LITERATURA LATINA I - Universidade Castelo Branco
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vive como animal no meio de animais, que não diferencia<br />
entre a caça e a guerra, pois não há diferença<br />
entre um animal e um homem. Esse tipo de caçador se<br />
situa num espaço de além, fora do espaço habitado. A<br />
selvageria extrema e impossível dos confins dá, pois,<br />
suas cores em Fedra a uma selvageria mitológica que<br />
é a da Amazona, mãe de Hipólito, onde reencontra<br />
Pasifae, mãe de Fedra.<br />
A dança de Hipólito depois da prece a Diana é a de<br />
um chefe selvagem, de um homem-lobo que, se ele<br />
reina na Ática, a transformaria em deserto, em floresta<br />
virgem. Mas esse valor ideológico do prólogo que deduzimos<br />
das palavras de Hipólito é o desenvolvimento<br />
verbal de uma evidência espetacular. O público romano<br />
reconhecia imediatamente em Hipólito, desde que<br />
o vê, um caçador selvagem dos confins. Desde que ele<br />
já o viu alhures, essa dança do rei bárbaro que reina<br />
sobre sujeitos como sobre um gibon, seja no circo nas<br />
venationes, ou gladiadores reproduzindo grandes caças<br />
mitológicas ou pseudo-históricas – caças de Hércules<br />
ou de Alexandre – seja no teatro das pantomimas com<br />
assuntos miológicos. Costumes bárbaros em vivas cores,<br />
músicas estranhas e, no circo, presença de animais<br />
exóticos (leões, panteras etc.) inscreveram na memória<br />
dos romanos imagens definitivas.<br />
Ao corpo selvagem e dançante de Hipólito abrindo a<br />
tragédia corresponde o quadro final de seu corpo mutilado,<br />
incompleto, hediondo, que o traz de volta à civilização.<br />
A dança de Hipólito é da mesma natureza trágica<br />
que as danças do furor; mas um furor que não foi<br />
precedido pelo espetáculo da dolor, ou ainda da mesma<br />
natureza que a dança de Tântalo. Ele realiza assim seu<br />
corpo mitológico, como fazem Djanira e Medéia.<br />
Esta primeira parte do nefas é possível, quer dizer, é<br />
o reencontro entre as duas selvagerias, porque Diana<br />
serve de intercessora. Ela encarna as duas façes da selvageria,<br />
a masculina e a feminina. Ela é a divindade<br />
dos confins e da caça. É a divindade dos homens selvagens,<br />
mas é também, sob o nome de Hécato, a lua,<br />
a deusa da magia amorosa, pois uma lenda narra que<br />
a lua se tomou de amor por Endimião, um pastor, e<br />
desceu à terra, seduzida. Depois, as magas a associam<br />
aos lagos para que ela favoreça aos amores difíceis.<br />
Hécato, astro noturno, é uma deusa de mulheres enamoradas.<br />
E por isso que a Ama lhe faz uma prece:<br />
Rainha da floresta, ó única moradora e adorada na<br />
montanha,<br />
muda para melhor os meus presságios! Deusa magna<br />
das florestas e dos bosques, astro do céu claro, glória<br />
da noite,<br />
tu que alternas com o dia a luz do mundo, tríplice<br />
Hécato,<br />
acode em nossa ajuda! Doma do triste Hipólito a<br />
alma gélida:<br />
aprenda a amar, partilhe os fogos mútuos e saiba ouvir.<br />
O coração lhe amansa, enleia-lhe a razão! Hostil<br />
e irado<br />
retorne às leis de Vênus. Nisso empenha o teu poder.<br />
..............................................<br />
Custa-me executar o crime ordenado. Quem teme<br />
os reis<br />
proscreva o certo e o justo; expulse a honra do peito!<br />
O pudor é mau cúmplice dos déspotas.<br />
A dúpla natureza de Diana está já presente no fim do<br />
prólogo dançado por Hipólito; quando ele terminou<br />
sua oração à deusa, ele ouve os latidos dos cães; é<br />
um sinal da presença de Hécato, a partir das preces<br />
de magia erótica.<br />
A tragédia passa-se, pois, em dois tempos correspondentes<br />
aos dois estágios corporais dos heróis: a<br />
primeira parte é aquela dos corpos selvagens e belos;<br />
a segunda, aquela dos corpos em luto e lesados.<br />
Teseu sai dos Infernos, lúgubre e despojado como<br />
um fantasma. Fedra toma sucessivamente duas posturas<br />
de luto: a primeira é a exibição socializada dos<br />
efeitos de sua violação (pretendida), a segunda, para<br />
chorar Hipólito. Hipólito é um cadáver mutilado,<br />
completamente ferido.<br />
A cena da confissão amorosa se repete na cena da<br />
confissão criminal; essas cenas se juntam em três, com<br />
o terceiro ausente. No início, o ausente é Teseu: no país<br />
dos mortos, ele não é senão uma máscara posta sobre<br />
os olhos de Hipólito; a seguir o ausente é Hipólito, que<br />
não passa de um monte de carne desgraçada. Nas duas<br />
cenas, Fedra repete o mesmo gesto da sedução que a<br />
liga a Hipólito, mas na primeira vez o nefas fica incompleto,<br />
pois não foi posto em cena um ritual pervertido;<br />
na segunda vez, utilizando o rito do luto, Fedra vai até<br />
o fim de sua transformação em monstro e liga seu destino<br />
a Hipólito na memória da mitologia. Sua acusação<br />
mentirosa contra Hipólito é tipicamente uma cena de<br />
astúcia para preparar o scelus nefas.<br />
Édipo<br />
Édipo é uma das tragédias mais complexas de Sêneca.<br />
Salvo as aparências, esta tragédia obedece ao mesmo<br />
esquema das outras tragédias. A única diferença<br />
está no que se refere ao nefas, que foi cometido antes<br />
do início da ação cênica. Mas, como nada se sabe disso<br />
no início da peça, é como se o nefas não existisse<br />
ainda para aqueles que se tornarão seus sujeitos:<br />
Édipo e Jocasta. A invenção do nefas vai coincidir<br />
com a descoberta dos crimes cometidos por Édipo, o<br />
parricídio e o incesto. Dizer o nefas ou cumpri-lo é a<br />
mesma coisa, pois o crime, para tornar-se performativo,<br />
é preciso que seja ritualizado. Isto não é espantoso<br />
numa civilização em que um prodígio, um monstrum,