teoria literária - Universidade Castelo Branco
teoria literária - Universidade Castelo Branco
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SUMÁRIO<br />
Quadro-síntese do conteúdo programático ................................................................ 11<br />
Contextualização da disciplina .................................................................................. 12<br />
UNIDADE I<br />
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA LITERÁRIA<br />
1.1 - Explicação do termo Teoria<br />
1.2 - Especificidade do Literário (Ciência Analítica X Ciência Fenomenológica)<br />
1.3 - Teoria: Cientificismo X Teoria: Fenomenologia (Eduardo Portella)<br />
1.4 - Posicionamento crítico em favor da Fenomenologia (Eduardo Portella)<br />
O Dever da Crítica Literária em Relação ao estudo da obra de arte <strong>literária</strong><br />
1.5 - Explicação do termo Crítica<br />
1.6 - Objetivo da Crítica Literária (visão cientificista)<br />
1.7 - Crítica Literária e Teoria Literária:<br />
A Crítica como consciência do Fato Literário (visão fenomenológica)<br />
1.8 - Retrospectiva: A Natureza do Fenômeno Literário<br />
UNIDADE II<br />
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA LITERÁRIA: CARACTERES (CARÁTERES) INTERDISCIPLINARES<br />
2.1 - O atual caráter interdisciplinar da Teoria Literária<br />
2.2 - Crítica de Eduardo Portella sobre as terminologias Teoria da Literatura e Teoria<br />
Literária<br />
2.3 - Crítica e História Literária<br />
2.4 - Crítica e Sociedade<br />
2.5 - O percurso histórico da Crítica Literária<br />
2.6 - Reavaliando a atuação da Crítica Literária (Neuza Machado)<br />
UNIDADE III<br />
CRÍTICA LITERÁRIA: MODERNIDADE X PÓS-MODERNIDADE<br />
3.1 - Modernidade<br />
3.2 - Modernidade: Imanência e Imediatismo (≠ de transmanência)<br />
3.3 - Pós-Modernidade<br />
3.4 - Temas e Variações da Pós-Modernidade<br />
3.5 - Sobre a Poesia Pós-Moderna<br />
3.6 - Sobre as Sociedades Capitalistas Pós-Modernas<br />
3.7 - Pós-Moderno / Pós-Modernismo (Nicolau Sevcenko)<br />
3.8 - Pós-Moderno / Pós-Modernismo (Jair Ferreira dos Santos)<br />
3.9 - Pós-Moderno / Narrativas<br />
3.10 - Tendência Literária<br />
3.11 - Narrativa Pos-Moderna/Pós-Modernista de 1 a Geração<br />
3.12 - Narrativas Pós-Modernas/Pós-Modernistas de 1 a e 2 a Gerações<br />
3.13 - Sobre o Marxismo Independente de Georg Lukács como auxiliar nos estudos de<br />
literatura pelo ponto de vista de Teofilo Urdanoz<br />
3.14 - Modernidade/Pós-Modernidade: características sócio-culturais e ficcionais<br />
(Século XX ao início do Século XXI)<br />
3.15 - Sobre a Ficção Pós-Modernista (2 a Geração Brasileira) de Rogel Samuel (Neuza<br />
Machado)<br />
3.16 - Leitura Crítico-Reflexiva de Neuza Machado (Sobre O Amante das Amazonas de<br />
Rogel Samuel)
QUADRO-SÍNTESE DO CONTEÚDO<br />
PROGRAMÁTICO<br />
UNIDADE OBJETIVOS ESPECÍFICOS<br />
I - Teoria Literária X Crítica Literária Levar ao aluno informações que definem a<br />
- Explicação do termo Teoria situação do texto literário (Arte Literária),<br />
- Especificidade do literário chamando a atenção para os aspectos que<br />
- Teoria: Cientificismo X Teoria: Fenomenologia possam orientar teoricamente e criticamen-<br />
- Posicionamento crítico (Fenomenologia) te suas leituras.<br />
- Explicação do termo Crítica<br />
- Objetivo da Crítica Literária (cientificismo)<br />
- Crítica Literária e Teoria Literária (Fenomenologia)<br />
- A Natureza do Fenômeno Literário (retrospectiva)<br />
II - Teoria Literária e Crítica Literária Levar o aluno a reconhecer no texto literá-<br />
- O atual caráter interdisciplinar da Teoria Literária rio a categoria genérica do mesmo.<br />
- Crítica de Eduardo Portella sobre as terminologias<br />
Teoria da Literatura e Teoria Literária<br />
- Crítica e História Literária<br />
- Crítica e Sociedade<br />
- O percurso histórico da Crítica Literária<br />
- Reavaliando a atuação da Crítica Literária<br />
III - Crítica Literária: Modernidade X Pós-Modernidade Levar o aluno a reconhecer a Literatura da<br />
- Modernidade Pós-Modernidade.<br />
- Modernidade: Imanência e Imediatismo<br />
- Pós-Modernidade<br />
- Temas e Variações da Pós-Modernidade<br />
- Sobre a poesia Pós-Moderna<br />
- Sobre as Sociedades Capitalistas Pós-Modernas<br />
- Pós-Moderno/Pós-Modernismo<br />
- Pós-Moderno/Narrativas<br />
- Tendência Literária<br />
- Narrativa Pós-Moderna/Pós-Modernista de 1 a Geração<br />
- Narrativas Pós-Modernas/Pós-Modernistas de 1 a e 2 a<br />
Gerações<br />
- Sobre o Marxismo Independente de Georg Lukács<br />
- Características Sócio-Culturais e Ficcionais da Pós-<br />
Modernidade<br />
- Sobre a Ficção Pós-Modernista no Brasil<br />
- Leitura Crítico-Reflexiva de O Amante das Amazonas<br />
(romance de Rogel Samuel) – Neuza Machado
CONTEXTUALIZAÇÃO DA DISCIPLINA<br />
A disciplina Teoria Literária IV, acrescida de saberes de Crítica Literária, visa<br />
reafirmar e consolidar o leque de informações que foram utilizadas no decorrer dos<br />
cursos de Teoria Literária I, Teoria Literária II e Teoria Literária III, e, ao mesmo<br />
tempo, apresentar as renovadas e/ou inovadas orientações teórico-críticas do atual<br />
momento histórico, orientações estas que permitirão a sempre necessária e exigida<br />
reciclagem de um contínuo e atualizado conhecimento do texto literário (seja o texto<br />
pesquisado literatura-arte ou não). A Crítica Literária, enquanto conhecimento que<br />
busca a capacidade de julgar as camadas particulares do texto-arte e/ou paraliterário, e<br />
enquanto complemento indispensável às diversas diretrizes teóricas (replenas de<br />
conteúdos universais), sempre estará em evolução, acompanhando o próprio processo<br />
transformador da disciplina aqui realçada, apresentando-se, por este aspecto, como<br />
contribuinte interdisciplinar, imprescindível, para que o estudioso da literatura possa<br />
interagir com todas as camadas de qualquer texto literário (as camadas visíveis e as<br />
camadas invisíveis).<br />
Este conhecimento se somará às informações dos cursos anteriores, pois, além<br />
de permitir a continuação das explorações de todas as possibilidades e fundamentos da<br />
Teoria Literária, afora o perrmanente reconhecimento dos papéis da mimésis e da<br />
catársis no fenômeno literário, o analista e/ou intérprete continuará a ter condições de se<br />
disciplinar a estudar, com reanimado empenho, e, por tais motivações, continuar a<br />
desenvolver o senso crítico no intuito de prosseguir em estudos posteriores, tais como<br />
Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu em Teoria Literária e Literatura propriamente<br />
dita, brasileira ou estrangeira, ou mesmo em Cursos de Pós-Graduação Stricto Sensu, ou<br />
seja, um Mestrado e, posteriormente, um Doutorado.<br />
Reafirmando as anteriores contextualizações — dos anteriores Instrucionais de<br />
Teoria Literária —, as informações, contidas nesta disciplina, tendem a provocar no<br />
estudioso da literatura, agora produtor de literatura-técnica, a continuação do gosto pelo<br />
crescimento intelectual, o qual o levará a pesquisas posteriores (Artigos, Ensaios,<br />
Monografias, Dissertações, Teses), assim, desenvolvendo e ampliando o seu saber ao<br />
longo do tempo. Sem as informações teórico-críticas avançadas, já reconhecidas e<br />
respeitadas, e as posteriores, ao término do Curso de Letras, o candidato a professor de<br />
literatura (brasileira, portuguesa, inglesa, hispano-americana ou de qualquer outra<br />
nacionalidade) não conseguirá atingir o necessário suporte para o seu próprio<br />
desenvolvimento intelectual, ético e profissional.
UNIDADE I<br />
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA LITERÁRIA<br />
Objetivos Específicos:<br />
• Quanto à Teoria Literária: Levar o aluno a reavaliar as informações teórico-críticas<br />
adquiridas anteriormente, as quais, nos cursos anteriores, definiram a situação do<br />
texto literário (texto-obra e/ou paraliterário), com isto, chamando a atenção do<br />
analista e/ou intérprete para os aspectos que tipificaram e orientaram a sua leitura.<br />
• Quanto à Crítica Literária propriamente dita: Possibilitar ao estudioso da literatura<br />
a faculdade de analisar e/ou interpretar a obra-de-arte <strong>literária</strong> auxiliado pelo atual<br />
arcabouço crítico-literário, principalmente a construção textual crítico-<strong>literária</strong> que<br />
corresponde ao século XX e início do século XXI (avaliadoras e reconhecedoras da<br />
grandeza de obras narrativas modernistas e pós-modernistas, obras estas inovadoras,<br />
em prosa e em versos, e poemas líricos das mesmas estéticas) e reconhecer<br />
(continuamente e fenomenicamente) a Natureza Específica do Literário.<br />
1.1 - EXPLICAÇÃO DO TERMO TEORIA<br />
O QUE É TEORIA?<br />
“Nos estudos literários e culturais, nos dias de hoje, fala-se muito sobre <strong>teoria</strong><br />
— não <strong>teoria</strong> da literatura, veja bem; apenas “<strong>teoria</strong>” pura e simples. Para qualquer um<br />
fora do campo, esse uso deve parecer muito estranho. “Teoria do quê?” você gostaria de<br />
perguntar. É surpreendentemente difícil dizer. Não é a <strong>teoria</strong> de qualquer coisa em<br />
particular, nem uma <strong>teoria</strong> abrangente de coisas em geral. Às vezes, a <strong>teoria</strong> parece<br />
menos uma explicação de alguma coisa, do que uma atividade — algo que você faz ou<br />
não faz. Você pode se envolver com a <strong>teoria</strong>; pode ensinar ou estudar <strong>teoria</strong>; pode odiar<br />
a <strong>teoria</strong> ou temê-la. Nada disso, contudo, ajuda muito a entender o que é <strong>teoria</strong>.<br />
A “<strong>teoria</strong>”, nos dizem, mudou radicalmente a natureza dos estudos literários,<br />
mas aqueles que dizem isso não se referem à <strong>teoria</strong> <strong>literária</strong>, à explicação sistemática<br />
da natureza da literatura e dos seus métodos de análise. Quando as pessoas se queixam<br />
de que há <strong>teoria</strong> demais nos estudos literários nos dias de hoje, elas não se referem à<br />
demasiada reflexão sistemática sobre a natureza da literatura ou ao debate sobre as<br />
qualidades distintivas da linguagem <strong>literária</strong>, por exemplo. Longe disso. Elas têm outra<br />
coisa em vista.<br />
O que têm em mente pode ser exatamente que há discussões demais sobre<br />
questões não-<strong>literária</strong>s, debate demais sobre questões gerais cuja relação com a<br />
literatura quase não é evidente, leitura demais de textos psicanalíticos, políticos e<br />
filosóficos difíceis. A <strong>teoria</strong> é um punhado de nomes (principalmente estrangeiros); ela<br />
significa Jacques Derrida, Michel Foucault, Luce Irigaray, Jacques Lacan, Judith Butler,<br />
Louis Althusser, Gayatri Spivak, por exemplo.<br />
Então, o que é <strong>teoria</strong>? Parte do problema reside no próprio termo <strong>teoria</strong>, que faz<br />
gestos em duas direções. Por um lado, falamos de “<strong>teoria</strong> da relatividade”, por exemplo,<br />
[ou seja] um conjunto estabelecido de proposições. Por outro lado, há o uso mais<br />
comum da palavra <strong>teoria</strong>.<br />
“Por que Laura e Michel romperam?”<br />
“Bom, minha <strong>teoria</strong> é que ...”<br />
O que significa <strong>teoria</strong> aqui? Em primeiro lugar, <strong>teoria</strong> significa “especulação”.<br />
Mas uma <strong>teoria</strong> não é o mesmo que uma suposição. “Minha suposição é que ...”
sugeriria que há uma resposta correta, que por acaso eu não sei: “Minha suposição é<br />
que Laura se cansou das críticas de Michel, mas descobriremos com certeza quando<br />
Mary, a amiga deles, chegar aqui”. Uma <strong>teoria</strong>, por contraste, é especulação que poderia<br />
não ser afetada pelo que Mary diz, uma explicação cuja verdade ou falsidade ser difícil<br />
de demonstrar.<br />
“Minha <strong>teoria</strong> é que ...” também pretende dar uma explicação que não é óbvia.<br />
Não esperamos que o falante continue: “Minha <strong>teoria</strong> é que é porque Michel estava<br />
tendo um caso com Samantha”. Isso não contaria como uma <strong>teoria</strong>. Dificilmente é<br />
preciso perspicácia teórica para concluir que, se Michel e Samantha estavam tendo um<br />
caso, isso poderia ter tido alguma relação com a atitude de Laura para com Michel. O<br />
interessante é que, se o falante dissesse: “Minha <strong>teoria</strong> é que Michel está tendo um caso<br />
com Samantha”, de repente a existência desse caso torna-se uma questão de conjectura,<br />
não mais certa, e portanto uma possível <strong>teoria</strong>.mas geralmente, para contar com uma<br />
<strong>teoria</strong>, uma explicação não apenas não deve ser óbvia; ela deveria envolver uma certa<br />
complexidade: “Minha <strong>teoria</strong> é que Laura sempre esteve secretamente apaixonada pelo<br />
pai e que Michel jamais conseguiria se tornar a pessoa certa”. Uma <strong>teoria</strong> deve ser mais<br />
do que uma hipótese: não pode ser óbvia; envolve relações complexas de tipo<br />
sistemático entre inúmeros fatores; e não é facilmente confirmada ou refutada. Se<br />
tivermos esses fatores em mente, torna-se mais fácil compreender o que se entende por<br />
“<strong>teoria</strong>”.<br />
Teoria, nos estudos literários, não é uma explicação sobre a natureza da literatura<br />
ou sobre os métodos para seu estudo (embora essas questões sejam parte da <strong>teoria</strong> e<br />
serão tratadas aqui, (...). É um conjunto de reflexão e escrita cujos limites são<br />
excessivamente difíceis de definir. O filósofo Richard Rorty fala de um gênero novo,<br />
misto, que começou no século XIX: “Tendo começado na época de Goëthe, Macaulay,<br />
Carlyle e Emerson, desenvolveu-se um novo tipo de escrita que não é nem a avaliação<br />
dos méritos relativos das produções <strong>literária</strong>s, nem história intelectual, nem filosofia<br />
moral, nem profecia social, mas tudo isso combinado num novo gênero”. A designação<br />
mais conveniente desse gênero misturado é simplesmente o apelido <strong>teoria</strong>, que passou a<br />
designar obras que conseguem contestar e reorientar a reflexão em campos outros que<br />
não aqueles aos quais aparentemente pertencem. Essa é a explicação mais simples<br />
daquilo que faz com que algo conte como <strong>teoria</strong>. Obras consideradas como <strong>teoria</strong> têm<br />
efeitos que vão além de seu campo original.<br />
Essa explicação simples é uma definição insatisfatória, mas parece realmente<br />
captar o que aconteceu desde o decênio de 1960: textos de fora do campo dos estudos<br />
literários foram adotados por pessoas dos estudos literários porque suas análises da<br />
linguagem, ou da mente, ou da história, ou da cultura, oferecem explicações novas e<br />
persuasivas acerca de questões textuais e culturais. Teoria, nesse sentido, não é um<br />
conjunto de métodos para o estudo literário, mas um grupo ilimitado de textos sobre<br />
tudo o que existe sob o sol, dos problemas mais técnicos de filosofia acadêmica até os<br />
modos mutáveis nos quais se fala e se pensa sobre o corpo. O gênero da “<strong>teoria</strong>” inclui<br />
obras de antropologia, história da arte, cinema, estudo de gêneros, lingüística, filosofia,<br />
<strong>teoria</strong> política, psicanálise, estudos de ciência, história social e intelectual e sociologia.<br />
As obras em questão são ligadas a argumentos nessas áreas, mas tornam-se “<strong>teoria</strong>”<br />
porque suas visões ou argumentos foram sugestivos ou produtivos para pessoas que não<br />
estão estudando aquelas disciplinas. As obras que se tornam “<strong>teoria</strong>” oferecem<br />
explicações que outros podem usar sobre sentido, natureza e cultura, o funcionamento<br />
da psique, as relações entre experiência pública e privada e entre forças históricas mais<br />
amplas e experiência individual.
Se a <strong>teoria</strong> é definida por seus efeitos práticos, como aquilo que muda os pontos<br />
de vista das pessoas, as faz pensar de maneira diferente a respeito de seus objetos de<br />
estudo e de suas atividades de estuda-los, que tipo de efeitos são esses?<br />
O principal efeito da <strong>teoria</strong> é a discussão do “senso comum”: visões de senso<br />
comum sobre sentido, escrita, literatura, experiência. Por exemplo, a <strong>teoria</strong> questiona<br />
• a concepção de que o sentido de uma fala ou texto é o que o falante “tinha em mente”,<br />
• ou a idéia de que a escrita é uma expressão cuja verdade reside em outra parte, numa<br />
experiência ou num estado de coisas que ela expressa,<br />
• ou a noção de que a realidade é o que está “presente” num momento dado.<br />
A <strong>teoria</strong> é muitas vezes uma crítica belicosa de noções de senso comum; mais<br />
ainda, uma tentativa de mostrar que o que aceitamos sem discussão como “senso<br />
comum” é, de fato, uma construção histórica, uma <strong>teoria</strong> específica que passou a nos<br />
parecer tão natural que nem ao menos a vemos como uma <strong>teoria</strong>. Como crítica do senso<br />
comum e investigação de concepções alternativas, a <strong>teoria</strong> envolve um questionamento<br />
das premissas ou pressupostos mais básicos do estudo literário, a perturbação de<br />
qualquer coisa que pudesse ter sido aceita sem discussão: o que é sentido? O que é um<br />
autor? O que é ler? O que é o “eu” ou sujeito que escreve, lê ou age? Como os textos se<br />
relacionam com as circunstâncias em que são produzidos?<br />
O que é um exemplo de uma “<strong>teoria</strong>”? Ao invés de falar sobre a <strong>teoria</strong> em geral,<br />
vamos mergulhar direto em (...) textos difíceis (...) dos mais celebrados teóricos para ver<br />
se podemos entendê-los.” (Conferir: CULLER, Jonathan. Teoria Literária: Uma<br />
Introdução. Tradução de Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999: 11-14)<br />
Ler proposta de Jonathan Culler (op. cit.: 14-26) de dois casos<br />
relacionados, sobre <strong>teoria</strong>s contrastantes que envolvem críticas de<br />
idéias do senso comum sobre “sexo”, “escrita” e “experiência”: a<br />
<strong>teoria</strong> de A História da Sexualidade, de Michel Foucault, e a <strong>teoria</strong> de<br />
Confissões (livro escrito no século XVIII) de Jean-Jacques Rousseau,<br />
obra citada por Jacques Derrida (pós-estruturalista do século XX) em<br />
Of Grammatology, Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1976.<br />
“A <strong>teoria</strong> é intimidadora. Um dos traços mais desanimadores da <strong>teoria</strong><br />
hoje é que ela é infinita. Não é algo que você poderia algum dia dominar, nem<br />
um grupo específico de textos que poderia aprender de modo a “saber <strong>teoria</strong>”. É<br />
um corpus ilimitado de textos escritos que está sempre sendo aumentado à<br />
medida que os jovens e inquietos, em críticas das concepções condutoras de seus<br />
antepassados, promovem as contribuições à <strong>teoria</strong> de novos pensadores e<br />
redescobrem a obra de pensadores mais velhos e negligenciados. A <strong>teoria</strong> é,<br />
portanto, uma fonte de intimidação, um recurso para constantes roubos de cena:<br />
“O quê? Você não leu Lacan! Como pode falar sobre a lírica sem tratar da<br />
constituição especular do sujeito?” Ou “como pode escrever acerca do romance<br />
vitoriano sem usar a explicação que Foucault dá sobre o desenvolvimento da<br />
sexualidade e sobre a histerização dos corpos femininos e a demonstração que<br />
Gayatri Spivak faz do papel do colonianismo na construção do sujeito metropolitano?”<br />
Às vezes, a <strong>teoria</strong> se apresenta como uma sentença diabólica que condena você a<br />
leituras árduas em campos desconhecidos, onde mesmo a conclusão de uma tarefa trará
não uma pausa mas mais deveres difíceis. (“Spivak? Sim, mas você leu a crítica que<br />
Benita Parry faz de Spivak e a resposta dela?”)” (Conferir: CULLER, Jonathan. Teoria<br />
Literária: Uma Introdução. Trad.: Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999: 23-24)<br />
Texto humorístico: “Você é um terrorista? Graças a Deus. Entendi Meg dizer<br />
que você é um teorista?” (Conferir: CULLER, Jonathan. Teoria Literária:<br />
Uma Introdução. Tradução de Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999: 24)<br />
“A impossibilidade de dominar a <strong>teoria</strong> é uma causa importante de<br />
resistência a ela. Não importa quão bem versado você possa pensar ser, não pode<br />
jamais ter certeza se “tem de ler” ou não Jean Baudrillard, Mikhail Bakhtin,<br />
Walter Benjamin, Hélène Cixous, C.L.R. James, Melanie Klein ou Júlia Kristeva,<br />
ou se pode ou não esquecê-los com segurança. (Dependerá, naturalmente, de<br />
quem “você” é e quem quer ser). Grande parte da hostilidade à <strong>teoria</strong>, sem dúvida,<br />
vem do fato de que admitir a importância da <strong>teoria</strong> é assumir um compromisso<br />
aberto, deixar a si mesmo numa posição em que há sempre coisas importantes que<br />
você não sabe. Mas essa é uma condição da própria vida.<br />
A <strong>teoria</strong> faz você desejar o domínio: você espera que a leitura teórica lhe dê<br />
os conceitos para organizar e entender os fenômenos que o preocupam. Mas a<br />
<strong>teoria</strong> torna o domínio impossível, não apenas porque há sempre mais para saber,<br />
mas, mais especificamente e mais dolorosamente, porque a <strong>teoria</strong> é ela própria o<br />
questionamento dos resultados presumidos e dos pressupostos sobre os quais eles<br />
se baseiam. A natureza da <strong>teoria</strong> é desfazer, através de uma constatação de<br />
premissas e postulados, aquilo que você pensou que sabia, de modo que os efeitos<br />
da <strong>teoria</strong> não são previsíveis. Você não se tornou senhor, mas tampouco está onde<br />
estava antes. Reflete sobre sua leitura de maneiras novas. Tem perguntas<br />
diferentes a fazer e uma percepção melhor das implicações das questões que<br />
coloca às obras que lê.<br />
Essa brevíssima introdução não o transformará num mestre da <strong>teoria</strong>, e não<br />
apenas porque ela é muito breve, mas porque esboçam linhas de pensamento e áreas de<br />
debate significativas, especialmente aquelas que dizem respeito à literatura. Ela<br />
apresenta exemplos de investigação teórica na esperança de que os leitores achem a<br />
<strong>teoria</strong> valiosa e cativante e aproveitem para experimentar os prazeres da reflexão.”<br />
(Conferir: CULLER, Jonathan. Teoria Literária: Uma Introdução. Tradução de Sandra<br />
Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999: 24-25)<br />
1.2 - ESPECIFICIDADE DO LITERÁRIO (CIÊNCIA ANALÍTICA X CIÊNCIA FENOMENOLÓGICA)<br />
“A formação de um conceito para a palavra especificidade, pelo ponto de vista<br />
cientificista, um conceito que diligencia analisar apenas as linhas do enunciado (ou seja,<br />
os aspectos visíveis do texto), determina ao analista ou intérprete da literatura um<br />
entendimento fechado, estático e formal. A literatura (literatura-arte) torna-se<br />
simplesmente um objeto, não possibilita desenvolver uma apreciação reflexiva que<br />
revele o lado oculto do texto, elimina-se a idéia de compreensão das camadas profundas<br />
(isto em relação apenas ao texto-arte) uma vez que o pesquisador se vê obrigado a<br />
analisar rigorosamente apenas as camadas expressivas do discurso literário.<br />
Pelo ponto de vista fenomenológico, observa-se o texto-arte como um<br />
fenômeno, em princípio, estático, como é visto pelos cientificistas rigorosos, mas, logo<br />
a seguir, tal fenômeno torna-se dinâmico, graças à compreensão e ao conhecimento do<br />
leitor, quando este empreende um estudo consciente das mensagens interlineares,
mensagens reveladoras, produtoras de novos conhecimentos, mensagens que estarão<br />
sempre e sempre se renovando, pois, com o passar do tempo, novos leitores estarão<br />
também em comunhão anímica com tais textos (textos-arte, que fique bem entendido),<br />
desenvolvendo renovados diálogos ao longo dos séculos (pelo menos, enquanto tais<br />
textos existirem)”.<br />
(Neuza Machado, Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, no prelo)<br />
FENÔMENO aquilo que se manifesta [o já manifestado<br />
(estático) e o que ainda está se manifestando (dinâmico)]<br />
1.3 - TEORIA: CIENTIFICISMO X TEORIA: FENOMENOLOGIA (EDUARDO PORTELLA)<br />
POSICIONAMENTO CRÍTICO CONTRA A CRÍTICA DE BASE CIENTIFICISTA EM<br />
RELAÇÃO AOS TEXTOS LITERÁRIOS CONSIDERADOS ARTE<br />
“A partir do instante em que o pensamento ocidental fez a sua opção<br />
declaradamente científica, as outras formas de conhecimento, apreensão ou<br />
manifestação do real, foram sendo progressivamente desvalorizadas. Compreende-se:<br />
uma história escrita à imagem e semelhança dos modelos científicos guarda, no seu<br />
incontido unidimensionalismo, uma profunda indiferença para com as demais figuras de<br />
verdade. Todo o empenho dessa civilização cientificizante se foi concentrando na tarefa<br />
de desenvolver e aperfeiçoar uma técnica ─ a técnica da transformação do mundo. E de<br />
tal modo esse programa se impôs, que a nova bíblia decorrente chegou a considerar<br />
irrealtudo o que não fosse passível de transformação. A arte, imediatamente, passou a<br />
ser a pátria da irrealidade. Mas enquanto perdurou e perdura o homem, ela sobreviveu e<br />
sobrevive. Através de uma vida constantemente ameaçada, mas sobrevive. Porque o seu<br />
lugar na estruturação da existência humana não é um lugar supletivo ou acidental. A<br />
arte é dimensão fundadora do homem”. (Conferir: PORTELLA, Eduardo. Fundamento<br />
da Investigação Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974: 29-30)<br />
1.4 - POSICIONAMENTO CRÍTICO EM FAVOR DA FENOMENOLOGIA (E. PORTELLA)<br />
O DEVER DA CRÍTICA LITERÁRIA EM RELAÇÃO AO ESTUDO DA OBRA DE ARTE LITERÁRIA<br />
“Enquanto a ciência é, toda ela, uma redução à homogeneidade, a obra de arte se<br />
oferece como um conjunto heterogêneo. Mas heterogêneo precisamente pela força de<br />
atuação da linguagem; cujo desempenho fundamental consiste em promover<br />
permanentemente a abertura do sistema sígnico. E assim a crítica <strong>literária</strong> deve<br />
preservar a heterogeneidade para implicitar ou explicitar a verdade da obra. Deve<br />
crescer por dentro. O que somente será possível mediante a restauração da marca<br />
original do literário. O literário não é apenas discurso, porque dá origem ao discurso.<br />
Não fala; faz falar. É o pré-texto instaurando o entre-texto. Como penetrar nessa<br />
estrutura heterogênea? Não basta o conhecimento da estrutura específica de cada nível,<br />
da episteme de cada área. É imprescindível estar de posse de um saber integrado e<br />
integrador de toda a constelação elaborada pelo entre-texto. Perceber a dinâmica que<br />
alimenta as categorias fundadoras; estilo, individualidade, ambiente, forma, sons, todos<br />
os diferentes recursos da unificação da obra, já que toda essa complexa e matizada<br />
polivalia desemboca no único estuário unificador: a obra. A apreensão dessa<br />
disseminação terá de processar-se no interior da dialética deidentidade (linguagem, prétexto)<br />
e diferença (língua, texto)”. (Conferir: PORTELLA, Eduardo. Fundamento da<br />
Investigação Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974: 69-70)
1.5 - EXPLICAÇÃO DO TERMO CRÍTICA<br />
DEFINIÇÃO E OBJETIVO<br />
CRÍTICA (Etimologia):<br />
“O termo crítica deriva do grego KRÍNEIN, que significa “julgar”, através do<br />
feminino da forma latina CRITICU(M). KRITÉS significa “juiz” e KRITIKÓS, “juiz” ou<br />
“censor literário”.<br />
“A palavra crítica, ou qualquer de seus sinônimos, enriqueceu-se de sentido e<br />
tornou-se universalmente aceita como designativo de análise, interpretação e julgamento<br />
da obra de arte, ou de objetos paralelos (crítica da situação econômica, crítica do<br />
progresso científico, etc.), ou ainda indicativo dos modos de julgar (crítica histórica,<br />
crítica oral, crítica jurídica, etc.).<br />
Em razão da elasticidade semântica adquirida, a palavra também recorre no diaa-dia<br />
para emoldurar juízos ou opiniões a favor ou contra [designação errada].<br />
No curso do tempo, aos poucos o vocábulo crítica veio ganhando significados<br />
novos, até chegar à indeterminação semântica dos nossos dias (abarca atividades<br />
múltiplas e diferenciadas: desde artigos de jornal à tese universitária, passando pelas<br />
monografias, ensaios, artigos de revista, conferências, etc., tudo recebe indistintamente<br />
o apelativo de crítica. Como se não bastasse, aglutina-se a atividades vizinhas, numa<br />
inter-relação verdadeiramente labiríntica; a historiografia <strong>literária</strong>, que possui métodos e<br />
objetivos próprios, não dispensa o suporte da crítica; a análise <strong>literária</strong> conduz<br />
necessariamente à crítica e dela recolhe esclarecimentos, etc.).” (Conferir: MOISÉS,<br />
Massaud. A criação <strong>literária</strong>. 5. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1973: 289-290)<br />
1.6 - OBJETIVO DA CRÍTCA LITERÁRIA (visão cientificista)<br />
“Para a crítica <strong>literária</strong> o que interessa é averiguar os processos literários que o<br />
autor empregou para traduzir a sua visão de mundo”. (Massaud Moisés, Ibidem)<br />
1.7 - CRÍTICA LITERÁRIA E TEORIA LITERÁRIA<br />
A CRÍTICA COMO CONSCIÊNCIA DO FATO LITERÁRIO (Visão fenomenológica)<br />
“O conhecimento literário não pode prescindir de uma base teórica, que o<br />
sustente sem limitá-lo, que o livre dos “achismos”, sem confiná-lo numa única<br />
perspectiva.” (Conferir:<br />
FATO coisa ou ação feita;<br />
caso;<br />
acontecimento;<br />
feito;<br />
aquilo que realmente existe, que é real;<br />
FENÔMENO (Filosofia).<br />
TEORIA LITERÁRIA fornece elementos para a apreensão do<br />
FENÔMENO LITERÁRIO.<br />
A aprendizagem teórica não pode estar desvinculada do contato profundo e constante com o texto literário.<br />
A <strong>teoria</strong> nasce do texto e para ele se volta. O texto literário guarda a <strong>teoria</strong>, implícita ou explicitamente.<br />
TEORIA E CRÍTICA inter-relação teórico-analítica para o reconhecimento do texto literário.
LITERATURA caracteriza-se pela pluralidade de sentidos.<br />
TEORIA LITERÁRIA aberta às múltiplas dimensões do seu objeto<br />
de estudo (a Literatura).<br />
TEORIA LITERÁRIA caráter interdisciplinar e, ao mesmo tempo,<br />
independente.<br />
“A Teoria Literária assume um caráter interdisciplinar porque assimila os<br />
conhecimentos de ciências afins tais como a sociologia, a antropologia, a lingüística, a<br />
história, a psicanálise, todas voltadas igualmente para manifestações do ser e do fazer<br />
humanos. Este inter-relacionamento amplia e enriquece o estudo da Literatura. (...) A<br />
crítica, qualquer que seja a via de acesso escolhida (sociológica, psicológica,<br />
lingüística...), não pode descartar-se de sua dupla feição: enquanto crítica obedecerá a<br />
um rigor, que lhe é garantido pelo método de abordagem e, enquanto <strong>literária</strong>, incluirá<br />
literariamente o sentido que, na literatura, ultrapassa o campo do conhecimento com o<br />
qual se articulou, na construção do modelo de leitura.” (Conferir: SOARES, Angélica<br />
Maria. “A Crítica”. In: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis:<br />
Vozes: 90-91)<br />
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA LITERÁRIA<br />
1) TEORIA LITERÁRIA Disciplina de configuração autônoma (porém de caráter<br />
interdisciplinar).<br />
CRÍTICA *pratica concretamente o<br />
sistema de ensino de<br />
literatura<br />
TEORIA<br />
(NÚCLEO)<br />
MÉTODO * TEORIA suporte para ensinar<br />
literatura<br />
LIMITES DA TEORIA LITERÁRIA Teoria: Não pode desequilibrar as relações de<br />
poder das outras disciplinas <strong>literária</strong>s (limite<br />
que não pode ser violado).<br />
Limites: Impedem que a Teoria Literária se<br />
transforme numa disciplina dominadora e<br />
repressiva.<br />
2) ALARGAMENTO INTERDISCIPLINAR É uma natural conseqüência do seu<br />
progresso técnico.
METODOLOGIA ALTERNADA:<br />
*<br />
ANTROPOLOGIA TEXTO LITERÁRIO<br />
LINGÜÍSTICA<br />
PSICOLOGIA *Disciplinas aparentemente dissociadas<br />
DIREITO<br />
SOCIOLOGIA<br />
SEMIOLOGIA<br />
FILOSOFIA<br />
HERMENÊUTICA<br />
ANTROPOLOGIA<br />
ETC.<br />
* União para a DECIFRAÇÃO do enigma do homem.<br />
TEORIA LITERÁRIA<br />
(Ponto de vista de Eduardo Portella, na década de setenta – Livro de Portella: Teoria<br />
Literária, editora Tempo brasileiro)<br />
INVESTIGAÇÃO LITERÁRIA = CRÍTICA LITERÁRIA<br />
1.8 - RETROSPECTIVA: A NATUREZA DO FENÔMENO LITERÁRIO<br />
“Há inúmeras correntes teórico-críticas formalizando idéias de como interagir<br />
com o texto literário; há formas teórico-críticas cientificistas de como recortar o texto,<br />
seja ele paraliterário ou texto-arte, e deter-se em um dos referentes, para investigá-lo,<br />
mas, subentendido, os outros dois sempre estarão presentes. É importante que os três<br />
referentes estejam sempre interligados, para que o leitor possa desenvolver uma análise<br />
consciente do que se encontra visível no objeto de sua investigação (ponto de vista<br />
cientificista). Mas, o entendimento e/ou reconhecimento das entrelinhas (o que se<br />
encontra invisível no texto-arte), desenvolvido por intermédio do CONHECIMENTO<br />
particular de cada leitor (ponto de vista fenomenológico), é algo que a investigação<br />
cientificista não poderá alcançar.”<br />
(Neuza Machado, Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, no prelo)<br />
TEXTO = HOMEM + REALIDADE + EXPRESSÃO<br />
TODO TEXTO É O RESULTADO DE UMA LEITURA<br />
LEITOR + TEXTO = relação objetiva e subjetiva.<br />
LEITURA = PRODUTIVIDADE (enquanto modalidade de relação radical do homem com a realidade)<br />
TEXTO = elaboração humana, trabalho<br />
TRABALHO = ação humana (pela qual o homem textualizando, significando o real se significa)
Por um lado:<br />
Esta elaboração humana só encontra sua plenitude na medida em que ao elaborar ele<br />
colabora (pressupõe o outro, socializa)<br />
TEXTO<br />
Ação =<br />
significativa<br />
TRABALHO<br />
ação humana: “o homem, textualizando, significando o real<br />
se significa”.<br />
ação humana: “ao elaborar (o texto como trabalho) o<br />
homem co-labora (pressupõe o outro, socializa-se)<br />
LEITURA<br />
“supõe colaboração, porque o texto não se lê, o instrumento não se lê”;<br />
“pressupõe o outro”;<br />
“pressupõe colaboração”.<br />
Por outro lado:<br />
Tal noção evidencia que o texto não se limita ao escrito, implicando sobretudo o oral.<br />
Uma fotografia, uma estátua, um instrumento, etc., é um texto / expressa uma relação do<br />
homem com o real.<br />
Entre tantas modalidades de texto, quando um texto é especificamente literário?<br />
UNIDADE II<br />
(LITERÁRIO AQUI = LITERATURA-ARTE)<br />
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA LITERÁRIA: CARACTERES (CARÁTERES) INTERDISCIPLINARES<br />
2.1 - O ATUAL CARÁTER INTERDISCIPLINAR DA TEORIA LITERÁRIA<br />
“A Teoria Literária assume um caráter interdisciplinar porque assimila os<br />
conhecimentos de ciências afins tais como a sociologia, a antropologia, a lingüística, a<br />
história, a psicanálise, todas voltadas igualmente para manifestações do ser e do fazer<br />
humanos. Este inter-relacionamento amplia e enriquece o estudo da Literatura. (...) A<br />
crítica, qualquer que seja a via de acesso escolhida (sociológica, psicológica,<br />
lingüística...), não pode descartar-se de sua dupla feição: enquanto crítica obedecerá a<br />
um rigor, que lhe é garantido pelo método de abordagem e, enquanto <strong>literária</strong>, incluirá<br />
literariamente o sentido que, na literatura, ultrapassa o campo do conhecimento com o<br />
qual se articulou, na construção do modelo de leitura”. (Conferir: SOARES, Angélica<br />
Maria. “A Crítica”. In.: SAMUEL, R. (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis:<br />
Vozes, 1999: 90-91)
2.2 - CRÍTICA DE EDUARDO PORTELLA SOBRE AS TERMINOLOGIAS TEORIA DA<br />
LITERATURA E TEORIA LITERÁRIA<br />
“O estudo moderno da literatura fez emergir, e potencializou progressivamente,<br />
uma disciplina portadora de movimentada biografia, ou de honrosa ascendência, a que<br />
se vem chamando indiscriminadamente de Teoria Literária ou Teoria da Literatura.<br />
Trata-se de disciplina estruturalmente ambígua, irresistivelmente interdisciplinar, ao<br />
mesmo tempo autônoma e supletiva.<br />
Preferimos a primeira opção terminológica porque, se Teoria da Literatura diz<br />
nominalmente todo e qualquer conceito que se dirige ou se aplica ao texto poético,<br />
Teoria Literária é antes uma modalidade reflexiva que surge ou se instala a partir do<br />
literário.<br />
Essa pequena controvérsia terminológica seria irrelevante se não escondesse ou<br />
abrigasse um entendimento da própria matéria. A interdisciplinariedade (sic) referida foi<br />
se ampliando de tal maneira que se transformou numa interdisciplinariedade,<br />
estabelecendo estranho contraponto onde se observa de um lado a orgia teórica e do<br />
outro a insensibilidade <strong>literária</strong>. O novo saber começou correndo o risco de se converter<br />
num departamento menor de instituições maiores, especialmente da Lingüística, da<br />
Antropologia e da Psicologia. E a ânsia de objetividade incrustada no modelo cultural<br />
da nossa era estimulou e promoveu essas conexões aprisionadoras. Do mesmo modo, e<br />
como conseqüência, tiveram de processar a condenação da Estética. Mas a demissão da<br />
Estética se apresentava por meio de raciocínios simplificados que, ao contrário de<br />
mostrar os sinais do cadáver apodrecido, deixava aparecer um corpo pleno de vida e<br />
múltiplas vibrações. Aquela Estética proclamada morta talvez só tenha existido na<br />
decodificação insuficiente de leitores desinformados.<br />
A arte permanece como uma modalidade do real. E o processo diferenciante<br />
passa a ter sentido se admitimos que nem toda realidade é arte. Descrever a diferença da<br />
arte na identidade do real, faz parte ou indica uma problemática que escapa à visão<br />
míope da funcionalidade. É justamente em meio a essa tensão infindável que o entretexto<br />
proclama a sua autonomia. Entre-textualizar quer dizer autonomizar”. (Conferir:<br />
PORTELLA, Eduardo. Fundamento da Investigação Literária. Rio de Janeiro: Tempo<br />
Brasileiro, 1974: 151 - 152)<br />
“Tenho uma tendência pouco freqüente a celebrar a especialização. Houve época<br />
em que cheguei a celebrar a especialização, porque imaginava que se as disciplinas se<br />
verticalizassem, se salvariam. Progressivamente, porém, fui percebendo que as<br />
disciplinas se fechavam em guetos, que com isso mesmo elas não perceberam que o<br />
saber dispõe de uma estrutura plural, que era fundamental estabelecer alianças,<br />
parcerias, modalidades de cooperação pluridisciplinar para que elas pudessem ressurgir.<br />
Então, neste caso específico, a interdisciplinaridade não constitui um espaço de abrigo,<br />
de proteção, mas uma base de lançamento: é por ali que os conhecimentos em crise<br />
circularão. Os conhecimentos que precisam de novas alianças para se reerguerem se<br />
encontrarão.<br />
A transdisciplinaridade, contudo, só desponta no cenário intelectual a partir de<br />
um determinado período ao longo de 30 anos, os 30 anos de 1968. Inicialmente, até<br />
1968, houve o império da análise estilística nos estudos literários. A análise estilística já<br />
foi vanguarda.já tinha sido pouco antes a “nova crítica” e, com a chegada de 1968,<br />
irrompeu uma espécie de desconstruçionismo ambicioso, que invadiu as margens<br />
dediferentes áreas do conhecimento. Ele invadiu também a área do saber literário e, com<br />
isso, prestou alguns serviços, ao desmontar alguns sistemas altamente instalados.<br />
Instalados de maneira inflexível, como se não houvesse lugar para certas
permeabilidades, coabitações, regimes de convivência. Com a descontração, geramos<br />
alguns paradigmas desconstrucionistas. Esses paradigmas tiveram um papel<br />
fundamental, na medida em que contribuíram para desestabilizar um conjunto de<br />
princípios rigidamente constituídos. A chegada, portanto, desse esforço de<br />
desconstrução teve um papel essencial ─ o de abalar nossas certezas.<br />
Todos sabem que nós vivemos, em alguns instantes quase dramaticamente, esse<br />
tipo de transformação. Mas, de qualquer maneira, absorvemos com serenidade a<br />
avalanche do desconstrucionismo e, ao mesmo tempo, fomos capazes de procurar saídas<br />
para o impasse que ele gerou. Porque após duas, três gerações, não se pode mais viver<br />
só de desconstruir. Me parece que hoje, 30 anos depois, nós já podemos dizer basta à<br />
desconstrução. Ela desempenhou um papel histórico fundamental, ela contribuiu<br />
inegavelmente para alterar certo regime de propriedade intelectual. Mas, já precisamos,<br />
nesse final de milênio, nesse final de reconstrução de uma história perplexa, e de uma<br />
história seguramente incerta, nós precisamos rever este conjunto de princípios que<br />
fizeram a glória da desconstrução.<br />
Nesse (Naquele) período de domínio total da desconstrução, um grupo de<br />
pessoas tentou fazer uma leitura hermenêutica da literatura. Essa leitura não tinha a<br />
menor aceitação no quadro de trabalho então vigente. Era considerada uma inutilidade,<br />
ou uma aberração, ou uma imprudência teórica, ou as três coisas simultaneamente.<br />
Porque essa nova modalidade de interpretação significava uma espécie de núcleo de<br />
resistência a essa voracidade formalizadora. Era o período em que a lingüística<br />
modelizava para todas as outras disciplinas.<br />
Lembro-me que a sociologia se amparou enormemente na lingüística. Que<br />
disciplinas complexas, como a neurologia ou como a própria filosofia, em certos<br />
instantes, começaram a modelizar em função dos parâmetros científicos dispostos pela<br />
lingüística. O momento era residualmente de combate ao impressionismo e aquelas<br />
possibilidades de formalização eram extremamente bem-sucedidas e bem recebidas.<br />
Evidentemente, neste quadro de predominância dos modelos formalizantes,<br />
representados sobretudo pelo estruturalismo, aliado, mais do que aliado, da lingüística, a<br />
proposta hermenêutica era considerada de pouca cientificidade, de capacidade reduzida<br />
para dar conta de uma relação mais objetiva com o texto.” (Conferir: PORTELLA,<br />
Eduardo. “Os Paradigmas do Silêncio”. In: LOBO, Luiza (Org.). Globalização e<br />
Literatura. Discursos Transculturais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999: 11-13)<br />
“A partir do esforço de verticalização, quando a consciência crítica da literatura<br />
assumiu o comando dos estudos literários, deixando de lado o palpite emocionado mas<br />
ingênuo, a investigação <strong>literária</strong> registrou algumas atitudes básicas, importantes.<br />
A primeira tomada de posição aconteceu com a chamada NOVA CRÍTICA, que<br />
abrigava vários tipos de análise <strong>literária</strong>, desde a análise estilística alemã ou espanhola<br />
até o new criticism anglo-americano.<br />
A segunda opção crítica [filológica], embora podendo ser enlaçada com a<br />
primeira, identifica-se por um rigor sistemático e por uma amplitude de visão, que<br />
justifica plenamente o tratamento autônomo (isto, quando exercida por representantes<br />
da força criadora de um Leo Spitizer, de um Erich Auerbach, de um Damaso Alonso, de<br />
um Hugo Friedrich).<br />
O terceiro momento tem na Lingüística o seu modelo e o seu padrão de<br />
verdade.” (Conferir: PORTELLA, Eduardo. “Limites Ilimitados da Teoria Literária”. In.:<br />
PORTELLA, Eduardo (org.). Teoria Literária. R. J.: Tempo Brasileiro, 1977: 9)
2.3 - CRÍTICA E HISTÓRIA LITERÁRIA<br />
“Crítica e História Literária são encaradas atualmente de muitas perspectivas.<br />
Em meio aos múltiplos ensaios e posições teóricas torna-se cada vez mais difícil abrir<br />
um caminho de apreensão e compreensão mínima, não só do objeto como das próprias<br />
metodologias. É que, a par das múltiplas pesquisas de que resulta uma bibliografia<br />
numerosa, muitas vezes de difícil acesso, elabora-se uma nomenclatura especialíssima.<br />
Sucede então que em vez de aquelas esclarecerem cada vez mais o objeto pesquisado,<br />
tem-se um resultado inverso. Acresce que a mudança constante deixa o leitor<br />
interessado – o qual procura um acesso a tal conhecimento, confuso e desanimado. De<br />
fato, nem sempre isto é inevitável, porque o conhecimento do literário se constitui cada<br />
vez mais crítica e reflexivamente.” (Conferir: CASTRO, Manuel Antônio de. “Crítica e<br />
História Literária”. In.: PORTELLA, Eduardo (Org.) Teoria Literária. Rio de Janeiro:<br />
Tempo Brasileiro, 1975:19)<br />
HISTÓRIA LITERÁRIA SUPÕE UM ENFOQUE TEÓRICO-CRÍTICO.<br />
*A posição crítica resulta de uma teorização do que seja determinado objeto.<br />
*A <strong>teoria</strong> <strong>literária</strong>, ao teorizar sobre o objeto (obra <strong>literária</strong>), automaticamente institui<br />
um método, decorrente da própria <strong>teoria</strong> e do objeto de enfoque.<br />
TEORIA OBJETO<br />
MÉTODO<br />
MÉTODO caminho para<br />
REALIZAÇÃO METODOLÓGICA (se pode dar em forma de):<br />
*proposições (teorizações);<br />
*forma prática (ensaios, história <strong>literária</strong>)<br />
Partindo do princípio de que não há prática sem <strong>teoria</strong>, “acontece muitas vezes que a<br />
prática é uma <strong>teoria</strong> que se desconhece. Temos assim, inevitavelmente, um primeiro<br />
nível de relacionamento entre Crítica e História Literária.”(Conf.: CASTRO, op.cit.: 19)<br />
2.4 - CRÍTICA E SOCIEDADE<br />
DICIONÁRIO:<br />
CRÍTICA<br />
Faculdade de examinar e/ou julgar as obras do espírito, em particular as de<br />
caráter literário ou artístico;<br />
A expressão da crítica, em geral por escrito, sob forma de análise, comentário<br />
ou apreciação teórica e/ou estética;<br />
Discussão dos fatos históricos;<br />
O conjunto daqueles que exercem a crítica; os críticos;<br />
Juízo crítico; discernimento; critério;<br />
Apreciação minuciosa, julgamento;<br />
SOCIEDADE<br />
Agrupamento de seres que vivem em estado gregário (sociedade humana;<br />
sociedade de abelhas; etc.);
Conjunto de pessoas que vivem em certa faixa de tempo e espaço, seguindo<br />
normas comuns, e que são unidas pelo sentimento de consciência do grupo; CORPO<br />
SOCIAL (a sociedade medieval; a sociedade moderna; etc.);<br />
Grupo de indivíduos que vivem por vontade própria sob normas comuns;<br />
COMUNIDADE (sociedade cristã; sociedade dos hippies);<br />
Meio humano em que o indivíduo se encontra integrado (A sociedade<br />
constitui-se de classes de diferentes níveis);<br />
Relação entre pessoas; vida em grupo; participação; convivência;<br />
comunicação (O homem precisa da sociedade dos seus semelhantes);<br />
Reunião de indivíduos que mantêm relações sociais e mundanas (os prazeres<br />
da sociedade; homem de sociedade);<br />
Grupo de pessoas que se submetem a um regulamento a fim de exercer uma<br />
atividade comum ou defender interesses comuns (agremiação; centro; grêmio;<br />
associação [Sociedade brasileira de autores teatrais; Sociedade protetora dos animais,<br />
etc.] );<br />
Companhia de pessoas que se agrupam em instituições ou ordens religiosas;<br />
Parceria; associação;<br />
Etc.<br />
2.5 - O PERCURSO HISTÓRICO DA CRÍTICA LITERÁRIA<br />
• As primeiras manifestações no final do século XIX: Crítica Biográfica<br />
(Romantismo); Crítica Impressionista (Impressionismo) e Crítica Determinista<br />
(Realismo/Naturalismo): “O século XIX tem uma especial importância, pois é<br />
quando nascem as principais idéias e ciências que vão formar o século XX. No<br />
século XIX aparecem Hegel e Marx, o positivismo e o evolucionismo. A razão, a<br />
racionalidade desta época atinge o máximo de seu apogeu com o capitalismo<br />
europeu. (...) O século XIX assiste ao nascimento de um conflito teórico prático até<br />
agora não superado, e modificou o velho mundo: as idéias liberais e neoliberais<br />
democráticas da burguesia ocidental predominaram. Correntes filosóficas<br />
fundamentavam dois tipos de <strong>teoria</strong> <strong>literária</strong>, dois modos de ler o texto, um<br />
tradicional e o outro prospectivo, que tinha os olhos no futuro, nas transformações<br />
sociais.” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis:<br />
Vozes, 2002: 61-62);<br />
“Século XIX no Brasil. No Brasil havia um ambiente de estagnação intelectual,<br />
salvo pelo gênio de uns poucos críticos extraordinariamente ativos, como Tobias<br />
Barreto (1839-1889), que superava a sua época. Tobias Barreto revolucionava e<br />
escreveu grandes obras – hoje desconhecidas. // O meio cultural do Brasil persistia<br />
reacionário, não aceitando nada que exigisse algum esforço de compreensão ou que<br />
lhe mudasse o gosto, a idéia.” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria<br />
Literária. Petrópolis: Vozes, 2002: 73);<br />
• O Formalismo Russo (Círculo Lingüístico de Moscou, 1914): “Caracterizando-se<br />
pela recusa aos elementos extratextuais, como fonte de explicação da obra <strong>literária</strong>,<br />
através de seu método descritivo e morfológico (Eikhenbaun), os formalistas vão<br />
procurar distinguir, no próprio texto, as características que o tornam literário, a sua<br />
literariedade. Conferir: SOARES, Angélica Maria. “A Crítica”. In.: SAMUEL, Rogel<br />
(Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1999: 95);<br />
“A primeira notícia que se dá sobre o Formalismo Russo diz que nasceu no Círculo<br />
Lingüístico de Moscou (1914-1915) e durou até 1924-25, quando o patrulhamento<br />
ideológico bruscamente interrompeu suas pesquisas, não sem o fuzilamento de
alguém, como o do lingüísta Polivanov. Nessa época foi fundada a Associação para<br />
o estudo da linguagem poética, chamada de Opaiaz, que também não escapou ao<br />
início do stalinismo. Não era para estranhar: o chefe do formalismo, Chklovski,<br />
atacava o marxismo. (...) // Os que deixaram trabalhos pioneiros foram Chklovski,<br />
Eikhenbaurn, Jakobson e Tinjanov. A grafia destes nomes varia muito, e a<br />
pronúncia geralmente se desconhece: Jakobson disse que seu nome se dizia<br />
/Jacobêu/. (...) // A literatura, entretanto, é explicada no formalismo como uma<br />
função da linguagem, a função poética: que dá ênfase à própria mensagem (uma<br />
contradição, já que se omitia o estudo da mensagem).” (Conferir: SAMUEL, Rogel.<br />
Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 2002: 78-79);<br />
• Opoiaz (Associação Para o Estudo da Linguagem Poética, 1917): “Um movimento<br />
de crítica <strong>literária</strong>, estreitamente ligado aos movimentos artísticos de vanguarda” e<br />
ao Formalismo Russo. (Conferir: SOARES, Angélica Maria. “A Crítica”. In.:<br />
SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1999: 95);<br />
• A Dialética Hegeliana: A Fenomenologia do Espírito de Hegel é um texto que só<br />
deve ser compreendido na integralidade de seu método (o sistema é um todo, ou “o<br />
verdadeiro é o todo”*, dizia ele), em que um fato gerador é racionalmente verificado<br />
como matriz de uma determinada forma de pensar o mundo, e qulquer parte se torna<br />
obscura se não for vista como parte dele. O sistema da ciência – como diz Hegel,<br />
denominaria a atividade filosófica – tem unidade interna que tudo sistematiza, e<br />
quem se propõe a pensar sem sistema, não faz ciência, apenas emite opiniões e<br />
convicções, como na cultura de massa, opiniões que só se justificariam dentro de um<br />
conteúdo sistemático que tem um princípio, ou seja, aquilo que determina tudo o<br />
mais na construção da grade lógica. O sistema hegeliano, tal como se apresenta na<br />
Fenomenologia, é um círculo que se fecha sobre uma totalidade, mas se abre à<br />
contingência, ao não-necessário; e também se abre à liberdade, à revolução, pois é<br />
filho da Revolução Francesa, e Hegel foi o primeiro a submeter a dialética da<br />
filosofia à História. Além disso, a liberdade em Hegel significa poder ser, e tal<br />
sistema deve conter em si uma capacidade, na medida em que nele sejamos<br />
conduzidos a ver que nós produzimos o saber ou, dito de outro modo, na medida em<br />
que descubramos que a realidade é produzida por nós mesmos, como na Democracia<br />
Representativa.” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária.<br />
Petrópolis: Vozes, 2002: 63-64). *NOTA DE ROGEL SAMUEL: HEGEL.<br />
Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, p. 31. Tradução de Paulo Meneses.<br />
• Estilística: um ramo da Ciência da Linguagem (apogeu: anos 30/40): “Charles<br />
Bally (!865-1947), discípulo de Saussure,foi quem primeiramente colocou a<br />
estilística como ramo da ciência da linguagem. Ele propõe uma estilística<br />
fundamentalmente lingüística, ainda não voltada para os aspectos da função estética<br />
da língua <strong>literária</strong>”. (Conferir: SOARES, Angélica Maria. “A Crítica”. In: SAMUEL,<br />
Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1999: 98-99).<br />
• Nietzsche e a Crítica dos Valores: “A crítica (toda a filosofia de Nietzsche é<br />
crítica) determina conceitos de valor, noção de valor que implica num certo<br />
investimento crítico contra: 1) de um lado, os valores aparecem como princípios<br />
pressupostos (existindo como tais); 2) de outro lado, ao contrário, contra valores de<br />
que derivam avaliações, “pontos de vista de apreciação”, de onde esates valores<br />
derivam (são fenômenos criados). Estas avaliações não são valores, mas maneiras de<br />
ser, modos de vida daqueles que julgam, avaliam e criam seus próprios princípios<br />
sobre os quais são construídos os valores (a democracia, o socialismo). / A filosofia<br />
crítica de Nietzsche* tem dois movimentos inseparáveis: todas as coisas e todas as
origens de qualquer valor se referem a valores, para depois referir estes valores a<br />
outra coisa que seja a origem (dos valores) e que decida o valor (dos valores), como<br />
o “bem” e o “mal”. (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária.<br />
Petrópolis: Vozes, 2002: 70);<br />
(* NOTA DE ROGEL SAMUEL: DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie.<br />
Paris: PUF, 1983, 282 p.)<br />
• O New Criticism norte-americano dos anos quarenta do século XX: “Na década<br />
de 30 surgiu, nos Estados Unidos, o New Criticism (Nova Crítica) / O new criticism<br />
acabou com a crítica que se publicava nos jornais, acusada de impressionista, de<br />
não-científica. Passou a ser exercida unicamente pelos professores universitários,<br />
que só deviam ver os elementos “intrínsecos”, formais, sendo abolidas as<br />
verificações “extrínsecas”, históricas e sociológicas. // Os próprios escritores<br />
tiveram máxima influência naquele momento, dentre eles Paul Valéry, Ezra Pound,<br />
Henry James, T. S. Eliot. / Acreditava-se que a crítica podia ser produto da<br />
experiência. Eliot dizia: “A crítica honesta e a sensibilidade <strong>literária</strong> não se<br />
interessam pelo poeta, e sim pela poesia”. (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo<br />
Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 2002: 81);<br />
“A nova crítica se propõe a romper com a hermenêutica (interpretação de texto),<br />
com a ontologia (estudo metafísico ou do ser), com a filologia (interpretação a partir<br />
de figuras de linguagem previamente dadas) e com a leitura de texto que empresta a<br />
este a noção de “intenção do autor” ou se rege pelo perfil biográfico do mesmo.<br />
Dentro de uma noção de autonomia do texto estético, a nova crítica propõe para o<br />
texto poético uma “leitura microscópica” (close reading), isto é, imanente do texto<br />
literário, com uma análise a partir do significado do próprio texto, e não de um<br />
contexto histórico, biográfico ou externo a ele, como seria o caso também de uma<br />
leitura de fontes. A obra é o próprio testemunho do autor. / O crítico busca portanto<br />
os significados denotativos e conotativos das palavras, ambigüidades tensões de<br />
vocábulos e sintagmas, imagens, metáforas e símbolos dominantes ou recorrentes,<br />
processos retóricos na composição de cada gênero a partir do enredo, personagens,<br />
atmosfera, temas principais e secundários. Na “leitura microscópica” o crítico se<br />
aproxima do texto com objetividade e precisão, como um anatomista que estuda o<br />
tecido ao microscópio, embora sem esquecer do aspecto humano da obra. A ênfase<br />
está no objeto analisado, a obra, e não no sujeito que a analisa, ou mesmo nas<br />
origens e efeitos daquela. (...) / O objetivo da nova crítica é aproximar o crítico do<br />
texto poético e afastá-lo da interpretação ontológica ou hermenêutica, que especula<br />
sobre a essência, ou da interpretação sociológica ou histórica, que extrapola os<br />
limites do texto.” (Conferir: LOBO, Luíza. “A Crítica”. In.: SAMUEL, Rogel (Org.).<br />
Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1999: 102-104);<br />
• A Nova Crítica Americana no cenário cultural brasileiro dos anos 50/60 do<br />
século XX: “As proposições teóricas da Nova Crítica foram introduzidas no Brasil<br />
por Afrânio Coutinho. Sua atividade infatigável, de um verdadeiro profissional das<br />
Letras e não um mero diletante, provocou uma renovação dos estudos críticos<br />
literários e abriu-lhe novos rumos. Entre os numerosos escritos destaca-se A<br />
literatura no Brasil, onde pôs em prática os princípios da Nova Crítica.”. (Conferir:<br />
CASTRO, Manuel Antônio de. “Crítica e História Literária.”. In: PORTELLA,<br />
Eduardo (Org.) Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975:31);<br />
• E Estruturalismo: Reunião de pesquisas analítico-cientificistas (anos 50/60 do<br />
século XX - Modelos de Análise; Gramática Geral da Narrativa): “Trazendo a<br />
herança do Formalismo Russo e recebendo a influência do grande desenvolvimento
que tiveram os estudos lingüísticos, com a publicação póstuma do Cours de<br />
linguístique générale (1916) do genebrino Ferdinand de Saussure (no qual Bally e<br />
Sechehaye reuniam anotações de aula de três cursos do mestre), aparecem, sob o<br />
rótulo do estruturalismo, pesquisas diversas sobre a análise do texto literário, toas<br />
elas guiadas pelo reconhecimento da obra como uma estrutura, isto é, um sistema de<br />
relações, um todo formado de elementos solidários, tais que cada um depende dos<br />
outros e não pode ser o que é, senão devido à relação que têm uns com os outros.<br />
Cada elemento teria uma maneira de ser funcional, determinada pela organização do<br />
conjunto e, conseqüentemente, pelas leis que a regiam. Apreendendo-se o texto<br />
literário como estrutura verbal, essas leis eram buscadas na lingüística e, a partir<br />
delas, criaram os estruralistas, desde os primeiros trabalhos de Roland Barthes<br />
(1915-1980) ou de Tzvetan Todorov, modelos de análise que conduziam a uma<br />
possível gramática geral da narrativa”. (Conferir: LOBO, Luíza. “A Crítica”. In.:<br />
SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1999: 104-<br />
105);<br />
• Sociologia da Literatura: “Lukács estuda a forma romanesca caracterizando a<br />
existência de um herói problemático, isto é, o romance seria a história de uma<br />
investigação degradada (ou demoníaca), pesquisa de valores autênticos num mundo<br />
inautêntico (degradado). E se caracterizaria pela ruptura insuperável entre este herói<br />
e o mundo, quando se dariam duas degradações: a do herói e a do mundo.”<br />
(Conferir: SAMUEL, Rogel. “A Crítica”. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de<br />
Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1999: 108-109);<br />
• Semiologia da Literatura: “A Semiologia (também chamada num sentido<br />
filosófico, semiótica) é a ciência dos signos. Seu criador foi C. S. Peirce (1839-<br />
1914), que definiu o signo como um primeiro que mantém com um segundo,<br />
chamado objeto, uma relação triádica capaz de determinar um terceiro, o<br />
interpretante do sentido do signo. Ou seja, um signo se traduz por outro signo, no<br />
qual se desenvolve. / O interpretante do signo na mente das pessoas se forma<br />
quando elas se encontram em relação de comunicação com aquilo que representa<br />
alguma coisa para alguém. / A semiologia estuda os meios de comunicação, que<br />
podem ser: 1) vocal: ações envolvidas na fala; 2) não-vocal: comunicações que não<br />
se utilizam da fala como o gesto, o sinal com o dedo; 3) verbal: comunicações que<br />
não usam a língua codificada. Há comunicações vocal-verbais, como as palavras;<br />
vocal não-verbal, como a entonação, a ênfase; não-vocal verbal, as palavras escritas;<br />
não-vocal, não-verbal, como os elementos faciais, os gestos. / Pearce fez a distinção<br />
de ícone, índice e símbolo. O ícone retrata o objeto, um signo determinado por seu<br />
objeto através da natureza interna dos dois. Por exemplo, uma onomatopéia ou<br />
fotografia. O ícone imita o objeto, tem pelo menos um traço em comum com ele,<br />
como as caricaturas. / O índice tem uma relação real, causal, direta com seu objeto,<br />
aponta para o objeto, assinala-o É o signo determinado pelo objeto em virtude de<br />
uma relação real que com ele mantém. Por exemplo, a fumaça índice do fogo. / O<br />
símbolo não imita nem indica nada, mas o representa de maneira arbitrária. É um<br />
elemento determinado pelo seu objeto convencionalmente, como uma bandeira ou<br />
um nome de batismo. / O ícone imita de fora: a fotografia. O índice tem uma relação<br />
real e contínua com o objeto: a fumaça em relação ao fogo. O símbolo não tem<br />
nenhuma relação com o simbolizado. Mas o signo marca sempre a intenção de<br />
comunicar um sentido. Chama-se significação esta relação entre significante e<br />
significado. Quando um significante se refere ou sugere vários significados há
literariedade.” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária.<br />
Petrópolis: Vozes, 2002: 84-85);<br />
• Hermenêutica Antiga (religiosa) X Hermenêutica Literária (profana): “O termo<br />
“hermenêutica” tem origem em Hermes, divindade-intérprete a quem era confiada a<br />
transmissão das mensagens do destino dos mortais. E, como atividade de<br />
interpretação, da hermenêutica podemos traçar um longo caminho que vem desde a<br />
época clássica ateniense até os nossos dias. Nosso propósito, no entanto, é aqui<br />
apresentar algumas de suas características atuais, com relação à crítica <strong>literária</strong>.<br />
Colocando-se em oposição a uma postura epistemológica, a hermenêutica substitui a<br />
tarefa analítico-descritiva por um trabalho de interpretação, que parte do texto e se<br />
encaminha para uma reflexão sobre a ess~encia humana.<br />
Alicerçando-se filosoficamente, os postulados dessa proposta de compreensão<br />
existencial da obra <strong>literária</strong> estão hoje ligados, sobretudo, à conceituação de história<br />
de Wilhelm Dilthey, à ontologia [ontologia = Filosofia que trata do ser enquanto<br />
ser, isto é, ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e<br />
a cada um dos seres] de Martin Heidegger e à hermenêutica filosófica de Hans-<br />
Georg Gadamer. (...).<br />
Eduardo Portella esclarece, em seu Fundamento da Investigação Literária, que<br />
para além da estrutura pronta, do sistema de signos, do texto, constitui-se a literatura<br />
por uma força de criação da linguagem, energia geradora do texto, que, estando por<br />
trás dele e mantendo-se em permanente tensão com ele, faz com que seu sentido<br />
penetre no não-dito, pelo pré-texto. O texto poético seria sempre, portanto, um<br />
entretexto, uma entidade dinâmica resultante da tensão texto/pré-texto. E caberia ao<br />
intérprete apreender a literatura enquanto processo de entretextualização, através de<br />
um modelo aberto e transmanente, construído com consciência de que o sentido da<br />
obra não se esgota numa perspectiva, pois que a imagem poética é, a todo o tempo,<br />
uma coisa nova, nos dirigindo para possibilidades ilimitadas.<br />
Emmanuel Carneiro Leão, em vários ensaios do seu Aprendendo a pensar, remetenos<br />
para a necessidade de uma crítica que se exerça literariamente, para que mais se<br />
aproxime do processo de constituição da obra. (...)<br />
A razão hermenêutica seria, portanto, conscientemente inconclusa e antiimpositiva,<br />
mantendo, muitas vezes, a pergunta como única resposta possível, deixando, tantas<br />
vezes, que o poema fale, ao invés de falar por ele, pois a imagem poética, como<br />
lembrou Otávio Paz, não pode ser explicada com outras palavras, senão pelas da<br />
própria imagem, que, enquanto imagem, já deixaram de ser simplesmente palavras.<br />
A imagem, segundo o crítico mexicano, nos convidaria sempre a recriá-la, a revivêla:<br />
proposta que nos parece muito tem a ver com a da leitura poética.” (Conferir:<br />
LOBO, Luíza. “A Crítica”. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria<br />
Literária. Petrópolis: Vozes, 1999: 117-119);<br />
“De acordo com Ricoer e Gadamer, a hermenêutica vê os textos como expressões da<br />
vida social fixadas na escrita, através de fatos psíquicos, de encadeamentos<br />
históricos. Sua interpretação consiste, então, em decifrar o sentido oculto no<br />
aparente e desdobrar os diversos graus de interpretação ali implicados.<br />
Só há interpretação quando houver ambigüidade, e é na interpretação que a<br />
pluralidade de sentidos se torna manifesta.
Na realidade, a hermenêutica é a compreensão de si mediante a compreensão do<br />
outro: o máximo de interpretação se dá quando o leitor compreende a si mesmo,<br />
interpretando o texto.<br />
• A tática da interpretação aparece sempre que há ambigüidade, mas compreender não<br />
significa a repetição do conhecer. A hermenêutica postula uma superação: ela se<br />
quer uma <strong>teoria</strong> e uma arte, fazendo da leitura uma nova criação; e dela se exige<br />
uma reflexão que leve à ação.” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria<br />
Literária. Petrópolis: Vozes, 2002: 86);<br />
• A Crítica Filosófica de Gaston Bachelard: Gaston Bachelard (1884-1962) se<br />
caracteriza pelo trabalho dedicado à pesquisa da epistemologia. Seus trabalhos sobre<br />
a imaginação revolucionaram o campo da crítica <strong>literária</strong> francesa e deram origem,<br />
durante os anos 50, aos estudos das imagens, ou à crítica temática. Bachelard<br />
trabalha com as imagens da terra, água, ar e fogo como contexto metodológico para<br />
a sua pesquisa da imaginação. Nesses quatro elementos tradicionais considerou os<br />
componentes principais de todo o universo imaginativo. Sua meta era estudar a<br />
imaginação como forma de consciência, conceito que pareceu indispensável a ele<br />
para que estudasse a criação poética. (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de<br />
Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 2002: 89-90);<br />
• Conceitos psicanalíticos na elucidação de textos literários do século XX<br />
(Psicocrítica): “É grande a apropriação da psicanálise pela recente <strong>teoria</strong> <strong>literária</strong>,<br />
especialmente com respeito ao trabalho de Freud e Lacan. Em particular foi usado o<br />
método da <strong>teoria</strong> da subjetividade para colocar a questão do falar, escrever e ler em<br />
relação aos sistemas simbólicos e às representações inconscientes. Estudou-se,<br />
também, assim, a função da fantasia e do desejo no texto literário. (Conferir:<br />
SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 2002: 91-92);<br />
• Crítica Marxista e Neomarxista: “Nos anos 70 os intelectuais romperam ao<br />
mesmo tempo com o capitalismo e com o comunismo do regime de Stalin.<br />
Desenvolveram-se novas tradições esquerdistas e marxistas até então reprimidas,<br />
principalmente na Inglaterra, como correntes alternativas do marxismo<br />
revolucionário ligado à política de massas luxemburguista, trotskista, maoísta.<br />
Simultaneamente, os vários legados do marxismo ocidental, nascido de Lukács,<br />
Korsch e Gramsci, tornaram-se importantes, sob a influência do marxismo de Sartre,<br />
Lefèbvre, Adorno, Marcuse, Della Volpe, Colletti, Althusser e outros. (...)<br />
A crítica marxista é baseada na <strong>teoria</strong> histórica, econômica e sociológica de Karl<br />
Marx e Friedrich Engels. De acordo com o Marxismo, a consciência de uma<br />
determinada classe em um determinado momento histórico deriva do modo de<br />
produção material. O jogo de convicções, valores, atitudes e idéias, que constituem a<br />
consciência de classe, forma uma superestrutura ideológica, e esta superestrutura<br />
ideológica é amoldada e determinada pela infra-estrutura material ou base<br />
econômica. Conseqüentemente, o termo marxismo vê o produto de forças históricas<br />
e uma relação dialética entre trabalho literário e base sócio-histórica. A crítica<br />
dialética marxista focaliza as conexões causais entre conteúdo, ou forma de uma<br />
obra <strong>literária</strong>, e os fatores sociais, econômicos, de classe ou ideológicos, que<br />
amoldam e determinam aquele conteúdo ou forma. Por exemplo, escritores<br />
burgueses propagam a ideologia burguesa que busca inevitavelmente universalizar o<br />
status quo, vendo isto como natural e não como fato histórico. A noção de que há<br />
uma correspondência entre consciência de classe, ideologia do trabalho e a base<br />
sócio-histórica na qual emerge é freqüente no Marxismo. Mas Fredric Jameson<br />
mostra a influência de uma determinada matéria-prima social, não só no conteúdo,
mas na forma mesma das obras. (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de<br />
Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 2002: 93-97);<br />
• A Estética da Recepção de Base Alemã (Diálogo com o Texto) Presente no<br />
Cenário Cultural Brasileiro, no final do século XX: “A crítica <strong>literária</strong><br />
desenvolvida na Alemanha Ocidental durante os anos 60 e 70 inclui a Escola de<br />
Constance que se volta para a recepção de textos literários, ao contrário dos métodos<br />
que enfatizam a produção ou sua leitura. Essa escola fez sucesso na Alemanha<br />
durante uma década como “<strong>teoria</strong> da recepção” ou como “estética da recepção”, mas<br />
não foi muito conhecida até quando os trabalhos mais importantes foram traduzidos,<br />
como os de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser.<br />
Surgiu durante o movimento estudantil que pedia reformas educacionais e<br />
questionava os métodos tradicionais na <strong>Universidade</strong> Experimental de Constance,<br />
fundada em 1967. Surgiu quando uma conferência de Hans Robert Jauss (1967) foi<br />
pronunciada, sobre o que se chamou de Estética da Recepção, e era uma tentativa de<br />
superar o formalismo e a crítica marxista.<br />
Segundo Jauss, o marxismo representava uma aproximação positivista, e o<br />
formalismo tinha uma percepção estética que isolava a arte de seu contexto<br />
histórico. Por isso, ele tentava fundir as melhores qualidades do marxismo e do<br />
formalismo, propondo alterar a perspectiva pela qual nós normalmente<br />
interpretamos os textos literários. (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de<br />
Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 2002: 117-118);<br />
• Os novíssimos rumos da Crítica Literária no Panorama Mundial: “Como a<br />
crítica sociológica, a crítica marxista se orienta para a realidade social que<br />
condiciona as obras de arte, como na <strong>teoria</strong> de Frankfurt e em Benjamin.<br />
A nova esquerda hoje é representada por Hobsbawm, que fez a interpretação do<br />
século XIX; Jameson, que escreveu sobre pós-modernidade; Robert Brenner, que<br />
ofereceu uma interpretação econômica do desenvolvimento capitalista desde a<br />
Segunda Guerra Mundial; e também Giovanni Arrighi, sobre estrutura temporal<br />
mais extensa. Tom Nairn e Benedict Anderson são importantes autores sobre o<br />
nacionalismo moderno. Regis Debray desenvolveu uma <strong>teoria</strong> da mídia<br />
contemporânea. Terry Eagleton desenvolveu seus estudos no campo literário. T. J.<br />
Clark nas artes visuais e David Harvey na reconstrução da geografia. Nos campos da<br />
filosofia, sociologia e economia, estariam incluídos os trabalhos de Habermas,<br />
Bordieu, Fredric Jameson, Edward Said e Perry Anderson.” (Conferir: SAMUEL,<br />
Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 2002: 96-97);<br />
• A Crítica Literária no Brasil: Nestes anos iniciais do Terceiro Milênio, que<br />
rumo devemos tomar? (Repensar as palavras de Eduardo Portella, publicadas em<br />
1970).<br />
“Sem dúvida um pensamento que não se arme dialeticamente permanecerá<br />
inteiramente perdido diante de um fenômeno tão multidimensional como é o<br />
literário. Na chave da dicotomia, as categorias se opõem excluindo-se mutuamente.<br />
Somente os pensadores tricótomos pensam no eixo da contradição, admitindo um<br />
terceiro elemento como mediador dialético. E só estes possuem olhos para penetrar<br />
nas esquinas secretas dos caminhos da arte.” (Conferir: PORTELLA, Eduardo.<br />
Teoria da Comunicação Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970: 61-62.)<br />
“Decodificação não quer dizer necessariamente coincidência ou acordo; quer dizer<br />
apenas a ultrapassagem da incompreensão. Porque o único que se lhe pede é que
esteja ancorada no porto seguro do entendimento.” (Conferir: PORTELLA, Eduardo.<br />
Teoria da Comunicação Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970: 25.)<br />
2007: “Postul(o) uma contribuição satisfatória para o entendimento atual do literário,<br />
uma contribuição entre duas grandes correntes críticas (a cientificista e a<br />
fenomenológica) em benefício da correta decodificação e interpretação do texto<br />
literário, para que a compreensão fique “ancorada no porto seguro do entendimento”<br />
[como a quer Eduardo Portella]. Ao reivindicar uma colaboração da Semiologia com a<br />
Hermenêutica, não quero (parodiando Eduardo Portella) repudiar o silêncio, que se<br />
encontra palpitante no interior da Obra Literária, e reverenciar a “loquacidade<br />
enganadora de um analismo que, em nome da objetividade, se mostra impermeável ao<br />
subjetivismo”. Ao contrário, proponho um labor crítico dialético, usando dos<br />
ensinamentos de ambas as correntes, para que esse silêncio seja rompido. Reivindico<br />
uma colaboração consciente entre as duas correntes (afirmo que esta colaboração, que<br />
muitos dizem existir nestes anos iniciais do Terceiro Milênio, não se efetua na prática<br />
em nossos dias), para que este “silêncio” se ouça acima dos estudos esquemáticos<br />
(estudos de origem estruturalista) e promova a compreensão dos sentidos corretos do<br />
texto literário.”* (Conferir: MACHADO, Neuza. “Reavaliando a atuação da Crítica<br />
Literária”, item 2.18 deste Manual)<br />
*(Nota de Neuza machado: Conferir: PORTELLA, Eduardo. Teoria da Comunicação<br />
Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970: 25.)<br />
2.6 - REAVALIANDO A ATUAÇÃO DA CRÍTICA LITERÁRIA (NEUZA MACHADO ∗ )<br />
Sem dúvida um pensamento que não se arme dialeticamente permanecerá inteiramente perdido<br />
diante de um fenômeno tão multidimensional como é o literário. Na chave da dicotomia, as<br />
categorias se opõem excluindo-se mutuamente. Somente os pensadores tricótomos pensam no<br />
eixo da contradição, admitindo um terceiro elemento como mediador dialético. E só estes<br />
possuem olhos para penetrar nas esquinas secretas dos caminhos da arte. 1<br />
APRESENTAÇÃO<br />
Esta reflexão teórico-crítica tem por fim provar a possibilidade de uma<br />
colaboração da Semiologia de Segunda Geração (Estudos Analíticos da Literatura) com<br />
o desenvolvimento da Hermenêutica de um determinado texto (âmbito do<br />
Conhecimento).<br />
Não se trata de qualquer texto, como se verá, já que cada obra impõe o seu<br />
próprio método de análise e/ou interpretação. Mas, no tipo de texto que pretendo<br />
intermediar criticamente (A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, o qual<br />
fez parte de minha Dissertação de Mestrado, e, posteriormente, de minha Tese de<br />
Doutorado), a Semiologia de Segunda Geração (de Roland Barthes, Umberto Eco e<br />
Anazildo Vasconcelos da Silva), certamente, oferece um corpo teórico, para a análise, e<br />
colabora com a posterior interpretação hermenêutica, possibilitando uma interação<br />
paradigmática consciente, de acordo com as exigências críticas atuais, voltadas à<br />
interdisciplinaridade.<br />
Para que esta propedêutica não se desvirtualize (já que a direciono aos alunos de<br />
graduação em Letras), começarei resenhando o livro de Emerich Coreth, Questões<br />
Fundamentais de Hermenêutica 2 , sobre a história do problema hermenêutico. A seguir,<br />
desenvolverei alguns dos principais elementos metodológicos do movimento<br />
∗<br />
Neuza Machado é doutora em Ciência da Literatura / Teoria Literária pela Faculdade de Letras da<br />
<strong>Universidade</strong> Federal do Rio de Janeiro.<br />
1<br />
PORTELLA, Eduardo. Teoria da Comunicação Literária. R. J.: Tempo Brasileiro, 1970: .61-62.<br />
2<br />
CORETH, Emerich. Questões Fundamentais de Hermenêutica. São Paulo: Ed. Da <strong>Universidade</strong> de São<br />
Paulo, 1973.
hermenêutico do século XIX e verei o relacionamento dialético entre Hermenêutica e<br />
Ciência, a partir de Richard Palmer 3 e Paul Ricoer 4 , discutindo as noções de<br />
compreensão, interpretação e o problema do método crítico. Ressalto que apoiar-meei<br />
nas conclusões do Professor Eduardo Portella (escritas na década de setenta, mas<br />
ainda atuais), para superar determinados impasses teóricos, já que colocarei a<br />
Semiologia de Segunda Geração (própria para análises <strong>literária</strong>s) como Ciência Auxiliar<br />
à compreensão dos sentidos. Para tal empresa, utilizarei também alguns postulados do<br />
semiólogo italiano Umberto Eco. Assim, nas páginas finais desta propedêutica,<br />
retomarei os ensinamentos de Ricoer e Eduardo Portella, esperando demonstrar então a<br />
possibilidade da Semiologia da Literatura realizar com a Hermenêutica um criador<br />
diálogo, uma contribuição criadora para o entendimento atual do fenômeno literário.<br />
Quero esclarecer ainda que, ao postular a possibilidade de uma colaboração entre<br />
Semiologia e Hermenêutica, não é minha intenção comparar o método de uma Ciência<br />
com o de outra. Ambos (os métodos) possuem, segundo o meu ponto de vista,<br />
qualidades próprias. A experiência de contemplação da obra tem de abranger os dados<br />
visíveis e não-visíveis. Esta experiência de contemplação da obra é um conhecimento<br />
(nomenclatura hermenêutica). Não há como separar forma e conteúdo. Direi ainda,<br />
apoiada em Gadamer: o essencial na experiência estética de uma obra não é o conteúdo<br />
nem a forma, mas a matéria significada, ou seja, um mundo com a sua própria dinâmica.<br />
Não pretendo comparar dois métodos científicos, mas admitir que um (o semiológico)<br />
pode colaborar com o outro (o hermenêutico).<br />
HERMENÊUTICA E SEMIOLOGIA: UM PROBLEMA DA CRÍTICA LITERÁRIA ATUAL<br />
Neste início de século XXI, observa-se um fenômeno significativo no que<br />
concerne à Crítica Literária (aliás, este fenômeno já é antigo no Brasil: seus primórdios<br />
se localizam nos anos oitenta): há um impasse de <strong>teoria</strong>s diversificadas, várias maneiras<br />
de se penetrar no universo do texto, e isto traz, para a Ciência da Interpretação, a<br />
dúvida, quanto a direção a ser seguida, na realização do trabalho crítico. Ressalte-se o<br />
fato de que todas as <strong>teoria</strong>s convivem nos meios acadêmicos brasileiros, senão em<br />
harmonia total, pelo menos se respeitando cordialmente, evitando, assim, as<br />
divergências que existiram nos anos setenta. Nos anos sessenta, não será demais<br />
lembrar, o Estruturalismo (no que se refere à literatura e seu entendimento, um ponto de<br />
vista analítico repressor) imperou nas <strong>Universidade</strong>s. Nos anos cinqüenta, os<br />
universitários que se dedicavam ao estudo da literatura estavam submetidos às diretrizes<br />
teóricas (também analíticas e repressoras) do New Criticism americano, divulgado aqui<br />
no Brasil, pelo Professor Afrânio Coutinho, com o nome de Nova Crítica.<br />
Por tais motivos, compreende-se que não há como escolher um partido teórico<br />
único no âmbito da Literatura-Arte se há atualmente a facilidade de se conhecer cada<br />
feição crítica e avaliar-lhe suas contribuições, em função do desvelamento e<br />
compreensão do texto. Restará ao crítico literário brasileiro hodierno, antes de fazer<br />
uma escolha consciente, observar as sugestões oferecidas pela própria obra, pelo próprio<br />
texto, relacionando razão e compreensão: A obra impõe a sua verdade e, portanto, o<br />
seu próprio método a ser utilizado. Não se pode dissociar a Crítica da Arte.<br />
Em conseqüência deste impasse, a maneira de como interpretar um texto literário<br />
tornou-se um problema nos meios acadêmicos. (Não estou referindo-me aos teóricos<br />
conceituados). O que se observa atualmente, entre os alunos de Letras, é a utilização<br />
3 PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1986.<br />
4 RICOER, Paul. Interpretação e Ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
aleatória de todas as correntes críticas. Há um cruzamento de nomenclaturas que, ao<br />
invés de esclarecer a mensagem, torna-a ilegível.<br />
Reconheço que este problema se origina no fato de o aspirante à função de<br />
Crítico Literário não possuir um conhecimento de base, já que o mesmo desconhece os<br />
postulados fundamentais de cada corrente crítica.<br />
No que se refere à Hermenêutica, por exemplo, o problema torna-se mais grave,<br />
por esta ter sua origem nos primórdios da História religiosa do homem ocidental. Falase<br />
muito em Hermenêutica, mas não há, nos meios acadêmicos, um conhecimento<br />
correto em relação à mesma. Desconhecem-se seus questionamentos de origem, sua<br />
ligação com os Textos Sagrados, as divergências que a marcaram no decorrer de sua<br />
história a sua posterior incursão nos domínios da Filosofia e da Literatura.<br />
Por estas razões, farei uma breve retrospectiva da História da Hermenêutica,<br />
desde o seu advento, em que o que a preocupava era o problema da correta interpretação<br />
dos Textos Sagrados. Esta retrospectiva baseia-se em dados oferecidos por Emerich<br />
Coreth (op. cit.), e tem por objetivo inicial reconhecer a história do problema teológico<br />
e a sua ligação com as questões hodiernas da Hermenêutica, ou seja, a questão do<br />
conhecimento ao se contemplar as obras <strong>literária</strong>s não religiosas. A seguir, por esta<br />
mesma retrospectiva, buscarei um diferente olhar crítico, o qual irá proporcionar-me a<br />
defesa de meu objetivo central: provar a possibilidade de uma colaboração<br />
consciente da Semiologia da Literatura com o desenvolvimento da Hermenêutica<br />
de um determinado texto.<br />
UMA RETOMADA DA HISTÓRIA DA HERMENÊUTICA<br />
Muito antes de se pensar na Hermenêutica como a concebemos hoje, ou seja,<br />
como Ciência da Interpretação e da Observação Crítica – ciência que questiona a correta<br />
interpretação dos textos literários –, já a questão era problematizada pelos intérpretes<br />
(os antigos “escribas”) das mensagens contidas no Antigo Testamento. Emerich Coreth,<br />
ao se referir aos escribas, situa-os como os primeiros exegetas que procuravam<br />
questionar a importância de uma correta interpretação dos Textos Sagrados. Observe-se<br />
que esses textos anunciavam o nascimento do Salvador, e os mesmos eram interpretados<br />
por sacerdotes rudes, os quais legaram à posteridade suas interpretações ambíguas.<br />
Com o advento do Novo Testamento, as ambigüidades se desfazem, pois quem as<br />
esclarece não é outro senão o próprio Filho de Deus, o Salvador esperado. Segundo<br />
Coreth, o Novo Testamento se coloca, desde as primeiras páginas, como o único<br />
intérprete autêntico das Mensagens Sagradas. Reavaliando as palavras de Coreth por<br />
uma diretriz interpretativa, isto se deve ao aval de Jesus Cristo, ao procurar elucidar,<br />
para as multidões que o acompanhavam, todas as ambigüidades do Antigo Testamento<br />
anteriormente questionadas, algumas que foram interpretadas incorretamente, de acordo<br />
com o que nos passa o Novo Testamento.<br />
Jesus Cristo posicionou-se como o fecho de um ciclo da História dos hebreus e a<br />
estrutura basilar de uma nova etapa da História da humanidade. Se graças à sua<br />
interpretação os Textos Sagrados ficaram devidamente esclarecidos, ou se o povo<br />
acatava os ensinamentos sem formular questões, quanto à profundidade do que era<br />
recebido – haja vista as parábolas simplificadas –, o mesmo não aconteceu<br />
posteriormente. Coreth alerta para toda uma problemática da compreensão, tanto do<br />
Antigo quanto do Novo Testamento, envolvendo os exegetas dos Textos Sagrados,<br />
desde o século II d. C. Menciona as divergências existentes entre os padres que seguiam<br />
as orientações da Escola de Antioquia, em contraponto com os postulados da Escola<br />
Alexandrina. Situa esse momento como marco de um futuro problema hermenêutico,
pois, se uma Escola procurava ressaltar o sentido histórico contido na Bíblia (Escola de<br />
Antioquia), a outra colocava em evidência a necessidade de se atingir o sentido<br />
espiritual que se evolava das páginas sagradas. Esses dois pontos de vista divergentes<br />
atestam o caráter polêmico da Bíblia (como repositório das mais diversas expressões<br />
<strong>literária</strong>s), sem, contudo, despojar-se de sua condição de reveladora da palavra de<br />
Deus. Atestam, inclusive, a dificuldade do intérprete de ater-se a uma interpretação<br />
consensual. Coreth informa ainda que Orígenes [um estudioso preocupado em unir a<br />
investigação histórico-filológica do texto a uma noção distinta dos vários sentidos que<br />
se podem destacar do mesmo] procurava ligar as duas correntes conscientemente,<br />
procurando desenvolver uma investigação cuidadosa. Prosseguindo em sua<br />
recapitulação histórica do problema teológico, ressalta, cuidadosamente, as divergências<br />
de opiniões entre São Jerônimo e Santo Ambrósio, bispo de Milão, e orientador de<br />
Santo Agostinho em sua redescoberta do Cristianismo.<br />
No que se refere a Santo Agostinho, é importante destacar seu caráter<br />
conciliador, ao procurar aliar as duas formas de interpretar a Bíblia. Isto se prende ao<br />
fato de que o mesmo vivenciou várias formas de vida contemplativa, antes de se<br />
converter definitivamente ao cristianismo. Conhecendo-se suas transformações<br />
existenciais e religiosas, não é difícil compreender o porquê dessa atitude conciliadora<br />
(também destacada por Coreth). De origem cristã, o futuro Bispo de Hipona<br />
desenvolveu sua inteligência dentro de conceitos filosóficos e científicos distantes dos<br />
ensinamentos religiosos de sua infância. Estudou retórica, leu os professores e poetas<br />
latinos, desenvolveu estudos referentes às Ciências Humanas (foi aluno de Varrão) e,<br />
posteriormente, aderiu-se à doutrina Maniqueísta, abandonando os postulados cristãos<br />
da revelação sobrenatural da palavra de Deus, em benefício de uma orientação religiosa<br />
fundamentada apenas no conhecimento racional. Não satisfeito com esta doutrina,<br />
torna-se discípulo de Ambrósio, Bispo de Milão. Por tais razões, mesmo abandonando<br />
os conceitos da razão pura e retornando às normas do Cristianismo, o ex-estudioso das<br />
<strong>teoria</strong>s de Varrão, ex-professor de gramática e retórica, ex-maniqueísta, jamais pode<br />
eliminar de sua vida o que foi aprendido e vivenciado. Restou-lhe uma atitude<br />
conciliadora: interpretar a Bíblia observando o elemento sobrenatural, sem abdicar do<br />
racional.<br />
O problema da compreensão dos Textos Sagrados continuou repercutindo nas<br />
etapas seguintes da Era Moderna: a reforma luterana em oposição à Igreja Romana,<br />
posteriormente a Contra-Reforma [numa tentativa de recuperar o anterior poder<br />
religioso, naquele momento em decadência], passando pelo pensamento Iluminista e sua<br />
visão racional da mensagem divina, até chegar a Hegel e outros pensadores.<br />
No século XIX, inaugura-se o movimento hermenêutico, propriamente dito. É<br />
nesse momento que vamos encontrar a palavra hermenêutica como sinônimo de<br />
investigação e compreensão do texto ainda religioso, visando a opor-se à pesquisa<br />
histórico-crítica, método que tem sua origem na obra polêmica de David Friedrich<br />
Strauss, A Vida de Jesus, e que procurava ressaltar, na Bíblia, a história do Antigo<br />
Oriente, preocupando-se em estudar os aspectos lingüísticos e culturais em detrimento<br />
do sentido sobrenatural contido nos Textos e revelador dos desígnios de Deus. O<br />
movimento hermenêutico opunha-se ao método histórico-crítico, mas, ao mesmo tempo,<br />
não desprezava a contribuição valiosa oferecida por essa forma de investigação crítica<br />
da Bíblia e, inclusive, destacava seu caráter esclarecedor. Não se tratava exatamente de<br />
uma oposição, mas de conciliação, postura que outros exegetas da Bíblia adotaram, no<br />
transcorrer da História Religiosa do Homem.
Observando a repercussão histórica do problema teológico, pelo ponto de vista<br />
crítico de Emerich Coreth, contido no livro já citado, pude encontrar o cerne de meu<br />
questionamento sobre o problema da Crítica atual, em outras palavras, a base para o<br />
meu próprio postulado que, a partir de agora, desenvolverei, ou seja, o problema atual<br />
dos vários paradigmas analítico-interpretativos que convivem, mescladamente, no<br />
âmbito da Ciência da Literatura. Trazendo à luz os problemas que afligiam os<br />
intérpretes da Bíblia no passado, Coreth procurou demonstrar a perenidade dos conflitos<br />
interpretativos, tanto na área das Ciências Exatas, quanto na das Ciências Humanas,<br />
inerentes à História da Humanidade. Diz ele, falando especificamente do problema<br />
hermenêutico:<br />
Em todo caso, põe-se aqui já o problema em toda a sua amplitude, evidenciando que a<br />
questão hermenêutica da atualidade não é, no fundo, nova, mas retoma um antigo<br />
problema, ainda que de um outro modo e sob novos pontos de vista. 5<br />
O que marca o movimento hermenêutico do século XIX não é seu caráter<br />
opositor e, ao mesmo tempo, conciliador, mas o fato de que, por intermédio dele, o<br />
posicionamento crítico, marcadamente religioso, desprende-se dos Textos Sagrados,<br />
alcançando os domínios da Filosofia e da Literatura. A Crítica passa a centralizar-se no<br />
problema da compreensão do texto como linguagem, questionamentos esses que<br />
levaram ao entendimento da essência do Homem e do Universo, e que estavam antes<br />
restritos ao âmbito dos estudos teológicos.<br />
Quanto à Literatura, nosso tema de reflexão crítica, a Hermenêutica passa a<br />
promover a compreensão dos textos, tornando-se conhecida como a <strong>teoria</strong> que permite<br />
compreender e, posteriormente, explicar o que foi compreendido. Compreensão não<br />
como faculdade de compreender, como se vê nos dicionários, mas como maneira de<br />
ser e relacionar-se com os seres e com o ser, no dizer de Ricoer. 6<br />
Sem deixar de pertencer aos domínios da investigação teológica (o que se<br />
conhece como Hermenêutica Específica), a Hermenêutica da Filosofia e da Literatura<br />
expande-se, e passa a centralizar na linguagem do texto (seja religioso, histórico ou<br />
literário) a sua busca de compreensão da essência do Homem e de sua atuação como<br />
ser-no-mundo, passando também a possibilitar ao investigador uma maior amplitude de<br />
visão, permitindo-lhe o alcance dos sentidos do texto investigado.<br />
No que se refere à interpretação <strong>literária</strong>, faz-se necessário, agora, um<br />
esclarecimento. Observe-se que compreender um texto não é suficiente, necessita-se de<br />
uma operação ou transação que possibilite esclarecer e decifrar o significado da obra.<br />
Necessita-se saber distinguir o que realmente quis-se anunciar; quais as mensagens<br />
contidas em um texto que se produz em uma linguagem pluri-ambígua. Impõe-se assim<br />
um método de abordagem transmutativo, uma atitude mediadora entre compreensão e<br />
explicação (posicionamento fundamental da Hermenêutica). A este método de<br />
abordagem dá-se o nome de interpretação. Como interpretar fundamenta-se em<br />
postulados científicos, alguma coisa diferente da compreensão como elemento do<br />
universo crítico-filosófico hermenêutico (fenomenológico), subentende-se que não há<br />
como fugir a um inter-relacionamento entre Hermenêutica e Ciência. Uma questão que<br />
foi observada nos anos setenta permanece ainda insolúvel neste início de terceiro<br />
milênio, incomodando a maior parte dos profissionais da Ciência da Literatura,<br />
simpatizantes do antigo método da análise <strong>literária</strong> estruturalista. No momento em que<br />
se propõe uma nova atitude didática, uma aproximação necessária entre o professor e<br />
seus alunos, não há mais como promover o distanciamento. Se o professor for realmente<br />
5 CORETH (1977), p. 6<br />
6 RICOER (1977), p. 17
um artífice de categoria, em sua disciplina de estudos literários, saberá como promover<br />
o entendimento e o diálogo receptivo.<br />
INTERCÂMBIO ENTRE CIÊNCIA E HERMENÊUTICA: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO<br />
Quando se retoma o posicionamento de Richard E. Palmer 7 , apresentado nos<br />
anos oitenta, recusando-se a reconhecer no método científico uma atitude válida para o<br />
esclarecimento do texto, volta-se à questão, já assinalada pelos exegetas da Bíblia, de<br />
opor-se ou aderir-se a uma conciliação entre o sentido apreendido e a forma de<br />
esclarecer o que foi decifrado. Palmer desenvolve e reconhece a necessidade de se<br />
procurar um método, ou <strong>teoria</strong> que possibilite a decifração da marca humana contida<br />
na obra <strong>literária</strong>. Método e Teoria são palavras que fazem parte do universo teóricocrítico<br />
das Ciências Exatas; decifrar não é o mesmo que compreender, portanto, não<br />
se visualiza outra saída para a Crítica Literária atual: pressupõe-se um intercâmbio entre<br />
Ciência (análise) e Hermenêutica (conhecimento), em benefício da verdadeira<br />
compreensão do texto literário.<br />
Palmer diz:<br />
É certo que os métodos de “análise científica” podem e devem ser aplicados às obras,<br />
mas ao proceder deste modo estamos a tratar as obras como objetos silenciosos e<br />
naturais. Na medida que são objetos, são redutíveis a métodos científicos de<br />
interpretação; enquanto obras, apelam para modos de compreensão mais sutis e<br />
compreensíveis. 8<br />
Palmer não procura separar interpretação e compreensão, apenas não concorda<br />
que as obras sejam observadas como objetos silenciosos. É lógico que há, hoje, várias<br />
formas de interpretar e avaliar a mensagem do texto [um fenômeno da globalização],<br />
mas todas passam por pressupostos científicos, inclusive a interpretação que se faz,<br />
atualmente, por uns poucos iniciados, dentro do que se impõe como Crítica Receptiva.<br />
Como sabemos, esta diretriz crítica é exatamente a tal forma conciliadora, retirada de<br />
um pensamento tricótomo (relembrando aqui a epígrafe desta propedêutica, de autoria<br />
de Eduardo Portella), revestida com um título pomposo Estética da Recepção , mas<br />
que tem suas raízes na Hermenêutica e Dialética.<br />
A Hermenêutica, como a concebemos atualmente, também é Ciência, ou por<br />
outra, é um postulado científico, porquanto passa por uma averiguação que não se pode<br />
localizar no âmbito apenas da compreensão divinatória, se me reporto aos ensinamentos<br />
de Schleiermacher. Há de se acrescentar à intuição espontânea o esclarecimento da<br />
Verdade Científica. Nesta manifestação do intelecto está a faculdade de percepção do<br />
Homem atual. Sem se pleitear confundir compreensão com faculdade de compreender,<br />
faz-se necessário observar o Homem e o Mundo pós-modernos, e, conseqüentemente, a<br />
obra <strong>literária</strong>, que os problematiza dentro de sua realidade. Realidade esta, não será<br />
demais lembrar, que já se encontra mascarada por opiniões ou juízos conflituosos, que<br />
longe estão do padrão comunitário dos antigos dogmas religiosos. Sem se pretender<br />
confundir compreensão com faculdade de compreender, faz-se imprescindível observar<br />
o Homem como ser-no-mundo, como ser específico de um mundo que, ao longo do<br />
século XX, foi-se deteriorando, gradativamente, fragmentando-se, e encaminhando-se<br />
para um ponto que, segundo as reflexões de Baudrillard 9 , em seu livro América, será um<br />
ponto de fuga em direção ao Nada.<br />
No que se relacione ao texto literário, e de acordo com os postulados<br />
hermenêuticos, concebemo-lo como repositório da problemática social e psíquica que<br />
7 PALMER (1986), op. cit.<br />
8 Idem, p. 19<br />
9 BAUDRILLARD, Jean. América. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
envolve o Homem e o Mundo. Para que haja uma interpretação consciente de um texto<br />
literário, há a necessidade de o intérprete estar preparado para captar a ambigüidade, a<br />
pluralidade de sentidos que uma obra da arte <strong>literária</strong> oferece. A obra <strong>literária</strong> é um<br />
enigma; é preciso decifrar esse enigma, trazer à luz os sentidos ocultos, os quais<br />
subjazem nas entrelinhas. Assim, para um reconhecimento crítico seguro, faz-se<br />
indispensável um conhecimento analítico que propicie, depois da análise evidentemente,<br />
a compreensão dessas camadas invisíveis. Por esta linha conciliadora (exigência deste<br />
momento pós-moderno), o intérprete se apropria do papel de leitor participativo,<br />
incorporando-se ao texto interpretado, pois, graças a uma prévia compreensão do que se<br />
passa no universo da linguagem <strong>literária</strong> (seja ela poética ou ficcional), passa a<br />
compreender a mensagem do outro. O texto se coloca como mediador entre a obra e o<br />
intérprete. Este só compreende e interpreta porque possui já uma compreensão anterior<br />
de sua própria atuação como ser-no-mundo, e, assim, está apto para compreender o que<br />
se encontra subentendido nas entrelinhas do enunciado criativo. Compreendendo,<br />
liberta-se; interpreta-se a extensão do ato de compreender. Compreendendo o texto, o<br />
intérprete dispõe-se a observar suas próprias preconcepções do mundo, e dele mesmo,<br />
que se acham inseridas em sua consciência transmutativa.<br />
O texto é também mediador entre compreensão e interpretação.<br />
Compreendendo-o e interpretando-o hermeneuticamente, interpreta-se a própria<br />
consciência, desvenda-se o próprio inconsciente. Compreendendo o outro, interpretando<br />
seus questionamentos, sua posição diante do Mundo e do enunciado, passa-se a<br />
compreender as próprias indagações e as indagações do Universo; permutam-se<br />
conhecimentos; exerce-se o ato (ou hábito) de questionar e/ou responder, ou mesmo de<br />
se buscar a resposta através da polissemia da palavra, promovedora de uma série de<br />
significações.<br />
Mas, se a compreensão do texto literário proporciona concebê-lo como<br />
repositório da problemática social e psíquica que envolve o Homem e o Mundo, é<br />
também lícito repetir que estou aqui a referir-me ao Homem e ao Mundo atuais. Estes já<br />
vivenciaram novas etapas de vida; novos conhecimentos se foram agregando aos do<br />
passado. Não é o caso de avaliar se tais conhecimentos foram benéficos ou não, o fato é<br />
que eles se materializaram, e é impossível pensar em desfazer-se deles.<br />
E eis que chego, agora, ao ponto central de meu postulado: Como conceber um<br />
método crítico satisfatório, se no universo da Crítica Literária atual há diversos<br />
encaminhamentos que propiciam o desvelamento do texto?<br />
É bom reafirmar que a questão não é nova. Desde o advento da Lingüística, e o<br />
posterior surgimento dos postulados científicos, penetrando o universo da obra <strong>literária</strong><br />
e tentando decodificá-la unicamente por meio da análise explícita, que o problema se<br />
faz presente nos domínios da Crítica.<br />
Se nos últimos decênios do século dezenove a compreensão hermenêutica, ao se<br />
desprender dos Textos Sagrados, possibilitou uma amplitude de visão, centralizada no<br />
texto profano e na sua ambigüidade, permitiu também, gradativamente, o<br />
desenvolvimento de diferentes abordagens, todas de caráter científico.<br />
A chamada Teoria do Conhecimento Literário passou a ceder a vez às análises<br />
científicas, ou seja, cedeu a vez às análises fechadas e auto-suficientes, e, quando já se<br />
pensava que a supremacia do posicionamento científico era um fato concreto e<br />
irreversível, ressurge a Hermenêutica (e ressurgirá sempre que houver necessidade de<br />
mudanças], dessa vez provando que [e eis nesta prova algo de científico), além do texto<br />
explícito (a linguagem escrita), há outras camadas da obra <strong>literária</strong> dignas de serem<br />
observadas e compreendidas.
Os antagonismos existentes entre as duas facções eram visíveis nos anos setenta,<br />
e é naquele momento que encontro, no que se relaciona especialmente à Crítica<br />
Literária, no Brasil, o professor Eduardo Portella, preocupado com o cientificismo<br />
crítico, que aqui se aportara nos anos cinqüenta e sessenta, e que se fechava em<br />
prepotentes modelos de como se interpretar os textos literários. Observe-se a sua<br />
posição defensiva, a respeito da questão a qual seria examinada no decorrer de sua<br />
teorização acentuadamente hermenêutica e que está registrada em seu livro<br />
Fundamentos da Investigação Literária.<br />
Recusamo-nos inicialmente a imaginar a crítica <strong>literária</strong> fechada em si mesma,<br />
entregue a uma estranha forma de autodevoramento. Criticar é rasgar novos horizontes<br />
de compreensão. Uma crítica enclausurada será fatalmente uma crítica cega,<br />
provinciana ou parasitária. O seu entendimento superlativo pressupõe a consciência de<br />
sua interdisciplinaridade. 10<br />
Penso também, resguardada por Eduardo Portella, que “criticar é rasgar novos<br />
horizontes de compreensão”; reconheço, como profissional de Letras, que não se pode<br />
prescindir, nos estudos literários, da contribuição da Crítica Hermenêutica, propulsora<br />
do alcance das camadas mais profundas da obra <strong>literária</strong> e diretriz consciente da<br />
compreensão de suas mensagens unívocas, que se encontram camufladas nas<br />
entrelinhas. Mas, assim como Eduardo Portella já observava, na década de setenta, a<br />
“progressiva pressão dos modelos científicos no âmbito do fazer ou do saber literário” 11 ,<br />
e se preocupava em desenvolver uma espécie de reciclagem terminológica, visando se<br />
posicionar hermeneuticamente, abolindo de suas teorizações qualquer contato<br />
epistemológico, assim, também, encontro-me agora, nesta propedêutica e em meu<br />
próprio campo de trabalho. Usando outras palavras, tenho consciência de que a questão<br />
permanece, aqui no Brasil (não estou a referir-me aos posicionamentos americanos e<br />
europeus), apesar da afirmação de uns poucos teóricos, os quais divulgam que a tensão<br />
entre as duas correntes inexiste. Para tal comprovação, bastará ao crítico tricótomo fazer<br />
uma avaliação do que ocorre, em termos de ensino da Literatura, nas diversas<br />
<strong>Universidade</strong>s do país.<br />
Atualmente, ao invés da “pressão”, o que existe são trilhas díspares, abertas a<br />
todos incondicionalmente, e que levam o analista desavisado e/ou o pseudo-intérprete<br />
da obra <strong>literária</strong> a desenvolver uma crítica aleatória, misturando os conceitos e as<br />
terminologias dos diversos tipos de crítica <strong>literária</strong>. É lícito lembrar que estes diversos<br />
paradigmas são importantes, mas deveriam ser teoricamente bem encaminhados.<br />
Ainda, apoiando-me no pensamento do professor Eduardo Portella, continuo<br />
repetindo a sua assertiva: “criticar é rasgar novos horizontes de compreensão”. Penso<br />
que todos esses encaminhamentos críticos são válidos, desde que se saiba situá-los<br />
corretamente. Penso no texto como mediador de compreensão e somente ele dirá qual a<br />
forma de desenvolvimento crítico a ser seguida. Cada texto impõe a própria Verdade, e<br />
não é lícito que o crítico se afaste desta Verdade compreendida.<br />
Se hoje, em nossos meios intelectuais, não há mais a “pressão dos modelos<br />
científicos no âmbito do fazer ou do saber literário”, como muitos afirmam, infere-se<br />
que estas linhas críticas díspares reverteram-se em um novo problema. Urge reordenar o<br />
desordenado por meio de uma conciliação crítica satisfatória. A Semiologia de Segunda<br />
Geração, proposta por Umberto Eco nos anos oitenta, continua válida, uma vez que,<br />
pressionada pelas exigências críticas da Fenomenologia, a mesma reconheceu a sua<br />
validade apenas para os estudos analíticos preliminares, lineares, aceitando as<br />
10 PORTELLA (1981), p. 22<br />
11 Ibidem
posteriores incursões do analista-intérprete nas camadas invisíveis da obra. Esta<br />
aceitação deveu-se unicamente aos plurissignificativos textos [de poesia e prosa] dos<br />
escritores do século XX, os quais naturalmente se obrigaram a interpretar criativamente<br />
a sua desordenada realidade. Assim, a Semiologia de Segunda Geração (anos oitenta),<br />
de Umberto Eco, de Roland Barthes e outros, reivindicando somente a decodificação do<br />
texto literário, por meio de esquemas objetivos, e certa ao aceitar que se desenvolva<br />
posteriormente qualquer tipo de interpretação, desde que se respeite seus postulados<br />
básicos, o que reconheço como postulados preliminares, limitados apenas ao texto,<br />
enquanto camada explícita da obra <strong>literária</strong>], aliada conciliadoramente à Hermenêutica,<br />
ou qualquer outra linha crítica sócio-fenomenológica, parece-me a solução ideal, pelo<br />
menos momentaneamente (não se deve perder de vista o fato de que a Crítica Literária<br />
deverá, forçosamente, adaptar-se aos valores estéticos das épocas vindouras). Presa ao<br />
meu momento histórico-estético (um momento de transição secular e milenar), penso<br />
em uma conciliação entre análise e interpretação. Mais precisamente, como base<br />
analítica, só vejo a Semiologia de Segunda Geração como colaboradora de uma<br />
interpretação extra-texto. Aos Estudos Semiológicos de Segunda Geração, conhecidos<br />
como Crítica Semiológica, não importam se a posterior interpretação (do que foi<br />
decodificado por meio de esquemas) é semi-hermenêutica (termo de minha autoria, pois<br />
a crítica autenticamente hermenêutica não se permite misturas), psicanalítica ou<br />
sociológica. Importam-lhes que a interpretação seja pertinente e não se distancie em<br />
demasia do universo pesquisado, distorcendo a mensagem explícita e/ou unívoca do<br />
texto literário. É bem verdade que a Semiologia, enquanto suporte analítico, não<br />
possibilita a compreensão do sentido que se oculta ali, ao desenvolver seus estudos<br />
esquemáticos, mas não impede que se observe a posteriori as outras camadas.<br />
Atualmente, os já renovados semiólogos da literatura têm consciência de que a<br />
linguagem do texto-arte é pluri-ambígua, permitindo diversos pontos de vista<br />
interpretativos. O problema se atém somente ao fato de que não há um consenso<br />
pertinente, que esclareça a desordenação crítica atual, observada no entrelaçamento<br />
aleatório das diversas e confusas nomenclaturas.<br />
A partir de agora, entro no núcleo temático deste empreendimento: superar o<br />
impasse teórico-crítico, no âmbito específico da Crítica Literária, entre análise<br />
(cientificismo) e interpretação (fenomenologia).<br />
A Semiologia de Segunda Geração, tal como a entendo e pratico, não é uma<br />
<strong>teoria</strong> reducionista, não reduz a obra <strong>literária</strong> a um mero objeto de análise sem vida. Há,<br />
realmente, aqueles semiólogos que assim procedem. Eu defendo, aqui, as idéias de<br />
Roland Barthes e Umberto Eco, provedoras de uma Semiologia (para o texto literário)<br />
aberta, uma Semiologia que seja, e não mais que isto, um ponto de partida para a<br />
posterior interpretação hermenêutica. Esta minha Semiologia agregada à interpretação<br />
fenomenológica do tipo praticada pelos semiólogos acima citados, visa a decodificar os<br />
signos e sinais contidos no texto, nas mensagens, nos relatos, mas passa adiante,<br />
ultrapassando o sistema de signos e chegando, mais precisamente com Barthes, quase ao<br />
nível do texto literário propriamente dito.<br />
Umberto Eco, um dos baluartes da “arte” de como desenvolver uma leitura<br />
semiológica do texto literário, na introdução de seu livro Leitura do Texto Literário 12 ,<br />
coloca em evidência a necessidade de uma cooperação interpretativa nos textos<br />
literário, não sem antes assinalar o fato de que esta cooperação interpretativa é,<br />
realmente, um problema a ser avaliado.<br />
12 ECO, Umberto. Leitura do Texto Literário. Lisboa: Presença, 1983.
Como uma obra de arte poderia, por um lado, postular uma livre intervenção<br />
interpretativa por parte dos próprios destinatários e, por outro, exibir características<br />
estruturais que estimulam e ao mesmo tempo regulam a ordem das suas<br />
interpretações? 13<br />
Como exemplos de seu questionamento, Umberto Eco, referindo-se a um estudo<br />
de Jakobson, sobre “Les chates”, de Baudelaire, procura demonstrar, em benefício da<br />
compreensão, “a função ativa desempenhada pelo leitor na estratégia poética do<br />
soneto”. 14<br />
Quando publicou o seu livro Obra Aberta 15 Eco já fora criticado por Lévi-<br />
Strauss, que não concordava com a sua concepção de que a obra é aberta à interpretação<br />
do leitor. Para Lévi-Strauss, a obra é fechada, dotada de propriedades precisas que<br />
somente o posicionamento analítico justifique.<br />
Reportando-se à análise feita por Jakobson, Umberto Eco se defende e<br />
demonstra que o próprio Jakobson já previra a cooperação do leitor [talvez<br />
inconscientemente], ao desenvolver categorias, observadas através de um ponto de vista<br />
estruturalista, acerca das “funções da linguagem”. Tais categorias falavam de “emissor,<br />
destinatário e contexto” como “indispensáveis ao tratamento do problema da<br />
comunicação, mesmo da comunicação estética”. 16 Umberto Eco assinala, ainda, que um<br />
texto como “Les chats” reivindica a cooperação do leitor, assim como deseja também<br />
que este ensaie uma série de opções interpretativas, e defende a sua tese de que é<br />
possível uma abertura interpretativa do texto, mesmo sendo adepto dos postulados<br />
semiológicos.<br />
Postular a cooperação do leitor não significa contaminar a análise estrutural com<br />
elementos extratextuais. O leitor, como princípio ativo da interpretação, faz parte do<br />
quadro generativo do próprio texto.<br />
Se até mesmo os reenvios anafóricos postulam cooperação por parte do leitor, então<br />
nenhum texto escapa a esta regra. 17<br />
Se antes a intervenção interpretativa era vista com desdém pelas normas<br />
estruturalistas [portanto, exclusivamente científicas], e totalmente eliminada em<br />
proveito de um estudo objetivo e metodológico, agora a mesma passou a ser respeitada,<br />
mas, ainda há opositores, oriundos das antigas exigências estruturalistas, que se recusam<br />
a uma necessária reciclagem crítica. Então, se a questão permanece sublinearmente<br />
(interagindo nas diversas <strong>Universidade</strong>s do país), porque não buscar a conciliação, por<br />
meio de um renovado ponto de vista crítico, aceito por todos, e que seja devidamente<br />
registrado nos meios intelectuais. O semiólogo Umberto Eco, com seus<br />
questionamentos dos anos oitenta (quase à moda hermenêutica), permitiu uma abertura,<br />
permitiu-se conciliar pontos de vista divergentes em prol de uma consciente<br />
compreensão do texto.<br />
Procuro articular as semióticas textuais com a semântica dos termos, limitando o<br />
objeto do meu interesse aos processos de cooperação interpretativa. 18<br />
Logo, para Umberto Eco, o “sentido” dos significados é tão importante quanto o<br />
desenvolvimento de uma articulação semiológica com os textos literários. E, para ele,<br />
não é lícito “isolar estruturas formais”, ou seja, desenvolver “análise de aspectos<br />
significantes” sem acatar, de antemão, uma interpretação, um preenchimento dos<br />
13 Idem, p. 7<br />
14 Idem, p. 9<br />
15 Idem, p.8<br />
16 Ibidem<br />
17 ECO, op. cit., p. 9<br />
18 Idem, p. 11
espaços das entrelinhas (espaços estes que jamais poderão ser tachados de vazios,<br />
quando, ao contrário, são plenos de significações), os quais só poderão ser revelados por<br />
meio da colaboração do leitor.<br />
Percebe-se que Umberto Eco não é avesso a uma interpretação hermenêutica,<br />
mesmo que, por motivos óbvios, não assinale em seu trabalho esta provável<br />
concordância. A Ciência é um fato palpável em nossos dias. Prepotente ou não, ela fazse<br />
presente em nosso cotidiano e, como sempre se observou, não se eliminam da<br />
História do Homem os conhecimentos que foram revelados e que vão sendo<br />
sucessivamente manifestados.<br />
Assim, a Hermenêutica atual se vê em face de uma questão, qual seja a de usar<br />
uma metodologia, sem se submeter às imposições da Ciência. O problema foi detectado<br />
por Eduardo Portella, no início da década de setenta, passou pelos anos oitenta e<br />
noventa, e, segundo minhas observações acadêmicas, continua insolúvel, neste início de<br />
Terceiro Milênio.<br />
Como forma de revisão do impasse gerado nos anos setenta, recupero, aqui, o<br />
posicionamento de Eduardo Portella, delineando a sua concepção de expressão crítica, e<br />
defendendo uma disposição acentuadamente hermenêutica.<br />
O empreendimento metodológico que levamos a efeito, embora obediente a<br />
determinados padrões de rigor que são eminentemente científicos, em nenhum instante<br />
quis comprometer a natureza peculiar do fenômeno literário. 19<br />
Como se observa, não estou extrapassando limites ou colocando o termo dentro<br />
da jurisdição científica. Muito menos me coloco como adepta inconteste dos postulados<br />
da crítica de base científica, quando reconheço a priori a importância da Hermenêutica,<br />
para que se desenvolva uma compreensão autêntica do sentido do texto. Apenas admito<br />
uma cooperação semiológica, repito, de Segunda Geração, uma vez que, nestes meus<br />
anos de magistério, ainda não reconheci novos segmentos da Semiologia Literária (é<br />
bem possível que, no âmbito da Lingüística, tal fato tenha acontecido). Admito a<br />
cooperação semiológica porque, não se pode negar, a Semiologia, aquela que lida<br />
especificamente com a forma <strong>literária</strong>, permite que se observe o texto translucidamente,<br />
promovendo a correta compreensão da mensagem implícita nele.<br />
Repetirei mais uma vez: sou partidária de uma saudável conciliação entre<br />
ciência e fenomenologia. A ciência explica e a fenomenologia esclarece (a postulação<br />
de uma episteme, como base de estudos críticos, será sempre necessária ao estudioso da<br />
literatura). Como já observei antes, pela ótica de Paul Ricoer, ao adepto da<br />
Hermenêutica atual se coloca a alternativa entre compreender e explicar a mensagem e<br />
esta alternativa só se realiza por intermédio da interpretação. É ainda pelo ponto de vista<br />
de Ricoer que continuo a refletir esta questão tão antiga em nossos meios e, ao mesmo<br />
tempo, tão atual.<br />
Vejo a história recente da hermenêutica dominada por duas preocupações. A primeira<br />
tende a ampliar progressivamente a visada da hermenêutica, de tal modo que todas as<br />
hermenêuticas regionais sejam incluídas numa hermenêutica geral. Mas esse<br />
movimento de desregionalização não pode ser levado a bom termo sem que, ao mesmo<br />
tempo, as preocupações propriamente epistemológicas da hermenêutica, ou seja, seu<br />
esforço para constituir-se em saber de reputação científica, estejam subordinadas a<br />
preocupações ontológicas segundo as quais compreender deixa de aparecer como um<br />
simples modo de conhecer para tornar-se uma maneira de ser e de relacionar-se com<br />
os seres e com o ser. O movimento de desregionalização se faz acompanhar, pois, de<br />
19 PORTELLA (1970), op. cit., p. 22.
um movimento de radicalização, pelo qual a hermenêutica se torna, não somente geral,<br />
mas fundamental. 20<br />
Assim, num primeiro posicionamento, a Hermenêutica preocupa-se mais com a<br />
linguagem, mais especificamente, com a linguagem escrita. Isto acontece porque a<br />
linguagem escrita reflete uma característica peculiar da linguagem humana (a<br />
polissemia), quando se observa o significado das palavras fora de seu contexto<br />
expressivo. Por meio desta constatação, passa-se para um segundo posicionamento, no<br />
qual se exige sensibilidade e compreensão, porque, ainda segundo Ricoer,<br />
(...) o manejo dos contextos (...) põe em jogo uma atividade de discernimento que se<br />
exerce numa permuta concreta de mensagens entre os interlocutores, tendo por modelo<br />
o jogo da questão e da resposta. Esta atividade de discernimento é, propriamente, a<br />
interpretação: consiste em reconhecer qual a mensagem unívoca que o locutor<br />
construiu apoiado na base polissêmica do léxico comum. Produzir um discurso<br />
relativamente unívoco com palavras polissêmicas, identificar essa intenção de<br />
univocidade na recepção da mensagem, eis o primeiro e o mais elementar trabalho da<br />
interpretação. É no interior desse círculo bastante amplo de mensagens trocadas que a<br />
escrita demarca um domínio limitado, chamado por W. Dilthey (...) de expressões da<br />
vida fixadas na escrita. São elas que exigem um trabalho específico de interpretação,<br />
por razões (...) que se devem justamente à efetuação do discurso como texto. Digamos,<br />
provisoriamente, que, com a escrita, não se preenchem mais as condições da<br />
interpretação direta mediante o jogo da questão e da resposta, por conseguinte, através<br />
do diálogo. São necessárias, então, técnicas específicas para se elevar ao nível do<br />
discurso a cadeia dos sinais escritos e discernir a mensagem através das codificações<br />
superpostas, próprias à efetuação do discurso como texto. 21<br />
Ricoer já postulava, nos anos setenta, como se vê, uma Hermenêutica que se<br />
baseasse em pressupostos científicos. O termo discernir, por exemplo, distancia-se em<br />
muito dos postulados hermenêuticos anteriores, os quais pregavam apenas uma<br />
compreensão para uma posterior explicação, à moda dos exegetas da Bíblia. Discernir<br />
remete-me aos postulados semiológicos, os quais indicam a forma exata de como<br />
distinguir, diferenciar, separar, apartar, identificar, palavras-chave que conduzem à<br />
decodificação (termo também usado por Ricoer, nesta longa citação que destacamos<br />
acima), e que, de acordo com a nomenclatura semiológica, servem para destacar os<br />
referentes, os sememas, os semas, as isotopias núcleos que compõem o todo do<br />
texto ; palavras-chave que permitem discernir a verdadeira mensagem do texto-arte,<br />
evitando que se desenvolva uma crítica distanciada do seu sentido exato, e que poderá<br />
ser destacado na interpretação.<br />
Foi Schleiermacher o primeiro a se conscientizar da necessidade de uma<br />
reavaliação dos pressupostos hermenêuticos. Antes dele, as questões se localizavam nas<br />
duas formas, já assinaladas no início de minha considerações, de como se interpretar os<br />
Textos Sagrados, e numa análise filológica dos textos greco-romanos. Portanto, foi a<br />
partir de Schleiermacher que a “arte de compreender” desenvolveu-se até chegar ao<br />
ponto em que se encontra agora.<br />
É de meu particular interesse lembrar que a Semiologia desenvolve uma técnica<br />
objetiva, cerceando, num primeiro momento, por intermédio de estudos esquemáticos, a<br />
compreensão espontânea do intérprete, mas, repito, depois dos estudos semiológicos, o<br />
texto se ilumina, permitindo que se observe o seu próprio reverso. Depois da análise, o<br />
intérprete passa a observar o que se esconde nas entrelinhas do literário.<br />
20 RICOER (1977), op. cit., p. 18<br />
21 RICOER (1970), op. cit., p. 19
Retomo, agora, as reflexões de Eduardo Portella, para, novamente, concordar<br />
com a sua assertiva de que “criticar é rasgar novos horizontes”. Se não há como<br />
“pensar a literariedade sem ser em tensão (ou, direi por minha vez, em colaboração)<br />
com a cientificidade, porque não submetermo-nos a um encontro que se efetive para<br />
além da recusa passional ou da submissão ingênua: seja um diálogo criador”. 22<br />
Ainda em relação ao termo decodificação, de largo uso na crítica de base<br />
cientificista, Eduardo Portella esclarece:<br />
Decodificação não quer dizer necessariamente coincidência ou acordo; quer dizer<br />
apenas a ultrapassagem da incompreensão. Porque o único que se lhe pede é que esteja<br />
ancorada no porto seguro do entendimento. 23<br />
Não foi outra coisa o que propus aqui. Postulei uma contribuição satisfatória<br />
para o entendimento atual do literário, uma contribuição entre duas grandes correntes<br />
críticas (a cientificista e a fenomenológica) em benefício da correta decodificação do<br />
texto literário, para que a compreensão fique “ancorada no porto seguro do<br />
entendimento”. Ao reivindicar uma colaboração da Semiologia com a Hermenêutica,<br />
não quero (e, aqui, quero pedir licença para parodiar Eduardo Portella) repudiar o<br />
silêncio, que se encontra palpitante no interior da Obra Literária, e reverenciar a<br />
“loquacidade enganadora de um analismo que, em nome da objetividade, se mostra<br />
impermeável ao subjetivismo”. Ao contrário, proponho um labor crítico dialético,<br />
usando dos ensinamentos de ambas as correntes, para que esse silêncio seja rompido.<br />
Reivindico uma colaboração entre as duas correntes (afirmo que esta colaboração, que<br />
muitos dizem existir, não se efetua na prática, em nossos dias), para que este “silêncio”<br />
se ouça acima dos estudos esquemáticos (que, em absoluto, não são por mim rejeitados),<br />
ou seja, estudos de origem estruturalista (simplesmente, análise), e promova a<br />
compreensão dos sentidos corretos do texto literário (planos invisíveis).<br />
(Texto de Neuza Machado. Este texto pertence aos Apontamentos de Teoria<br />
Literária e Crítica Literária, um livro que está sendo elaborado pela autora e<br />
que será publicado em breve por sua editora particular, NMachado, editora da<br />
autora, registrada no ISBN – Rio de Janeiro)<br />
ATENÇÃO: A Crítica Literária, como explicação e decodificação<br />
(analismo) e/ou reflexão e interpretação (fenomenologia) de obra<br />
<strong>literária</strong>, deverá se posicionar em permanente transformação,<br />
seguindo as diretrizes impostas pelos próprios textos literários em<br />
evolução, ou seja, deverá se desenvolver de acordo com o momento<br />
histórico de tais textos (utilizando as técnicas analíticas e/ou estudos<br />
fenomenológicos do momento presente). Por este ponto de vista, não<br />
há como enquadrar uma obra pós-moderna, por exemplo, em<br />
instruções e modelos críticos já desatualizados, os quais não darão<br />
conta das referidas análises e/ou interpretações. O estudioso e/ou<br />
professor deverá estar sempre em permanente reciclagem intelectiva.<br />
22<br />
PORTELLA (1970), op. cit., p. 22.<br />
23<br />
Idem, p. 25.
UNIDADE III<br />
CRÍTICA LITERÁRIA: MODERNIDADE X PÓS-MODERNIDADE<br />
3.1 - MODERNIDADE<br />
“Na Modernidade a reificação humana transforma o humano em objeto social,<br />
na massa, imanente ao todo. As sociedades modernas são sociedades de massa e<br />
estamos nelas como água dentro da água, para usar a metáfora de Bataille. O<br />
capitalismo de massa é imanente ao todo. Se sair dessa imanência, morre.<br />
Na massa, a individuação não é nem coisa nem homem. Fica no meio do<br />
caminho que vai daquela para este. Pois as coisas estão no nível da terra, do planetário,<br />
sem um sentido dinâmico que lhes dê vida. As coisas mesmas, em si mesmas, são o<br />
não-sentido, se nós as imaginamos sem uma consciência que as pense, que transforme<br />
as coisas em objetos do pensamento. A coisa, como tal, não é ainda objeto (do sujeito),<br />
não é ainda objeto do conhecimento, pois o objeto passa a existir de um sujeito que o<br />
pensa. O vazio das coisas é o terror que se limita a ver o horizonte vazio e oco, espécie<br />
de lugar sem alma, lugar da morte, paisagem lunar.<br />
Na medida em que nós possamos ver no ser humano também uma coisa, seu<br />
absurdo não será menor do que o das pedras, mas ele não é sempre redutível à realidade<br />
inferior que atribuímos às coisas. Pois o problema que se avista na reificação é a<br />
incomunicabilidade, o absurdo de viver no mundo despovoado de sentido, de não<br />
participar da história, de não compreender o todo, de ignorar as causas das decisões dos<br />
acontecimentos. O moderno se encontra num limite. O afastamento da natureza, onde<br />
era exigido o exercício pleno dos sentidos, trouxe o artificialismo da vida tecnológica,<br />
uma espécie de inteligência sem alma. Nosso mundo é o mundo eletrônico dos<br />
microcomputadores, porta-vozes de uma felicidade sem alma, anestésica, onde tudo<br />
funciona sem nervo. A sociedade parece ter sido transformada em objeto da ciência,<br />
imanente ao todo.” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária.<br />
4.ed. Petrópolis:Vozes, 2007: 135-136)<br />
3.2 - MODERNIDADE: IMANÊNCIA E IMEDIATISMO (≠ DE TRANSMANÊNCIA)<br />
“O mundo da Modernidade é o da imanência e do imediatismo, (...). A<br />
transcendência pertence a uma categoria humana anterior de consciência em relação às<br />
coisas. A vacuidade do olhar que vê o vídeo revela a imanência existencial não mais<br />
exercendo o seu poder de transcendência. A transcendência pertence a uma categoria<br />
humana anterior, de consciência em relação às coisas. A vacuidade do olhar que vê o<br />
vídeo revela a imanência existencial não mais exercendo o seu poder de transcendência.<br />
Objeto é o emprego que a tecnologia moderna faz das coisas tornadas úteis,<br />
práticas, aperfeiçoadas, interrompendo-se a continuidade harmoniosa e natural em que<br />
se encontravam.<br />
O olhar que vê o objeto não é o mesmo olhar que vê a coisa dada na natureza.<br />
Assim como o olhar que vê o vídeo não é igual ao olhar que olha a flor. Olhar a flor faz<br />
a redenção daquele olhar capaz de transcendência. O vídeo fez o olhar desaprender, o<br />
olhar não mais decodifica a flor. A flor agora vem pronta, como produto industrial, não<br />
é a flor da margem da estrada. O olhar já não pára na margem da estrada, para a<br />
contemplação da flor. Pois a contemplação pertence a um passado, algo remoto e<br />
histórico. A contemplação não é mais possível na técnica que tudo traduz, no fato<br />
matematizado. A técnica revela o esquecimento do olhar.
A técnica nos prepara para aceitar esta imanência, que submete o sujeito ao jugo<br />
do objeto. Ensina-o a ser “feliz”. Os habitantes do Estado científico se submetem sem<br />
protesto ao mundo dos objetos, sem experimentar um horror à reificação.” (Conferir:<br />
SAMUEL, R. Novo Manual de Teoria Literária. 4.ed. Petrópolis:Vozes, 2007: 136)<br />
3.3 - PÓS-MODERNIDADE<br />
“Nos manuscritos conhecidos como Grundisse, ou Fundamentos da crítica da<br />
economia política, viu Marx que, à medida que se desenvolve a grande indústria, a<br />
criação da riqueza dependeria menos do tempo de trabalho do que de poder dos fatores<br />
tecnológicos postos em ação durante esse tempo de trabalho, fatores esses que estão<br />
ligados ao nível geral da ciência e progresso tecnológico como aplicação tecnocientífica<br />
à produção industrial.<br />
Essa passagem das relações sociais de produção de uma situação de trabalho<br />
físico para um processo de trabalho intelectual que exige conhecimento específico do<br />
sistema de automação e informatização da sociedade não deve ter modificado<br />
completamente a base econômica da sociedade.<br />
Por base econômica se entende um conjunto dialético constituído pelas forças<br />
produtivas e pelas relações de produção. A força de trabalho foi aperfeiçoada pelo<br />
conhecimento tecnocientífico. E na posição das classes sociais dos países desenvolvidos<br />
se tem o novo “proletário” de colarinho branco, esse novo grupo social de produção em<br />
novas formas de repartição dos produtos que geraram a “sociedade globalizada”.<br />
Na chamada sociedade “pós-moderna” não parece ter havido mudança estrutural<br />
da base econômica. Essa sociedade pós-industrial continua capitalista. A apropriação<br />
privada dos meios de produção persiste hoje camuflada em capitalismo de Estado, ou de<br />
empresas de capital aberto. E o caráter social da produção ainda repousa na contradição<br />
entre capital e trabalho.<br />
Hoje, o capital pertence aos países desenvolvidos, enquanto o ônus do trabalho<br />
pertence aos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos.<br />
Pós-modernidade é um nome genérico dado para formas culturais de um período<br />
que aparece desde os anos 1960. Abrange certas características como reflexão,ironia e<br />
um tipo de arte que mistura o popular e o erudito.<br />
Embora o termo tenha sido primeiro usado na arquitetura (Jencks), hoje descreve<br />
a literatura, artes visuais, música, dança, filme, teatro, filosofia, crítica, historiografia,<br />
teologia, e qualquer atividade de cultura em geral. É visto ora como uma continuação<br />
dos aspectos mais radicais da Modernidade; ora, ao contrário, como marcador de uma<br />
ruptura com ela.<br />
A Pós-modernidade uniu a lógica cultural do capitalismo tardio (Jameson); a<br />
condição geral de conhecimento em tempos de tecnologia da informação (Lyotard); a<br />
substituição de um foco da epistemologia modernista por uma ontologia (MacHale); e a<br />
substituição do simulacro pela realidade (Baudrillard).<br />
Por um lado, a literatura pós-moderna foi chamada de literatura de<br />
reabastecimento (Barth); por outro, de literatura de uma economia inflacionária<br />
(Newman).<br />
Em resumo, há pouco acordo nas razões de sua existência ou na avaliação de<br />
seus efeitos.<br />
Não obstante, um estudo das preocupações que se sobrepõem aos vários tipos de<br />
arte e discursos nos quais o termo é usado pode definir certos denominadores comuns<br />
que servem para compreendê-la.<br />
Ela envolve a combinação aparentemente paradoxal de autoconsciência e algum<br />
tipo de fundamento histórico, porém, ironizado. Por exemplo, o que foi chamado de
metaficção historiográfica (HUTCHEON, Poetics) é uma ficção preocupada com seu<br />
estado de ficção, de narrativa ou de linguagem, e também fundamenta alguma realidade<br />
histórica verificável.<br />
Os discursos pós-modernos instalam e subvertem convenções; e normalmente<br />
tratam essas contradições com ironia e paródia. Empregando formas e expectativas<br />
tradicionais e as destruindo ao mesmo tempo, os discursos Pós-modernos conseguem<br />
apontar as convenções como convenções, e isto inclui estruturas ideológicas como<br />
capitalismo,patriarcado, imperialismo e mesmo humanismo.<br />
O discurso Pós-moderno também desafia limites fixos entre os gêneros, entre<br />
tipos de arte, entre <strong>teoria</strong> e arte, entre arte erudita e cultura de massa.<br />
As interpretações e avaliações da Pós-Modernidade radicalmente discrepantes<br />
são em parte o resultado de sua incerteza política, inscrevendo-se, mas também<br />
subvertendo vários aspectos da cultura dominante. Essa dubiedade política estratégica é<br />
o denominador comum de muitos discursos pós-modernos e é também uma das razões<br />
para as diferenças de opinião sobre a validez e valor da pós-modernidade que<br />
problematiza temas como história, representação, subjetividade, ideologia e pobreza.<br />
(...).<br />
A objetividade racional pós-moderna afasta as imprecisas determinações do<br />
sujeito, objetivando o próprio sujeito. O indivíduo, criado pelas novas relações sociais,<br />
se torna objeto de controle, mas cujos desejos devem ser satisfeitos de alguma maneira e<br />
cujas necessidades novas devam ser satisfeitas no mercado. Mascara-se, com a<br />
decadência do bem-estar da classe média, um gigantesco aparato científico de<br />
dominação policial por meio do conhecimento dos mecanismos internos do desejo<br />
produzido, tornando o sujeito um objeto de um sistema de resultados.” (Conferir:<br />
SAMUEL, R. Novo Manual de Teoria Literária. 4. ed. Petrópolis:Vozes, 2007: 161-164)<br />
3.4 - TEMAS E VARIAÇÕES DA PÓS-MODERNIDADE<br />
“Num texto composto de séries descontínuas, John Cage (apud “Temas e<br />
variações”, publicado em Arte e palavra, do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ,<br />
1987) conseguiu resumir um ideário da condição pós-moderna, seus temas verbais e sua<br />
experiência de vida da seguinte forma:<br />
• Não-invenção: que se opõe ao finalismo progressista;<br />
• Renúncia ao controle: que se opõe ao controle do Estado social;<br />
• Afirmação da vida: ecologicamente;<br />
• Imitação da natureza: no seu modo simples de ser;<br />
• Multiplicidade: individualista;<br />
• Pluralidade dos centros;<br />
• Individualismo;<br />
• Terminais domésticos dos computadores;<br />
• Coexistência das dessemelhanças;<br />
• Nenhuma idéia de ordem;<br />
• Sensação de um processo contraditório e sem objetivo: que caracteriza a formação<br />
de qualquer nova realidade ainda em estágio anárquico;<br />
• Indeterminação;<br />
• Aventura: na vida e na cultura;<br />
• Passagem do medo para o amor;<br />
• Ser conduzido por pessoa (e não por idéias ou livro);<br />
• Fim da ideologia;
• Sensação de bem estar e segurança derivada do capitalismo de serviços;<br />
• Indeterminação do certo e errado ao mesmo tempo (o capitalismo de serviço cria<br />
ampla margem de segurança como os direitos humanos);<br />
• Capacidade de sair do zero (de iniciar e de ser);<br />
• Possibilidade de ajudar sem fazer nada (fim da violência como modo de agir; fim da<br />
idéia de luta de classes);<br />
• Tédio mais atenção (capacidade de ser sujeito o tempo todo, uma sensação de que a<br />
sociedade está organizada e o futuro garantido como seguro social, educação<br />
permanente, etc.);<br />
• Atividade em lugar de comunicação;<br />
• Comunicação em lugar de informação;<br />
• Informação para levar à ação;<br />
• Desmassificação do indivíduo;<br />
• Estar fora de moda (criar a própria moda individual);<br />
• Fim dos meios de comunicação como elementos formadores da opinião pública;<br />
• Entendimento pessoa a pessoa;<br />
• Valorização dos diálogos, das conversas, da consciência interpessoal;<br />
• Encontro para fazer algo junto;<br />
• Anonimato (fim da busca da fama)”. (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de<br />
Teoria Literária. 4. ed. Petrópolis:Vozes, 2007: 164-165. Observação: Os<br />
marcadores são de responsabilidade da conteudista deste Instrucional)<br />
3.5 - SOBRE A POESIA PÓS-MODERNA<br />
“Diz Cage:<br />
Poesia é não ter nada a dizer e dizer: não possuímos nada.<br />
Ele vê [Cage], porém, uma incerteza pairando no ar: a desconfiança na<br />
competência da educação como elemento de hominização; vê importância, agora, de<br />
estar perplexo; vê todos em direções diferentes numa anarquia mental; vê a valorização<br />
do budismo: a mente silenciosa”. (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria<br />
Literária. 4. ed. Petrópolis:Vozes, 2007: 165)<br />
3.6 - SOBRE AS SOCIEDADES CAPITALISTAS PÓS-MODERNAS<br />
“Nas sociedades capitalistas ricas aparece o desemprego como opção: a<br />
desistência de possuir (a capitulação): o objetivo é não ter objetivo”. (Conferir:<br />
SAMUEL, R. Novo Manual de Teoria Literária. 4. ed. Petrópolis:Vozes, 2007: 165)<br />
3.7 - PÓS-MODERNO / PÓS-MODERNISMO (NICOLAU SEVCENKO)<br />
RECAPITULAÇÃO (Este capítulo poderá ser encontrado também no Instrucional de<br />
Teoria da Literatura II, página 96)<br />
(In.: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de (Org.). Pós-modernidade. 1.ed. Campinas:<br />
Unicamp, 1987. Pp. 43 - 55)<br />
Resumo:<br />
PÓS-MODERNO Supõe uma reflexão sobre o tempo (por exemplo: Era Medieval /<br />
Era Moderna / Era Pós-Moderna) // A que tempo se refere? – Não a um tempo<br />
homogêneo, linear, em que se possa estabelecer um recorte e fixar uma data decisiva,<br />
um ato inaugural, como se poderia esperar da visão simplista da história, na qual somos<br />
zelosamente educados. Não se pode definir um início preciso e, embora se prenuncie e<br />
se deseje uma superação, ela não é nunca o fim. (p.45)
ATITUDE PÓS-MODERNA Atitude nascida do espanto, do desencanto, da<br />
amargura aflitiva, que procura se reconstruir em seguida como alternativa parcial,<br />
desprendida do sonho de arrogância, de unidade e poder, de cujo naufrágio participou,<br />
mas decidiu salvar-se a tempo, levando consigo o que pode resgatar da esperança. (p.45)<br />
QUE NAUFRÁGIO? QUE CATÁSTROFE FOI ESSA?<br />
[O autor analisa a partir de Walter Benjamim: Naufrágio e catástrofe produzidos pelas<br />
“caldeiras insaciáveis da locomotiva do progresso.” (p.47)] (Cf.: Walter Benjamim)<br />
[Naufrágio e catástrofes provindos “da racionalidade, do maquinismo, da transformação<br />
da sociedade num gigantesco autômato auto-regulado, em que a arte, a técnica e a vida<br />
se fundiriam numa unidade revitalizadora. Uma utopia da igualdade perfeita, produzida<br />
pela razão, governada pela técnica e desfrutada pela arte.” (p.47)] (Ler Benjamim)<br />
[Os Artistas se identificaram no início com a militância surrealista, ou seja, “a plenitude<br />
da máquina em seu máximo desempenho. (...) Os próprios Artistas viam-se como um<br />
movimento, um núcleo de combate, uma vanguarda. Metáforas técnicas e militares que<br />
prenunciavam já a guerra tecnológica e o planejamento totalitário das sociedades.”<br />
(p.47)]<br />
“Quando Benjamim analisa o quadro de Paul Klee as ilusões já se haviam consumido. A<br />
técnica derivada da razão instrumental, apropriadora, planejadora, ao invés de libertar,<br />
submetera os homens ao império da máquina genocida, dotada de uma capacidade<br />
destrutiva sem precedentes. A herança de Prometeu, ele descobre afinal, é a águia que<br />
devora as vísceras de cada um e não a redenção da humanidade. Ele e Klee se sentiram<br />
traídos, mas muitos intelectuais e artistas envolvidos na vanguarda dispuseram-se de<br />
boa vontade a colaborar com os novos poderes, na Europa e nos Estados Unidos,<br />
sobretudo depois da guerra. Revelação final: a vanguarda em si não foi traída, ela<br />
mantinha no seu íntimo uma correspondência com as forças do progresso.” (p. 47, final,<br />
e p.48)<br />
[Análise do quadro de Klee “Angelus Novus” – pp.48-49)<br />
Por que chamá-lo de “Angelus Novus”?<br />
1 o ) “Os anjos são intemporais, não têm vontade própria, são governados pelo desígnio<br />
divino e por isso mesmo a natureza ou as forças do mundo celeste jamais atuam sobre<br />
eles. // Se a tempestade letal do progresso, que vem do paraíso, decorreu da vontade<br />
de Deus, esse anjo não mais obedece, mas resiste aos propósitos do Supremo.”<br />
2 o ) ANJO DA HISTÓRIA<br />
“anjo decaído e sua rebeldia o tornou impotente para auxiliar os vencidos, mortos e<br />
humilhados.”<br />
“não mais sintonizado com o poder”<br />
“ele próprio está condenado a ser um vencido e enxovalhado”<br />
“sua natureza de ser destinado à vida eterna o submete ao castigo de assistir<br />
paralisado à destruição do mundo e à degradação de si mesmo [ele cuja<br />
missão precípua é agir e salvar]”<br />
ANGELUS NOVUS (QUADRO DE PAUL KLEE) METÁFORA DE PÓS-MODERNIDADE<br />
“Não deve haver dúvida quanto ao sentido desta metáfora: o ANGELUS NOVUS<br />
representa a própria condição do artista e do intelectual depois que o sonho modernista<br />
perdeu a sua inocência. A expressão “novo” justifica-se assim pela mudança de
perspectiva criadores aturdidos. Eles já não voam na mesma direção e na mesma<br />
velocidade do vento do progresso. Já não gozam do privilégio de se fundirem com a<br />
fonte única de todo poder, de toda vontade e de toda justiça. Não estão mais voltados<br />
para o infinito radiante do futuro e sim para a tragédia impronunciável do passado. Não<br />
acreditam mais no absoluto, nem se deixam levar por suas falsas promessas. Estão sós,<br />
reduzidos aos limites estreitos de sua fraqueza, seu horror e sua fúria. Essa é a condição<br />
do novo que se manifesta após a modernidade. (p.50)<br />
A CONSUMAÇÃO DO PROJETO DA MODERNIDADE PELA RAZÃO PLANEJADORA<br />
“A consumação do projeto da modernidade pela razão planejadora não significou o seu<br />
ponto final, embora alguns intelectuais e artistas tenham iniciado a crítica das<br />
vanguardas, depois que serviram na encruzilhada entre o planejamento totalitário e o<br />
terrorismo genocida, a maior parte manteve-se fiel a uma prática artística que, após a<br />
guerra, recebeu a consagração de estilo oficial das galerias e de governos<br />
comprometidos com a reconstrução, o desenvolvimento e o progresso. Marx já disse<br />
que a história não se repete senão como farsa, ao que caberia acrescentar que a arte não<br />
retoma sua aura senão como fuga. O que antes era moderno, agora se tornou pastiche,<br />
simulação, impostura: um gesto repetitivo, anódino e frouxo.” (pp.50-51)<br />
Não há como querer datar com precisão o início do PÓS-MODERNO.<br />
Benjamim pode ter sugerido que esse marco é a Segunda Guerra.<br />
ESSE PENSAMENTO É QUESTIONÁVEL.<br />
Em Kafka também existe uma sugestão a respeito.<br />
ATITUDES DA RAZÃO PLANEJADORA (p.52)<br />
Atitude de rejeição da herança socrática da unidade, transcendência e supremacia<br />
dos princípios da razão, da verdade e do belo;<br />
Atitude de repúdio à redução de toda realidade e toda experiência à homogeneidade<br />
e coerência das representações metafísicas (o que é chamado de espírito moderno desde<br />
o Renascimento e o Iluminismo), podem ser encontradas em Mallarmé, Joyce e Borges.<br />
As vanguardas tiveram um papel decisivo na destruição de uma ditadura da<br />
representação realista, segundo os cânones autoritários das “belas artes”.<br />
As vanguardas abriram caminho para o questionamento da suposta autonomia da<br />
arte, expuseram e tematizaram os artifícios da composição e exigiram a liberdade<br />
radical da imaginação criadora.<br />
As vanguardas substituíram a tirania do “bom gosto” burguês pela da “utopia<br />
compulsória” da razão planejada e do maquinismo. (p.52)<br />
“O movimento modernista nunca foi homogêneo. Do Futurismo ao Dada medeiam as<br />
distâncias que vão de um discurso colado à arregimentação fascista à denúncia visceral<br />
de qualquer engajamento. Da mesma forma não há qualquer unidade dentre as<br />
experiências artísticas e filosóficas que têm sido postas sob a legenda do PÓS-<br />
MODERNISMO.” (P.53)<br />
PÓS-MODERNISMO Não há sequer acordo sobre o significado desse termo.<br />
Para os americanos: mera correspondência na área cultural do advento da tecnologia<br />
pós-industrial, baseada nos recursos da cibernética e informática.
Para alguns autores: crítica voltada à negação total das vanguardas, que exalta o<br />
período anterior ao modernismo e se inclina para um retorno às fontes da história e do<br />
passado.<br />
Outros ainda denunciam como uma mera pasteurização dos cacoetes das vanguardas,<br />
sem vitalidade e sem compromissos.<br />
Todas essas concepções são de fundo reacionário e esvaziam o sentido crítico<br />
profundo do movimento.<br />
Há autores que se autoproclamam pós-modernista. Há latências passíveis de<br />
discussão como os riscos do esteticismo hermético de Aldo Rossi, ou da fetichização do<br />
passado em Palladio, por exemplo, para só falarmos da arquitetura. Há o<br />
monumentalismo autoritário e a sedução comprometedora pela técnica de Philip<br />
Johnson e dos autores do edifício do Centro Pompidou. O pós-moderno sem dúvida traz<br />
ambigüidades – aliás é feito delas – e deve ser criticado e superado. É isso que ele<br />
propõe: a prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o<br />
descontínuo como limite. (pp. 53-54)<br />
PÓS-MODERNO<br />
Anseio de uma justiça que possa ser sensível ao pequeno, ao incompleto, ao<br />
múltiplo, à condição de irredutível diferença que marca a materialidade de cada<br />
elemento da natureza, de cada ser humano, de cada comunidade, de cada circunstância,<br />
ao contrário do que nos ensinam a metafísica e o positivismo oficiais. A sensibilidade<br />
para a expressão inevitável do acaso, do contraditório, do aleatório. O espaço para o<br />
humor, o prazer, a contemplação, sem outra finalidade senão a satisfação que o homem<br />
neles experimenta. O aprendizado humilde da convivência difícil mas fundamental com<br />
o imponderável, o incompreensível, o inefável – depois de séculos de fé brutal de que<br />
tudo pode ser conhecido, conquistado, controlado. (p.54)<br />
3.8 - PÓS-MODERNO / PÓS-MODERNISMO (JAIR FERREIRA DOS SANTOS / TRECHOS)<br />
In.: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de (org.). Pós-Modernidade. 1 a ed.<br />
Campinas: Unicamp, 1987. P. 59-69.<br />
RESUMO:<br />
Para a identificação da literatura Pós-Modernista (Século XX):<br />
Barth (escritor americano) verbos no passado; // Deus, ou qualquer outro grande<br />
referente tipo História, Natureza, Conhecimento são liquidados como abonadores da<br />
ordem ou de um sentido para o universo e a vida; e em seguida é anulado o realismo, a<br />
mais cara das convenções <strong>literária</strong>s, com sua fé de sapateiro numa realidade objetiva<br />
que seria singelamente captada na linguagem por um sujeito-narrador atento e forte, em<br />
franca afinidade com as coisas.<br />
PÓS-MODERNISMO<br />
Literatura bem-humorada, fantasiosa, sem “iluminações”, problematizando ao<br />
máximo a percepção da experiência e da própria literatura. (p.59)<br />
Entropia (desordem) e anti-realismo são os decalques, na literatura, do capitalismo<br />
pós-industrial, baseado na tecnociência e na informação, em ascensão nos Estados<br />
Unidos da América há duas décadas. Receptor de mensagens aleatórias, emitidas pela<br />
“mass media” e os sistemas informatizados, o indivíduo percebe o mundo e a História<br />
como um espetáculo entrópico (desordenado), fragmentário, sem totalidade e irracional,<br />
enquanto à sua volta a realidade se dissolve numa colagem de signos e simulacros cujos
eferentes são remotos ou se perderam. Nesse cosmos tendente ao caos, sem princípio<br />
unificador seja ele cristão ou newtoniano, o sujeito é, quando muito, um átomo<br />
estatístico surfando nas ondas do provável e do incongruente. (p.60)<br />
Anos 60: Nova sensibilidade, não linear, não livresca – quântica no seu feitio<br />
descontínuo – estava sendo modelada pela TV, a moda, a publicidade, o design, o rock.<br />
Era Pop e gregária, dionisíaca e contracultural, experimentadora e sem hierarquias,<br />
enfeixando o que seria a revanche pós-moderna dos sentidos contra a inteligência<br />
modernista. O consumo desbancava a Bíblia, McLhuan abalava Marx e Dylan<br />
silenciava Eliot. Aos escritores americanos do pós-guerra, como Barth, Pynchon, Heller,<br />
Vonnegut, Brautingan, só restava não se oporem a essa sensibilidade pelo<br />
intelectualismo, mas pesquisar um estilo ou anti-estilo para expor sua face apocalíptica,<br />
sua farsa terminal, engendrar uma antiforma para o absurdo sob o guarda-chuva nuclear,<br />
numa era de mutação cultural. (p.60)<br />
Década de 60 (nos EUA): O romance tradicional perdera a eficácia e a credibilidade.<br />
A nova complexidade cultural e social ultrapassava seus meios de espelhar a realidade.<br />
Anteriormente: Dos Passos, Hemingway, Faulkner tinham feito a glória trágica do<br />
indivíduo e do tempo esfacelados, tinham explorado os conflitos da consciência<br />
alienada a poderosas forças sociais. (...) Esses meios explorados por esses escritores<br />
agora pareciam canhestros ante um mundo informacionalmente hiperbólico. (p.61)<br />
1963: Thomas Pynchon incoerência grotesca mas talentosa (Romance V)<br />
ROMANCE V: Alguma coisa experimental e lúdica igual ao modernismo emergia<br />
irredutível, no entanto, ao modernismo, excluindo muitos dos seus dogmas. Vinha sem<br />
revelações epifânicas; descartava o privilégio do artista como guia para iluminar os<br />
porões da subjetividade; substituía a psicologia por uma sociologia meio alegórica meio<br />
delirante; trocava a originalidade formal pela reciclagem, em paródia, dos vários<br />
gêneros; desfazia ou recompunha o enredo sem aludir a uma mítica tomada como<br />
quintessência da realidade; criava enfim sem se pretender “cultura superior”. (p. 61-62)<br />
ROMANCE TRADICIONAL (MODERNO) X ROMANCE PÓS-MODERNO<br />
Argumento de Barth:<br />
(...) numa ambiência niilista, desencantada, o romance tradicional, calcado na ilusão<br />
verossímil, é um flatus vocis... A solução seria jogar esse impasse intelectual contra<br />
si mesmo. Isto é, o romance deve se tornar uma imitação deliberada do romance,<br />
dos gêneros literários ou de qualquer outro texto apto a injetar-lhe sobrevida. Era a<br />
hora da metaficção, literatura sobre literatura, texto que expõe sua fraude e renega<br />
o ilusionismo. (p.62)<br />
O BURLESCO (AUTODEVORAÇÃO CRIADORA)<br />
O burlesco (exagero cômico) vai ser o tom dominante da metaficção. Uma estética<br />
jocosa, fantasista, não-modernista, do absurdo passará por ele. Gênero menor, modo<br />
temático e estilo narrativo, o burlesco, em ação na literatura inglesa desde o século<br />
XVII, surrupiado ao francês Searson, é um dispositivo de paródia que faz rir pela<br />
incongruência entre o fundo e a forma (algo assim como transpor a Eneida com a<br />
linguagem virgiliana para o meio de uma família calabresa vivendo hoje no Brás). Para<br />
fazer rir, o burlesco convoca toda a baixaria: sexo, violência, drogas, loucura, perversão,<br />
escatologia, em outras palavras, a parte maldita com a qual o pós-modernismo, sem<br />
ilusões ante a sociedade tecnológica, desanca o projeto Iluminista em sua crença na<br />
emancipação do homem pelo conhecimento e progresso. Nessa mesma trilha, o
urlesco é ainda a ponte intertextual por onde os autores pós-modernos cruzam o<br />
fosso (bem modernista) entre arte culta e arte de massa: ficção científica, romance<br />
policial, conto de fadas, pornografia, western e quadrinhos são alegremente<br />
canibalizados pelos espíritos mais requintados. (p.62)<br />
METAFICÇÃO<br />
Não é apenas uma fisiologia do escabroso e do bizarro, nem os funerais de gêneros que<br />
se esgotaram. A metaficção é um contra-romance que imita o romance. Ela quer ser<br />
uma nova epistemologia <strong>literária</strong>, um desmascaramento das convenções ficcionais<br />
mantidas intactas pelo próprio modernismo, e por aí, criando mundos verbais<br />
alternativos, ser um ataque à atualidade, na qual, segundo Borges, é total a<br />
contaminação da realidade pelo sonho. (p.63)<br />
NARRATIVA PÓS-MODERNA (ESSA IDÉIA JÁ SE TORNOU CHAVÃO)<br />
Vitimada pela entropia (volta à desordem), caotiza espaço, tempo e enredo.<br />
Enredo: destruído por saturação (Ler Barth) // Acontecem mais coisas do que a<br />
memória pode reter ou seria necessário; ou simplesmente o descartar (ler Donald<br />
Barthelme).<br />
Não existe curva dramática na narrativa pós-moderna // A curva dramática<br />
inexiste e o fim não traz mensagem ética; é antes lugar para glosas. Exemplo: Em Lost<br />
in the Funhouse, Barth-Narrador propõe e rejeita vários finais.<br />
PERSONAGENS: Cômicos (a começar pelo nome) // São emblemas<br />
bidimensionais com rala psicologia, como se extraídos das histórias em quadrinhos; //<br />
São palhaços como nós do acaso (seus desastres não levam à compaixão mas ao riso,<br />
pois lembram, na sua inanidade, na sua estupidez, ou na sua frieza, os bonecos<br />
beckettianos, em que filósofos europeus têm lido o eclipse do sujeito.<br />
TÉCNICA NARRATIVA: Está voltada à incerteza, que na metaficção é endêmica<br />
(uma doença). O labirinto é também instável. Pessoas ou pronomes narrativos podem<br />
se permutar até no meio de uma frase e ficamos sem saber quem está narrando. //<br />
Perda da unidade de tom; // Carga de incerteza, que provoca resistência à leitura,<br />
representa a opacidade do mundo à interpretação, o que é obtido mediante a<br />
desestabilização de elementos antes intocados da gramática narrativa. // Constatação<br />
da narrativa pela narrativa [exemplo (início de um conto): “Percorro a ilha e eu a<br />
invento”]. Segue-se, em 55 fragmentos, uma desova, em abismo, de contos de fadas<br />
mortos pela narração, mal nascem na narrativa, centrados nos motivos da varinha e do<br />
beijo mágicos. (Ler The Magic Poker, de Robert Coover); // No conto “A frase”, de<br />
Donald Baethelme, o personagem é a própria frase que está sendo escrita sem ponto<br />
algum por oito páginas. (p.65)<br />
INTERTEXTUALIDADE<br />
Se a intertextualidade – sistemática, carnavalesca – é marca de nascença no pósmodernismo,<br />
Nabokov (escritor russo) é seu rebento mais radical. Seu fantástico Pale<br />
Fire (1962), cujo humor e inteligência metem no chinelo as Écritures, fatura Tel Quel,<br />
parodia ao mesmo tempo thriller de espionagem, estudo literário e análise filológica, até<br />
consumar-se em delirante máquina intertextual. Pois seu personagem é um poema de<br />
999 versos escrito por John Shade possivelmente a partir de conversas com seu vizinho<br />
Kimbote. Mas Kimbote, que tenta provar sua participação na criação do poema, é um<br />
homossexual lunático que se crê o exilado e perseguido rei de Zembla, e, com isso, a<br />
narrativa nos mantém até o fim flutuando, incertos, entre dois textos e vários níveis de<br />
realidade: o objetivo, o delirante, o ficcional. (p.66)
METAFICÇÃO AMERICANA (Plural nas suas vertentes)<br />
prosa especializada em poesia concreta<br />
romances<br />
pornografias<br />
formalismo ultrachic<br />
narrativa picaresca (ironias)<br />
Em comum: Recusam a dourar o bezerro da ciência e da tecnologia na América pósindustrial,<br />
e porque, esteticamente, ostentam inventividade e consistência à prova de<br />
qualquer crivo crítico. // Os autores de metaficção americana (alguns) pedem<br />
atenção especial.<br />
THOMAS PYNCHON (1937): “Entropia” (conto); V (romance); The Crying of Lot<br />
49 (romance – 1966);<br />
JOHN BARTH (1930): The Floating Opera; Chimera; Letters; Sabbatical; Giles<br />
Goat-Boy (Giles, o Menino-Bode, 1966, 810 páginas); Giles, o Menino-Bode, de John<br />
Barth: Alegoria = paródia da Bíblia; releitura de Édipo, com uma paráfrase em versos;<br />
farsa da guerra fria entre EUA x URSS; reciclagem burlesca do mito do herói errante<br />
(Wandering hero), chupado confessadamente ao livro The Hero With Thousand Faces,<br />
de Joseph Campbell. Seu alvo predileto, no entanto, é a ciência. Todos os cientistas são<br />
cretinos ou defeituosos, e, logo na terceira página, Max Spielman, pastor de Giles e<br />
Psicoproctologista matemático, desvenda o mistério do Universo medindo o ânus das<br />
cabras, com uma das quais é amasiado. A metáfora universitária esculacha não só a<br />
política como também o ensino americano, onde o passar (pass) ou esmerdear (flunk) é<br />
convertido em princípio absoluto. Os computadores, que são autoprogramáveis,<br />
simbolizam a troca da liberdade frente ao destino pela tecnologia, mas também<br />
permitem ao ecletismo pós-moderno de Barth a deglutição <strong>literária</strong> da ficção científica.<br />
Em seu pique à [à moda de] Rabelais, símbolos e metáforas a serviço da burla<br />
filosófica, Barth castiga numa só verdade: sendo ilusório o heroísmo, viver é passar da<br />
fantasia ao saber, da ingenuidade à consciência, mas inutilmente. Se estamos perdidos<br />
no mito, estiolamos no saber. Da ilusão perigosa à ciência triste, o percurso é pela<br />
desmistificação e o ridículo. Somos uma lucidez desencantada. Se não há fins ideais que<br />
norteiem os meios, o niilismo bate no coração do conhecimento.<br />
O americano, dizem, vai à Disneylândia para sentir que fora dali sua vida é real. O pósmodernismo<br />
está ancorado aqui: na insustentável leveza de não crer nem na realidade<br />
nem na ficção. Nesse desvão descrente passeiam os simulacros ofertados pelos mass<br />
media, os modelos computacionais, a tecnociência – nova ordem na qual a simulação do<br />
romance pela sua destruição ainda é subversiva, porque invoca clownescamente, se não<br />
verdades, ao menos possibilidades atravessadas pelo absurdo, o que é sempre<br />
inquietante. Não é outro o motivo da generosa acolhida que essa literatura teve entre os<br />
jovens.<br />
Na origem dessa virada estética sem dúvida está o fato de que, sem projeto histórico<br />
além do consumo, sem novos ideais em substituição aos valores tradicionais, a<br />
sociedade pós-industrial abandona o artista à deriva de um pacto patafísico com a<br />
entropia: se a desordem é o destino, vamos rir enquanto é tempo. Pois ele sabe que a<br />
arte, na visão pós-moderna, não passa de um “sublime excremento” e que chegou tarde<br />
demais. Sua voz é vazia, glacial, alusiva, inumana, retrô. O que afinal, para ainda dar o
que pensar, não é um privilégio pós-moderno. Como transcreve Barth num<br />
surpreendente ensaio publicado nos anos 70, The Literature of Replenishment, o escriba<br />
egípcio Khakheperresemb já se queixava 200 anos antes de Cristo: “Tivesse eu frases<br />
desconhecidas, palavras singulares numa língua jamais usada...” (pp. 70-71)<br />
3.9 - PÓS-MODERNO / NARRATIVAS<br />
ANOS 60 (MOMENTO DE TRANSIÇÃO PARA O PÓS-MODERNISMO NA LIT. BRASILEIRA)<br />
• Nova sensibilidade não linear, descontínua (modelada pela TV, a moda, a<br />
publicidade, o design, o rock);<br />
• Pop X gregária;<br />
• Dionisíaca X contracultural;<br />
• Experimentalista X sem hierarquias;<br />
• REVANCHE PÓS-MODERNA DOS SENTIDOS CONTRA A INTELIGÊNCIA<br />
MODERNISTA<br />
• A IDEOLOGIA AMERICANA DIRECIONANDO<br />
• CONSUMO E DESBANCANDO A BÍBLIA<br />
• McLhuan abalando Marx<br />
• Bob Dylan silenciando T. S. Eliot.<br />
3.10 - TENDÊNCIA LITERÁRIA<br />
• Sensibilidade (oposição ao intelectualismo);<br />
• Pesquisa de um estilo, ou anti-estilo, para expor a face apocalíptica da realidade;<br />
• Engendramento de uma anti-forma para o absurdo (localizado sob o teto nuclear);<br />
• Tendência <strong>literária</strong> inserida numa Era de mudanças culturais.<br />
ANTES DE 60 (MODERNISMO)<br />
• Exploração dos conflitos da consciência (alienada a poderosas forças sociais)<br />
DEPOIS DE 60 (PÓS-MODERNISMO)<br />
• EXPLORAÇÃO DE UM MUNDO INFORMACIONALMENTE HIPERBÓLICO;<br />
• ALGO MEIO PARECIDO COM A TENDÊNCIA MODERNISTA (EXPERIMENTAL E<br />
LÚDICA), MAS EXCLUÍNDO MUITO DOS SEUS DOGMAS.<br />
EXEMPLOS:<br />
• Excluindo as revelações epifânicas (Clarice Lispector e Guimarães Rosa <br />
epifânicos);<br />
• Descartando o privilégio do Artista como guia para “iluminar” os porões da<br />
subjetividade;<br />
• Substituindo a psicologia por uma sociologia meio alegórica, meio delirante;<br />
• Trocando a originalidade formal pela reciclagem, em paródia dos vários gêneros;<br />
• Desfazendo e recompondo o enredo, sem aludir a um arcabouço mítico (o mítico<br />
com quintessência da realidade);<br />
• Criação sem pretensão a uma “cultura superior”;<br />
• Testamento com alegorias onde o apocalipse é um thriller à moda dos quadrinhos.<br />
• Literatura-Paródia ou Literatura de Exaustão;<br />
• Homenagem aos autores de antes;<br />
• Sacralização desses autores (principalmente, de Jorge Luis Borges): notas de péde-página<br />
a textos imaginários;<br />
• Ambiência niilista, desencantada;<br />
• Embate intelectual: Literatura X literatura;
• Impasse intelectual (o intelectual-indivíduo contra o mundo intelectual<br />
circundante) // A narrativa ficcional imitando deliberadamente a narrativa<br />
ficcional, os gêneros literários ou qualquer outro texto apto a injetar-lhe<br />
sobrevida (METAFICÇÃO: literatura sobre literatura / texto que expõe sua<br />
própria fraude e renega o ilusionismo);<br />
PÓS-MODERNISMO:<br />
AUTODEVORAÇÃO CRIADORA (os instrumentos ainda estavam<br />
por inventar, ou reinventar, por isto, o indivíduo-narrador busca no exagero<br />
o tom dominante de sua metaficção) ESTÉTICA DO ABSURDO<br />
Características da Literatura Pós-Modernista:<br />
♦ Romance-Ensaio<br />
Detém-se na análise de fatores íntimos e reações psicológicas familiares;<br />
Situado na confluência do existencialismo e do realismo crítico, exprimindo com<br />
sutil e desencantada lucidez uma problemática do nosso tempo e situação;<br />
Expressão da vivência do tempo, das relações entre o passado e o presente;<br />
Escrita revolucionária. A caneta como arma, ou então, como um juíz implacável,<br />
questionando, indagando, apontando as falhas do Sistema. Só que este “juíz” não<br />
tem respostas para os seus questionamentos e indagações e não tem poder<br />
ideológico suficiente para consertar os “erros” que incomodam.<br />
♦ Escrita-Pesquisa<br />
Não há um projeto ficcional que a sustente;<br />
Narrador: não sabe o que vai escrever;<br />
Obra: é a ficção acontecendo; o mundo ficcional se movimentando e, ao mesmo<br />
tempo, sendo construído desordenadamente; Literatura-Viva;<br />
Tentativa de preenchimento discursivo (diferente da forma romanesca tradicional<br />
com princípio, meio e fim).<br />
MUNDO REAL (VITAL) X MUNDO FICCIONAL<br />
- Caótico e confuso - Caótico e confuso<br />
- Fragmentado - Fragmentado<br />
- Inautêntico - Inautêntico<br />
- Realidade vital absurda - Realidade ficcional absurda<br />
- Homem-objeto - Personagem-objeto<br />
Outras características:<br />
♦ Vida existencial e vida ficcional: várias dimensões que se interpenetram, cada<br />
uma possuindo leis próprias e particulares. Por exemplo: vida social, vida<br />
íntima, vida conjugal, vida religiosa, etc.<br />
♦ O romancista não aceita o tempo cronológico, linear, previsível, assim,<br />
observa-se a confusão espacial e temporal, produzida pelo monólogo interior<br />
ou diálogo entre vários “eus” ficcionais que, na verdade, representam uma<br />
outra forma de monólogo interior do próprio ficcionista.
3.11 - NARRATIVA PÓS-MODERNA/PÓS-MODERNISTA DE 1 a GERAÇÃO<br />
♦ REJEITA OS VALORES FICCIONAIS JÁ CONHECIDOS;<br />
♦ REGISTRA, POR MEIO DE UM TURBILHÃO DE PALAVRAS, A AVENTURA<br />
EXISTENCIAL DE UM HERÓI PROBLEMÁTICO, O PRÓPRIO NARRADOR,<br />
ALTER EGO DO ESCRITOR PÓS-MODERNO;<br />
♦ O HERÓI PROBLEMÁTICO DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX E INÍCIO<br />
DO SÉCULO XXI É O PRÓPRIO ESCRITOR (HERÓI PROBLEMÁTICO DE UMA<br />
NARRATIVA PROBLEMÁTICA).<br />
Rejeitando os valores já conhecidos da ficção linear, problematizando a realidade<br />
ficcional, o escritor do século XX e início do século XXI só tem duas saídas:<br />
1 o ) Como porta-voz da realidade vital, ele imagina também uma realidade<br />
objetiva (social ou psicológica). Sua proposta inicial: oferecer aos leitores seu<br />
testemunho pessoal de uma realidade que ele almeja decifrar. Ele está vivendo um<br />
momento de crise, não sabe como enfrentar o porvir, e a sua obra torna-se o meio<br />
de expressão desse desequilíbrio (ou seja, de como estar e permanecer no mundo).<br />
2 o ) A realidade é apenas um pretexto para o seu narrar. A forma (a palavra) é mais<br />
importante para a realização da narrativa. A forma que dará consistência à sua voz<br />
ininteligível, monocórdia, solitária, repleta de “rumores brancos” (ler: Rumor<br />
<strong>Branco</strong>, de Almeida Faria, 1962, ficcionista português). A forma abrangendo,<br />
atropeladamente, toda essa realidade. O escritor esvazia as imagens tradicionais,<br />
ficcionais, que dão consistência a essa realidade; contesta, desarticula, rejeita as<br />
técnicas discursivas já sacralizadas.<br />
3.12 - NARRATIVAS PÓS-MODERNAS/ PÓS-MODERNISTAS DE 1 a E 2 a GERAÇÕES<br />
Em busca da linguagem primordial. O homem primitivo (o primeiro de uma Nova<br />
Era) se apoderando da linguagem, afastado das regras idiomáticas que<br />
conduziram a humanidade até então.<br />
ESCRITOR PÓS-MODERNO/PÓS-MODERNISTA DE 2 a GERAÇÃO: É o<br />
Senhor Absoluto dessa linguagem e, já que não há regras a seguir, está livre para<br />
utilizá-la do jeito que quiser.<br />
3.13 - SOBRE O MARXISMO INDEPENDENTE DE GEORG LUKÁCS COMO AUXILIAR NOS<br />
ESTUDOS DE LITERATURA PELO PONTO DE VISTA DE TEOFILO URDANOZ<br />
URDANOZ, Teofilo. História de la Filosofia. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 1985<br />
(Vol. VIII): 33-37.<br />
Georg Lukács iniciador da corrente de marxistas independentes que surgiram fora<br />
da Rússia Soviética. // Lukács alcançou especial notoriedade por seus vários desvios da<br />
ortodoxia marxista, durante sua longa vida. E também por sua grande fama e influência<br />
sobre a corrente neomarxista, graças a sua fecunda atividade <strong>literária</strong>, como crítico de<br />
arte e teórico da estética marxista. (op.cit.: 33)<br />
MARXISMO REVISIONISTA<br />
Lukács pensador marxista, inconformista e recalcitrante.<br />
abre caminho a uma série de marxistas independentes do mundo ocidental.<br />
não se satisfaz com o socialismo materialista, que impunha o abandono<br />
da cultura das ciências do espírito.<br />
“A longa e turbulenta vida de Lukács é um caso típico de pensador marxista<br />
inconformista e recalcitrante que posteriormente vai servir de exemplo e abrir o
caminho a uma série de marxistas independentes do mundo ocidental, recusando-se a<br />
ligar-se aos rígidos cânones dogmáticos do marxismo-leninismo.” (op. cit.: 34)<br />
“As interpretações pessoais da filosofia marxista desenvolvidas por Lukács<br />
renovam, a seu modo, os desvios esquerdista e direitista que foram dados nas discussões<br />
internas do marxismo russo. Sua obra, de 1923, História e Consciência de Classe, que<br />
revela uma profundeza especulativa superior à dos marxistas de então, representa o<br />
revisionismo de esquerda, semelhante ao professado na Rússia por Deborin, ainda que<br />
de signo mais radical. No prólogo posterior, de 1967, esclarece (explica) seu sentido,<br />
dizendo que o livro ‘significou o intento, provavelmente mais radical, de reatualizar o<br />
revolucionário de Marx, mediante uma renovação e continuação da dialética hegeliana e<br />
seu método. A empresa resultou porque, paralelamente, ou seja, naqueles mesmos anos<br />
se faziam cada vez mais intensas, na filosofia burguesa, as tendências à renovação de<br />
Hegel. (op. cit.: 37)<br />
3.14 - MODERNIDADE/PÓS-MODERNIDADE: CARACTERÍSTICAS SÓCIO-CULTURAIS E FICCIONAIS<br />
(SÉCULO XX AO INÍCIO DO SÉCULO XXI)<br />
• Transformação do mundo: rompimento com as tradições seculares;<br />
• Descaso;<br />
• Corrupção;<br />
• Construção e Destruição;<br />
• Progresso técnico;<br />
• Industrialização avançada;<br />
• Ligação de longas distâncias;<br />
• Crescimento rápido;<br />
• Desenvolvimento acelerado;<br />
• Realce dos valores econômicos;<br />
• Novas tecnologias;<br />
• Desapego à religião;<br />
• Criação de novos conceitos religiosos;<br />
• Emancipação das áreas do saber;<br />
• Apropriação e reformulação dos saberes (religiosos e/ou filosóficos) de culturas<br />
antigas e/ou exóticas e transformação das mesmas em literatura direcionada à massa.<br />
3.15 - SOBRE A FICÇÃO PÓS-MODERNISTA (DE 2 a GERAÇÃO) DE ROGEL SAMUEL<br />
(NEUZA MACHADO<br />
“É evidente que, em relação às obras, as idéias permanecem sempre breves, e que nada pode<br />
substituir as primeiras. Um romance que não fosse mais do que o exemplo de gramática que<br />
ilustra uma regra ─ ainda que acompanhada de sua exceção ─ seria naturalmente inútil: bastaria<br />
o enunciado da regra. Exigindo para o escritor o direito à inteligência de sua criação, e insistindo<br />
sobre o interesse que a consciência de sua própria pesquisa representa para ele mesmo, sabemos<br />
que é sobretudo ao nível do estilo que esta pesquisa se realiza, e que no instante da decisão nada<br />
está claro. Assim, após ter indisposto os críticos ao falar da literatura com a qual sonha, o<br />
romancista se sente repentinamente desarmado quando esses mesmos críticos lhe pedem:<br />
“Explique-nos portanto por que você escreveu esse livro, o que significa, o que você pretendia<br />
fazer, com que intenção você empregou esta palavra, por que construiu esta frase desse modo?<br />
Diante de semelhantes perguntas, seria possível dizer que sua “inteligência” não lhe serve para<br />
mais nada. O que ele quis fazer foi apenas aquele livro mesmo. Isto não quer dizer que ele está<br />
sempre satisfeito com esse livro; mas a obra continua a ser, em todos os casos, a melhor e a<br />
única expressão possível de seu projeto. Se o escritor tivesse tido a faculdade de dar uma<br />
definição mais simples de seu projeto, ou de reduzir suas duzentas ou trezentas páginas a uma<br />
mensagem em linguagem clara, de explicar o funcionamento de seu projeto palavra por palavra,
em suma, de dar a razão de seu projeto, não teria sentido a necessidade de escrever o livro. Pois<br />
a função da arte não é nunca a de ilustrar uma verdade ─ ou mesmo uma interrogação ─<br />
antecipadamente conhecida, mas sim trazer para a luz do dia certas interrogações (...) que ainda<br />
não se conhecem nem a si mesmas.” (Conf.: ROBBE-GRILLET, Alain. Por um novo<br />
romance. Ensaios sobre uma literatura do olhar nos tempos da reificação.<br />
Tradução: T. C. Netto. São Paulo: Documento, 1969: 11)<br />
“Com estas palavras de Alain Robbe-Grillet, sobre o novo romance (não apenas<br />
francês), o fenômeno literário que marcou o globalizado e caótico século XX (o século<br />
que propiciou a difícil transição histórica da modernidade para a pós-modernidade),<br />
palavras estas escritas no final da década de cinqüenta, exprimo o meu empenho de<br />
dialogar reflexivamente com a obra de Rogel Samuel denominada O Amante das<br />
Amazonas i (publicada em segunda edição, em 2005, pela editora Itatiaia de Belo<br />
Horizonte). Recupero as asserções de Robbe-Grillet sobre o narrador do século XX<br />
(neste momento interativo da crítica <strong>literária</strong> no Brasil, e neste início de século XXI),<br />
porque medito sempre o enigma criador do ficcionista do todo do século passado,<br />
independente de sua localização de nascimento, e percebo que as “inovações”<br />
ficcionais, daquele momento, continuam hoje sob “renovadas” roupagens, e as questões<br />
teórico-críticas (que enlaçam o escritor ficcional), levantadas por Robbe-Grillet,<br />
continuam ainda a fazer parte da realidade sócio-intelectual do crítico literário<br />
brasileiro. Retomo o assunto, porque, nestes tempos pós-modernos, tempos<br />
globalizados, o escritor (seja de qualquer nacionalidade, poeta ou ficcionista ou<br />
dramaturgo ou outro direcionamento literário) se coloca na obrigação de explicar a sua<br />
criatividade à chamada imprensa cultural dominante. É matéria verdadeira que somente<br />
algumas questões visíveis são questionadas, porque, as invisíveis vão estar resguardadas<br />
no plano particular do autêntico texto-obra, a exigir que o leitor-especulador do<br />
momento histórico de sua publicação, ou de épocas futuras, as venha examinar. Sem o<br />
aval das explicações exigidas (uma vez que os textos ficcionais da pós-modernidade são<br />
de difícil entendimento), o escritor dos dias de hoje não se contempla reconhecido pela<br />
mass media como criador literário, perdendo por tal desvalimento a oportunidade de ser<br />
lido, o que, convenhamos, é o anseio normal de quem escreve.<br />
Esta propedêutica, objetivando espelhar a posição do crítico literário atual, se<br />
fez/faz-se necessária, porque a enxergo apontada em minha direção, uma vez que, para<br />
interagir com a diferenciada obra ficcional de R. Samuel, respeitante ao espaço<br />
geográfico do Amazonas ─ social e mítico ─, lugar pouco conhecido à minha própria<br />
percepção intelectiva, movi-me, inicialmente, em busca das estimáveis explicações do<br />
próprio escritor, acauteladas nas diversas entrevistas por ele permitidas aos jornalistasinternautas.<br />
Por intermédio das Entrevistas, Rogel Samuel ofereceu, aos leitores de seu<br />
romance, encaminhamentos seguros sobre a natureza de sua criatividade ficcional a qual<br />
reputo como autenticamente Pós-Moderna/Pós-Modernista de Segunda Geração.<br />
Autêntica, porque há no momento inautênticos autores que se fazem passar por<br />
ficcionistas pós-modernos, mas que são, em verdade, escritores-mercadores de uma<br />
literatura de massa sem nenhum crédito no âmbito da Arte Literária. Apenas foram<br />
conceituados pela mídia enganosa deste momento sócio-intelectual como bons<br />
escritores, para visarem ao lucro em detrimento da qualidade de um texto. O romance de<br />
Rogel Samuel, pelo exame teórico-interpretativo-reflexivo, ultrapassa tais exigências<br />
comerciais, pelo fato de ser uma narrativa de alto nível criativo e se inserir no que<br />
qualifico como peculiar obra pós-moderna.”
3.16 - LEITURA CRÍTICO-REFLEXIVA DE NEUZA MACHADO (SOBRE O AMANTE DAS<br />
AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL<br />
(Conferir: literaturarogelsamuel.blogspot.com.br)<br />
O início do capítulo quarto do nosso “O amante das amazonas” ou “PAXIÚBA”<br />
diz assim:<br />
“E chega que alguém diz: “Bons dias” (a voz como era?) - sim, que quem se<br />
introduz nesta estória e então fala é o enorme bugre caboclo Paxiúba, naquela época<br />
com cerca de dezenove anos, mas já bem dotado de grande, de nome, de alto, de um<br />
metro e noventa e dois de altura, ah, bem me lembro inteiro dele sim, a gente fica velho<br />
mas, antes de morrer, a memória a gente aviva, e nela vive, até o tampo do tempo nos<br />
apagar, gatão lustroso que passa sua língua, nada, no para, o esquecido, tal que logo<br />
desaparecemos que vai ser como se nem nunca tivéssemos existido, nem mesmo como<br />
personagem de ficção que é o que é. Mas o olho burro tudo vê, e registra ─ mosca da<br />
vida sobre a rosa de sangue e da conversa vã. Pois sim. Que diz-que Paxiúba era filho<br />
de um negro barbadiano da Madeira-Mamoré com uma índia Caxinauá que não conheci,<br />
e se tomou lendário e eterno ─ ele-mesmo se aproximando assim, remando silencioso e<br />
feroz pela face da manhã, no luxo de frente do porto do Laurie Costa, que ficava na<br />
margem esquerda do Igarapé do Inferno, submerso e distribuído pelo prestigioso vale.<br />
“Pois se aproximava somente para dizer: “Bons dias”, e assim se referia a uma<br />
certa e acocorada Zilda, esposa do Laurie Costa, lavadeira das roupas, agachada sobre a<br />
prancha lisa, lixiviada, de Itaúba, tabuão de sabão, ─ ela nem o tinha visto e pressentido<br />
em suas costas feito um jacaré inteiro estirado imenso ─ Paxiúba na montaria,<br />
espetáculo bom de ver, mas literário, mas enorme de belo, que já o conheci assim,<br />
escuro caboclo e tigre, grandão, desenvolto, olho de cobra, de bicho, poderosamente<br />
selvagem, no vivo, no ensolarado do olho amarelo, luminoso, feroz, sobre musculatura<br />
nobre de dar inveja às estátuas do Louvre, erguida cabeça sobre o pescoço grosso,<br />
sólido, de muito viva, e guerreira, assassina, arisca subjetividade ─ era assim que ele<br />
vinha, cínico, atravessador, a ninguém poupando ou aturando, nem a juiz, como se<br />
dissesse: “te conheço: sei quem és” ─ o certo da culpa, gesto indecente e ameaçador, de<br />
assustar policial ─ seu poder vinha do cheiro de camaru que arrancava da vítima fácil<br />
confissão antecipada, sim, enfraquecia e anestesiava a gente, nos dando um sono sob<br />
seu pulso, que se sabia dele em quem nunca se pôde confiar ─ impondo mole aquilo que<br />
o sustentava nos seus sangrentos desígnios e poderes, saberes e prazeres, o que<br />
encontrava no fundo de nós-mesmos, arrancados e submetidos à acessibilidade, ah, o<br />
bruto, mas fundamental, da impressão fugidia para a certeza, correta e culposa, que<br />
coage, que oprime, na lógica da nossa tenebrosa região infantil, a revelar-se, impelida, à<br />
força hipnótica, para fora, para novas submissões, e sorrisos, se infiltrando nas fendas<br />
do poder de onde imperava, ardiloso e interno, na interseção vazia e na interdição da<br />
resposta, na inversão das forças a ré, malandragem desmascarava única nobreza,<br />
qualquer dignidade sobrevivente: “Diga sua verdade” ─ era a linguagem da ordem de<br />
seus olhos no risco do seu sorriso sensual e perverso, sublinhado por esboço de pecado<br />
que nos fotografava, que nos dizia, no espelho avaliado das baixezas. Paxiúba era bom<br />
de não se encontrar de repente, na estrada deserta. Exigia prudência, medo e prática<br />
muda da obscura familiaridade com a ternura se via na transmissão de seu segredo. Em<br />
uma palavra: explícito. Quando se retirava, a gente se persignava. Porque se efetivava<br />
guerreiro de épocas irregulares, de tempo inverso, remotíssimos mecanismos ardilosos,<br />
das possibilidades do corpo, privilegiadas, sexuais, capazes de muito realizar,<br />
sedimentando o músculo vivo e assumido. Paxiúba, emblema da Amazônia amontoada
e brutal, sombria, desconhecida, nociva. E a montaria, transpostos os espaços da<br />
vigilância, esbarrava nela, na prancha do cais onde Zilda lavava roupa branca e pura,<br />
iluminada, a espuma saindo e se indo assim de sabões e bolhas de vidro, se esparzindo<br />
na bordadura branca da superfície do rio espelhado de sol e na purificação religiosa da<br />
água.”<br />
A LEITURA DE NEUZA MACHADO (MACHADO, Neuza. O Fogo da Labareda<br />
da Serpente: Sobre O Amante das Amazonas de Rogel Samuel. Rio de Janeiro: N.<br />
Machado, 2008. 105p.) se inicia desse modo:<br />
“Manifestado à moda dos lendários heróis de misteriosas histórias de cerimônias<br />
e cultos diversos, Paxiúba é a encarnação mítico-ficcional de antigos guardiões<br />
extravitais (de qualquer arcabouço esotérico da humanidade; humanidade esta quase<br />
sempre conduzida por elementos das forças sobrenaturais), os quais povoaram, ao longo<br />
do tempo, a poderosa imaginação reduplicada, sintagmática, do mundo dos conceitos<br />
veneráveis. Paxiúba se configura como o símbolo das forças da natureza selvagem do<br />
Amazonas (no caso, o estrato mítico-substancial da sociedade indígena amazonense) e,<br />
acima de sua aparência exterior, a matéria épica se faz presente no relato ficcional,<br />
realçando o prestígio prosopopaico de sua natureza humana.<br />
“Se me encontro aqui como apreciadora de obra ficcional da pós-modernidade,<br />
envolta em minhas próprias teorizações analítico-fenomenológicas sobre um assunto no<br />
qual eu mesma me alterco constantemente, confirmo que em O Amante das Amazonas<br />
há um altíssimo grau de entropia no sistema de narração (ausência da ordem narrativa à<br />
moda tradicional). Para explicitar o seu personagem mítico-ficcional Paxiúba, o criador<br />
pós-modernista de Segunda Geração se vale dos enclaves narrativos, tão do gosto dos<br />
escritores pós-modernos/pós-modernistas da Primeira Geração. Entretanto, enquanto<br />
autor-criador de um novo direcionamento estético-ficcional, mais de acordo com a<br />
vivência do homem do século XXI, objetivou abandonar o estereótipo (lugar comum)<br />
do personagem reificado (inacreditável, fantasioso) da primeira fase, procurando<br />
descortiná-lo por meio de um olhar diferenciado (o ser mítico a se transformar em<br />
humano), circunscrito a insólitos acontecimentos dinamizados. (Preciso esclarecer que<br />
os escritores do final do século XX, dos anos 80 para cá, perceberam as qualidades<br />
intrínsecas das regras sócio-culturais do século XXI, e, por sua vez, como participante<br />
ativo daquele momento, o narrador rogeliano enxergou criativamente a mudança que já<br />
se avizinhava).<br />
“A entropia narrativa, no século XX, surgiu das pioneiras modalidades sócioculturais<br />
capitalistas, intermediárias de uma novíssima ciência, baseada em um conjunto<br />
de métodos científicos, de novas modalidades existenciais que visavam resolver os<br />
problemas do homem pós-moderno. Fundamentado-se em normas predominantemente<br />
científicas e em transmissões de notícias generalizadas oferecidas pelos meios de<br />
comunicação em evidência naquele momento (rádio, televisão e cinema), as mensagens<br />
saíam de uma realidade cotidiana, poderosa, mas que já chegavam descaracterizadas aos<br />
destinatários, propiciando espetáculos insólitos. Assim, a técnica discursiva da<br />
propaganda impôs suas diretrizes no universo ficcional da pós-modernidade, naquela<br />
Primeira Geração de escritores ficcionistas, obrigando-os a “criar” seus textos ─<br />
sintagmáticos ou paradigmáticos ─ pelo ponto de vista de uma realidade liquidificada,<br />
reduzida a diversas cópias (ou colcha-de-retalhos, ou patchwork quilt) de conceitos<br />
vitais diversificados e entrelaçados, conceitos esses vistos pelos críticos da literatura do
final do século XX como simulacros de uma realidade há muito despojada de suas<br />
características fundamentais.<br />
O bugre Paxiúba, que chega dizendo “Bons dias” à lavadeira Zilda (nesta<br />
segunda etapa da narrativa), não é um simples personagem reificado. Ele possui um<br />
nome que o dignifica. Em seus domínios míticos, ele é Pati’ ïwa que, em tupi, significa<br />
“palmeira dos igapós”, uma planta palmácea, das regiões amazonenses alagadas pela<br />
chuva (igapós), que mede cerca de dez a quinze metros de altura. A dimensão ficcional<br />
do Manixi (o Palácio e as terras que o cercam) pertence à matéria mítica. O bugre<br />
Paxiúba traduz a heroicidade dos lendários habitantes de um lugar de pura maravilha (e<br />
a palavra maravilha aqui não possui sentido telúrico). Aquele índio mestiço ─ filho de<br />
uma índia caxinauá e de um negro barbadiano ─ jamais poderá ser conceituado como<br />
um personagem sem nome, o que caracterizou as narrativas do Primeiro Momento Pós-<br />
Moderno/Pós-Modernista. Paxiúba não poderá ser avaliado como um personagem<br />
menor, sem qualidade <strong>literária</strong>, a se debater no Caos das chamadas narrativas insólitas,<br />
porque sua grandeza mítica se solidifica até ao final narrativo, mesmo quando o núcleo<br />
ficcional se traslada para a Cidade de Manaus.<br />
No máximo, se me predisponho a avaliá-lo somente pelo ponto de vista das<br />
regras estruturais da ficção (analise cientificista), uma vez que o próprio narrador<br />
concedeu-me esta incursão teórico-crítica, ao revelá-lo como “espetáculo bom de ver,<br />
mas literário”, ou seja, índio-bugre “enorme tetrápode”, aventuro-me a dizer que o<br />
caboclo Paxiúba se presentificou, na ficção rogeliana, por meio da narração simbólica,<br />
passada de geração a geração, como demonstrativo do valor das origens do homem<br />
amazonense. Assim, aqui, por intermédio da palavra do escritor, nomeando-o como<br />
“literário”, apresenta-se uma diferenciada força da matéria mítico-ficcional. Todos os<br />
adjetivos qualificativos, utilizados pelo ficcionista, impelem o leitor a concebê-lo como<br />
um ser extraordinário. E o extraordinário jamais significará a realidade vital<br />
sedimentada no racionalismo cientificista. A perfeição mítica, dos primeiros segmentos<br />
narrativos, o coloca em uma posição privilegiada: Paxiúba, o “poderosamente<br />
selvagem”, possui uma “musculatura nobre de dar inveja às secularmente conceituadas<br />
estátuas do Louvre, pois possui a cabeça erguida sobre o pescoço grosso, sólido, de<br />
muito, e guerreira, assassina, arisca subjetividade”. E quem confirma a grandeza de<br />
Paxiúba, sabe o por quê de tal afirmação. As estátuas do Museu do Louvre foram,<br />
muitas vezes, analisadas, ou mesmo interpretadas pelo escritor, um homem que nunca<br />
se recusou às aventuras das viagens internacionais, um conhecedor inconteste das<br />
reverenciadas obras dos grandes artistas de todos os tempos, obras estas destacadas nas<br />
famosas paredes e galerias do Museu francês.<br />
“A água doce é a verdadeira água mítica” ii , assim afirmou Gaston Bachelard.<br />
Paxiúba “se introduz na história e então fala” porque, para criar o espaço tridimensional<br />
do Manixi ─ sócio-mítico-ficcional ─, patrocinado pelo elemento água (garantindo-lhe<br />
perenidade), e para, posteriormente, lançá-lo no imaginário-em-aberto do leitor<br />
reflexivo, o narrador pós-modernista de Segunda Geração percebeu a necessidade de<br />
uma outra renovada e poderosa chave, para abrir-lhe a porta da dimensão mítica,<br />
sobrenatural, de uma terra desconhecida. Na primeira etapa da narrativa rogeliana, a<br />
chave resguardada pelos “parentes” possibilitou ao narrador-personagem Ribamar de<br />
Sousa a interação com os aspectos históricos visíveis daquela realidade diferenciada. O<br />
tio Genaro e o irmão Antônio, possuidores da primeira chave, conheciam somente as<br />
duas margens conceituais do Igarapé do Inferno e umas poucas trilhas terrestres do<br />
Manixi. Não eram natos do lugar, portanto, não poderiam propiciar ao narrador do
século XX um incomum reconhecimento das peculiaridades mítico-ficcionais, ainda não<br />
nomeadas, daquele fabuloso espaço sócio-substancial. Por conseguinte, urgia encontrar<br />
uma solução que o levasse a interagir com as aquáticas sinuosidades desconhecidas da<br />
narrativa, ou seja, intuir uma singular chave transcendental. E eis que Paxiúba se<br />
introduz na história, diferenciado dos “parentes”, revelando o poder de fala dos antigos<br />
narradores de tempos heróicos.<br />
“A voz como era?”, indaga o primeiro narrador, maravilhado com a sua nova<br />
direção ficcional. Paxiúba, o bruto, possui o poder da voz que representa o herói mítico.<br />
Assim, como uma divindade semi-humana, possui voz tonitruante. Somente os heróis<br />
mitificados possuem voz poderosa. Este “herói” é o possuidor da chave simbólica que<br />
fará o primeiro narrador, agora também mitificado, a percorrer com o próprio olhar<br />
diferenciado, a mão dinamizada e o imaginário fantasticamente iluminado, os limites<br />
mágicos do Manixi. “Ah, bem me lembro inteiro dele sim, a gente fica velho, mas, antes<br />
de morrer, a memória a gente aviva, e nela vive, até o tampo do tempo nos apagar”,<br />
revela o primeiro narrador. As lembranças fazem parte da memória, e na memória se<br />
concentra o poder mítico. A memória mítica só resguarda tempos heróicos e seres extrareais,<br />
mesmo assim, não se pode duvidar de sua verdade. A verdade mítica será sempre<br />
renovada, revestida por novas roupagens. Neste intervalo narrativo-ficcional, o narrador<br />
terá de passar pela iniciação do conhecimento primordial e sobrenatural. Páginas<br />
adiante, o segundo e verdadeiro narrador entrará ficcionalmente e vitoriosamente no<br />
“quarto escuro” do repouso fervilhante, para de lá sair renovado. Neste segundo<br />
momento ficcional, Paxiúba é o representante da chave mítica (chave mágica). A<br />
terceira chave, transcendental (oriunda do plano da consciência dinamizada), aquela que<br />
vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do escritor Pós-Moderno/Pós-Modernista de<br />
Segunda Geração, desde o início da narrativa, só será percebida e interpretada pelos<br />
leitores-eleitos “incomodados” quando o segundo narrador se predispuser a aparecer no<br />
fluxo interativo do recontar renovado.<br />
No entanto, este narrador da pós-modernidade, narrador do escritor do final do<br />
século XX e princípio do século XXI, querendo ou não, pois se vê envolvido pelas<br />
diferenciadas normas ficcionais de seu momento social, terá de se valer da técnica do<br />
olhar simulador para apresentar o Manixi, o espaço sócio-ficcional de sua narrativa.<br />
Assim, o Palácio do Manixi e as terras que o rodeiam terão de aparecer em toda a sua<br />
grandiosidade e imponência, à moda dos simulacros televisivos e cinematográficos que<br />
imperaram (imperam) em sua atualidade. Por enquanto, a saída digna, irrepreensível,<br />
para que, posteriormente, o verdadeiro narrador possa desmistificar a sua própria<br />
realidade vital e a sua outra diferenciada realidade sócio-ficcional, é buscar nos<br />
domínios do mito uma diretriz qualificada que apresente, aos leitores do momento e aos<br />
leitores do futuro, a suntuosidade exigida pelo hodierno momento histórico das<br />
grandezas simuladas. O arcabouço mítico será sempre uma dimensão que em todo<br />
tempo satisfará tais requisitos. Paxiúba é o guardião da chave. O narrador terá de eleválo<br />
à categoria de herói mítico-ficcional. No entanto, como semi-humano, o seu aparecer<br />
glorioso, ao longo da segunda etapa da narrativa, não representará um simulacro. A<br />
verdade da ficção-arte do Pós-Moderno/Pós-Modernismo de Segunda Geração<br />
ultrapassa os limites da simulação do fingir depreciativo (simulacro), para, em seguida,<br />
alcançar a glória do fingir da literatura-arte (recriar). E convenhamos: são poucos os<br />
escritores eleitos para tal missão, neste tempo presente de incomuns calamidades.<br />
“Mas o olho burro tudo vê, e registra (...)”. O teórico da literatura de orientação<br />
fenomenológica, neste início de século e de milênio, não poderá desprestigiar as
expressões ficcionais que o “incomodam”. Por que “olho burro”? Será que este “olho<br />
burro” representa o olhar do primeiro narrador, um ser híbrido, resultante do<br />
cruzamento entre o telúrico e o espetaculoso, aquele representante dos narradores que<br />
vêem em demasia? Mas, a realidade ficcional do século XX e início do século XXI está<br />
ali a exigir-lhe (ao narrador da primeira fase ficcional) um cenário grandioso para<br />
apresentação do personagem mítico que se aproxima. Então, quem tem consciência<br />
desse “olho burro” é o segundo narrador, possivelmente, narrador de um terceiro<br />
narrador, o qual intui, por sua vez, uma possível quarta chave (imaterial), propiciadora<br />
de uma insólita condução para o quarto cogito, onde se percebe o Tempo Espiritual.<br />
(Esse terceiro narrador se encontra muito bem camuflado nas tramas ficcionais do<br />
romance, nesses primeiros capítulos da narrativa). Ou será que “olho burro” representa<br />
outra expressão já conhecida, ou seja, “dar com os burros n’água”, o que, em outras<br />
palavras, significaria a perda momentânea do poder narrativo singular, exclusivo da<br />
ficção paradigmática. O olho do escritor-artista paradigmático não “registra”, recria a<br />
realidade que o cerca. No entanto, continuo aqui a resistir às assertivas ficcionais<br />
rogelianas. Se me atenho à idéia de uma afirmação diferenciada, consciente da<br />
capacidade criativa do escritor, infiro que o “olhar” esclarecido, intelectual, do segundo<br />
narrador, acompanha por sua vez a perspectiva visual do primeiro narrador. O “olho<br />
burro tudo vê, e registra ele-mesmo” a aproximação de Paxiúba, “remando silencioso e<br />
feroz pela face da manhã, no luxo de frente do porto do Laurie Costa”, criativamente<br />
secundado pelo olhar talentoso do escritor ficcional da pós-modernidade. Os narradores<br />
sintagmáticos não possuem tal visão diferenciada. Assim, o “olho burro”, explícito na<br />
narrativa rogeliana, sublinearmente e paradoxalmente, se transforma em “olho<br />
inteligente”, se for avaliado pelo ponto de vista do crítico fenomenológico. Por meio de<br />
um narrar paradoxal, o incomum ficcionista de O Amante das Amazonas revelou (revela<br />
e revelará), aos “incomodados” leitores de seu romance, a indiscutível qualidade de sua<br />
ficção.<br />
O “olhar inteligente” do narrador, nesta segunda fase da criação ficcional, se<br />
sustentará pela ligação da forma de expressão da linguagem mítica com as inovações da<br />
linguagem ficcional da pós-modernidade. Assim, o nomear enigmático colabora com o<br />
narrado pós-moderno, oferecendo-lhe, nesta segunda etapa do romance, um princípio<br />
ficcional à moda do narrar mítico-lendário, mas, paradoxalmente, imbuído de<br />
expressões dialetais familiarizadas. “Pois sim. Que diz-que Paxiúba era filho de um<br />
negro barbadiano da Madeira-Mamoré com uma índia Caxinauá que não conheci, e se<br />
tornou lendário e eterno”. iii<br />
Na primeira fase, a busca de conhecimento histórico ofereceu-lhe também um<br />
princípio ficcional. Ribamar de Sousa começa a sua trajetória diferenciada, de Patos,<br />
Pernambuco (realidade histórica), ao Manixi Amazônico (realidade ficcional),<br />
assinalando a data do início de suas peripécias existenciais em busca do extraordinário:<br />
“madrugada do Natal de 1897” iv . O princípio assinalado denuncia a caminhada do<br />
homem do século XX: aquele que não pode mais se estabelecer em seu meio<br />
comunitário, pois, adulto, sujeito a uma vida de mendicância, terá “de começar a correr,<br />
prisioneiro das colocações, e a seguir estrada com tigelinha de flandres” v . Este<br />
princípio, á moda tradicional, nesta ficção anticonvencional, só se tornou possível, em<br />
plena pós-modernidade entrópica, graças ao auxílio da História. As chamadas narrativas<br />
de estruturas inovadoras da pós-modernidade, principalmente as da Primeira Fase, não<br />
se atêm ao tempo vital (tempo linear, do relógio), são narrativas de acontecimento,
visualizando apenas o presente e não preocupadas com um clímax que as leve a um<br />
fecho à moda tradicional.<br />
No entanto, se atento para os enclaves que superexcedem no todo deste romance<br />
em especial, recupero uma terceira fase, autenticamente reveladora das imposições<br />
respeitantes às inovadoras formas estruturais de narrar da pós-modernidade. No capítulo<br />
sete, o arcabouço mítico desaparece para oferecer o espaço ao narrador da fase final do<br />
século XX. O próprio título do capítulo já é por si uma revelação peculiar: “SETE:<br />
DESAPARECE”. Quem desaparece? Do desaparecido, falarei depois. Por ora, a palavra<br />
desaparece se projeta como um referente (um sinal) de finalização da narrativa mítica e<br />
de nova mudança narrativa: do mítico para o plano da ficção-arte (a anterior sinalizou a<br />
caminhada do histórico para o mítico). No capítulo seguinte (capítulo Oito), há um<br />
“ponto” indefinido direcionando a mudança de estilo narrativo, revelando a decadência<br />
da realidade sócio-substancial amazonense, apresentada inicialmente pela maneira de<br />
narrar grandiosa da linguagem histórico-lendária.<br />
Contudo, ainda não me desenredei de Paxiúba. O arcabouço mítico-ficcional<br />
diferenciado exige-me novas reflexões sobre este poderoso personagem. Ele, neste<br />
momento em que o reflito, está vindo ao encontro de Zilda, a “esposa do Laurie Costa,”<br />
(...) “lavadeira pessoal do Palácio, das roupas brancas, exceto as lavadas em Lisboa” vi .<br />
Ele está vindo também ao encontro de minhas reflexões teórico-críticas. Vejo-me em<br />
expectativa: assim como a outra energética Zilda, a da mitologia germânica, a<br />
poderosíssima guerreira da vitória, a guerreira de ferro, terei de vencê-lo teoricamente e<br />
reflexivamente ─ pela razão, pelo conhecimento, pela ponderação inovadora ─, terei de<br />
vencer suas guardas míticas e seus desafios existenciais. Não posso deixar-me seduzir<br />
teluricamente pelo seu fabuloso porte, descomunal, colocando-me em perigo diante das<br />
já insuficientes e, ainda, exigidas análises significativas (dogmáticas), as quais estão<br />
aqui a digladiarem-se com as minhas inferências fenomenológico-interpretativas.<br />
Paxiúba surge no desenrolar ficcional pós-moderno como personagem “cínico,<br />
atravessador”, anunciando que, mesmo possuidor de uma aura mítica (que, pelo ponto<br />
de vista épico, deveria ser de autêntica pureza), ele não será concebido como tal. Seu<br />
papel é o de “atravessador”, de intermediário entre as três dimensões da efetiva ficção<br />
criativamente alterada: a sócio-substancial, a mítico-substancial e a ficcional-arte.<br />
Desde o seu surgimento até ao final da escrita rogeliana, ele atuará com desenvoltura<br />
nestes três planos da criação <strong>literária</strong>. Seu poder será atuante. Pari passu com o primeiro<br />
personagem-narrador, a sua importância se revelará sempre ativada.<br />
“Seu poder vinha do cheiro de camaru”. Em volta da Alta Palmeira dos Igapós<br />
(Paxiúba), com seus três caules indivisos (o social, o mítico e o ficcional) e sua mítica<br />
coroa de flores (o cocar), manifesta-se a interferência do cheiro do camaru, uma<br />
pequena árvore de flores aromáticas, de fruto indeiscente (que não se abre<br />
espontaneamente ao atingir a maturação). O cheiro agradável, afrodisíaco, verbenáceo,<br />
impregna criativamente todos os capítulos referentes a Paxiúba. Ao longo da leitura, o<br />
cheiro vai anestesiando inclusive o leitor. Eis o poder indiscutível do herói ficcional. Eis<br />
o poder indiscutível desta narrativa especialmente. Seu personagem não é apenas um<br />
simples simulacro, como os personagens representantes das ficções para<strong>literária</strong>s (os<br />
representantes dos textos de novela televisiva e cinema, ou mesmo das novelas<br />
para<strong>literária</strong>s ─ lineares, sintagmáticas ─, produzidas para a massa). Paxiúba terá vida<br />
ficcional permanente, enquanto o romance existir e houver leitores-eleitos. A Ficção-<br />
Arte não se materializa apenas para o entretenimento do leitor. A Ficção-Arte exige do<br />
ficcionista (incluindo posteriormente o leitor) a plena-atenção, como recomenda com
encômio a filosofia budista (normas filosófico-religiosas que, não por acaso,<br />
administram a vida espiritual do escritor aqui destacado).<br />
Paxiúba, o bruto, o fundamental, o da impressão fugidia para a certeza, correta e<br />
culposa, aproxima-se do porto do Laurie Costa, porque o semi-humano (o semideus)<br />
interessou-se por uma mortal, uma comum lavadeira do Palácio Manixi. Ele terá de<br />
tomá-la sexualmente do Laurie Costa, o marido, para, assim, transitar livremente na<br />
dimensão humana. (Assim se comportou Júpiter, ao se relacionar com Alcmena, esposa<br />
de Anfitrião; assim se comportaram os Anjos do único Deus dos Hebreus, nos<br />
Evangelhos Apócrifos, ao se relacionarem com as “filhas dos homens”). Entretanto, é o<br />
cheiro do camaru (camará, cambará) que vigora “na interseção vazia” entre o dito e o<br />
não-dito desta obra ficcional incomum. Paxiúba, graças ao perfume do camaru,<br />
ultrapassa as regras do narrar mítico, “fundamental”, para vigorar na “lógica da<br />
tenebrosa região infantil”, energeticamente ficcional, de quem escreve. Ele se revela<br />
não apenas pelo poder do mito, mas por meio da “força hipnótica (do pensar<br />
efervescente, do repouso ativado), para fora, para novas submissões”. Ele é o somatório<br />
de todos os indígenas, bugres e caboclos que povoaram o arcabouço mítico-infantil do<br />
ficcionista nascido ali, naquelas paragens, a manifestarem-se, exigindo dele que, mesmo<br />
saindo de seu lugar de origem, não poderá deixar de revelar as suas impressões<br />
primeiras, as suas particularidades e as particularidades de seus contemporâneos.<br />
O discurso mítico é a oratória da “ordem”, é a explanação (oral ou escrita) de<br />
fatos e seres grandiosos (humanos ou não), estruturalmente inseparáveis da tradição de<br />
um povo. Paxiúba possui a chave da verdade mítica de quem escreve, mas, quem terá de<br />
manuseá-la é o primeiro narrador (narrador do segundo), enquanto personagem<br />
principal das ocorrências narradas. Paxiúba possui o poder de mando, assim como os<br />
grandes guerreiros e personalidades notáveis do passado. E os legendários heróis do<br />
passado mítico (passado que se perde nas fendas do tempo, anterior aos severos dogmas<br />
do cristianismo) não conheceram a natureza íntima da bondade. A “ordem” dos olhos e<br />
o “sorriso sensual perverso” caracterizam a face reduplicada do personagem Paxiúba. O<br />
ser mítico é selvagem, primitivo. Possui o que Max Weber classificou como “poder do<br />
ontem eterno” ou “poder do carismático-guerreiro”. A “ordem” dos olhos é para que o<br />
narrador diga somente verdades (apreciáveis ou não), mesmo que o narrar mítico da<br />
pós-modernidade seja a edificação intelectual de uma narrativa em prosa, idealizada. A<br />
Floresta Amazônica, revista ficcionalmente pelo escritor nascido ali, em suas<br />
imediações, concentra a essência do mito de antigas eras, mas, aqui, insolitamente<br />
revestido pela roupagem do arcabouço mítico-lendário dos índios daquela localidade. A<br />
pureza mítica poderá ser classificada como a integridade vivencial do ser primitivo,<br />
aquele que não foi maculado por exigências ideológicas (sociais ou religiosas). O ser<br />
primitivo não conheceu (não conhece) o ônus do pecado cristão. Paxiúba não é cristão.<br />
É um ser original. Então, quem reconhece o “sorriso sensual e perverso, sublinhado por<br />
esboço de pecado” a fotografá-lo, é o narrador. A “ordem” mítica dos olhos de Paxiúba<br />
possui a pureza do primitivismo heróico. O bugre não sabe o que seja pecado, e não<br />
creio extratexto que Frei Lothar (um outro personagem importante) o tenha catequizado.<br />
Quem se percebe avaliando o “sorriso sensual e perverso” de Paxiúba é o narrador.<br />
Quem avalia o olhar do “pecado” o fotografando é o narrador, aquele que,<br />
historicamente, conhece os dogmas do cristianismo, no que tange a relacionamentos<br />
sexuais. As “baixezas” do olhar de Paxiúba saíram do “espelho” simbólico-ficcional<br />
duplicado e “sublimado” de quem narra, não da pureza primitiva do mito.
Paxiúba “se efetivara guerreiro de épocas irregulares, de tempo inverso”<br />
(invertido), possuidor dos “remotíssimos mecanismos ardilosos, das possibilidades do<br />
corpo”, ou seja, “remotíssimos mecanismos ardilosos” da urgência sexual. O guerreiro<br />
de épocas contrárias às regras (de civilidade), nesta dimensão da narrativa ficcional<br />
rogeliana, é a personificação do ser mitológico. Este ser em especial (o Paxiúba)<br />
conhece as normas e os preconceitos sexuais do ser civilizado, por isto é “capaz de<br />
muito realizar sexualmente, pois sabe sedimentar (endurecer), a partir de seu apetite<br />
carnal fabuloso, “o músculo vivo e assumido”. Seu poder é o da força bruta. Se há algo<br />
que deseja, ele o toma. Por isto, “era bom de não se encontrar de repente, na estrada<br />
deserta”. Por isto, a exigência da cautela, da precaução. Por isto Zilda, a esposa do<br />
Laurie Costa, “uma certa e acocorada lavadeira das roupas (roupas do Palácio),<br />
agachada sobre a prancha lisa do tabuão de sabão” vii , se assusta com o “regular da<br />
urgência daquele olhar” viii .<br />
“Paxiúba, emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida,<br />
nociva”. ix Por que o narrador visualiza “Paxiúba (como) emblema da Amazônia<br />
amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva”? Paxiúba é o símbolo do guerreiro<br />
mítico, gerado por seres excepcionais: a índia caxinauá e o negro barbadiano. O pai de<br />
Paxiúba, para o projeto mítico-ficcional em questão, teria de ter uma ascendência<br />
diferenciada, notável. Paxiúba teria de ser oriundo da fusão do lendário indígena com o<br />
fantástico do imaginário africano. Há poucos negros no Estado do Amazonas. O “pai”<br />
teria de se constituir diferente dos outros pais das miscigenações usuais da realidade dos<br />
costumes amazonenses. O caboclo, originário da mistura entre o índio e o branco, não<br />
possui o porte, o vigor deste personagem. Paxiúba é o “emblema”, o símbolo dos<br />
poucos “bugres”, representantes da raça forte que por ali transita. Para a “Amazônia<br />
amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva”, o autor reserva os símbolos<br />
depreciativos. “Amazônia amontoada”: todos os estratos sociais (brasileiros e<br />
universais) que para ali vão, em busca de riqueza fácil. “Amazônia brutal”: espaço<br />
geográfico onde se digladiam, em prol do rendimento pecuniário, seres grosseiros e<br />
violentos, já maculados pelas regras insanas do capitalismo selvagem. “Amazônia<br />
sombria”: receptáculo de seres tristes, lúgubres, despóticos, capazes de quaisquer ações<br />
de conseqüências desagradáveis para alcançarem seus intentos progressistas.<br />
“Amazônia desconhecida”: espaço geográfico ignorado politicamente (pelo menos,<br />
durante a ocasião do desenvolvimento do projeto ficcional), “terra de ninguém” onde se<br />
faz presente a lei do preferencialmente forte, social e miticamente apresentada.<br />
“Amazônia nociva”: Amazônia em que todos estes danos, apresentados pelo narrador,<br />
ameaçam destruir a hegemonia da nação brasileira. Paxiúba é o “emblema” (símbolo)<br />
porque, por intermédio de sua face sócio-substancial, duplicada pela ficção, o narrador o<br />
coloca como “pistoleiro do rei”, o capanga profissional, o assecla do poderoso dono do<br />
Manixi. E, para ser o “emblema” do Amazonas e sustentar a honraria, o candidato ao<br />
cargo e ao título teria (terá) de ostentar (mesmo que não fosse / que não seja imortal) a<br />
poderosa face do mito.<br />
“Paxiúba, pistoleiro do rei”. A partir desta assertiva, inicia-se a transformação<br />
dimensional do personagem. O semi-humano Paxiúba foi apresentado aos leitores,<br />
anteriormente, à moda dos lendários heróis mitificados, mas, como assecla do poderoso<br />
dono do Manixi, vigorará, daqui para frente, como personagem da dimensão sóciosubstancial.<br />
A proposta ficcional do escritor amazonense não lhe concedeu o direito de<br />
gloriosamente retornar à (retomar a) dimensão mítica, uma vez que Paxiúba não é herói<br />
de narrativa épica. Mesmo assim, até aqui, os adjetivos abonadores caracterizam o herói
lendário, e os adjetivos que não combinam com a aura do mito saem da perspectiva<br />
diferenciada do escritor da segunda fase do pós-modernismo brasileiro de Segunda<br />
Geração. Neste interregno mítico-ficcional, Paxiúba caracteriza o “soldado”, o assecla,<br />
o jagunço, o matador profissional, o lugar-tenente dos antigos e poderosos donos-deterra<br />
do Brasil, regidos há bem pouco tempo por normas políticas imperiais.<br />
“E naqueles mesmos dias ocorreram grandes fatos em outros lugares e horas,<br />
históricos e decisivos para a sucessão desta ficção e que relatarei no momento oportuno,<br />
mais que para tanto ainda tenho de revelar surpresas de muitos outros ocorridos” x . O<br />
desenrolar narrativo de “grandes fatos (...) históricos e decisivos” e as “surpresas de<br />
muitos outros ocorridos” ficcionais, daqui para frente, serão relatadas pelo segundo e<br />
principal narrador, estrategicamente fortalecido pelo incomum imaginário-em-aberto do<br />
escritor.<br />
Nos capítulos da terceira fase da ficção rogeliana (do capítulo oito em diante), os<br />
quais, pelo meu ponto de vista, explicitam com maior vigor o já mencionado<br />
imaginário-em-aberto supraverdadeiro, Paxiúba reaparecerá como personagem<br />
simplesmente ficcional. Em uma narrativa autenticamente ficcional (fenômeno da Era<br />
Moderna) o poder mítico se fragiliza. Se, como exemplo, recupero, aqui, o Quixote de<br />
Miguel de Cervantes, a minha explicação se produzirá sem custo teórico. A partir da Era<br />
Moderna, a postura ideológica do herói característico de um passado épico não mais se<br />
adequava às novíssimas exigências sócio-culturais que estavam a comandar aquela<br />
realidade. Por isto, a nomenclatura diversificada para significar o personagem central de<br />
Cervantes: herói da triste figura. Por esta razão, a renovada necessidade de<br />
descaracterizar o mito de Paxiúba (e finalizá-lo), no desenrolar narrativo ficcional<br />
rogeliano (a supremacia pura / mítica / significativa do personagem, mesmo nas<br />
urgências sexuais). A partir do capítulo dez, Paxiúba desenvolverá mais os atributos<br />
animalescos instintivos do homem da realidade sócio-substancial, a violência dos<br />
sentidos, excesso dos propósitos, o inconsciente imperando sobre a razão, em<br />
detrimento dos genuínos e transparentes arroubos sexuais que caracterizaram, no<br />
segundo segmento narrativo, a sua personalidade mítica. A decadência do Manixi (a<br />
sócio-substancial somada ao mítico-substancial) proporcionou o esboroamento da<br />
fantástica força do personagem (a redução da importância mítica do bugre em pequenos<br />
fragmentos ficcionais, o lento desmoronar de sua imponência, levando-o para um estado<br />
de velhice e morte, de acordo com as normas vitais). Por exemplo, por ocasião da<br />
agonia do Manixi (op. cit.: 102), ainda no auge de sua força sexual, Paxiúba se<br />
aproxima perigosamente de Maria Caxinauá, dominando-a sexualmente. As “mãos<br />
enormes” e os “braços do ser monstruoso” que a agarraram, já não refletiam a posse<br />
sexual do ser puramente mítico. Quem agarra Maria Caxinauá é o “mulo” Paxiúba, “a<br />
besta selvagem” já maculada por instintos da energia telúrica, originária da matéria<br />
primordial.<br />
O personagem lendário desta narrativa, o Paxiúba, nos últimos capítulos, passa a<br />
interagir (pela ótica interativa do narrador principal) com as induções visíveis e<br />
invisíveis do capitalismo desenfreado (benéficas ou maléficas), intrínsecas no plano<br />
sócio-substancial relativo à decadência do aparato capitalista do Manixi (o Manixi<br />
mítico permaneceu/permanece intacto, pois o narrador principal, por intermédio de seu<br />
narrador-auxiliar, na página 103, afirma que “a floresta vencera”). Posteriormente,<br />
envolvido por tais induções, disseminadas na maneira de pensar dos personagens<br />
relacionados com o aparato empresarial amazonense, Paxiúba começa a perder a sua<br />
aura guerreira ─ o brilho mítico, explícito, que o dignificava ─, terminando sua
existência de uma forma diferente do narrar fabuloso, ou seja, pela forma exigida pelo<br />
vital, acionada pelo dinamismo cíclico da ficção.<br />
É bem verdade que a dimensão ficcional do Manixi, o lugar onde o poder mítico<br />
de Paxiúba se fez/se faz visível, já estava maculado por valores capitalistas, desde o<br />
início da trajetória ficcional do primeiro narrador Ribamar de Sousa (e isto será<br />
decodificado nos próximos capítulos desta minha apreciação fenomenológica),<br />
entretanto, nas duas primeiras fases do romance, o espaço de concepção da obra se<br />
projetou por meio da fusão do sócio-substancial com o mítico-substancial (o que os<br />
teóricos da literatura em prosa denominam como realismo-mágico). Na primeira etapa,<br />
reinou o narrador Ribamar, como representante da dimensão sócio-substancial. Na<br />
segunda etapa, o (verdadeiro) narrador, criativamente, cedeu o privilégio ao bugre<br />
Paxiúba, pois se percebeu motivado a reclamar a aura lendária do gigantesco<br />
personagem, para iluminar e revigorar o seu desenrolar narrativo. Eis aqui a razão<br />
(fenomenológica) da imponência do personagem. No entanto, a aura de Paxiúba não<br />
permanecerá visível nos capítulos subseqüentes da terceira fase ficcional (e final). E a<br />
nova face de Paxiúba começa/começará a aparecer a partir da decadência exterior do<br />
Manixi, sustentada e assinalada por ocasião de seu encontro voluptuoso com a<br />
Caxinauá.<br />
No capítulo intitulado DEZESSETE: A RUA DAS FLORES, o bugre Paxiúba<br />
reaparece como homem “original” (ser primitivo), ao aproximar-se de Conchita Del<br />
Carmen, “uma mulher gorda, muito gorda e muito sexy”, “a dona da Rua das Flores”,<br />
“o mais belo jardim humano” da prostituição bem-educada da cidade de Manaus, uma<br />
Transvaal incrustada nos domínios do Mito Indígena e recriada pela arte ficcional<br />
rogeliana (de uma forma nunca vista em outros escritores da pós-modernidade).<br />
Paxiúba se “afigurou” xi como homem ─ primitivo ─ diante de Conchita Del<br />
Carmen. Transitando dentro dos limites poderosos de um complexo populacional<br />
urbano, calcogênico, repleto de emanações terrestres, Paxiúba perde a aura lendária,<br />
aquela aparência miticamente iluminada que o caracterizou, quando de sua atuação<br />
como ser extraordinário, o “emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria,<br />
desconhecida, nociva”.<br />
“Meio envergonhado, como convinha tratar a uma senhora-dama, ele veio<br />
dizendo uns “bons dias...”. Aquele que, “meio envergonhado”, se aproxima dizendo uns<br />
“bons dias” à senhora-dama Conchita Del Carmen, não é o mesmo Paxiúba que<br />
“assustou” a lavadeira Zilda com a urgência de sua mítica necessidade sexual.<br />
Nesta seqüência da narrativa rogeliana, Paxiúba perde a sua primazia heróica,<br />
pois penetrou no Olimpo telúrico da prostituição do recinto de Transvaal, e quem se<br />
coloca em evidência agora é o narrador da fase final do século XX, oferecendo aos<br />
leitores de seu romance a possibilidade de alcançarem o reverso da medalha da<br />
narrativa em prosa que caracteriza a escritura <strong>literária</strong> da era pós-moderna. A partir do<br />
capítulo oito, a sensibilidade criativa, já distinguida desde as primeiras linhas do<br />
romance, alcança um reanimado pódio ficcional. Nesta seqüência, já não há lugar para<br />
as ações engrandecidas de Paxiúba, ou mesmo dos outros personagens (brancos ou<br />
índios) situados nas fronteiras do Manixi. Em princípio, o ficcionista se mobilizou em<br />
função de uma vigorosa retomada dos valores histórico-sociais do Estado do Amazonas,<br />
espaço geográfico brasileiro de onde se originaram os créditos culturais que<br />
sedimentaram sua caminhada vivencial. O narrador rogeliano, no início da narrativa,
etoma ficcionalmente o grandioso passado histórico do Amazonas (em sentido positivo<br />
e negativo), para reagir paradoxalmente contra as injustiças, sócio-políticas, que aos<br />
poucos propiciaram a decadência do lugar. O descendente de um povo mitificado, o<br />
amante (cultural, intelectual) das lendárias guerreiras amazonenses, o admirador<br />
inconteste da grandiosidade histórica do lugar, percebe que há mistérios a serem<br />
revelados. Esses mistérios, ao contrário das regras oficiais da narrativa ficcional, terão<br />
de ser engendrados ficcionalmente por sua sensibilidade ímpar, e esta sensibilidade de<br />
ficcionista incomum não se enquadra (não se encaixilhará jamais) em padrões préestabelecidos.<br />
Depois da grandiosa extensão territorial do Manixi, inédita e<br />
diferenciada, (com o seu “magnífico, supremo, inominável, majestoso” xii Palácio),<br />
surgem “ratos” na cidade de Manaus. Os “ratos” se manifestam depois da decadência e<br />
“morte do Manixi” xiii , ativados pelo terceiro cogito do escritor-testemunha do<br />
crepúsculo da era da borracha, surpreendido agora pela necessidade de contemplar para<br />
a posteridade, mesmo que seja por intermédio de fragmentos narrativos, as frestas dessa<br />
decadência (contrária às regras e aos bons costumes das puras e antigas sociedades<br />
mitificadas, reverenciadas pelas gerações posteriores).<br />
Revela-se, nos capítulos finais de O Amante das Amazonas, a autêntica<br />
documentação (pelo ponto de vista ficcional) do que não se pode avaliar, porque a<br />
presente história sócio-cultural do ficcionista pós-moderno ainda não se completou.<br />
Urge fazer justiça aos seus naturais (ao seu povo, que sentiu na própria pele os estragos<br />
da decadência); urge encontrar um justiceiro que aceite a co-participação em seus atos<br />
de autoridade judicial. Urge eliminar o mito do grandioso em proveito do pequeno, do<br />
incompreensível, das migalhas de pão que caem da mesa dos antigos poderosos, agora,<br />
decadentes.<br />
Gaston Bachelard, em A Terra e os Devaneios do Repouso xiv , cita Tristan Tzara:<br />
“Aumentadas no sonho da infância, vejo de muito perto as migalhas secas de pão e a<br />
poeira entre as fibras de madeira dura ao sol”. A Manaus da ficção rogeliana saiu do<br />
arcabouço vivencial infanto-juvenil. O narrador principal foi testemunha dos últimos<br />
estilhaços do esplendor da borracha, do que restou da grandeza capitalista. Foi<br />
testemunha da decadência. Foi ele que viu, por intermédio de sua sensibilidade provinda<br />
naturalmente da infância, os “ratos”, como “um traço cinematográfico, contínuo”, se<br />
infiltrando “entre as frestas da construção carcomida” xv de sua anterior realidade sócioexistencial.<br />
Assim, percebe-se a urgência em causar a morte do mito (autoritário,<br />
exemplar), adotando ficcionalmente o descontínuo existencial do momento, em prol de<br />
uma futura nova ordem fundamental (pós-moderna). Por este ângulo interpretativo,<br />
Paxiúba terá de morrer, “afigurado” como homem primitivo (Paxiúba, o Mulo). Alguém<br />
terá de apertar o gatilho e eliminar o mito, transmutado em ser primitivo, da face do<br />
Amazonas. Para tanto, o narrador delega esse poder a um outro personagem, o Benito<br />
Botelho. “Benito atirou no meio do tórax, matando-o. Benito o matou, sim. O morto era<br />
Paxiúba, o Mulo.” xvi<br />
Pela ótica da crítica <strong>literária</strong> cientificista-estruturalista, cerceadora, terá de existir<br />
uma razão para a morte do bugre. Por enquanto, fica a pergunta à moda<br />
fenomenológica: Qual foi o motivo (real ou ficcional) que levou o personagem Benito<br />
Botelho a matar Paxiúba? Sobre este assunto, indagarei no capítulo a ele reservado.”<br />
In: NEUZA MACHADO. O Fogo da Labareda da Serpente: Sobre O Amante das<br />
Amazonas de Rogel Samuel. Rio de Janeiro: NMACHADO, 2008. (No prelo - ISBN<br />
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ii<br />
BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. 1. ed. de 1989. São Paulo: Martins Fontes, 1998: 158.<br />
iii<br />
Ibidem.<br />
iv<br />
Idem: 9.<br />
v<br />
Idem: 14.<br />
vi<br />
Idem: 37- 41.<br />
vii<br />
Idem: 37-38.<br />
viii<br />
Idem: 39.<br />
ix<br />
Ibidem.<br />
x<br />
Idem: 46 - 47.<br />
xi<br />
Ibidem.<br />
xii<br />
SAMUEL, Rogel, 2005: 151.<br />
xiii<br />
Idem: 90.<br />
xiv<br />
TZARA, Tristan. L’antitête. Lê nain dans soncornet, p. 44. In.: BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios do Repouso. 1. ed. brasileira. Tradução: Paulo Neves da<br />
Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990: 15.<br />
xv SAMUEL, Rogel, 2005: 89.<br />
xvi Idem: 138.