor. Ela chama as Fúrias para que as tochas<br />
negras da vingança substituam as tochas nupciais e se<br />
tornem tochas de luto. Esta substituição é uma das formas<br />
que proporcionam a inversão das núpcias de Creúsa<br />
em antinúpcias de Medéia. Vê-se como se articulam<br />
estreitamente a ação e a estrutura, visto que as Fúrias<br />
pertencem a uma e outra. O vetor deste duplo jogo é<br />
constituído pelas tochas, que são o emblema das fúrias<br />
e, ao mesmo tempo, são os objetos rituais das núpcias e<br />
dos funerais. Dito de outro modo, são as tochas do himeneu<br />
que queimarão Creúsa e atearão fogo ao palácio:<br />
Vinde vós, deusas vingadoras do crime,<br />
vinde em meu socorro:<br />
os cabelos desarrumados, entrelaçados de serpentes,<br />
firme nas mãos sanguinolentas um negro archote,<br />
descabeladas, sinistras, como viestes no dia das minhas<br />
núpcias!<br />
MEDÉIA DÁ O CONTEÚDO DE SUA PRECE<br />
Vinde neste dia<br />
oferecer a morte à jovem nubente,<br />
oferecer a morte a seu pai,<br />
oferecer a morte à linhagem real!<br />
O conteúdo desta prece é paradoxal: ela inverte os<br />
votos habituais formulados por ocasião de um casamento.<br />
A morte é posta como o inverso das núpcias.<br />
A unidade de tempo, o dia, é comentado pelo acontecimento,<br />
as núpcias. Medéia retomará exatamente<br />
esta unidade de tempo para inserir a ação trágica: ela<br />
fará dele o seu dia. Esta inversão toma uma forma<br />
particular no que concerne a Jasão. Medéia quer que<br />
sua vingança faça dele, por sua vez, uma Medéia de<br />
hoje e um Jasão de outra época, visto que o argonauta<br />
chegou para ela suplicante, do estrangeiro, aterrorizado<br />
com a tarefa que devia cumprir.<br />
De agora em diante, ele não encontrará mais ninguém<br />
para o acolher e o ajudar. Ele se tornará errante<br />
e odiável. É exatamente o trajeto que ele cumprirá<br />
tornando-se uma furiosa vítima:<br />
E a mim, dai um outro mal, mais terrível que a morte,<br />
para que eu possa dá-lo ao meu esposo:<br />
que ele viva, errando pobre por cidades desconhecidas,<br />
desterrado, espantado, abominado, sem lar.<br />
Que ele me deseje como esposa,<br />
e encontre a porta fechada, hóspede já muito<br />
conhecido.<br />
E - não é possível pensar nada mais horrível - possa<br />
ele gerar filhos<br />
semelhantes ao pai, semelhantes à mãe.
DA DOLOR AO FUROR<br />
A súplica pára. Medéia torna-se o assunto de suas<br />
frases. A prece tem seu efeito, ela agiu sobre Medéia,<br />
envolvendo-a no véu que a leva ao furor. Ela passa do<br />
pranto à cólera, da dor à ação.<br />
Minha vingança já está lá,<br />
minha vingança já nasceu.<br />
Eu tenho dois filhos.<br />
Palavras.<br />
Eu semeio lágrimas e palavras num deserto.<br />
Vou passar ao ataque.<br />
A própria Medéia transmuda o ritual das núpcias em<br />
ritual fúnebre, fazendo do dia luminoso das núpcias<br />
uma noite eterna para Creúsa e Corinto:<br />
Eu colocarei os archotes nas mãos dos meus inimigos<br />
estenderei o dia no céu.<br />
Este poder, ela o tem de sua raça, pois é filha do Sol.<br />
Mas sua ascendência não pode ajudá-la senão no crime.<br />
Lá no alto, o sol nos olha, o ancestral da minha raça,<br />
e nós aqui o vemos percorrer indiferente, cheio de<br />
claridade, a rota celeste,<br />
sem voltar ao nascente, sem parar o dia.<br />
Esta ascendência não lhe dá diretamente poder sobre a<br />
luz e o fogo. Mas ela tem por ancestral e modelo Faetonte,<br />
o filho do Sol. Aquele, guiando o carro do Sol sem saber<br />
conduzi-lo, transformou a boa e doce luz do dia num<br />
fogo devastador que incendiou a terra. A palavra torna-se<br />
uma prece, mas desta vez diretamente endereçada a um<br />
ser de sua raça. Indiferente como deus, ele não se ocupa<br />
dos homens, mas ouvirá seus ascendentes furiosos:<br />
Ó Sol, concede-me uma graça!<br />
Sol, ancestral de minha raça,<br />
deixa-me voar pelo céu, confia-me as rédeas do<br />
teu carro!<br />
Eu conduzirei os cavalos de fogo com chicotes<br />
flamejantes,<br />
incendiarei Corinto, a cidade entre dois mares!<br />
O istmo se fundirá nas chamas e as ondas se juntarão.<br />
Medéia, queimando Corinto, repetirá o crime de<br />
Faetonte e, inscrevendo-se assim na imortalidade<br />
mitológica, dá às suas tochas nupciais transformadas<br />
em tochas fúnebres a eficácia das tochas das Erínias,<br />
tochas da vingança mitológica.<br />
A FURIOSA<br />
O tipo de palavra muda. Medéia agiu sobre si mesma,<br />
donde o uso do eu e do tu que remeterá um e outro<br />
a ela mesma. Ela é a destinatária da própria palavra.<br />
Medeia começa a procurar o crime que a vingará. Ela<br />
é ainda, na estrutura geral, a necessidade de agir no<br />
quadro das núpcias. Sua palavra torna-se, pois, metafórica.<br />
O crime será encontrado quando ela tiver descoberto<br />
o meio de realizar suas metáforas, aquilo que<br />
está esboçado aqui, na estrutura da tragédia. Medéia<br />
retoma, pois, os elementos do ritual nupcial, um a um:<br />
Não me resta senão levar eu mesma a tocha nupcial<br />
e degolar, depois das preces rituais, as vítimas sobre<br />
o altar consagrado.<br />
Tradicionalmente, a inspeção das entranhas dos animais<br />
sacrificados permitia predizer o futuro:<br />
Coragem,<br />
tu procurarás, tu mesma, nas entranhas, o caminho<br />
da vingança,<br />
se tu ainda estás viva,<br />
se tu guardas alguma energia de outrora.<br />
Aqui começa o duplo trabalho da memória. Medéia<br />
se lembra de sua violência passada, violência mitológica,<br />
quando comenta os crimes cometidos para favorecer<br />
Jasão, crimes que lhe servirão de modelo:<br />
Esquece que tu és uma mulher, um ser medroso,<br />
reencontra tua alma de caucasiana,<br />
reveste-te de violência.<br />
Os horrores em que o Ponto e o Fásis foram ao teatro<br />
repetir-se-ão no istmo de Corinto:<br />
Insensatos, incríveis, horríveis, espantosos para o<br />
Céu e a Terra<br />
são os desígnios que se agitam na âmago do meu<br />
cérebro:<br />
feridas, mortes, membros esparsos e jogados ao<br />
relento.<br />
Pela palavra, Medéia faz um trabalho de abstração e<br />
de classificação sobre os objetos da memória. Assim,<br />
seleciona tipos de crimes que servem para inventar<br />
outros crimes.<br />
Depois, Medéia descarta suas lembranças, pois elas<br />
seriam insuficientes para curar hoje a infelicidade que<br />
a atinge. Isto prova que o que foi um scelus nefas pode<br />
tornar-se o calmante em outro contexto. O passado deve<br />
ser transposto. Há uma escala virtuosa do horror. É preciso<br />
vencer os ancestrais, vencer-se a si mesma:<br />
Não, eis aí lembranças muito inocentes.<br />
Eu não era então senão uma menina.<br />
A dor de uma mulher é exigente.<br />
São-me necessários crimes superiores.<br />
Hoje eu sou mãe.<br />
Arma-te de cólera, prepara-te para uma luta de<br />
morte, um combate de louca.<br />
41
42<br />
O prólogo termina com a afirmação repetida de que<br />
a ação vai ser de antinúpcias e de anulação das núpcias<br />
passadas de Medéia e Jasão. O nó da ação é ao<br />
mesmo tempo dado como a relação existente entre a<br />
tragédia e as lendas mitológicas. O que é objeto de<br />
narrativa são os crimes mitológicos, tornados crimes<br />
trágicos. Não há tragédia, hoje, senão porque sobreveio<br />
à lembrança a vingança de Medéia, e essa vingança<br />
não foi digna de memória, visto que com ela<br />
Medéia se abandona da condição humana por um crime<br />
mitológico, ou seja, trágico. Aqui, é o poeta quem<br />
fala, dando, por assim dizer, a regrada escritura da<br />
tragédia, que deve ser representada como um scelus<br />
nefas para justificar sua razão de ser:<br />
Medéia repudiada deve tornar-se legendária.<br />
Narramos já a história das núpcias.<br />
Como tu deixarás teu esposo?<br />
Do mesmo modo que o seguiste!<br />
Sufoca tuas frouxas perplexidades!<br />
Esta casa, onde tu entraste por um crime,<br />
por um crime deverás deixá-la.<br />
Assim, o quadro da cura fantástica está dado ao púbico:<br />
será o das núpcias ao inverso.<br />
O instrumento de Medéia é a língua; sua força, a da<br />
retórica. A relação metafórica entre a pompa nupcial<br />
e a pompa fúnebre é uma constante em Roma. Mas a<br />
tragédia faz da metáfora uma metamorfose, da comparação,<br />
uma razão. O furioso tem o poder de fazer existir<br />
as palavras, de dar à retórica força de realidade.<br />
Outras Obras de Sêneca<br />
A) Catálogo dos crimes trágicos<br />
Tieste<br />
O scelus nefas é composto sucessivamente do sacrifício<br />
humano cumprido por Atreu e do banquete canibal<br />
que se seguiu. A passagem do sacrifício é narrada<br />
no banquete sob a ótica de Atreu, que descreve Tieste<br />
festejando sob seus olhos, antes de interpelá-lo e de<br />
lhe oferecer como brinde um copo de vinho no qual<br />
versara o sangue dos seus filhos, depois contempla-o<br />
olhando a cabeça e as mãos dos filhos. Os dois sujeitos<br />
dos nefas são os dois irmãos, em posição intercambiável<br />
de carrasco e de vítima, de furiosos e de dolorosos.<br />
Atreu precedera Tieste e o havia feito pouco dele porque<br />
sua dor inicial ultrapassara a do irmão.<br />
ATREU<br />
Sei porque tu choras: Tu te angustias por eu ter tomado<br />
depressa<br />
este crime que eu te roubei.<br />
Não há amas canibais que te angustiem,<br />
nem quem te corte a garganta.<br />
É por não me teres feito comer,<br />
esta foi sempre tua intenção,<br />
uma refeição desta espécie,<br />
e de servi-la a teu irmão sem que ele percebesse.<br />
Tu irias te lançar sobre meus filhos,<br />
mas uma coisa te reteve, uma só.<br />
Tu suspeitavas que eles nasceram de ti.<br />
O crime é a repetição agravada daquele de Tântalo.<br />
É a partir daquele modelo que Atreu o inventou. Ele<br />
permite aos dois irmãos de inscreverem-se na dinastia<br />
da mitologia dos reis de Micenas. Uma cena de<br />
astúcia, a reconciliação dos dois irmãos, permitiu a<br />
execução do nefas.<br />
Fedra<br />
O crime de Fedra na tragédia de Eurípedes, Hipólito<br />
coroado, trata da história da esposa de Teseu que, na<br />
ausência deste, apaixonou-se perdidamente por seu<br />
enteado Hipólito. Repelida por este, filho do primeiro<br />
casamento de Teseu, Fedra suicidou-se, enforcandose,<br />
mas deixou uma mensagem mentirosa ao marido,<br />
acusando-lhe o filho de tentar violentá-la, o que irá<br />
provocar a morte do inocente Hipólito.<br />
Os personagens da peça são Fedra, Hipólito e Teseu, os<br />
quais passam para o mito. Fedra renova os amores selvagens<br />
da sua mãe Pasífae (esposa do rei Minos, a qual<br />
se apaixonara por um touro, dando à luz o minotauro),<br />
em seguimento à mesma dolor de Djanira ou Medéia.<br />
Fedra é uma mulher rejeitada, uma cretense exilada na<br />
Ática, para onde seu pai a enviara como refém:<br />
PHAEDRA<br />
O magna vasti Creta dominatrix freti<br />
cuius per omnes litus innumerae rates<br />
tenuere pontum, quidquid Assyria tenus<br />
tellure Nerea pervium rostris secas<br />
cur me in penates obsidem invisos datam<br />
hostique nuptam degere aetatem in malis<br />
lacrimisque cogis? Pefugus en coniux abest<br />
praestatque nuptae quam solet Thaeseus fidem.<br />
...<br />
FEDRA<br />
Ó Creta, soberana do mar vasto, cujos barcos inúmeros<br />
na costa<br />
cobrem as águas que Nereu franqueia às naus até<br />
ao litoral da Assíria,<br />
por que me deixas presa em mar odioso, esposa do<br />
inimigo,<br />
condenada por toda a vida a dor e ao pranto?<br />
Prófugo, Teseu me é fiel como já foi às outras.<br />
Com pretendente ousado, entrou nas trevas do ínvio<br />
lago do qual ninguém regressa.
Vai, sócio da paixão, tirar Prosérpina à realeza infernal.<br />
Nem a vergonha nem o medo<br />
o detém: o pai de Hipólito busca no imo Aqueronte<br />
o amor ilícito.<br />
Mas dor maior me aflige! O meu cuidado<br />
resiste ao sono e à quietação da noite.<br />
Gera-se o mal, cresce e me abrasa o seio como,<br />
no Etna,<br />
o vapor ferve e transborda.<br />
Esta dolor inicial vai estabelecer comunicação com<br />
o furor da dinastia de Fedra, memória que lhe proporcionará<br />
a própria identidade. É lá que ela vai buscar<br />
a origem do seu amor por Hipólito, sua invenção; o<br />
moço repete o touro de Pasífae, visto que ele pertence<br />
à selvageria, a uma circunstância selvagemente agravante,<br />
visto que socialmente ele é visto como filho de<br />
Fedra, ou seja, os amores dos animais se caracterizam<br />
precisamente não pelo incesto que é uma transgressão,<br />
mas pela indiferença à parentela. O amor monstruoso<br />
de Fedra ultrapassa ao de sua mãe.<br />
Hipólito também reata com sua mãe, a Amazona,<br />
por seus amores monstruosos, mesmo sendo ele um<br />
agente involuntário. Optando deliberadamente pela<br />
selvageria contra a civilização, justo antes da cena em<br />
que Fedra renova seu desejo por ele, Hipólito passa<br />
ao lado do nefas e se torna suscetível para entender<br />
seus avós, inventa ele também o nefas. A seguir, mesmo<br />
ele recusando com horror o amor de Fedra, ele<br />
será seu parceiro num diálogo amoroso, terá falado de<br />
amor com uma mulher vestida de Amazona, que ele<br />
chamou sua mãe e que prometeu de tomar junto dela<br />
o lugar de seu pai. Esta mulher o apertou nos braços e<br />
o cobriu de carinhos.<br />
O nefas de Fedra e de Hipólito é o enfrentamento<br />
de duas selvagerias mitológicas que não podem se<br />
amar. Se a selvageria, no imaginário romano, dá às<br />
mulheres um erotismo excitante, ao contrário, virilizando<br />
excessivamente os homens, transforma-se em<br />
erotismo. As mulheres selvagens são lobas, quer dizer<br />
prostitutas, os homens-lobos vivem em alcatéias de<br />
caçadores celibatários. Hipólito tem horror às mulheres<br />
não por capricho particular, mas porque ele se vê<br />
um selvagem habitante das florestas.<br />
A selvageria de um e outro está presente sobre o palco<br />
e visível pelo disfarce da dança. Vimos que Fedra<br />
encontrou a pacificação numa veste de Amazona caçadora.<br />
Hipólito também está travestido de caçador<br />
mitológico. Tal é a função do prólogo de Fedra e de<br />
sua natureza particular: instalar no espaço trágico o<br />
furor selvagem de Hipólito. Com efeito Fedra se abre<br />
com um monólogo que não é nem a dolor de um herói,<br />
nem o furor de um deus ou de um fantasma vindo de<br />
um outro mundo. A escritura em estrofes líricas prova<br />
que esse prólogo, diferentemente dos outros prólogos<br />
das tragédias de Sêneca, era cantado por um cantor<br />
enquanto um ator dançava. A cena. Tecnicamente essa<br />
dança é uma pantomima, onde o ator imita sucessivamente<br />
as diferentes técnicas e os diferentes momentos<br />
da caça. Hipólito dá ordens a seus companheiros caçadores<br />
antes de partir, de manhã. Manda-os percorrer<br />
todo o território da Ática, depois, antes de se engajar<br />
ele mesmo nessa expedição, envia uma prece a Diana,<br />
deusa da caça, afim de que ela lhe seja favorável.<br />
O que é mesmo inquietante é o personagem que<br />
representa Hipólito. Esse caçador não é um filho de<br />
família, um esportista vindo da cidade. É um caçador<br />
excessivo, que, ao menos em palavras, transforma<br />
toda a Ática em território de caça, onde não vivem<br />
senão pastores. As cidades, as terras cultivadas, toda<br />
espécie de civilização sedentária desapareceu. Suas<br />
primeiras palavras são ambíguas, são as de um chefe<br />
que lança os companheiros ao ataque sem que se saiba<br />
se trata-se de uma expedição militar ou uma caça;<br />
eles vão percorrer o país semeando terror:<br />
Ite umbrosas cingite silvas<br />
summaque montis iuga, Cecoprii<br />
Ide, cercai bosques umbrosos, rodeai com passo<br />
errante e lépido,<br />
o cume do monte de Cécrops.<br />
A volta da caça mostra uma horda, celebrando um<br />
triunfo pré-histórico, em torno de charretes rústicas<br />
que rodam rangendo rumo às cabanas primitivas.<br />
Diana, a quem ele invocara, não é uma divindade<br />
dos homens civilizados; seu espaço são os confins do<br />
universo habitado. Ela reina pela violência sobre povos<br />
selvagens e primitivos.<br />
Assiste-nos, ó forte deusa, que reinas sobre as<br />
terras virgens;<br />
cujas flechas certeiras ferem as feras que se dessedentam<br />
no frio Araxes<br />
ou que saltam no Istro gelado. A tua destra persegue<br />
os leões da Getúlia<br />
e as corças de Creta. Agilmente alcanças os gamos<br />
velozes.<br />
A ti se imolam os pintados tigres, os peludos bisontes<br />
e os búfalos de grandes cornos. Todo animal que no<br />
deserto pasce,<br />
à vista doss gramantes, ou se esconde na selva<br />
a’rabica<br />
e nos picos dos Pireneus, e ainda nas florestas da<br />
Hircânia,<br />
nos vastos campos da Sarmácia, teme as tuas aljavas,<br />
Diana!<br />
Para o imaginário romano, um caçador dos confins é<br />
pior do que um bárbaro, é um homem selvagem, que<br />
43
44<br />
vive como animal no meio de animais, que não diferencia<br />
entre a caça e a guerra, pois não há diferença<br />
entre um animal e um homem. Esse tipo de caçador se<br />
situa num espaço de além, fora do espaço habitado. A<br />
selvageria extrema e impossível dos confins dá, pois,<br />
suas cores em Fedra a uma selvageria mitológica que<br />
é a da Amazona, mãe de Hipólito, onde reencontra<br />
Pasifae, mãe de Fedra.<br />
A dança de Hipólito depois da prece a Diana é a de<br />
um chefe selvagem, de um homem-lobo que, se ele<br />
reina na Ática, a transformaria em deserto, em floresta<br />
virgem. Mas esse valor ideológico do prólogo que deduzimos<br />
das palavras de Hipólito é o desenvolvimento<br />
verbal de uma evidência espetacular. O público romano<br />
reconhecia imediatamente em Hipólito, desde que<br />
o vê, um caçador selvagem dos confins. Desde que ele<br />
já o viu alhures, essa dança do rei bárbaro que reina<br />
sobre sujeitos como sobre um gibon, seja no circo nas<br />
venationes, ou gladiadores reproduzindo grandes caças<br />
mitológicas ou pseudo-históricas – caças de Hércules<br />
ou de Alexandre – seja no teatro das pantomimas com<br />
assuntos miológicos. Costumes bárbaros em vivas cores,<br />
músicas estranhas e, no circo, presença de animais<br />
exóticos (leões, panteras etc.) inscreveram na memória<br />
dos romanos imagens definitivas.<br />
Ao corpo selvagem e dançante de Hipólito abrindo a<br />
tragédia corresponde o quadro final de seu corpo mutilado,<br />
incompleto, hediondo, que o traz de volta à civilização.<br />
A dança de Hipólito é da mesma natureza trágica<br />
que as danças do furor; mas um furor que não foi<br />
precedido pelo espetáculo da dolor, ou ainda da mesma<br />
natureza que a dança de Tântalo. Ele realiza assim seu<br />
corpo mitológico, como fazem Djanira e Medéia.<br />
Esta primeira parte do nefas é possível, quer dizer, é<br />
o reencontro entre as duas selvagerias, porque Diana<br />
serve de intercessora. Ela encarna as duas façes da selvageria,<br />
a masculina e a feminina. Ela é a divindade<br />
dos confins e da caça. É a divindade dos homens selvagens,<br />
mas é também, sob o nome de Hécato, a lua,<br />
a deusa da magia amorosa, pois uma lenda narra que<br />
a lua se tomou de amor por Endimião, um pastor, e<br />
desceu à terra, seduzida. Depois, as magas a associam<br />
aos lagos para que ela favoreça aos amores difíceis.<br />
Hécato, astro noturno, é uma deusa de mulheres enamoradas.<br />
E por isso que a Ama lhe faz uma prece:<br />
Rainha da floresta, ó única moradora e adorada na<br />
montanha,<br />
muda para melhor os meus presságios! Deusa magna<br />
das florestas e dos bosques, astro do céu claro, glória<br />
da noite,<br />
tu que alternas com o dia a luz do mundo, tríplice<br />
Hécato,<br />
acode em nossa ajuda! Doma do triste Hipólito a<br />
alma gélida:<br />
aprenda a amar, partilhe os fogos mútuos e saiba ouvir.<br />
O coração lhe amansa, enleia-lhe a razão! Hostil<br />
e irado<br />
retorne às leis de Vênus. Nisso empenha o teu poder.<br />
..............................................<br />
Custa-me executar o crime ordenado. Quem teme<br />
os reis<br />
proscreva o certo e o justo; expulse a honra do peito!<br />
O pudor é mau cúmplice dos déspotas.<br />
A dúpla natureza de Diana está já presente no fim do<br />
prólogo dançado por Hipólito; quando ele terminou<br />
sua oração à deusa, ele ouve os latidos dos cães; é<br />
um sinal da presença de Hécato, a partir das preces<br />
de magia erótica.<br />
A tragédia passa-se, pois, em dois tempos correspondentes<br />
aos dois estágios corporais dos heróis: a<br />
primeira parte é aquela dos corpos selvagens e belos;<br />
a segunda, aquela dos corpos em luto e lesados.<br />
Teseu sai dos Infernos, lúgubre e despojado como<br />
um fantasma. Fedra toma sucessivamente duas posturas<br />
de luto: a primeira é a exibição socializada dos<br />
efeitos de sua violação (pretendida), a segunda, para<br />
chorar Hipólito. Hipólito é um cadáver mutilado,<br />
completamente ferido.<br />
A cena da confissão amorosa se repete na cena da<br />
confissão criminal; essas cenas se juntam em três, com<br />
o terceiro ausente. No início, o ausente é Teseu: no país<br />
dos mortos, ele não é senão uma máscara posta sobre<br />
os olhos de Hipólito; a seguir o ausente é Hipólito, que<br />
não passa de um monte de carne desgraçada. Nas duas<br />
cenas, Fedra repete o mesmo gesto da sedução que a<br />
liga a Hipólito, mas na primeira vez o nefas fica incompleto,<br />
pois não foi posto em cena um ritual pervertido;<br />
na segunda vez, utilizando o rito do luto, Fedra vai até<br />
o fim de sua transformação em monstro e liga seu destino<br />
a Hipólito na memória da mitologia. Sua acusação<br />
mentirosa contra Hipólito é tipicamente uma cena de<br />
astúcia para preparar o scelus nefas.<br />
Édipo<br />
Édipo é uma das tragédias mais complexas de Sêneca.<br />
Salvo as aparências, esta tragédia obedece ao mesmo<br />
esquema das outras tragédias. A única diferença<br />
está no que se refere ao nefas, que foi cometido antes<br />
do início da ação cênica. Mas, como nada se sabe disso<br />
no início da peça, é como se o nefas não existisse<br />
ainda para aqueles que se tornarão seus sujeitos:<br />
Édipo e Jocasta. A invenção do nefas vai coincidir<br />
com a descoberta dos crimes cometidos por Édipo, o<br />
parricídio e o incesto. Dizer o nefas ou cumpri-lo é a<br />
mesma coisa, pois o crime, para tornar-se performativo,<br />
é preciso que seja ritualizado. Isto não é espantoso<br />
numa civilização em que um prodígio, um monstrum,
não existe se não for reconhecido como tal pelas autoridades<br />
religiosas e políticas, no curso dos procedimendos<br />
da linguagem.<br />
Édipo, no prólogo doloroso, fala de seu medo de cometer<br />
seu scelus nefas anunciado pelo oráculo de Delfos.<br />
Compreendendo que ele já o cometera, ele coincide com<br />
ele mesmo, com seu ser mitológico e, para dar uma realidade<br />
a esta nova identidade enfim reencontrada, ele finge<br />
não estar entendendo nada. No fim da tragédia, ele tem a<br />
mesma fruição cumprida por Atreu ou Medéia.<br />
Bene habet, peractum est...<br />
Iuvant tenebrae...<br />
Vultus Oedipodam hic decet.<br />
Está bem, tudo se cumpriu...<br />
As trevas ajudam...<br />
Édipo, tu tens agora teu verdadeiro rosto.<br />
O nefas o integra na dinastia tebana como seu pai<br />
lhe relembra, saindo dos Infernos, seu pai, que é a<br />
figura de um fantasma furioso, comunicando, a seu<br />
Exercícios de Auto-avaliação<br />
1- Como se organiza a estrutura das tragédias de Sêneca?<br />
2- Quais são as obras dramáticas de Sêneca?<br />
3- Como era considerada a tragédia na Grécia?<br />
4- Com quem começa o tempo dos poetae?<br />
5- Quando se instalam os teatros permanentes?<br />
6- Onde ficavam os teatros?<br />
modo, sua raiva a seu filho, como Tântalo ou Tieste.<br />
Ekle é o digno descendente dos monstros tebanos que<br />
o precederam no trono.<br />
O furor de Édipo lhe vem tarde na peça, depois<br />
que ele apreendeu o nefas. Este furor lhe permite<br />
reapropriar-se do crime, o que o leva a crivar-se<br />
os olhos e a empurrar sua mãe ao suicídio. Jocasta<br />
entra em furor ao mesmo tempo que Édipo. Ela<br />
participou da revelação do nefas, sendo a primeira<br />
a entender as verdadeiras circunstâncias do assassinato<br />
de Laio.<br />
O espetáculo do nefas é aquele da sua revelação<br />
e do posterior prolongamento. A revelação se realiza<br />
em duas cenas: a primeira é uma narração, a<br />
consulta aos mortos; a outra é a consulta no palco,<br />
das entranhas sacrifícais. A seguir, os efeitos da revelação<br />
dão lugar a uma narração, que conta como<br />
Édipo se crivou os olhos; depois, sobre o palco,<br />
Édipo reencontra Jocasta que se suicida diante do<br />
público. Culpáveis, mas não responsáveis, ambos<br />
entram para a lenda.<br />
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46<br />
Se você:<br />
1) concluiu o estudo deste guia;<br />
2) participou dos encontros;<br />
3) fez contato com seu tutor;<br />
4) realizou as atividades previstas;<br />
Então, você está preparado para as<br />
avaliações.<br />
Parabéns!
Glossário<br />
Comédia- obra ou representação teatral em que predomina a graça.<br />
Dioniso- deus grego dos ciclos vitais e da alegria e do vinho, chamado de Baco pelos romanos.<br />
Ditirâmbico(a)- composição lírica que exprime entusiasmo ou delírio.<br />
Iãmbico(a)- irônico, satírico, sarcástico.<br />
Ignóbeis- que não tem nobreza.<br />
Mimese- imitação, figura que consiste no uso do discurso direto e principalmente na imitação do gesto, voz e<br />
palavras de outro.<br />
Mito- narrativa dos tempos fabulosos ou heróicos.<br />
Pantomimas- arte ou expressão por meio de gestos, mímica.<br />
Tragicomédia- peça que participa da tragédia pelo assunto e personagens e da comédia pelos incidentes.<br />
Tragédia- obra teatral em versos que se originou do ditirambo.<br />
47
48<br />
Gabarito<br />
Unidade I<br />
1- Sugestão: a resposta pode ser formulada a partir do item 1.1.<br />
2- Foi a época de Augusto (de 44 ou 43 a.C. a 17 d.C).<br />
3- Sugestão: a contextualização da disciplina, na parte em que fala sobre o gênero épico nos primeiros três parágrafos.<br />
4- Começa como todo poema épico, com a invocação à musa (deusa) da poesia.<br />
5- Começa com a invocação de Homero à musa da poesia, na qual enuncia o tema do poema épico e lhe pede<br />
que oriente para que possa contar a história de modo adequado.<br />
Unidade II<br />
1- A primeira obra de Ovídio foi Amores.<br />
2- Ovídio abordou o épos de outra maneira, não optou pelo poema de grandes dimensões, seguiu o modelo<br />
épico inspirado em Hesíodo.<br />
3- Você pode responder de acordo com o tópico Os Amores.<br />
4- Resposta no item 2.3.<br />
5- Filosofia que prega a renúncia aos negotia político-militares em favor de uma vida à parte e tranqüila, em<br />
íntima comunhão dos amigos.<br />
Unidade III<br />
1- Não por uma lógica do discurso, mas pela encenação do ator.<br />
2- Suas obras dramáticas são: Agamêmnon, Hércules, Furioso, Hércules no Eta, As Fenícias, As Troianas,<br />
Medéia, Édipo, Fedra e Tristes.<br />
3- Na Grécia, a tragédia era considerada como obra literária que proporcionava aos poetas muitas honras.<br />
4- Com Ênio.<br />
5- No final da República.<br />
6- Os teatros ficavam no campo de Marte e o campo de Marte é integrado à cidade.
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HOMERO. Odisséia (em versos). Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro. s. d.<br />
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PARATORE, Ettore. Histórias da literatura latina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.<br />
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudo de história da cultura clássica. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian,<br />
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PETITMANGIN, H. Histoire sommaire illustrée de la littérature latine. Paris: J. de Gigord, Éditeur, 1946.<br />
ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1996.<br />
SISSA, Giulia & DETIENNE Marcel. Os deuses gregos. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.<br />
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VIRGÍLIO. Eneida. Trad. David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.<br />
WOOLGER, Jennifer Barker & WOOLGER, Roger J. A deusa interior. São Paulo: Cultrix, 1998.<br />
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