LITERATURA LATINA I - Universidade Castelo Branco
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Depois deste preâmbulo, o poeta invoca a Musa:<br />
Musa, mihi causas memora... (A musa da poesia<br />
épica, a filha mais velha de Mnemosine, era Calíope,<br />
uma das sete musas protetoras das artes e da literatura).<br />
A invocação da Musa é uma tradição homérica.<br />
Esta invocação termina com uma pergunta do poeta:<br />
Tentaene animis coelestibus irae?. Tal questionamento<br />
mostra que o poeta, assim como todos os romanos,<br />
não admite que os deuses possam ser acessíveis<br />
às mesmas paixões que rasgam os humanos. Como<br />
se explica isso? Vergílio assinala desde o início do<br />
poema: diante dos sofrimentos infligidos ao herói<br />
– alma religiosa! – por uma divindade rancorosa, ele,<br />
o herói, se assombra e sua piedade emudece. O poeta<br />
explica que Juno teme por Cartago, sua cidade predileta,<br />
que seja aniquilada por um povo oriundo da<br />
raça troiana. Além disso, a deusa ainda guarda em seu<br />
coração o julgamento de Páris, em que fora preterida.<br />
Deste modo, Juno aparece como uma deusa vingativa;<br />
os infelizes mortais são, então, os joguetes das<br />
paixões divinas. Em Homero este conceito era aceito<br />
normalmente, sem objeções; mas, entre os romanos,<br />
era inconcebível que os deuses agissem assim. Vergílio<br />
atualiza o dado com o verso Tantae molis erat<br />
Romanam condere gentem! (Tantos esforços eram<br />
para fundar a nação romana). É a resposta à pergunta<br />
que acaba a invocação. Ou seja, as divindades têm<br />
suas iras, mas as perseguições servem para dizer que<br />
os fins justificam a injustiça: eram necessárias as tribulações<br />
de Enéias para que Roma pudesse nascer.<br />
Quer dizer, Roma não nasce sem sacrifícios, sem dor;<br />
é também o preço de tanto poder e de tanta glória.<br />
Enéias será o herói desses sacrifícios necessários e<br />
Juno, deusa que é, o instrumento de um Destino que<br />
ela crê combater (também os deuses estavam sujeitos<br />
ao Fado). Começa então a apresentação dos feitos em<br />
que o herói se envolve. A narrativa se inicia in medias<br />
res, isto é, no meio dos acontecimentos. O primeiro<br />
deles se dá no mar: os navios já estão se aproximando<br />
do destino final da viagem, os marinheiros estão felizes,<br />
quando desaba uma terrível tempestade, que Juno<br />
fez desencadear, e afasta os troianos para as costas da<br />
África. O poema não se inicia com os fatos conforme<br />
a ordem de ocorrência: a destruição de Tróia, depois<br />
a fuga, depois a viagem, depois a chegada. Começa<br />
no meio (esta forma de iniciar está em Homero, na<br />
Odisséia, quando Ulisses, depois de ter deixado a ilha<br />
de Calipso num navio, está para chegar ao país dos<br />
feaces. Vem uma tempestade que o leva para longe,<br />
entre os etíopes).<br />
Juno, para desencadear a tempestade, dirige-se a<br />
Éolo, o deus dos ventos, que lhe deve obrigações<br />
(através dela ele se tornou rei dos ventos); a deusa<br />
oferece-lhe em matrimônio Deiopéia, a mais bela de<br />
suas ninfas, como recompensa, a qual lhe dará belos<br />
filhos. Juno é a deusa dos bons casamentos. Vergílio,<br />
com isso, quer valorizar o prazer da dignidade do ca-<br />
samento e a legitimidade das alegrias familiares. Faz<br />
parte do plano augústeo de renovação dos costumes:<br />
a volta aos antigos costumes.<br />
É, pois, no meio do turbilhão dos ventos que aparece<br />
pela primeira vez o herói Enéias. Surge voltado para os<br />
céus, em plangente queixa. É a figura do pius Aeneas,<br />
cujo pensamento se volta sem cessar para o céu. Embora<br />
suas palavras não sejam uma oração, e sim um<br />
pranto, caracterizam o herói como o sobrevivente de<br />
uma “troupe” de outros tantos heróis como Diomedes,<br />
Aquiles, Heitor... A descrição das cenas que envolvem<br />
a tempestade são um belo exemplo da grandiloqüência<br />
épica. A tempestade representa um obstáculo mortal ao<br />
qual o herói deverá suplantar. Visto que estas forças da<br />
natureza são grandes demais para um homem, Netuno<br />
intervém majestosamente, opondo-se a Juno e a Éolo,<br />
e ajuda Enéias. Mas esta ajuda se justifica, visto que<br />
Juno e Éolo se intrometem num domínio que não lhes<br />
pertencia. No mais, a tempestade é a desordem dos elementos<br />
em convulsão; Netuno é igual a Augusto que<br />
vem restabelecer a ordem na cidade.<br />
E os troianos ganham as costas da Líbia. A liderança<br />
do herói se ressalta pelas cenas de reconhecimento<br />
do lugar, pela procura dos companheiros dispersos,<br />
pela provisão dos alimentos, pelo encorajamento aos<br />
companheiros através do discurso eficaz.<br />
Vênus vai ter com Júpiter, buscando satisfações<br />
para o que acontece. Através das palavras de Júpiter,<br />
Vergílio projeta a história e o futuro de Roma. E<br />
mostra o entendimento que deve dar à obra: será uma<br />
epopéia nacional e será um poema dinástico (Augusto<br />
é o continuador de Enéias). As guerras heróicas de<br />
Enéias no Lácio, as guerras que formaram o poderio<br />
romano dão início ao império de Augusto, o fundador<br />
da pax romana. Júpiter manda Mercúrio a Cartago a<br />
fim de preparar Dido para a chegada de Enéias.<br />
Segue-se o encontro de Enéias com sua mãe-protetora<br />
Vênus, que vem ajudá-lo, pondo-lhe a par do<br />
lugar em que está e das pessoas com quem há de lidar.<br />
Segue-se a narração do encontro de Enéias com<br />
a fenícia Dido ou Elissa, rainha da nascente Cartago.<br />
[Cartago teria sido fundada por volta de 814-813 a.C.<br />
por colonos Tírios, sob o reinado de Tir Pigmalião,<br />
por obra da irmã deste, Deido. Visto que as condições<br />
da fundação de Cartago eram desconhecidas, Vergílio<br />
as explica de forma legendária. Vergílio também cria<br />
a lenda da paixão de Dido por Enéias, afastando-se da<br />
história que, segundo Varrão, narra que Enéias teria<br />
tido uma aventura amorosa na África, mas não com<br />
Dido e sim com Ana, que seria a verdadeira fundadora<br />
da capital tíria (como se vê, a história é polêmica)].<br />
Se Vergílio introduziu Enéias no palácio de Dido<br />
para que ele vivesse ali uma aventura amorosa, tinha