A Arte de Pesquisar – Mirian Goldenberg - Universidade Federal de ...
A Arte de Pesquisar – Mirian Goldenberg - Universidade Federal de ...
A Arte de Pesquisar – Mirian Goldenberg - Universidade Federal de ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
40 / <strong>Mirian</strong> Gol<strong>de</strong>nberg<br />
Norbert Elias chama a atenção para a curiosa contradição<br />
dos <strong>de</strong>sejos dos outsi<strong>de</strong>rs: a tentativa <strong>de</strong> romper<br />
com o establishment e, ao mesmo tempo, a luta pelo<br />
reconhecimento e aceitação <strong>de</strong>ste establishment. Para<br />
ser um músico da corte, além <strong>de</strong> qualificações musicais,<br />
era necessário assimilar o padrão <strong>de</strong> comportamento<br />
cortesão. Mas Mozart não tinha as habilida<strong>de</strong>s necessárias<br />
para conquistar os nobres: odiava bajulações, era<br />
franco, direto e até ru<strong>de</strong> com as pessoas <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>pendia.<br />
Com pouco mais <strong>de</strong> 20 anos, <strong>de</strong>sistiu <strong>de</strong> seu posto<br />
relativamente seguro <strong>de</strong> regente da orquestra e organista<br />
da corte <strong>de</strong> Salzburgo e foi ganhar a vida como<br />
artista autónomo, dando aulas <strong>de</strong> música e concertos<br />
para o público vienense, ven<strong>de</strong>ndo seu talento e suas<br />
obras em um mercado incipiente, predominantemente<br />
composto <strong>de</strong> aristocratas da corte.<br />
Elias mostra que o conceito <strong>de</strong> génio é aplicado a<br />
Mozart com os olhos do presente, já que esta noção surgiu<br />
muito <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua morte, com o romantismo. Na<br />
sua época, era muito difícil se estabelecer como artista<br />
autónomo e conseguir "dar ré<strong>de</strong>a livre às suas fantasias",<br />
como Mozart <strong>de</strong>sejava. Elias, analisando a mudança<br />
na posição social do artista — do patronato ao mercado<br />
livre —, lembra que Beethoven, nascido em 1770,<br />
quase 15 anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Mozart, conseguiu com muito<br />
menos problemas libertar-se da <strong>de</strong>pendência do<br />
patronato da corte, impor seu gosto a um público<br />
pagante e alcançar sucesso com a venda <strong>de</strong> suas composições<br />
para os editores. Mozart antecipou atitu<strong>de</strong>s e sentimentos<br />
<strong>de</strong> um tipo posterior <strong>de</strong> artista: o artista livre,<br />
que confia acima <strong>de</strong> tudo em seu talento, numa época<br />
em que a estrutura social não oferecia tal lugar para os<br />
músicos. Mozart nasceu numa socieda<strong>de</strong> que não permitia<br />
a existência <strong>de</strong> um artista individualizado e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />
"foi um génio antes da época dos génios".<br />
A <strong>Arte</strong> <strong>de</strong> <strong>Pesquisar</strong> / 41<br />
Para Norbert Elias, o caso individual <strong>de</strong> Mozart tem<br />
uma importância paradigmática: interessa a todos compreen<strong>de</strong>r<br />
como surge um talento criativo singular. Norbert<br />
Elias lembra que a "sociologia <strong>de</strong> um génio" não é<br />
feita para reduzir ou <strong>de</strong>struir sua fama, mas para melhor<br />
compreen<strong>de</strong>r sua dimensão humana. O autor, ao fornecer<br />
instrumentos para compreen<strong>de</strong>r como um indivíduo<br />
se transforma, após sua morte, em "génio", permite pensar<br />
como indivíduos se transformam em mo<strong>de</strong>los para as<br />
<strong>de</strong>mais pessoas <strong>de</strong> suas socieda<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> suas épocas. Elias<br />
<strong>de</strong>monstra que somente condições muito particulares <strong>de</strong><br />
existência (sociais, históricas, familiares e psicológicas)<br />
permitiram o reconhecimento ãa genialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mozart.<br />
Sua análise contribui para questionar a visão essencialista<br />
que percebe o indivíduo como encarnação <strong>de</strong> um génio,<br />
como algo que está contido em si próprio, inexplicável,<br />
hereditário, que vem do berço. Elias <strong>de</strong>monstra que o indivíduo<br />
se faz por suas ativida<strong>de</strong>s e pelas condições que<br />
dispõe para realizá-las no contexto histórico e social em<br />
que existiu. Norbert Elias ajuda a compreen<strong>de</strong>r a vida<br />
não só <strong>de</strong> Mozart, mas a trajetória <strong>de</strong> outros indivíduos<br />
consi<strong>de</strong>rados génios, revolucionários, heróis ou loucos.<br />
Elias, um estudioso que combina sólida formação<br />
em filosofia, psicologia e sociologia, mostra que o caso<br />
<strong>de</strong> Mozart é "bom para pensar" a relação <strong>de</strong> um indivíduo<br />
com o mundo em que vive e contribui para transformar.<br />
Foi a partir <strong>de</strong>sta perspectiva que <strong>de</strong>senvolvi minha<br />
tese <strong>de</strong> doutorado sobre a trajetória <strong>de</strong> Leila Diniz,<br />
buscando enten<strong>de</strong>r como ela se tornou um mo<strong>de</strong>lo para<br />
as pessoas <strong>de</strong> sua época. Ao tomar emprestado o título<br />
da minha tese <strong>de</strong> uma música <strong>de</strong> Rita Lee, Toda<br />
mulher é meio Leila Diniz, tento <strong>de</strong>monstrar que ao<br />
analisar a vida <strong>de</strong> Leila Diniz estou analisando, também,<br />
o "campo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s" e as questões colo-