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Sétima Edição - Junho / 2009 - MGA

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A história da transexual Cíntia que,<br />

mesmo aprovada em concurso público,<br />

foi impedida de assumir o cargo<br />

Ela tem 1,62 m, 59 kg, 80 cm de busto<br />

e 68 cm de cintura. Costuma trabalhar<br />

de baby-look por baixo de um avental<br />

verde ou rosa, calças jeans e tênis. Os cabelos<br />

são loiros. Tingidos. Nas unhas das<br />

delicadas mãos, esmalte cintilante. Sombra<br />

prateada e batom cor-de-boca completam<br />

a maquiagem. Professora Cíntia já<br />

passou por cerca de 20 escolas estaduais<br />

com esse visual. Estava preparada para assumir<br />

o cargo efetivo neste ano, mas foi<br />

barrada por uma avaliação pericial que<br />

destacou seus “aspectos femininos, com<br />

brincos, sobrancelhas finas...”<br />

Cíntia, na verdade, é a transexual cearense<br />

Cícero Rigoberto Duarte Sales,<br />

38. Na última quarta-feira, a defensora<br />

pública Maíra Coraci Diniz, 26, entrou<br />

com um mandado de segurança com<br />

pedido de liminar para que Cíntia assuma<br />

o cargo de professora, função que<br />

exerce desde 18 de março de 2004 e<br />

para a qual foi aprovada em concurso<br />

público e nomeada pelo “Diário Oficial”<br />

do Estado de São Paulo em 22 de<br />

dezembro do ano passado.<br />

Esta é a primeira ação do gênero<br />

movida pela Defensoria Pública de São<br />

Paulo. Para Maíra, não há dúvida: Cíntia<br />

foi considerada não-apta para a função<br />

de professora estadual por homofobia.<br />

“Qual a pertinência em descrever os aspectos<br />

da aparência da professora, assumidamente<br />

transexual, num diagnóstico<br />

pericial?”, questiona a defensora. A 12ª<br />

Vara da Fazenda Pública concedeu liminar<br />

favorável para que a transexual assuma<br />

o cargo de professora, provisoriamente,<br />

até o mérito da ação ser julgado.<br />

O DPME (Departamento de Perícias<br />

Médicas do Estado) refuta que a decisão<br />

de considerar Cícero inapto para o ingresso<br />

no serviço público tenha sido tomada<br />

por razões homofóbicas. Por intermédio<br />

da assessoria de imprensa, o órgão divulgou<br />

nota reafirmando que o parecer<br />

se baseia em questões médicas. “Em respeito<br />

aos candidatos, o DPME mantém<br />

sigilo médico sobre o conteúdo das avaliações.”<br />

Em relação ao concurso feito<br />

pela transexual, informa que em torno<br />

de 10% dos aprovados também foram<br />

considerados inaptos.<br />

Piadinhas Piadinhas e e rebeliões<br />

rebeliões<br />

Nascido em Pentecoste (CE), Cícero<br />

descobriu que se sentia atraído por ho-<br />

mens aos 11 anos. No início da adolescência,<br />

percebeu que era mais que isso:<br />

“Estava no corpo errado”. Deixou o cabelo<br />

crescer, tirou sobrancelhas, mas escondeu<br />

da família que era gay. Aos 16,<br />

quando a mudança começou a se tornar<br />

evidente com as aplicações de hormônio<br />

feminino, não teve jeito. Os peitos<br />

cresceram, a voz afinou e a cintura e<br />

os quadris ganharam novos formatos,<br />

mais delineados.<br />

Cícero tinha 20 anos e morava em São<br />

Paulo quando passou a adotar a identidade<br />

de Cíntia. Ela ainda não fez a transgenitalização,<br />

como é chamada a cirurgia<br />

de mudança de sexo. O Ministério da<br />

Saúde considera transexual a pessoa com<br />

identidade de gênero diferente do biológico,<br />

independentemente de ter se submetido<br />

à operação.<br />

Formada em letras, com habilitação<br />

em português e inglês, e prestes a se formar<br />

em geografia no final do mês que<br />

vem, a professora passou a dar aulas no<br />

Estado. A primeira tarefa não foi fácil. Encarou<br />

uma classe com 30 internos reincidentes,<br />

entre 15 e 18 anos, da antiga unidade<br />

da Febem no Tatuapé.<br />

Professora Cíntia fez um esforço danado<br />

para voltar a ser Cícero. Cortou os<br />

cabelos, deixou a sobrancelha crescer,<br />

tudo para não dar pinta. Em vão. Alguns<br />

lhe chamavam de professora. Outros ficavam<br />

em dúvida. Queriam saber se<br />

quem estava diante do quadro-negro era<br />

homem ou mulher.<br />

Discreta e bem articulada, Cíntia se<br />

esquivava de dar uma resposta fechada<br />

aos adolescentes. Naquela unidade, ela<br />

conta que enfrentou rebeliões e chegou<br />

a se tornar refém numa delas.<br />

Em setembro de 2006, Cíntia se afastou<br />

do trabalho, vítima da síndrome do<br />

pânico. Após sete meses, estava apta<br />

novamente, conforme certificado de sanidade<br />

e capacidade física do próprio<br />

DPME de 16 de maio do ano passado.<br />

O que chamou a atenção da defensora<br />

pública Maíra foi o fato de o teor da<br />

avaliação ter mudado em menos de um<br />

ano. Quando a professora fez os exames<br />

de admissão definitivos, o laudo, de 8 de<br />

fevereiro deste ano, considerou a concursada<br />

não-apta para assumir a função.<br />

Vir Virtude Vir tude e e preconceito<br />

preconceito<br />

Depois de deixar a antiga Febem, a<br />

professora passou a dar aulas de português<br />

e geografia nas escolas estaduais<br />

Heróis da FEB e Professor João Borges, na<br />

zona leste, para sétima e oitava séries do<br />

ensino fundamental e primeiro e segundo<br />

anos do ensino médio.<br />

Diretoras das duas escolas fazem recomendações<br />

da professora. Nas cartas,<br />

ressaltam qualidades como “capacidade<br />

de iniciativa, criatividade, assiduidade,<br />

disciplina e autocontrole”. As avaliações<br />

e o atestado médico foram apresentados<br />

ao DPME. “Ninguém os considerou”,<br />

afirma Cíntia.<br />

Desde então, sem poder contar com<br />

o salário inicial de R$ 1.303 (por 30 horas<br />

semanais) de professora concursada, ela<br />

voltou a morar na casa de uma irmã. No<br />

momento, sustenta-se dando cinco aulas<br />

semanais, como temporária, numa<br />

escola estadual.<br />

Cíntia conta que comentários e insinuações<br />

de estudantes ou colegas não<br />

interferem em seu desempenho profissional.<br />

“O aluno tem que ter o interesse<br />

pelo aprendizado. Vai à escola para<br />

aprender. Essas são as minhas funções”,<br />

diz. “Minha vida particular não é de interesse<br />

público.”<br />

Ela já não esconde mais sua identidade<br />

de gênero. Quando apresenta seus<br />

documentos na secretaria das escolas em<br />

que vai dar aula, o nome de batismo é<br />

motivo de comentários do tipo: “Digitaram<br />

seu nome errado?” Cíntia explica<br />

que é transexual, mas não entra em detalhes.<br />

“Considero desnecessário colocar<br />

isso em discussão na escola. É um direito<br />

que tenho me preservar, uma estratégia<br />

de autodefesa.”<br />

Por enquanto, apesar de ter sido impedida<br />

de assumir a função efetiva como<br />

professora, Cíntia não pretende abandonar<br />

o ensino público. “O Estado até então<br />

havia me acolhido como sou. Será que<br />

todo transexual tem que ser cabeleireiro<br />

ou se prostituir?”<br />

07

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